O corpo e suas representações

"O hábito dos escultores modernos de expor um torso como uma obra de arte completa poderia jamais ter existido se a arte antiga tivesse sobrevivido em bronze mais que em mármores fragmentados", escreveu Kenneth Clark. Assim, os corpos mutilados da estatuária clássica, admirados desde a Renascença, levaram-nos a valorizar cada fragmento como uma obra em si, ainda que cada parte nos remeta a um corpo ideal para sempre perdido. Na medida em que a revolução industrial avançava, a nostalgia de um todo harmônico ia sendo substituída pela percepção sincopada de um mundo em constante mutação. O fragmentário, o inacabado, o híbrido passaram a fazer parte da estética moderna.

Por outro lado, as transformações que o conhecimento das esculturas africanas produziu na arte ocidental acabaram por substituir a beleza regida pelos cânones clássicos, pela expressividade das deformações ou pela redução das formas humanas a elementos geométricos. Embora os europeus tenham colecionado objetos provenientes da África desde a época dos Descobrimentos, somente com o Modernismo, a escultura tribal deixou de ser vista apenas como objeto de interesse etnográfico para ser apreciada esteticamente.

O contato de artistas como Picasso, Matisse, Braque e Brancusi com máscaras e esculturas africanas determinou uma mudança fundamental para as vanguardas artísticas das primeiras décadas do século XX: o abandono dos modos de representação baseados na percepção visual por outros de ordem conceitual. Se os significados desses artefatos permanecem misteriosos para a maioria de nós, suas formas e recursos construtivos depois de apropriados pela arte moderna foram plenamente assimilados pelo gosto ocidental. Pode-se dizer que o "pensamento selvagem" (Levy-Strauss) contaminou a mente do homem civilizado.

É sob a perspectiva dessa rica convivência que reunimos nessa mostra arte tribal e obras contemporâneas. As esculturas africanas foram trazidas do Mali, de Burkina, da Costa do Marfim e da Nigéria pelo colecionador Christian Heymes, grande conhecedor da arte negra na qual foi iniciado por seu pai. Ao longo de sucessivas viagens ao oeste da África ele recolheu, nesses últimos 30 anos, peças de extraordinário requinte formal e de complexa significação simbólica. A seleção apresentada nos permite vislumbrar o universo mágico próprio das sociedades tribais ao mesmo tempo em que nos dá uma idéia da lição africana que os modernos esforçaram-se por aprender.

Sabe-se que tanto a fragmentação quanto a tendência a simplificar as formas conduziram à abstração. Esses dois procedimentos orientam a produção contemporânea alusiva ao corpo. Nas esculturas em ferro e madeira do artista capixaba José Carlos Vilar percebe-se uma forte ressonância da volumetria geometrizada típica da arte negra por vezes associada ao expressionismo da linha, num misto de contenção e agressividade, racionalidade e paixão. Hieráticos, verticalizados como as colunas sem fim de Brancusi, esses objetos funcionam como representações das forças arcaicas que mobilizam o ser humano.

Edgar de Souza comparece com peças de parede, moldadas em material sintético, em alguns casos estofadas e revestidas de couro. Seu universo estético poderia ser o da estatuária clássica como fazem crer suas esculturas em que a figura humana é representada em escala próxima ao natural. Entretanto, o homem ideal não é o paradigma pelo qual pauta sua obra. A questão do duplo, da continuidade e descontinuidade entre os seres, logo da reprodução sexuada e assexuada me parece ser a chave para o entendimento da produção desse artista. O caráter metonímico das peças em exposição alude à organicidade, ao corporal. Daí os fluídos, as peles, as cavidades e protuberâncias corporais que essas grandes gotas brancas, esses objetos esféricos macios e interligados, esses cilindros cobertos de pelos sugerem ao nosso olhar e ao tato.

Caíto explora o visceral há muito tempo. Inicialmente fez objetos, usando plásticos, alfinetes e outros materiais reciclados, que apelam a um erotismo perverso. São volumes estrangulados, perfurados, freqüentemente de cores vivas que, entretanto, esmaecem com o tempo. Suas esculturas mais recentes são moldadas em gesso e fundidas em bronze depois patinadas em branco ou negro. São como entranhas tortuosas, intestinas, visualmente aparentadas às parasitas da floresta tropical. Tal como esses vegetais elas se apóiam ou se enroscam no suporte, recordando, sob esse aspecto os trepantes de Lygia Clark.
Na obra desses artistas de hoje bem como na imaginária africana conformada por uma tradição arcaica, subjaz a angústia própria do ser humano: a de saber o corpo perecível, mortal. Nesse sentido, essas representações são exorcismos da morte.

Maria Alice Milliet
novembro de 2002