2006-11-26

"ama como a estrada começa"



Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny



(quadro de mário cesariny e mário botas)

11 comentários:

Cecilia M disse...

Olá Alice, afinal até somos colegas, participas tal como eu no blog argumentum ad ignoratiam!!! Gostei daqui e agora de certeza que não vou perder o teu link
Fica bem
Beijo grande
;)

isabel mendes ferreira disse...

....em todas as ruas te encontro...


_______________por isso não podes fechar as asas. tão reconhecíveis.


tens de continuar a voar. porque "isso" é o teu respirar. sabes que sim.


_________________voa alto sobre tudo sobre todos.


_________porque podes e sabes!!!!!!!!!!!!

amigona avó e a neta princesa disse...

Lindo! Beijo...

Anónimo disse...

Poeta e pintor, tendo participado em várias exposições. Na Escola António Arroio fez estudos orientados para as Belas-Artes, que desenvolveu mais tarde. A sua afirmação como escritor faz-se em torno do primeiro grupo surrealista de Lisboa, desempenhando intensa actividade que nunca interrompeu: intervenção em conferências, publicação de folhas volantes colectivas e individuais, organização de antologias (Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, 1961; Surreal/Abjeccionismo, 1963; A Intervenção Surrealista, 1966; 50º Aniversário do Primeiro Manifesto Surrealista, 1974; Horta de Literatura de Cordel, antologia, 1983; etc.) Publica também traduções (Rimbaud, Artaud, etc.) Inicialmente próximo do Neo-Realismo, rompe com este movimento que é posto em questão de um modo sarcástico e irónico em "Nicolau Cansado Escritor", que foi recolhido, em 1961, em Poesia: 1944-1955. Entretanto, apresenta-se como defensor ortodoxo do movimento surrealista, envolvendo-se nas confrontações e rivalidades entre grupos ligados a esse movimento ou em várias polémicas. A sua poesia é espontânea, subversiva, fulgurante, animada por um sentido de contestação aos comportamentos ou princípios mais institucionalizados ou considerados normais no campo do pensamento, da cultura, dos costumes, do erotismo. Ao recorrer a processos tipicamente surrealistas (enumerações caóticas, utilização sistemática do sem-sentido ou do humor negro, formas paródicas, trocadilhos e outros jogos verbais, automatismo, etc.), não deixa de atingir o que possa haver de imprevisível numa linguagem que sabe encontrar o equilíbrio entre o quotidiano, tantas vezes surpreendido sentimentalmente, e o insólito, a clareza e o hermetismo, a ternura e a agressividade, o artifício e a mais exaltada espontaneidade. Escreveu um texto de índole teatral (Um Auto para Jerusalém, 1964) e reuniu em livro (As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1972) um conjunto de artigos sobre vários escritores, pintores, movimentos artísticos, etc. Colaborador das revistas Transformaction (Inglaterra), Brumes Blondes (Holanda), Phases e La Crecele Noire (França), Arsenal: Surrealist Subversion (EUA). Parte do espólio de Mário Cesariny encontra-se no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional.

Anónimo disse...

MÁRIO CESARINY A LUÍS PACHECO

Lx. 1966







Meu Caro



Gostei mais da tua carta que do texto que me enviaste a propósito da Cidade Queimada, embora este fosse, ou fosse a fingir, de altamente elogiativo: Corrijo: na tua boca, na tua maneira, ele é realmente elogiativo. Está lá o velho programa que traçaste para os teus mais próximos: cadeia, ou hospital. Tua ânsia, velha, que sempre te fez sobrepor-te, adiantar-te, esmerar, por conta própria, os serviços policiários. Conheço isso. Todos os presidiários falam de si mesmos e dos colegas como da classe aparte, ou a única que importa considerar. Estive preso, cá e lá, mas, muito pior que isso, tive cinco anos de liberdade vigiada que deram cabo de mim. Lembro-me de que nessa altura tu achavas graça a uma expressão do Lima: o poeta que vai à revista. O poeta foi à revista e matou-se aí. Ou mataram-no. Ficou uma coisa esquisita, de onde sai o excesso de pânico que me atravessa quando novas hipóteses se põem. Excesso, digo bem. E adiante. Por isso tenho memória de velha. De elefante. Não acho que sejam velhas coisas, estas. Nem tu. De enternecer, enfim, o preocupares-te com o tal teu amigo que diz que eu estou uma merda e com o G. Cruz que diz que eu perdi as imagens coitado. Olha, não te preocupes. Alguma coisa me diz que os meus poemas, com imagem ou sem, são a merda do pássaro. Essa os lambuza e ocupa, sejam más sejam fortes as cagadas. Quanto ao pássaro propriamente dito -- o canto -- ninguém viu. Acho que não o podem ver.

Não me defendas. É pouca a paternidade: Ramos-Rosa-Gastão-Cruz que pões na tua carta. Estes e outros foram todos beber a um que dizia isso com mais graça: o Luiz Pacheco. Assinado por ti, fui um pobre diabo, um que pinta com merda, uma barata em ascensão para as coroas, um que está bom para saldos, não quer ir para a cadeia, lembrarás o resto. Quando um dia foi possível reeditar o Lisboa, cujas primeiras edições já não existiam, o horrível crime foi punido: pediu oito tostões à mãe para o eléctrico e foi à editora.

É a isto que na tua carta chamas «verdade histórica»? Homenagem, querido, faço-te esta: a de tentar acreditar que tu acreditas nisso. Que é possível haver uma verdade para o dia 16 -- verdade com tal força de verdade que chega para assassinar em duas forças de linha o amigo mais próximo -- e haver outra correctiva da primeira ou mesmo, se preciso, sua antítese para o dia 18. Será verdade que acreditas nisso? Será possível que haja essa verdade? O assassinato da família do Kafka e a reabilitação do Kafka?

Para mim, era-me impossível viver, ou morrer, se tivesse de chamar a isso verdade. Que é o que te acontece. E tu dizes: justiça! Horror dos horrores.

Assentemos pois nesta verdade: deixa-os dizer o pior, e o pior do pior. Não intervenhas, ficas caricato. Nada disso me ocupa, nem sequer incomoda. Golpe fundo foram os teus ataques, duplamente mortais para o nosso convívio: se justos -- o poeta na «decadência» -- de uma crueldade desnecessária; se injustos -- o poeta a braços com um amigo louco -- de uma crueldade de louco.

A minha pergunta -- era uma pergunta o que te fazia ao enviar-te o teu postal de há 8 anos, -- não é ao acaso. Tenho um livro a sair, «A Intervenção Surrealista». Dentro em breve, as provas. Como é de obrigação, surges nele. Há no livro documentos bem mais antigos do que as tuas campanhas contra mim. E não estão nada velhos. Em nada. Por isso perguntava: que faço eu com isto? Se achas que envelheceu, que já não é verdade, é uma resposta, com linguagem tua. Se achas verdade histórica, além de esquisito, é pouco. E é de lado.

Dúvida, é isto: incluo, não incluo o teu artigo sobre o meu «Picto-Abjeccionismo»? Sei que o retiraste do teu livro, mas: achas que podemos fazer isso? É, com o artigo do Virgílio, a única coisa que apareceu na Imprenso.

Se incluo, vais ouvir coisas horríveis, porque te dou resposta. Se não incluo, voltamos ao mesmo: que faço eu com isto?

A tua verdade histórica é a merda.

Diferente na minha neste ponto: é possível que a minha vida tenha dado cabo de mim, ou eu cabo de mim nela; o amor que tenho à vida fez-me sempre evitar dar cabo da vida dos outros. Não «enterrei» ninguém sempre até à última quis a vida dos outros. Tu incluído. A tua pressa em dar cabo dos outros, diz-me que vida é. E que espécie de cabo. Sempre até à última quis a vida do António Maria Lisboa. Mesmo nas edições que dele fiz. Toda a égloga fúnebre afastada. «Não se trata de um homem que vai morrer»... E do teu medo de perder o que ainda não perdeste dos textos do Lisboa, não terá culpa alguma o próprio Lisboa. Se tens medo de perder o que ainda não está perdido, põe em lugar seguro, ainda há alguns. Mas acaba com a chantagem insinuada na tua carta. Se quer fazer-se uma edição decente, ideia de luxo excluída, digo decente, colaborarei com gana. Se quer fazer-se uma edição despachativa só porque tu podes perder o resto, mando-te já à merda, a ti e à edição. Falando com o Victor, parece já conseguida uma certa concessão da parte da editora: farão um livro integrado na colecção mas em formato maior e maior cuidade gráfico.

Dizes que no ano passado te salvei a vida. Se é verdade, fico contente. Salvá-la-ia muitas vezes mais, se pudesse. Conforte-te saber, se não puder repetir-se, que da única vez que tive dinheiro meu, o reparti contigo, quanto pude. E que fiz o meu melhor para que outros fizessem algo parecido. E fizeram, mesmo pouco parecido. Há muito anos que joguei em ti, a favor teu, não como editor -- por mais que isso te ofenda -- não, também não, como a louca dos papelinhos que trazia a cidade divertidíssima e para quem o papelinho e a sua função, diversa, contava muito mais que a verdade. Qualquer verdade. Da qual verdade o burgo não queria. Tu também não. Joguei, eu, no que tinhas de melhor. «O senhor não é palhaço, o senhor é escritor». Estas linhas do Lisboa, cantei-tas várias vezes, em vários tons. Soube isso no teu texto dos Doutores, Salvação, e Menino, que continua a ser para mim o texto lúcido que, em literatura, a época forneceu. Soube-o de novo, com imensa alegria, na publicação do Teodolito. Diante de um texto tal hão-de curvar-se, sem querer, todos os merdas do literato lisboeta. E, o que é mais: pela primeira vez encontrava a tua humanidade, a tua forma natural de sorrir -- tens o sorriso mais bondoso, espanta-te, de quantos vi a tentar abrir os lábios: sai quase sempre careta, lá o diz o Lautréamont -- diante das calamidades. Melhor: eras o homem que se confessava isso, homem, e em que mundo assim, de que maneira! Nada a ver com os teus papelinhos acusatórios, de boa ou má esguelha, para a vida ou para a morte dos outros. Creio que não piorei o texto publicando-o com as «emendas» ou «chaves» que tu próprio aceitaste. Acho mesmo que ficou melhor, o que decerto te ofende. Outros textos tens parido de igual, ou maior altura? Este o Luiz Pacheco que conheço, o único que de facto existe e posso amar, mesmo conservando na gaveta, como conservo, e não esquecendo, não são para esquecer, feridas abertas. Em corpo frágil.



P.S. -- Na folha publicitária que o Victor Tavares te fez, leio que te consideras velhote. Não te preocupes. Nem te defendas tanto. Parece mal. Será manobra, também. Não me preocupo. Preocupa-me -- outra vez!! -- o destino dos inéditos. Exceptuada a raiva, que permanece, vi-te sempre abandonar tudo, todos. Em que nome, não se percebe bem. Aceitemos que no do teu registo, L. Guerreiro Pacheco. Não é assim tão feio. Fiquemos aqui.



Lx. 1966



in Mário Cesariny, Jornal do gato, [s.l.]: ed. autor, 1974, pp. 47-51

Anónimo disse...

ARS MAGNA


Devo ter corredores por onde ningué passe devo ter um mar próprio e olhos cintilantes

devo saber de cor o cetro e a espada

devo estar sempre pronto para ser rei e lutar

devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande imprevisto

de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu peito o animal que inanimado canta

devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis

devo separar bem a alegria das lágrimas

fazer desaparecer e fazer que apareça

dia sim dia não

dia sim dia não

devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos técnicas mais sérias prestígios maiores

devo saber que és forte amplo transparente e colher-te murmúrio flébil aerolado

que eu arranco da luz que encharca o mundo

dia sim dia não dia sim dia não

devo portar-me bem à saída do teatro

devo dar e tirar as chaves do universo

num passo ágil belo natural

e indiferente ao triunfo aos castigos aos medos

fitar ùnicamente sob as luzes da cúpula o voo tutelar da invisível armada



in Mário Cesariny, Poesia (1944-1955), Lisboa: Delfos, 1961, pp. 262-263

Anónimo disse...

RUA DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS

Procurei os teus olhos, quis achar
Nos teus olhos a luz que nos salvasse.
Mas tu não tinhas olhos tinhas plateias
No Liz no S. Luís e no Terrace

Busquei teu coração, não desisti à primeira.
Teu seio arfava arfava docemente
Por força que por baixo que por dentro
Tinhas um coração terno como gatinhos
Mas afinal não tinhas coração tinhas um saco
Com Jean-Paul Sartre e rendas a cinquenta o metro

Falei com tua mãe. Era impossível
O engano. Com certeza
Que o engano era impossível.
Mas ela murmurou: saia daqui, senhor,
Que anda você a traficar com a minha filha?

De forma que o entrar nas tuas pernas
Foi como entrar num tribunal de contas.
Não tinhas pernas tinhas passadeira
Arroz licores outro noivo e gritinhos.



in Mário Cesariny, Burlescas, teóricas e sentimentais, Lisboa: Presença, 1972, pp. 66

Anónimo disse...

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE


Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos a morte violar-nos tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício



Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição



Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmos só amor só solidão desfeita



Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar



De Pena Capital, 1957





Mário Cesariny, «You are welcome to Elsinore» in

Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra

Braga/Coimbra/Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002

pp.280-281



(seguido de um ensaio da autoria de Perfecto E. Cuadrado Fernández)

Anónimo disse...

Consultório do dr. Pena e do dr. Pluma
II


Dr. Pena -- Esperava-o mais cedo, meu caro dr. Pluma.



Dr. Pluma -- Sabe lá, tenho estado ocupadíssimo. Resolvi apurar a minha cultura. Tenho ouvido «O gosto pela música», do dr. Freitas Branco, na Emissora Nacional - 2.



Dr. Pena -- Constou-me que falam muito e que aqueles dois locutores interrompem os trechos, são uns tagarelas... É verdade que falam no meio da música?



Dr. Pluma -- Têm esse defeito, mas dizem coisas interessantes, muito profundas.



Dr. Pena -- Por exemplo?



Dr. Pluma -- Não vai sem resposta. Olhe, no outro dia, a locutora, referindo-se a uma peça de Schubert, disse: É uma verdadeira delícia, uma coisa encantadora. Deixe-me ouvir todo o andamento, apetece-me imenso. E sabe? a locutora faz perguntas muito pertinentes. Quer ouvir esta? As sonatas de Schubert são diferentes das de Beethoven, não são? (sic).



Dr. Pena -- Se me permite, eu direi que é uma pergunta impertinente. Até podia dizer que é uma pergunta que não se faz!



Dr. Pluma -- Quem sabe viver é o dr. Gaspar Simões. Nunca pergunta nada. Para ele, todas as coisas antes de o ser já o eram.



Dr. Pena -- Mais duma pessoa me disse isso, mas não compreendi bem porquê?



Dr. Pluma -- Então não ouviu aquela do «nouveau roman» ter existido antes de existir?



Dr. Pena -- Ah sim?



Dr. Pluma -- Nem foram os franceses que o criaram. Foi um português, muito antes. No século XVI ou XVII.



Dr. Pena -- No século XVII? Não acha exagero?



Dr. Pluma -- Pergunte ao dr. Gaspar Simões.



Dr. Pena -- Talvez apresentasse algumas razões, quem sabe?! De tempos e modos nunca se sabe bem, com estes escritores do passado actuais...



Dr. Pluma -- Disse escritores do passado actuais, dr. Pena?



Dr. Pena -- Disse. Nos meus esforços para acompanhar sigo de tudo um pouco; gosto, sobretudo, de estar atento à manifestação das gerações mais novas, não é bonito ficar para trás sem aviso, compreende...



Dr. Pluma (interessado) -- Diga sempre...



Dr. Pena -- Um jovem ensaísta publicou um artigo no jornal Diário de Lisboa...



Dr. Pluma -- Não diga! E quem é que ele alvejava?



Dr. Pena -- Pois isso é que me faz espécie... Não era só a um ou dois escritores que ele destinava a sua diatribe, era a quase todos os que é costume designar como neo-realistas...



Dr. Pluma -- I see... Admito agora aquela sua expressão «escritores do passado actuais»... Mas, c'os diabos, então um escritor não pode mudar de estilo? Adaptar-se a novos modus faciendis? Barbear, pentear?



Dr. Pena -- Todos ao mesmo tempo, talvez não. Parece mal aos que ainda não estão suficientemente maduros para, por seu turno, mudarem também. Mas reconheço que a acusação é um tanto excessiva.



Dr. Pluma -- Pois é claro que o é; que seria das letras se não as aprimorassem! Se não as fizessem virar do avesso quando o direito deu o que tinha a dar! Até à próxima, insigne rr. Pena! Os meus melhores sentidos ao dr. Pincel!



Dr. Pena -- Serão entregues, meu preclaro amigo! Até para o mês que vem!





in Mário Cesariny, Primavera autónoma de estradas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1980, pp. 127-129

O «Consultório do dr. Pena e do dr. Pluma» foi uma série de sete textos, escritos por Mário Cesariny de parceria com Manuel de Lima, em 1968, e publicados no Jormal de Letras e Artes entre os meses de Abril e Outubro de 1968, à razão de um por mês.

Anónimo disse...

Da pintura de Vieira como Vontade e Representação
Da pintura de Szenes
como Livro de Bordo e viagem por terra à roda do planeta.
Reinício da Era Espacial.


Em 1928 em Paris Maria Helena Vieira da Silva tem 19 anos, Arpad Szenes 30 e frequentam as aulas da Academia Grande Chaumière. Dois anos depois, casam. Será o início de uma aventura talvez sem paralelo na sua coincidência de amor e de poesia. De amor químico e alquímico. Mas o segundo é que contém o primeiro.

A qual dêles, Vieira-o-húngaro, Szenes-a-portuguesa, corresponde mais forte o joguete de amor que ainda não sabe se do que triunfará, será difícil e desinteressante querer determinar. Mas não é difícil intuir a que ponto extrêmo do possível êle será importante para Vieira, cuja necessidade de confiar-se é ainda hoje um dos maiores encantos de quem a escuta. confiar, isto é, transmitir em meio não hostil a sua própria contagem das coisas, as grandes ou pequenas descobertas do dia, entregues em voz alta à orelha outra mas querendo, só supondo, a cumplicidade total.

As primeiras obras que permite expôr, assinar como suas, e Vieira pinta e desenha desde os 5 e começa com o óleo aos 13 anos de idade, serão pois dêsse ano de 1930, o ano do casamento com Arpad. Mas êste nunca será o padre-mestre providencial surgido, nem sequer o guarda-fôgo do país encantado. Estará noivo e irmão depois da meta como taça da festa que liba à vitória. Então como hoje Vieira no labirinto é a um tempo Ariadne e Teseu, e o fio da meada é dela em sua frente, é segregado dela, de Ariadne, e os seus olhos no escuro são os seus, de Teseu, e a mão que segue o fio é a sua, de Vieira. Fio que Szenes obsessivamente recobre e descobre, ilumina e escurece, maravilhado, na série de pinturas iniciadas em Paris e no atelier do Alto de S. Francisco, e a que dá o nome "Cerf-volant" e "Enfant au cerf-volant".

A Enciclopédia: "No século IX os Magiares abandonaram o terreno que ocupavam nas planícies a Leste dos Cárpatos e, movendo-se para Oeste sob o comando de Arpad, desceram para a região que veio a tomar deles o nome. Os invasores eram uma horda bárbara que durante mais de meio século aterrorizou as gentes situadas a Sul e a Oeste. Destruiram o reino Morávio, empreenderam invasões na Alemanha e na Itália, levando as suas devastações quase até ao estreito de Calais. A dinastia Arpad perdura até ao século XIII".

A braveza do ímpeto masculino ejectando-se fora de todo o limite e cuja suma final é talvez narcísica e onanista. "A ardente higiene das raças" (1). Há uma maneira de castrar cavalos, naturalmente específica e "melhor", a que ainda hoje se dá o nome de hungriar.



Esta focagem demasiado a sêco do espírito magiar não funde com aquilo a que também por demais denominam alma eslava, e só vem aqui por suposto de contrários simples. O composto haveria de falar da doce e delicada subtileza, da zona de luz marginal, da deriva irónica profunda de que um espírito como o de Szenes é formado, "tão fácil de contactar como difícil de conhecer", diz Jean Grenier.



Também é por ruptura que o nome de Vieira significa. Helena, como no masculino se diz dos Helenos, para aportar a Samos e dar morte ao espírito de Pitágoras. Helena por ter visto e por dar testemunho de que nenhum discurso, ou número ou palavra, é sem um infinito + e - , e que a única coisa que não mente está nos graus (nas formas) da vibração.



Ambos serão apátridas. Ambos deixam a terra de origem e perdem a nacionalidade, Arpad por não invocá-la, Helena porque lha recusam.



Que se trata de uma união sagrada, de um pacto jurado no espírito, como Novalis ideou sem poder realizar, indicia-o o próprio Arpad. A "rapariga ibérica muito interessante" de quem já falara talvez com alguma futilidade a alguns amigos, transforma-se na possível companheira de toda a vida no mesmo instante em que pela primeira vez ela lhe mostra as suas pinturas: "quadros a um tal ponto poéticos, simples, adultos, que fiquei profundamente impressionado. Disse comigo: não é possível!, e ao mesmo tempo via que era verdade. Sem nada ou quase sabermos um do outro, quase sem nos conhecermos, eu amava-a e estava disposto ao casamento" (2).

Sôbre Maria Helena, Arpad terá a vantagem de 11 anos mais de vida de relação e de enriquecimento espiritual. Incursões e estadias na Alemanha, em Itália, em Paris, antes e depois de 1914, tornam-no atento às fontes de revolução que deram corpo à poesia do nosso século, talvez nos mesmo dias em que Vieira se afadigava a procurar entre ossos e tendões de classes de anatomia o que as caras e as carnes lisboetas escondiam. Em 1931, no atelier de Hayter em Paris, encontra os surrealistas ("sobretudo Ernst e Miró"), afeiçoa-se à "economia de meios" da pintura de Tanguy. Mas todo o intento de ligar-se ou deixar-se ligar ao grupo de Breton, então no auge da paixão política que antecede e prossegue o II Manifesto e a expulsão de Artaud, estará fora de questão. Nos anos 50, um convite formal de Breton a Vieira é igualmente diferido. Sabem que a pintura é o seu acto de amor (Breton também o sabe, dez anos depois:



"La poésie se fait dans un lit comme l'amour

Ses draps défaits sont l'aurore des choses

La poésie se fait dans les bois...



...Cela ne se crie pas sur les toits

Il est inconvenient de laisser la porte ouverte

Ou d'appeler des témoins")



e inventam-na apaixonadamente um para o outro, sem intermediários. Para começar, pintam os respectivos retratos. Cada um pinta êsse que pinta o outro. De frente, de lado, a corpo inteiro, a meio-corpo, de pé, de bruços sôbre a mesa de trabalho, e no "cadeirão do pobre". Cada um reza à imagem do outro, juntando elementos-forças para a transubstanciação que se produzirá. Enquanto o homem fixa no real, com a firmeza do querer, a mulher pensa o nascimento do mundo e em tôrno dela e dele e dos seus objectos pôe a dançar o espaço que os contém: o tecto, o chão, os muros do atelier.

Dançar é termo amável: para conter e poder continuar, esta troca de espelhos segrega o milagre, a terceira pessoa do singular que ambos são. Vieira assume o masculino, agride e desconjunta como um ariete. Fá-lo com suma delicadeza de maneio, com imponderável carícia ("conversa", apetece dizer), da tela, mas o que aí vem é uma enteléquia macha, uma tele-grafia habitualmente apenas consentida das culturas nórdicas, um "mundo como vontade e representação". Na câmara fechada que lhes serve de leito a vertical imparável subverte tudo, o quadrado que queria repousar destampa-se para dentro, para a ilusão perspectiva, com o mesmo riscado que o destroe para fora, para a ilusão de exterior. É o barroco, e o gótico. O gótico, sobretudo: mas no plano. E, mais que o gótico, a sua perentória correcção: a pedra bruta levada ao imponderável, a catedral expelida do planeta, livre de todo o cárcere, liberta do mal, amen. A "boca quadrada" do herói dos "Cantos de Maldoror" recebe aqui a sua forma gráfica absoluta, musculada "para se fazer ouvir nas camadas mais longínquas do espaço". Como sempre, o mais genial apoia e absorve o mais inocente: o humílimo azulejo, português e flamengo.

Szenes tomará o caminho oposto. Seria complementar se o termo não sugerisse uma dependência que é o contrário da escolha.

"L'arbre en prison", de Vieira, muito provavelmente pintada em Lisboa em 1932, e "L'obstacle", de Szenes, possivelmente pintado em Paris, iluminam o que digo. Já muito se notou que o traço de Vieira pode parecer indeciso e o de Szenes bem determinado. Estes quadros patenteiam-no em linhas de tensão máxima, mas não é isso que trato. O quadro de Vieira é um apelo ao voo, à saída pelo tecto. Se é árvore, como no título, não é da terra que sente as raízes, é de cima, do espaço para que apela. Para Szenes, porém, o obstáculo, a prisão, não é o território do planeta mas o inteligível-insensível, o ómega absoluto, a gaiola armilar. E o ponto de ejecção é duplo e poderosamente indiciado: a bela imagem surrealista armilada, homem e mulher, equídeo e ave, fita com gula à direita e à esquerda a horizontal sem fim que não é a da cena clássica ou romântica mas a própria de Arpad. Se não é pouco humor, pequeno tropo do espírito vermos o universo de Vieira andar por movimento perpétuo do quadrado, número do estável, do equilíbrio realizado, não menos o será vermos um ponto do círculo bem observado. O quadro, que em seu momento me parece unir o que melhor o espírito dádá e o voluntarismo surrealista animaram, funde por dentro a forma fêmea e a macha: o corcel preso tem como cabeça a ave imobilizada. Seraphito. Seraphita. Duas asas, dois cascos.

Também a côr, a forma de dar sangue, será distinta. Vieira: "Em criança, surpreedeu-me a visão, num livro de pintura, de uma Virgem de Rafael que tem por detraz, como um primeiro desenho, um esqueleto. A Virgem e o Esqueleto. Não digo que isso tenha sido de algum modo determinante, mas se há alguma coisa que eu tenha... que eu tenha... conseguido, é a estrutura. Deixe lá a côr. As coisas já têm tanta..."

Eu em Londres, em "18 de Fevereiro, nevando muito. Como a neve intocada, fixa à mais alta montanha, ou como a neve negra das cidades no chão do trânsito humano, os brancos e os cinzas de Vieira. O que já foi, já passou, ou apenas se dará no inacessível. Mesmo os negros funcionam como côr violentada, clareira destruída, azul intercecptado, algo como a pureza tomando o seu banho de lama". Julgo que, se se pudesse, a obra de Viera seria toda um gráfico do "sonho ascensional" (Gaston Bachelard, "L'air et les songes") e da "busca da base e do cume" (Réne Char), sem as intermediárias que vão do negro puro à alvura dos cimos. Chegará mesmo ao branco sôbre branco, à alvura inexcrutável da "Estela" de 1964, dedicada à sua mãe, como à escuridade temível, buscada durante seis anos e depois abandonada, de "L'enterprise impossible". E quando, progredindo no jôgo da côr, esta assoberba o espectáculo, fá-lo em manchas bem individuadas, rigorosamente inscritas nas pontes de subida e de ocupação do espaço.

Em Szenes, a côr é lentamente, sabiamente unida, quase o elemento fundador-perseguidor do quadro, que vemos emergir de uma soma vital da pintura do nosso tempo, enquanto Vieira dificilmente é reconhecível pelas pautas da época, e essa impressão que causa, de inaudito, de nascimento do novo. É que o trabalho foi por muitos anos a recusa do cânone, qualquer cânone, quase a recusa em desenhar e pintar, embora não fizesse senão isso. E quando o seu regrão, a sua pintura, nasce, parece vir de eras sem curso hoje. Na actualíssima pintura de Vieira há uma subversão de sete séculos, fiel ao primeiro Renascimento e alheia ao segundo e ao que dele para cá se carregou. Szenes levará ao ilimite o voto formulado em "L'obstacle". Sobretudo a partir dos anos 50, em que abandona o figurativo e invade o terreno vago deixado pelo Kandinsky não geométrico e pelo Paalen dos sinais rupestres apanhados de eras pré-colombianas, realiza uma síntese soberana das tensões contrárias a que Worringer chama abstracção e empatia, e Breton "duas formas talvez complementares da tentação humana em matéria de expressão, formas que têm requerido distintamente Oriente e Ocidente" (3). Com as excepções e as antecipações que podem e naturalmente devem produzir-se, a horizontal, de infinito a infinito, simples ou meditada, será a sua pintura.



in Mário Cesariny, Vieira da Silva Arpad Szenes ou o castelo surrealista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, pp. 11-19



NOTAS

(1) - Rimbaud no poema "H" das "Iluminações".

(2) - Em "L'éclat de la lumiére", de Anne Philipe, ed. Gallimard, Paris, 1978.

(3) - "Le Surrealisme et la Peinture", ed. Gallimard, 1964; texto sôbre Enrico Donati, 1944.

Anónimo disse...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -
- muito melhor! Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.