30 novembro 2006

Sob a cólera de Mnemósine

Impressões sobre quase tudo com quase nada:
Ópera -
"O homem que confundiu sua mulher com um chapéu"


Foi para perpetuar o triunfo dos deuses do Olímpo sob os titãs - por meio do canto e da poesia - que Zeus copula com a deusa Mnemósine ("Memória"), gerando suas filhas, as musas, palavra da qual a própria música está intrinsecamente ligada. Música e memória são elementos complementares e mesmo indissociáveis.

Assim, acaba sendo um fato de estranha ironia um músico que preserva toda sua capacidade mnemônica musical mas, pelo outro lado, é totalmente privado deste recurso no campo visual. Sob a cólera da ciumenta de Mnemósine o Dr. P, cantor e professor de música, perde gradualmente sua "memória" visual. Agnosia. A visão torna-se uma armadilha da qual apenas as filhas da deusa grega servem como guia e arma de defesa.

Estupendamente interpretado por Stephen Bronk, Dr. P nega a todo custo o que se passa, e tenta fazer piada das tristes limitações que adquiriu e dos ridículos que elas o colocam. Ao final de todo processo, sua expressão, antes altiva (típica daqueles que acreditam estar passando por um inofensivo problema de saúde), toma ares de uma sandice sagrada, a partir da qual todos que o cercam se vêm obrigados a entendê-lo por sua perspectiva.

Entender o outro pelo seu olhar enfermo é o percurso a ser trilhado por sua mulher, Mrs. P e por seu médico, Dr. S. Intepretados pelas belas vozes de Flávia Fernandes e Martin Mühle (respectivamente), uma procura, em vão, distorcer a si mesma para moldar o mundo sob a ótica do marido, o outro, misto de encanto e horror com o que testemunha, procura explicar algo jamais registrado na memória da medicina.

Cenários virtuais e figurinos belos, eficientes e cativantes. Fábio Zanon, estreando como regente, ainda conduz com um leve quicar das pernas e alguns gestos típicos de quem está se familiarizando com o ofício. Mas missão cumprida e no aguardo de novas oportunidades.

De tantas coisas belas e interessantes desta obra inspirada no livro homônimo de Oliver Sacks, o que acaba decepcionando é justamente a música composta por Michael Nyman. Um minimalismo simplista, tediante, que na melhor das hipóteses serve como uma metáfora sonora do inferno vivido pelos personagens. O único oásis em meio a tanta indigência harmônica surge, ironicamente, quando mais uma vez Mnemósine é evocada pelo flanar musical de Schumann.

E é aí que se realiza a vingança final da deusa grega: advinhe qual música você se lembrará ao sair do espetáculo e qual será consumida pelo apetite voraz da amnésia?

27 novembro 2006

Na luta pelo Movimento.com

Anos atrás, iniciava meu curso de mestrado, cheio de idéias (e angústias) na cabeça, curtindo a vida musical de Sampa que na época vivia sua lua-de-mel com a Osesp, com as sociedades de concertos a mil e um cotidiano clássico difícil de acompanhar. Já nesta época já tinha o desejo de "cronicar" (existe este verbo para a palavra crônicas? rs) algumas das coisas que via e ouvia.

Na época eu já conhecia o Movimento.com, site hospedado na Cidade Maravilhosa. Um dia meu amigo e hoje maestro Guilherme Mannis me disse que estava escrevendo críticas para o site e me perguntou se não me interessava em escrever nele também. Achei a idéia cativante, mas não aceitei de pronto. O que me moveu a escrever a minha primeira crítica foi a apresentação do Concerto para Violino e Orquestra, de Alban Berg, pela Osesp.

Toda aquela experiência estética não cabia dentro de mim, e ali mesmo, no saguão da Sala São Paulo, disse ao meu amigo que escreveria sobre o concerto.

Desde então, a trancos e barrancos, não parei mais, e minha vida ganhou uma nova dimensão nesta apaixonante (e por isto mesmo perigosa) atividade, que desenvolvo paralelamente à composição e à vida acadêmica. Conheci muita gente bacana, ganhei novos amigos e vivenciei coisas que me acompanharão o resto da vida.

Muita água passou desde então. Passei a trabalhar para outros veículos de informação, nunca perco de vista que tudo começou no Movimento.com. Gerenciado a duras penas por Antônio Rodrigues, figura alegre e cativante que tive a oportunidade de encontrá-lo ao vivo apenas uma vez e de quem sempre pagarei gratidão pela oportunidade dada.

Pois bem, como é comum no Brasil, o site em questão está na berlinda pelo problema mais "clássico" no mundo "clássico" brasileiro: a falta de grana, l'argent, das Geld, money, $$$!

Pois bem, faço aqui o que me é possível, integrando a corrente de luta pelo Movimento.com. Para saber mais e ajudar este importante site, acesse www.movimento.com. A cultura brasileira agradecerá.

19 novembro 2006

Memória e “estórias” da ópera.

Pesquisador da ópera Sergio Casoy lança dois títulos dedicados ao gênero.

Em todo lugar do planeta, o mundo da ópera parece constituir um colorido universo paralelo, à parte do mundo real e das cores cinzentas da realidade. Como todo universo paralelo, a ópera tem seus próprios habitantes: cantores, cenógrafos, figurinistas e outras funções difíceis mesmo de nomear. Mas nada se compara àqueles que simplesmente são apaixonados por ópera. Não se trata de meros espectadores, mas sim pessoas vão a todas as montagens existentes, cruzam fronteiras internacionais para ver uma montagem promissora, conversam com fluência sobre divas das mais diferentes épocas e possuem um verdadeiro acervo áudio-visual, com diversas versões de suas óperas prediletas.

Freqüentemente, trata-se de um caminho sem volta, e alguns chegam mesmo a mudar completamente seu curso da vida profissional para vivenciar o maravilhoso mundo canto lírico. É este o caso de Sergio Casoy, engenheiro de formação, mas pesquisador da ópera por vocação e paixão. Professor de história da ópera na USP e no comando do programa de rádio “La Canzone Italiana” da Cultura FM de SP, outra faceta desta profissionalização da paixão de Casoy pode ser agora conferida no livro “Ópera e outros cantares”, e em breve, em outro livro a ser lançado no início do ano que vem: “Ópera em São Paulo: 1952-2005”.

Lançado neste semestre, “Ópera e outros cantares” reúne 52 textos sobre ópera ou outros gêneros vocais (como missas e lied), boa parte deles originalmente escritos como “notas do programa” de importantes temporadas paulistanas, tais como o Theatro Municipal, o Theatro São Pedro e a OSESP.

Reunidos em capítulos temáticos (“As óperas do Classicismo”, “A ópera no século XX”, etc.) os textos não se detêm sobre os aspectos técnicos ou sobre o enredo de uma determinada ópera, mas sim se debruça de forma acessível e cativante sobre os “causos” que circundam uma determinada obra, seu contexto histórico e as motivações pessoais do compositor. Diferentemente de uma História, as estórias contadas por Casoy são de interesse tanto do iniciado como daquele que queira adentrar pelas portas do teatro de ópera.

Mas, paralelamente a esta obra de interesse geral, com o livro “Ópera em São Paulo: 1952-2005” Casoy preenche uma lacuna muito específica e importante da cultura musical brasileira. Mais do que um livro para ser lido, é uma obra para ser consultada por qualquer um que se interesse por música e ópera no Brasil.

A partir do feito realizado em 1954 por Paulo Cerquera, com o fundamental “Um século de ópera em São Paulo” – que cobre a história da ópera paulistana até a mítica temporada de 1951, que contou com nomes como Maria Callas e Renata Tebaldi – Casoy mapeia toda a produção operística realizada desde então, realizando um importante levantamento estatístico de obras, compositores e, principalmente, cantores.

Porém, engana-se quem pensa que esta sistematização resulta numa obra hermética voltada apenas para especialistas. Além de textos sobre a história da ópera paulistana no período em questão, o autor tempera o trabalho com entrevistas com importantes personagens desta trajetória, além de fotos de programas, cantores e encenações que nos últimos cinqüenta anos passaram pelos palcos de São Paulo, uma época em que ela ainda era a terra da garoa.

Abaixo, leia na íntegra a entrevista concedida por Sergio Casoy.

Serviço: "Ópera de outros cantares” (Perspectiva, 442 págs., R$ 64) e “Ópera em São Paulo: 1952-2005” (Edusp, 593 págs., a ser lançado no início de 2007).
Clique e compre! (acredite, não estou ganhando nada com isto...)

Fotos: 1) O Theatro Municipal de São Paulo nos tempos das carroças. 2) Elenco da montagem de 1966 da "Madama Butterfly", de Puccini, também no TMSP.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

18 novembro 2006

Entrevista com Sergio Casoy

Como começou sua relação com a ópera?

Quando era criança, com menos de dez anos de idade, morava no Brás, cercado de música italiana por todos os lados. Não havia televisão em casa ainda, e a sala era dominada por aquele móvel fabuloso, a inefável radio-vitrola, cujos escaninhos inferiores continham álbuns de couro que abrigavam os discos de 78 rpm, uma seleção variada de vozes, Enrico Caruso, Tito Schipa, Francisco Alves e Carlos Gardel, entre outros. Aí começou a paixão pela beleza da voz, pois não tinha a menor idéia do que se tratava, não entendia a língua e não tinha a mais remota idéia do que estavam dizendo, mas estava fascinado com as vozes, e foi o ponto de partida que depois me levou para o canto lírico.

E é um fascínio que se mantém inalterado até hoje, pois ouço hoje estes discos e a emoção é a mesma que sentia em minha infância. Lá pelos dezoito anos estas músicas começaram a me suscitar dúvidas. Queria saber a diferenças entre uma ária e um canzonetta napolitana. Foi então que descobri que elas faziam parte de um mosaico maior que é a ópera. Daí foi um pulo para comprar meus primeiros LPs contendo uma ópera completa: um “Rigoletto”, de Verdi, com Maria Callas, Tito Gobbi e Giuseppe di Stefano. A partir de então fiquei extremamente apaixonado pela maneira de se contar uma história extremamente dramática totalmente cantada. Acho que tive uma grande sorte de escolher de início uma grande ópera com grandes cantores, pois se tivesse escolhido uma “Salomé” [de Strauss] com cantores tchecos de segunda categoria, hoje provavelmente seria roqueiro.

A partir de então, sempre que sobrava um dinheiro ia até uma loja chamada Melodisc, na Av. São João quase esquina da Ipiranga, cujos balconistas entendiam do riscado, e sugeriam discos com os quais comecei a estabelecer meu padrão de canto favorito e reter árias e trechos na memória.

O próximo passo foi começar a freqüentar o Theatro Municipal e a assistir as encenações destas óperas que ouvia em disco. Mas, no princípio, as encenações não mexiam muito comigo. Ficavam esperando o momento em que aquelas árias famosas iriam aparecer, e aí as comparava com as que ouvia em casa. Mas não tardou muito para eu me encantar pela beleza geral da ópera.

Nestes últimos trinta e seis anos houve pouquíssimas óperas que não assisti. Muitas vezes assisto a mais de uma apresentação, além de ensaios. Eu recomendo a todo mundo a assistir a um ensaio para entender melhor como certas coisas são construídas.

Como nasceu a idéia deste livro “Ópera em São Paulo: 1952-2005”?

Foram dois os motivos. O primeiro, da necessidade de encontrar informações de que eu precisava e não achava – muitas vezes ficava dependente da memória das pessoas e com informações muito confusas. O segundo, e a mais importante, é meu interesse em preservar a memória de meus amigos cantores. Percebi que uma geração inteira – à qual pertence Benito Maresca, Andrea Ramus, entre tantos outros – que jamais foi convidada para fazer uma gravação comercial decente, que capturasse suas vozes no auge de suas carreiras. Assim, quis ao menos preservar seus nomes e carreiras, no contrário, eles desapareceriam. Mas tudo isto começou com o levantamento completo de suas temporadas que o Museu do Theatro do Municipal de São Paulo iniciou anos atrás. No livro expandi esta idéia para toda a cidade, catalogando montagens de óperas completas, não apenas do Municipal e outros teatros, mas também em lugares inusitados, como estádios, clubes e igrejas. Possivelmente alguma coisa possa ter escapado, mas acredito ter chegado a bom resultado.

Qual foi a maior dificuldade que teve?

Foi conseguir encontrar as representações fora do Theatro Municipal. Para isto tive que valer da memória incerta das pessoas, mas que me indicaram modos de conseguir informações mais precisas, em especial, pessoas que colecionavam programas e que então me forneceram uma base documental ao trabalho. Todas as montagens de ópera que constam no livro foram inseridas a partir desta base documental. Não tem nada na base do “ouvi falar”. Durante a busca lidei com as mais diferentes situações, desde encontrar coisas abandonadas em porões úmidos até arquivos muito bem organizados, como se estivessem a minha espera.

Que fato da ópera paulistana destacaria destes 53 anos abordados pelo livro?

Na verdade, a coisa mais surpreendente deste trabalho foi a descoberta da encenação de uma ópera armênia levada ao palco em 1950, e que tecnicamente não deveria estar no livro. Trata-se de “Anush”, de Armen Tigranyan, que é para os armênios aquilo que “Il Guarany”, de Carlos Gomes, é para os brasileiros. Foi uma coisa impressionante descobrir que um dentista armênio ensaiou músicos amadores e encenou esta ópera em pleno Theatro Municipal, que sequer tinha esta montagem catalogada em seus arquivos. E isto foi cerca de trinta anos antes dela ser estreada nos EUA! Mas o mais interessante de tudo isto é mostrar o quanto por meio da ópera fica claro perceber o quão vibrante era a vida nesta cidade entre as décadas de 1950 e 60, antes que um certo marasmo intelectual invadisse nossas praias e do qual parece que estamos nos libertando agora.

Das inúmeras óperas que assistiu ao longo destes anos, qual a montagem que mais lhe emocionou?

Eu me lembro com uma intensidade muito grande de uma “Lucia di Lammermoor”, de Donizetti, protagonizada em 1989 pela soprano Kathleen Cosselo. Esta moça tinha uma voz maravilhosa e um defeito físico: uma perna levemente mais curta que a outra, o que a obriga a mancar. Ela então usou esta deficiência para incorporar uma Lucia vacilante. A cena da loucura foi feita uma escada caracol. Ela enlouquecia lá no alto e ia fazendo coloraturas na medida em que ia parando nos degraus. Quando ela já estava no proscênio, ao terminar a cena, eu nunca vi o teatro levantar daquele jeito. As pessoas já nem aplaudiam, mas sim sapateavam, batendo os pés nos chãos. O frenesi tomou conta da platéia. Foi uma coisa impressionante.

Por outro lado, assistiu alguma montagem realmente ruim?

Foi o “Don Carlo”, de Verdi, encenada em 2004 com a direção de Gabriel Villela. O maestro Ira Levin regeu magnificamente, e os cantores foram medianos. Mas a direção de cena arrebentou completamente a obra. Isto serve de lição para um teatro de ópera tomar cuidado ao utilizar um diretor renomado no teatro de prosa, mas que não entende de música.

A segunda bobagem digna de citar é a montagem de “Salomé”, de Strauss, dirigida pela cineasta Ana Carolina, na qual Jokanaan é colocado numa gaiola de hamster, o que tornou uma coisa dramática em algo grotesco e hilário, além do fato de transformado a “Dança dos Sete Véus” na dança da “boquinha da garrafa”.

Seu livro, bem como a obra de Paulo Cerquera, concentra-se na produção paulistana. São Paulo é a capital da ópera brasileira?

Hoje não é mais, infelizmente. Poderia ser. Tem potencial, tem cantores, tem vontade, mas alguma coisa que não entendo direito impede as coisas de funcionarem como deveriam. Há o eterno problema da falta de recursos, pois ópera é um espetáculo caro que precisa de subsídios. Apesar da constância com que o Theatro Municipal tem programado ópera, e mais recentemente o Theatro São Pedro, a cidade não tem uma temporada, mas sim “eventos”, o que é preocupante. Isto é, quando se resolve fazer uma ópera, são apenas uns três ou quatro dias. A coisa acaba, você mal percebe o que aconteceu e pode ser que você nunca mais volte a ver aquela montagem. O que precisamos aqui é implantar o sistema de “teatro de repertório”, tal como existe em Nova Iorque, Milão e outros centros operísticos, pois isto inclusive acaba barateando o custo geral de uma temporada. Outro problema sério é que a política cultural e o comando dos teatros mudam cada vez que muda o governo. E não há teatro de ópera de resista a isso. Hoje, em 2006, já se deveria estar preparando a temporada de 2011!

Sua relação pessoal com a ópera e com profissionais deste universo em algum momento lhe colocou numa saia justa?

Sim. Certa vez fui muito amigo de um cantor que me pediu que assistisse uma apresentação sua e anotasse todas as suas falhas, pois ele queria uma opinião sincera. Bem, ele estava respirando errado, cantado um repertório que não era adequado para sua voz, etc. Desde este dia ele não fala mais comigo. A partir de então, quando um espetáculo é muito ruim, vou embora logo após o término, e quando a apresentação é boa vou aos camarins cumprimentar todo mundo.

Quais as principais mudanças que as montagens de ópera em São Paulo passaram ao longo destes cinqüenta anos?

Décadas atrás era evidente o predomínio absoluto do cantor e da voz. A partir da década de 1960 começa a ser notada de forma mais contundente a presença do diretor de cena. Isto foi em decorrência da imposição de um conceito de beleza vindo do cinema e da televisão, exigidos pelos mais jovens dentro do teatro de ópera. Hoje a direção de cena é algo tão importante quanto a parte musical. O problema é que muitas vezes a atuação física do cantor mascara uma incapacidade ou deficiência técnica ou musical. Mas isto não se limita a São Paulo, pois se trata de um fenômeno mundial. Eu me pergunto se cantores como Beniamino Gigli e Jussi Bjoerling, ou outros de uma geração que fizeram tudo apenas com a voz, fariam tanto sucesso hoje em dia.

Que perspectivas você imagina para o futuro da ópera no Brasil?

Tenho dito que nunca vi em todos esses anos a presença de tanta gente jovem no teatro, o que me deixa extremamente feliz. Temos atualmente estudantes de canto que são absolutamente brilhantes, futuros promissores, mas que precisam de apoio. Se estes potenciais puderem se desenvolvem, creio que teremos belos momentos que há muito tempo não temos por aqui. Existe um terreno extremamente fértil, e se ele for cultivado, não faremos feio aos principais centros operísticos do mundo.

Após ter concluído dois livros sobre ópera, quais são seus projetos para o futuro?

Um é um dicionário biográfico de cantores de ópera (brasileiros e estrangeiros) e outro é escrever um romance ambientado na São Paulo dos anos 50, uma história de mistério, com uma soprano sendo assassinada antes de entrar em cena. Mas trata-se de planos a muito longo prazo.

15 novembro 2006

Ratos num jogo de espelho

Impressões sobre quase tudo com quase nada:
Cinema -
"Os Infiltrados"

É como numa grande tragédia. Personagens de caracteres diferentes, mas que agem de forma muito semelhante, ainda que por seus avessos. O mocinho espanca e tortura. O vilão age apenas por telefonemas e conversas. Colocados defronte ao espelho não dá pra saber quem é quem, e perde-se mesmo a noção de que lado do espelho se está. Daí nasce a angústia, as confusões, os conflitos. Mas, no íntimo, todos sabem a que lado pertencem. Ratos são ratos, e como tais não conhecem a moral e as regras de boa vizinhança humanas. Fazem o que devem ser feito, fazem aquilo que está em seu sangue. Róem e consomem tudo e a todos em seu caminho. Seja do lado da lei, seja do lado do crime, sua função é indiferente aos propósitos que servem. Num filme trágico, a morte torna-se essencial, e muitas vezes, banal. Mas o canibalismo final - ainda que envolva apenas ratos devorando-se mutuamente - é chocante, terrível, necessário e grandioso, e por tudo isto, belo.

["Os Infiltrados"
/"The Departed", dirigido por Martin Scorsese, com Jack Nicholson, Matt Damon, Leonardo di Caprio e Mark Walhberg]

06 novembro 2006

Pequenas Tragédias

Textos de Púchkin ganham tradução inédita, feitas a partir do russo

“Os médicos asseguram: há pessoas / Que encontram prazer em matar. / Quando coloco a chave no cadeado, / Eu sinto o mesmo que eles devem sentir / Ao cravar a faca na vítima: uma mescla / De medo e prazer. / Eis meu êxtase!”, diz o avarento Barão, embriagado de usura diante de seus cofres cheios de ouro que, ele bem sabe, é o resultado de muito sofrimento alheio: “Sim! Se todo o sangue, suor e lágrimas / Versados por tudo que está aqui guardado / Voltassem a sair das profundezas da Terra, / Então teríamos um segundo dilúvio. E eu me afogaria / Em meu próprio porão [...]”.

Entre os dias 23 de outubro e 6 de novembro de 1830 o escritor e dramaturgo russo Aleksandr Púchkin escreveu uma série de cenas dramáticas que chamam atenção não necessariamente pelas histórias que narram, mas sim pela maneira como as conta e pelo modo com o qual constrói seus personagens por meio de seus versos. Passado mais de um século desde seu surgimento, o público brasileiro finalmente tem acesso a essas delicadas jóias da literatura russa no livro “Pequenas Tragédias”, título pelo qual o conjunto das cenas passou a ser conhecido.

Figura fundamental na literatura internacional, considerado o “pai” da poesia russa, Púchkin é o autor de obras monumentais, tais como o romance em versos “Ievguêni Oniéguin” e o drama “Boris Godunov”. Entretanto, parte significativa de sua produção encontra-se em obras de pequenas proporções, tal como é o caso das “Pequenas Tragédias”, traduzidas por Irineu Franco Perpetuo.

O título reúne as quatro cenas que Púchkin escreveu durante uma estada forçada numa propriedade campestre que acabara de herdar: “O Cavaleiro avarento” (de onde foi extraído o trecho acima), “Mozart e Salieri”, “O convidado de pedra” e “O festim nos tempos da peste”.

O que reforça a idéia de que a escrita de Púchkin é o cerne desta pequena obra é que ele não é o autor do argumento original destas cenas (inclusive, nenhuma delas é ambientada na Rússia): a primeira é uma possível referência ao “O avarento” de Molière e a última é quase uma tradução da peça “The city of plague” de John Wilson. No conjunto, o que mais chama atenção é presença da música, seja pela tragédia “Mozart e Salieri” (uma dramatização a partir do boato inverídico do assassínio de Mozart pelo compositor italiano Antonio Salieri) e pelo “O convidado de pedra”, uma referência reconhecida pelo próprio Púchkin à ópera “Don Giovanni”, também de Mozart.

Tamanho requinte na escrita de Púchkin faz de sua tradução um desafio ainda maior. “Púchkin é um autor muito simples e direto. A dificuldade é reproduzir essa simplicidade, sem cair no banal”, diz Franco Perpetuo.

O tradutor, mais conhecido por seu trabalho como jornalista e crítico musical, reforça os laços desta empreitada pela perspectiva musical. “Podemos dizer que todos os textos têm ligação com música, porque foram transformados em óperas por compositores russos. E não foram ‘adaptados’: o texto de Púchkin foi utilizado diretamente como libreto”, diz Franco Perpetuo referindo-se às óperas compostas sobre as “Pequenas Tragédias”. De fato, cada pequena tragédia recebeu uma versão musical pelas mãos de diferentes compositores e estilos musicais: Rachmáninov (com “O Cavaleiro avarento”), Dargomijski (“O convidado de pedra”), César Cui (“O festim nos tempos da peste”) e Rímski-Kórsakov, com “Mozart e Salieri”, que este ano foi apresentado no Brasil nos festivais de Campos do Jordão e no de ópera de Belém.

De todas as pequenas tragédias, “Mozart e Salieri” foi a que mais se notabilizou, tanto musicalmente como dramaticamente. Tendo como ponto de partida os rumores que Salieri teria envenenado Mozart em virtude de uma inveja peçonhenta, Púchkin tece uma bonita reflexão sobre a natureza da inveja humana, em especial, a do tipo mais virulento, que é aquela que nasce da extrema admiração que o invejoso tem sobre o invejado. “[...] E foste capaz de parar na taverna / Para ouvir um violinista cego! Deus! / Tu, Mozart, és indigno de ti próprio!” diz a certa altura o fictício Salieri ao igualmente fictício Wolfgang Amadeus.

Aliás, é o “Mozart e Salieri” de Púchkin que estabelece o padrão ficcional a estes compositores (Salieri o sisudo, Mozart o irreverente) e que será posteriormente utilizado pelo dramaturgo inglês Peter Shaffer na peça “Amadeus”, que em 1984 foi levada ao cinema sob a direção de Millos Forman.

O compositor de Salzburg está também presente, ainda que de forma implícita, na tragédia “O convidado de pedra”, que tem como enredo as horas finais do conquistador espanhol Don Juan, que ganhou notabilidade no mundo da ópera com “Don Giovanni”, composta por Mozart sob libreto de Lorenzo da Ponte. Como não pensar na canzonetta “Deh, vieni alla finestra” (que o Don Giovanni de Mozart canta para seduzir mais uma mulher) quando a personagem Laura da peça Púchkin canta uma música que confessa ter aprendido com Don Juan?

Apesar dos indícios que parecem configurar um verdadeiro pacto musical, as “Pequenas Tragédias” mantém sua autonomia poético-dramática à parte qualquer sugestão extra-literária suscitada. Paralelamente à dimensão poética, sua beleza e interesse reside também no fato de Púchkin reduzir a ação dramática às proporções diminutas e concisas do conto, e tal como num conto, sua força advém justamente de sua brevidade e pela densidade das emoções que seus versos trazem consigo.

Serviço: “Pequenas Tragédias”, de Aleksandr Púchkin.
Tradução: Irineu Franco Perpetuo. Globo Livros, 125 págs., R$ 20.

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[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Foto: Por Luiz Carlos Lacerda da montagem do espetáculo "Mozart e Salieri" no Festival de Ópera do Theatro da Paz (Belém, PA) de 2006.