terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Questão Homérica

Que data deveremos atribuir a esse acontecimento que é a passagem da recitação dos versos pela memória para a fixação na escrita? Quem terá sido Homero: um bardo ou o epónimo (personagem que dá o nome) de uma comunidade de poetas? Terá sido ele o autor dos dois poemas: a Ilíada e Odisseia?
Estas perguntas, impossíveis de responder com certeza, além de outras que lhes estão ligadas, ocupam há cerca de vinte e três séculos, os estudiosos dos poemas, constituindo a questão homérica. Das multiplas interrogações a que foi dando origem avulta uma que, a partir dos anos 30, se tem afirmado como fulcral para a compreensão dos poemas, a saber, a do seu modo de composição.
Foram as investigações de Milman Parry que, no final dos anos 20, vieram a inspirar uma das interpretações que maior aceitação tem tido nos nossos dias: aquela que aqui se tem pontualmente apresentado.
Defende essa escola a génese oral dos poemas, a partir de um ciclo de cantos que, através dos tempos, gerações de bardos teriam vindo a reproduzir e ampliar. Como vimos, no início do século VIII a.C., um bardo, ou uma comunidade que adoptou o seu nome, ter-se-á devotado á empresa de lançar por escrito a Ilíada e a Odisseia.
Á primeira vista, perante a extensão e a diversidade dos cantos que relatavam o ciclo troiano, a tarefa mais delicada residiria na composição unitária dos poemas, como corpos coerentes e autónomos. Esta exigência determinou a narração dos factos segundo uma perspectiva temática, que não hesita em desprezar momentos cruciais na narrativa:
'canta, ó Musa, a cólera funesta de Aquiles...'
a proposição expressa nos dois primeiros versos da Ilíada obriga a serem postos de parte acontecimentos como as causas e o início da expedição, a morte do herói, a queda e a destruição de Tróia e as circunstâncias em que decorre o regresso dos combatentes ás suas terras. Do mesmo modo, na Odisseia, o tema dos errores de Ulisses acomoda sucessívos episódios numa narrativa em que a ordem cronológica é repetidas vezes sacrificada á cuidadosa preparação do clímace: o reconhecimento de Ulisses por Penélope e a carnificina dos pretendentes.
O produto de tanto engenho são dois grandiosos polípticos, em que várias sociedades são retratadas através da descrição de episódios das vidas das suas personalidades mais ilustres. Mas o factor que mais poderosamente terá contribuído para assegurar o interesse das gerações vindouras terá sido o quadro ético-político que os poemas condensam. O modelo do herói homérico impõe-se como a expressão de um ideal de vida, que os gregos - e muitos outros, depois deles - nunca perderão de vista, mesmo quando abertamente o questionam.
Todavia, o que aqui nos prende é a importância e o significado destes poemas, quer como persistencia da memória oral dos Gregos, quer como momento de introdução da tecnologia que futuramente determinará as condições de sobrevivência de qualquer mensagem cultural. Referimo-nos á escrita.
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Fonte: SANTOS, José Trindade, Antes de Sócrates, Gradiva, 1992

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