Friday, January 18, 2008

Desafios e aprendizagem

Acabo de ler O Erro de Descartes, de António Damásio. Recomendo para qualquer pessoa que queira conhecer interessantes fatos e hipóteses sobre o cérebro humano. A linguagem é gentil e agradável. O assunto é ilustrado por casos de muito interesse humano. Os detalhes biológicos são sempre explicados de uma forma acessível. Este post, porém, não é só uma recomendação de leitura. Quero aproveitar a oportunidade para falar sobre um tema que, volta e meia, merece registros neste espaço: diversão e aprendizagem.
Para começo de conversa, cito aqui o parágrafo final do Erro de Descartes:
A dor e o prazer não são imagens gêmeas ou simétricas uma da outra, pelo menos não o são em termos de suas funções no apoio à sobrevivência. De certa forma, e a maior parte das vezes, é a informação associada à dor que nos desvia do perigo iminente, tanto no momento presente como no futuro antecipado, É difícil imaginar que os indivíduos e as sociedades que se regem pela busca do prazer, tanto ou ainda mais que pela fuga à dor, consigam sobreviver. Alguns dos desenvolvimentos sociais contemporâneos em culturas cada vez mais hedonistas conferem plausibilidade a essa idéia, e o trabalho que meus colegas e eu atualmente realizamos sobre a base neural das várias emoções reforça ainda mais essa plausibilidade. Há mais variações de emoção negativa que de emoção positiva, e é claro que o cérebro trata de forma diferente essas duas variedades. Talvez Tolstoi tenha tido uma intuição semelhante quando escreveu no início de Ana Karenina : "Todas as famílias felizes são parecidas umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira".


Damásio mostra que a dor é um alarme que leva o organismo a aprender, a ficar atento, a buscar um novo caminho, a se cuidar. Ela é um lance importante em jogos de sobrevivência. O prazer, infelizmente, não tem tais virtudes. Nele o organismo se acomoda, deixa de ter atenção, descuida-se das pistas ambientais.
É preciso cuidado com as palavras aqui utilizadas. A dor, para Damásio, não é apenas aquele incômodo do qual queremos (e, geralmente, precisamos) nos livrar. Ela é uma mudança importante na paisagem do corpo. Por isso chama a nossa atenção. Por isso ensina. Permito-me utilizar as idéias do autor no contexto educacional. O processo de aprendizagem é um processo de mudança. Por isso incomoda. Pode trazer certo desconforto. Tem certa analogia com a dor, principalmente quando o desafio a ser enfrentado é de caráter intelectual e mexe fortemente com nosso conforto. As condições necessárias à aprendizagem são desafios que mexem com a tanquilidade da paisagem já estabelecida de nossas crenças ou ignorâncias.
Apresento aqui uma idéia que contraria os sonhos atuais de como deve ser a escola: um local de prazer e diversão. No campo da tecnologia educacional, essa tendência produziu, por exemplo, programas irrelevantes na linha do edutainment (educação com ou pela diversão). Uma experiente professora d matemática me disse certa vez que as orientações que recebia indicavam que a única matéria que poderia integrar currículos escolares era educação física. Provavelmente ela se referia a aulas de educação fisica que são sinônimos de jogo.
Já escrevi demais. É hora de colocar um ponto final neste post. E coloco-o insistindo na idéia de que aprender é um desafio, não um mergulho em fluxos prazerosos que não exigem claramente mudança, nem provocam desconforto que precisa ser superado em aventuras de encontrar novas formas de viver.

5 comments:

Suzana Gutierrez said...

Olá Jarbas

Estes tempos, numa pós-graduação, uma aluna (professora) reclamou do 'sofrimento' na aprendizagem. Reinvindicou o prazer que deveria ser o ato de aprender.

Pois eu penso que aprender dói, às vezes, porque não é fora de qualquer sofrimento que se abandona certas convicções ou que se assume novos caminhos.

Mas discordo da professora de matemática. Na educação física, aprender também dói, às vezes. E não é somente a dor física, depois de uma aulamais forte. Na educação física e no esporte se aprende a confiar no outro, a agir na interdependência.
No basquete, por ex, um passe é muito mais que um gesto técnico preciso, é um gesto de confiança. Passes ensinam que seja o que for que nos desafia, a solução está no que construirmos socialmente. E isso pode doer...

abraço!


Suzana Gutierrez

Jarbas said...

Oi Su,

Bom receber visita sua. Acho que preciso esclarecer a observação da professora de matemática. O que ela via na escola em que dava aulas era o interesse dos alunos por aulas de educação física que não envolviam qualquer compromisso. As tais aulas assemelhavam-se aos rachões. Pura diversão. Quando as aulas envolviam treino, trabalho sistemático em algum esporte ou coisa parecida eram outros quinhentos. Pra você que é do ramo: nada mais "sofrido" que treinamentos sucessivos de execução de uma bandeja no basquete. Mas este é o preço a pagar para se chegar a execuções fluentes e de sucesso. Hélio Rubens e outros pontuadores eméritos treinavam centenas de arremessos quase todos os dias... O prazer de pontuar sempre foi precedido de muito suor, e treinamentos "chatos" e doloridos.
Abraço grande,
Jarbas

Maísa Fernandes said...

Jarbas,tudo bem?
Sou defensora de uma escola mais alegre que proporcione aprendizagem com prazer mas isso não significa estímulo ao oba oba, às brincadeiras inconseqüentes.
Deverá acontecer a pesquisa, o estudo mas com alegria e compreensão do que e´estudado.
Os exemplos que citou não os tenho como aprendizagem e sim treinamento para superação de meus limites.
Viver e conviver como a Suzana disse às vezes dói moral e espiritualmente porque nossas relações ainda são pautadas na exclusividade, no ego.
Acredito numa escola que num clima de fraternidade e carinho a aprendizagem não será um processo tão doloroso como no passado e ainda hoje em muitas escolas.
Abraços carinhosos.

Maísa Fernandes said...

Jarbas, continuando em minhas reflexões sobre este post muito interessante quero lembrar que temos dois tipos de dor na Terra: Dor evolução e Dor expiação.
A dor evolução é processo natural na vida, é aquela que nos estimula a desenvolvermos nossos potenciais. É a dor física do cientista horas, dias, anos em seu laboratório buscando a melhoria da qualidade da vida humana; é a dor emocianl de vermos entes queridos se afastando de nós em busca de novas realizações;é a dor de um Giordano Bruno convicto de suas idéias numa época e sociedade tão aquém de seus pensamentos e mesmo assim ele deixa sua colaboração filosófica ou científica ou religiosa...
A dor expiação é aquela que deseja nos mostrar o quanto necessitamos alterar posicionamentos e ações para sermos melhores e realmente felizes, é aquela que nos comunica que não estamos agindo bem conosco e com a sociedade, é aquela que nos conduz uma vez que não produzimos o melhor por nós mesmos.
A dor evolução é natural e espontânea a dor expiação é conseqüencia de nossas ações.
Agora sou eu que preciso terminar com este comentário, já escrevi demais.
Grande abraço pra você.

Jarbas said...

Alô Maísa,

Seus comentários sugerem mais conversas sobre o tema. Desconfio que os educadores não falam muito sobre a questão.
Dor, mudança, esforço para alterar nossa paisagens de saber não eliminam alegria. Esta última não é filha do prazer, nem da diversão. Alegria, aliás, é uma condição que precisamos buscar sempre. Na escola. No trabalho. Na vida.
Estou pensando em propor para meus alunos do 4° ano a leitura de Admirável Mundo Novo. Esse romance famoso é, a meu ver, um cenário interessante para reflexões sobre tecnologia. Uma das coisas que a obra de Huxley mostra é que os alegres consumidores de soma (droga que dá muito prazer) não são felizes. Apenas não sofrem porque ignoram as dimensões trágicas da vida.
Como vê, seus comentários abriram meu apetite para mais falar sobre o tema.
Uma observaçao final. Não entendo muito a distinção treinamento/aprendizagem. Treinamento é análogo a ensino, não a aprendizagem. Você pode me explicar seu ponto de vista?
Grande abraço,
Jarbas.