Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Teoria e revolução (proposições políticas e algumas reflexões filosóficas). In: Teoria & Política. São Paulo, Brasil Debates, 1987 n.8. pp.32-53. [Ref.: T206]

          

Teoria e Revolução
(Proposições políticas e
algumas reflexões filosóficas)

          

         PARTE I ( 1 )

         A luta revolucionária pelo socialismo encontra-se, hoje, mergulhada numa crise profunda e de largo alcance histórico. Ignorá-la ou subestimá-la é o primeiro equivoco de quem se propõe a pensar o marxismo e torná-lo - tal como já foi no final do século passado e início deste - uma concepção capaz de impulsionar milhões de homens na transformação do mundo e conquistar as inteligências mais generosas da intelectualidade.

         As chamadas sociedades "pós-revolucionárias" desenvolveram formas de opressão política, manipulação cultural e exploração econômica totalmente imprevistas pelos clássicos do marxismo. A União Soviética e a China, para citar os dois exemplos mais importantes, adotam alternativas econômicas e políticas cada vez mais distanciadas dos objetivos igualitários e desalienadores propugnados por Marx e Engels. Além disso, exercem políticas hegemonistas ao nível internacional, submetendo os interesses da luta pelo socialismo aos seus propósitos de "grande potência".

         O modelo da revolução bolchevique, do partido bolchevique e do marxismo bolchevique - segundo a interpretação burocrática e grosseira de Stalin e seus seguidores - foram transpostos como dogmas religiosos para todas as nações, sendo os comunistas coagidos ao ritual do servilismo político e intelectual diante dos "chefes infalíveis". Com algumas honrosas exceções (a maioria estigmatizados, perseguidos ou eliminados fisicamente), os marxistas se transformaram em pregadores de uma nova escolástica. Enquanto filosofia e teoria, o marxismo não só deixou de avançar - o que já seria algo extremamente grave para uma concepção que se pretende dialética e revolucionária -, mas também sofreu distorções e falsificações de toda a ordem. Esse quadro geral, entretanto, não pode ser considerado surpreendente se observarmos as teses que foram rapidamente se afirmando na III Internacional. Em 1926, respondendo à críticas sobre o sectarismo e o dogmatismo de uma política que afastou os melhores cérebros do Partido Comunista Alemão, Stalin dizia:

         "Alguns intelectuais dizem que o Comitê Central do PCA é débil, que dirige deficientemente, que a ausência de intelectuais no seu seio repercute negativamente no seu trabalho, que o Comitê Central não existe, etc. Camaradas, tudo isso é falso. Essa parlapatice, no meu entender, é própria de intelectuais e indigna de comunistas"; "diz-se que o atual Comitê Central não brilha por seus conhecimentos teóricos. E dai? Desde que a política seja acertada, os conhecimentos teóricos, são supérfluos. Conhecimentos teóricos são coisas que se adquirem; se não se os tem hoje, amanhã se os conquista. Para alguns intelectuais presunçosos, porém, o que não é fácil é assimilar a correta política praticada atualmente pelo Comitê Central do PCA. E a força deste Comitê Central consiste em que se aplica uma justa política leninista, coisa que os intelectualóides que rendem culto aos 'conhecimentos' não querem compreender".(2)

         Quem é incapaz de se indignar diante dessa brutalidade, desse culto bárbaro da ignorância e da submissão intelectual, jamais poderá ser um marxista no sentido que a atualidade o exige. A grandeza de cada indivíduo, para o stalinismo, não se aquilata pela capacidade pessoal de contribuir teórica e praticamente no movimento, de criticar autonomamente a práxis coletiva do partido a fim de superá-la a cada momento, mas pela disposição em ter fé nos superiores e em desprezar a inteligência. De fato, para aplicar uma "correta política" - a priori definida como tal - os conhecimentos são dispensáveis, a reflexão e a teoria são desnecessárias e inclusive podem prejudicar o funcionamento do aparelho partidário. Traduzindo: para obedecer não é preciso pensar, basta ter fé cega nos "chefes" e executar sem inquietações. Esse seria o verdadeiro comunista.

         No caso do PCA, como demonstra Claudin na obra referida, dispensado da incômoda tarefa de raciocinar e da complexa necessidade de fundar a ação em "conhecimentos teóricos", o Comitê Central continuou aplicando a sua "justa política leninista" que identificava a social-democracia com o fascismo, tomando-a como inimigo principal. Desse modo, uma "justa política" que abriu caminho para a ascensão de Hitler ao poder.

         A Força da Tradição

         É um grave erro tergiversar sobre a força dessa tradição entre nós. Os hábitos mentais e a postura intelectual que daí se originaram, lançaram raízes profundas que se espraiaram por todo o movimento comunista, mesmo entre aqueles setores que conscientemente recusam e denunciam esse passado vergonhoso e ignóbil do "marxismo-leninismo" cunhado por Stalin e seus epígonos. O constrangimento que esse tema produz entre os comunistas, como se fosse algo "sobejamente conhecido" que não há necessidade de repisar e relembrar, indica a superficialidade com que é praticada a autocrítica teórica e ética. Tal como os cristãos (de "centro", de "esquerda" ou de "direita") não gostamos de relembrar as fogueiras em que ardem os nossos hereges, sob o patrocínio ou beneplácito de uma concepção da qual - em alguma medida - somos herdeiros e, talvez, retrospectivamente responsáveis ou coniventes.

         A crise do movimento comunista tornou-se causa e conseqüência de uma crise do próprio pensamento marxista, que não poderá ser resolvida pelo simples retorno à pureza dos clássicos, em cujo seio seriam encontradas as verdades imaculadas capazes de equacionar e resolver os impasses atuais. As limitações históricas das contribuições de Marx, Engels, Lênin e tantos outros - hoje perfeitamente visíveis - encerram ambigüidades e equívocos que não podem ser integralmente inocentados na análise dos desdobramentos ou perversões que sofreram. Outro modo de conceber o desenvolvimento da história e da consciência humana implicaria, necessariamente, numa postura mística. Somente os dogmas religiosos, revelados através dos Livros Sagrados ou dos milagres, é que são apenas "reinterpretados" e jamais discutidos em sua essência, pois eles supostamente manifestam verdades eternas que transcendem ao mundo dos homens e sua historicidade. O marxismo, no entanto, pode e deve ser construído com outro material: verdades que se afirmam, se superpõem e se negam de conformidade com a experiência global da humanidade e os projetos que os próprios homens vão construindo em sua aventura singular de autoprodução e invenção do mundo.

         A verdadeira postura de revolucionários marxistas, de autênticos comunistas que honram a grandeza humanista e desassombrada de Marx, Engels e Lênin exige que o processo autocrático seja levado até suas últimas conseqüências. A contribuição política de Lênin para o marxismo clássico - superando-o no sentido revolucionário - exemplifica o tipo de abordagem que, também no plano teórico, precisamos resgatar, não só em relação a Marx, mas igualmente ao próprio Lênin.

         Até hoje, sequer conseguimos responder teoricamente uma questão fundamental: por que o stalinismo conseguiu submeter, esterilizar e manipular a nata dos revolucionários da União Soviética e do mundo? Como conseguiu fazer do Partido Bolchevique e da tradição do marxismo e do leninismo uma seita de fanáticos? Essa interrogação se coloca aos marxistas como a esfinge que deve ser decifrada para que não venha a devorá-los mais cedo ou mais tarde. O terror e a falsificação explicam apenas uma pequena parte do problema, mas não a facilidade com que centenas de milhares foram enganados ou se submeteram.

         Os Antecedentes da Crise

         A II Internacional naufragou definitivamente no 4 de agosto de 1914, quando os alemães votaram a favor dos créditos de guerra e foram seguidos pelos socialistas dos demais países. Consolidou-se, então, como expressão de reformismo e do oportunismo no movimento operário. A III Internacional, fundada em março de 1919 sob a liderança de Lênin e do Partido Bolchevique, não conseguiu equacionar uma estratégia revolucionária para os países capitalistas mais desenvolvidos, o que em parte foi reconhecido pelo próprio Lênin. Já no final dos anos 20 era a manifestação acabada do dogmatismo e do sectarismo, passando a servir como instrumento dos interesses nacionais do Estado Soviético. No VI Congresso, em 1928, a Internacional adotou a fórmula do "socialismo num só pais", falsificando as teses de Marx e Lênin sobre a revolução mundial e o significado do internacionalismo proletário. Foi a plataforma "teórica para a manipulação permanente do movimento comunista internacional segundo as "razões de Estado" da União Soviética. Alguns, como Trotsky e seus adeptos, denunciaram a farsa e tiveram um trágico destino. (Não está em questão, aqui, se defendiam posições consistentes ou não no plano político e teórico). A verdade é que a imensa maioria dos militantes comunistas simplesmente acatou.

         Sob a bandeira do "socialismo num só pais", a I.C. barganhou a Revolução Chinesa e a Revolução Espanhola, para citar dois exemplos mais célebres. Em 1924, vertendo lágrimas sobre o túmulo de Lênin, Stalin havia jurado solenemente defender a Internacional e mantê-la a serviço da revolução proletária mundial. Em 1943, por meio de uma decisão manipulada, basicamente com a finalidade de melhorar as relações com os países ocidentais contendo a luta antifascista nos limites da democracia burguesa, a I.C. foi dissolvida, sem que nenhuma conexão formal ficasse estabelecida entre os PCs do mundo inteiro. Portanto, se a Primeira Guerra foi a câmara mortuária da II Internacional, a Segunda Guerra enterrou a III Internacional que, aliás, já estava em adiantado estado de putrefação. Não obstante, o PC soviético continuou sendo o articulador e mentor dos partidos órfãos da III. A IV Internacional, fundada por Trotsky - em parte devido ao prestígio da Revolução Bolchevique e ao hegemonismo ideológico do stalinismo, mas sobretudo pelas limitações do marxismo trotskista para enfrentar os novos problemas da revolução - jamais adquiriu um papel central na luta de classes ao nível mundial.

         A crise do movimento comunista e do pensamento marxista, como se pode perceber através dessas rápidas considerações, não pode ser considerada apenas como uma "crise de direção" do movimento operário. Durante meio século os comunistas foram educados para a subserviência e a passividade diante dos pequenos e grandes chefes. Refletir, indagar, duvidar, questionar, discordar, poderia representar (e, de fato, para milhares representou) a marginalização, o desprezo, o estigma de "traidor", o cárcere, a tortura ou a morte. Trotsky, um destacado revolucionário e escritor vigoroso, assassinado por ordem de Stalin, foi apenas a vítima mais eminente.

         Um Fruto Amargo

         O pensamento Marxista, encontrando terreno adverso entre os militantes comunistas, passou a desenvolver-se - geralmente com inflexões acadêmicas e posturas reformistas - nos meios universitários e entre os intelectuais sem partido. Aliás, foi esse deslocamento que lhe permitiu sobreviver e realizar avanços particulares. Algumas exceções importantes como Gramsci e Lukács, envolvidos diretamente com a militância revolucionária, desenvolveram suas contribuições em oposição à postura dominante na II Internacional, o que confirma a regra. Em geral, o pensamento crítico e criador ficou à margem dos militantes e deixou de interferir diretamente na luta de classes, desviando seus compromissos fundamentais com a práxis revolucionária e, muitas vezes, assumindo uma dialética puramente negativa e pessimista (vide "Escola de Frankfurt").

         A ação direta na luta de classes divorciou-se da reflexão ousada e do debate aberto. As fórmulas prontas substituíram o pensamento vivo capaz de apanhar a "situação concreta", os rótulos substituíram os conceitos e a autoridade de "partidos de vanguarda", supostamente detentores da "consciência verdadeira" do proletariado, substituiu a filosofia, a teoria e a ciência. Criou-se um índex dos autores e livros proibidos e os estigmas ("revisionismo", "oportunismo", "trotskismo", "bukarinismo", "hegelianismo", etc.) passaram a interditar a discussão, a crítica teórica e o pensamento em geral. Até hoje, não são poucos os militantes marxistas que usam e abusam desses termos sem conhecerem, sequer minimamente, sua origem, o contexto em que se tornaram usuais e a imprecisão de seus significados.

         Via de regra, o marxismo militante tem sido o fruto amargo desse divórcio da prática política com o pensamento teórico e filosófico, o divórcio de uma prática que se amesquinhou em obediência e eficácia imediata, o divórcio dos meios em relação aos fins. Por isso, para a maioria dos militantes o marxismo não tem sido um instrumento para superar a alienação, mas uma forma de reproduzi-la em novas bases. Nossos temores em relação ao "teoricismo" e ao "intelectualismo" configuram a manifestação caricatural da impotência a que fomos reduzidos. Alguns parecem acreditar que é mais seguro não pensar por conta própria, para não correr o risco de concluir algo errado e incorrer em algum "desvio".

         Entre a Teoria e a Prática

         Não se trata, portanto, de tomar precauções para evitar que se crie um abismo entre a teoria e a prática, como se diz sempre que surge a necessidade do aprofundamento e desenvolvimento teórico entre os marxistas voltados para a militância política. Esse abismo já existe e foi cavado por nossa ignorância e passividade intelectual. Nós é que estamos no fundo desse abismo, com nossa prática empobrecida e coletivamente irrefletida. O que a realidade está a exigir, atualmente, é que a teoria revolucionária seja capaz de nos situar como sujeitos numa outra posição, numa outra relação abissal diante da experiência acumulada e de nosso ativismo míope. O abismo que tememos cavar é o que necessitamos. O abismo em que caímos com nosso pragmatismo pedante, e que cultuamos sob o nome de "unidade entre a teoria e a prática", é exatamente aquele que deveríamos negar, aquele que é imprescindível superar. A tarefa intelectual que se põe aos marxistas, hoje, é a de "abismar" a teoria, distanciá-la da imediaticidade em que se afundou para que possa oferecer um questionamento de conjunto (como totalidade) do processo histórico que estamos atravessando e possamos nos perceber e situar claramente dentro dele.

         A relação entre a teoria e a prática, para o marxismo, não pode ser compreendida de maneira vulgar e diminuída, como um chavão. Mas como uma grandiosa práxis revolucionária que se move não pela identidade entre a teoria e a prática, não pela reiteração de uma pela outra, mas em virtude da constante critica e superação mútuas. A prática e a experiência histórica já cumpriram até em demasia sua parte, já criticaram e superaram grande parte dos nossos conhecimentos teóricos e nossa postura intelectual. É necessário que o marxismo realize um movimento teórico de superação diante da imediaticidade de uma prática política que foi reduzida à mesmice do automatismo cego. E isso não é uma tarefa que possa ser cumprida apenas por alguns teóricos ou intelectuais especializados em determinadas áreas do saber, pois exige a negação de preconceitos e hábitos arraigados no conjunto dos militantes do movimento operário e popular.

         A concepção burocrática do marxismo nasce tanto de cima para baixo (da teoria para o movimento) quanto de baixo para cima (dos ativistas do movimento político para as elaborações teóricas). A burocracia e a manipulação, enquanto prática e concepção, não poderiam ser instauradas num movimento político, num partido ou num Estado pós-revolucionário sem a existência de milhares e milhares de pequenos burocratas que são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência desse processo. O stalinismo não teria sido vitorioso na União Soviética sem o apoio, a conivência ou a omissão de milhares de pequenos chefetes subservientes aos "de cima" e tirânicos em relação aos "de baixo".

         A Dívida da Consciência

         O problema atual da luta ideológica e teórica não se limita apenas aos termos colocados por Gramsci (embora suas reflexões tenham, sem a menor dúvida, representado um importante avanço), ou seja, à disputa ampla de hegemonia frente ao modernos aparatos ideológicos, culturais e científicos da burguesia imperialista. Os que pretendem reduzir a "questão teórica" ao problema das dimensões mais amplas e da diversidade de terrenos em que se trava a disputa pela hegemonia, centrando no aspecto quantitativo do embate, não compreenderam o que há realmente de novo nessa dimensão da luta de classes. Não basta, inclusive, reconhecer que nossos conhecimentos e nossas concepções estão defasadas diante da realidade atual e frente aos avanços particulares das ciências.

         É indispensável, hoje, um modo inteiramente novo de conceber a própria questão teórica na luta pelo socialismo. A teoria, a filosofia e o saber em geral constituem não só aspectos táticos e estratégicos da luta de classes, mas um problema do fazer histórico em sua globalidade. A teoria e o conhecimento não podem ser considerados simplesmente instrumentos da prática política em sentido estrito. Mas constituem, em si mesmos, dimensão relativamente autônoma da luta de classes e condição para que a sociedade futura seja, realmente, o caminho da superação de todas as formas de opressão e alienação. O conteúdo do futuro que estamos construindo depende, fundamentalmente, do conteúdo da concepção que vai movimentar o processo e em qual dos sentidos possíveis irá fazê-lo. A inteligência e o pensamento - quer dizer, os indivíduos, pois eles são a unidade irredutível da consciência - não podem abrir mão dessa responsabilidade diante da história, dessa dívida que a sua consciência deve resgatar diante da humanidade que ela está ajudando a construir. Cada um deve assumir-se integralmente como sujeito político, teórico, ético e moral.

         Se não acertarmos conta, radicalmente, com nossa tradição e os hábitos mentais que ela produziu, nosso discurso em favor de uma marxismo antidogmático, nosso propósito de criar um "campo teórico" e cultural capacitado para o enfrentamento com a hegemonia burguesa, nossas teses domingueiras sobre a necessidade de fazer avançar ousadamente o pensamento marxista, tudo isso serão palavras grandiloqüentes e vazias. O marxismo militante continuará produzindo, principalmente, pequenos aprendizes de feiticeiro, fiéis e intempestivos seguidores de Maquiavel ou funcionários públicos com sinal trocado.

         Nossas tarefas teóricas começam, então, pela disposição em analisar de maneira autocrática, exaustivamente, em todas as suas premissas e conseqüências, os cinqüenta anos de paralisia do marxismo revolucionário e, igualmente, de repensar as contribuições "marginais" que foram deixadas de lado nesse período, por mais ambíguas e limitadas que tenham sido. Temos que partir do princípio - como sugeriu Thomphson - que não podemos nos posicionar "do lado de Marx", mas ele é que deve ser considerado "do nosso lado" quando nos colocamos as grandes questões do nosso tempo.

         No fundo, ainda pensamos pelo figurino metodológico do dogmatismo stalinista. Não chegamos a dizer que os "conhecimentos teóricos são supérfluos" , mas acalentamos a ilusão que "se não se os tem hoje, amanhã se os conquista", já que o importante é uma "'justa política marxista e leninista". Acreditamos que, no plano teórico, nossa missão é apenas ensinar aos operários e militantes do movimento popular um marxismo calcificado que mal dominamos, e que já estaria mais ou menos acabado há um século. É com esse espírito que aparece, normalmente, a tradicional proposta da "escola de quadros", que se pretende seja um instrumento da formação especializada de "dirigentes políticos" da mesma maneira que são reproduzidos os gerentes.

         Abordar a questão da teoria sob esse ângulo estreito é raciocinar como certas crianças que fecham os olhos e, diante da escuridão que proporcionam a si mesmas, acham que não podem ser vistas pelos outros. Ou então, para ser mais incisivo, é como querer arrancar uma árvore ao colher o seu fruto. Os verdadeiros "quadros revolucionários" do marxismo, que precisam formar-se aos milhares e segundo uma tipologia amplamente diversificada (diferentemente do que ocorria no tempo de Lênin), só poderão nascer no contexto de uma política para a constituição de um campo marxista pensante e criativo, ou seja, uma intelectualidade comprometida com a práxis do movimento operário e das suas organizações revolucionárias.

         Militantes de Novo Tipo

         Não será uma política de "formação de quadros" - tendo presente a fragilidade teórica das organizações revolucionárias e a própria crise do marxismo -, o instrumento capaz de criar esse campo marxista no terreno da consciência teórico-ideológica. Ao contrário, é a constituição desse campo que encerra as possibilidades da educação massiva de quadros revolucionários, dirigentes, organizadores, propagandistas e agitadores do movimento operário e popular. Só nesse contexto isso poderá ser feito numa perspectiva não-dogmática, em bases teórico-científicas atualizadas e solidamente construídas, gerando um novo tipo de militante marxista: ideologicamente revolucionário, firme e disciplinado na realização de seus propósitos, mas reflexivo e crítico diante das verdades estabelecidas e de sua própria atividade. Um tipo de militante resoluto na ação, consciente nos propósitos e que, ao mesmo tempo, por concepção e método, duvide de tudo e considere que nada do que é humano lhe é estranho.

         Não se está propondo aqui - vale sublinhar, para prevenir contra os maus entendedores circunstanciais ou renitentes -, que é necessário antes criar um "campo intelectual" fora da práxis política e independente dela para, só depois, pensar na formação de quadros. As duas coisas devem ocorrer ao mesmo tempo e dialeticamente relacionadas. Não obstante, a questão é saber se a "formação de quadros" deve ser considerada como um aspecto de uma política mais ampla em relação à teoria ou se, ao contrário, essa política mais ampla em torno da teoria é apenas um aspecto (ou talvez uma decorrência natural) da "formação de quadros". De nossa parte, como ficou evidenciado, a opção é pela primeira alternativa e não pela última. E para realizá-la é preciso uma política consciente e deliberada de parte das organizações marxistas-leninistas e dos intelectuais revolucionários, a fim de criar "artificialmente" as bases para a formação desse campo teórico, à medida que ele não surge espontaneamente da ação política nem como subproduto da "formação de quadros".

         Esse campo teórico revolucionário e marxista deve ser uma "via de mão dupla", isto é, tanto mobilizar o acúmulo teórico e científico para enfrentar os questionamentos colocados pela ideologia revolucionária e os grandes impasses da práxis política, como também ampliar e aprofundar a reflexão de cada militante em relação às miudezas da prática cotidiana, a fim de situá-las no contexto das grandes questões históricas e filosóficas de nossa época. Nesse sentido, a amplitude, a diversidade e a pluralidade - no interior de uma perspectiva revolucionária - são características imprescindíveis desse movimento critico e teórico.

         Se colocarmos esse processo em andamento teremos, numa articulação global, várias conseqüências importantes que deverão alterar favoravelmente as condições da luta pelo socialismo. Em primeiro lugar, estaremos contribuindo - mesmo que seja minimamente - para que o marxismo supere seus impasses teóricos e, ao mesmo tempo, assuma relações mais ricas e profundas com a luta de classes, a revolução e a meta de elevar a Humanidade a um novo patamar histórico, livre da opressão e da alienação.

         Em segundo lugar, estaremos criando as condições para a construção de um núcleo teórico revolucionário e marxista, plenamente capacitado para enfrentar as elaborações do pensamento burguês conservador ou reformista (especialmente as sofisticadas versões acadêmicas), capaz também de oferecer respostas novas aos problemas novos colocados pela modernidade. Uma parcela, pelo menos, dos dirigentes políticos mais capacitados deverá coincidir com esse núcleo teórico. Enquanto que uma parcela ainda maior desses intelectuais deverá manter relações orgânicas com o projeto revolucionário e exercer formas de militância política adequadas à especificidade de sua capacitação.

         Em terceiro lugar, no bojo do processo delineado acima, estarão dadas as condições para a formação de milhares de "quadros revolucionários", solidamente preparados como organizadores e propagandistas, e capacitados para compreender e traduzir no plano político as questões que estão em jogo nos debates filosóficos, teóricos, científicos e culturais. Essas três dimensões articuladas poderão criar um campo teórico propriamente dito, com a qualidade já indicada, que será traduzido na elevação do nível teórico de dezenas de milhares de militantes, de sua consciência crítica e iniciativa política. O resultado político mais amplo será o aumento da capacidade de atração do marxismo e das idéias revolucionárias do socialismo, funcionando como catalisador da militância política dos indivíduos mais inteligentes e arrojados do movimento operário e popular.

         PARTE II

         Para oferecer alguns subsídios às teses políticas apresentadas na primeira parte, devemos, agora, penetrar na região propriamente teórica do problema. Seria quase um truísmo dizer que somente a teoria pode, realmente, justificar a proposição referente à importância crescente da teoria na história humana e, em conseqüência, seu significado na luta de classes contemporânea. A necessidade de desenvolvimento do "espírito" só é transparente para si mesmo, isto é, para o "espírito" que reconhece o carecimento de sua autocompreensão.

         Em que pese a complexidade e dificuldade do tema, é preciso abordá-lo mesmo que precariamente, admitindo a provisoriedade das reflexões, já que, de qualquer forma, - mais cedo ou mais tarde - as questões políticas terão de ser enfrentadas no patamar último da radicalidade teórica. Melhor, portanto, que seja mais cedo.

         Muitos, entre os próprios marxistas, decodificam a famosa XI tese sobre Feuerbach ("Os filósofos até hoje interpretaram o mundo; trata-se de transformá-lo".) num sentido nitidamente pragmático. Essa interpretação, sem dúvida, é falaciosa. Marx não pretendeu afirmar que, agora, resta-nos tão somente a tarefa prática de transformar o mundo, sendo desnecessário pensá-lo teoricamente. O que ele estabeleceu é que o pensamento, a interpretação, de agora em diante deve ter uma finalidade: a transformação do mundo real e das condições objetivas que o tornam opressivo e desumano. A verdade, portanto, deve ter um critério conforme essa finalidade: a prática ou, mais amplamente, a práxis. Não cabe mais ao pensamento, segundo Marx, julgar sem tomar partido, interpretar sem comprometer-se e, dessa forma, iludir-se através da mistificação de sua capacidade de transcendência.

         Se a interpretação pragmática da "XI tese" fosse legítima, Marx seria o teórico do fascismo e não do comunismo. Para as concepções fascistas os problemas se põem na ação e se resolvem pela ação. Trata-se de um pressuposto irracionalista que está plenamente de acordo com as propostas políticas do fascismo, que se baseiam na manipulação das massas pelos "grandes chefes".

         Entretanto, receio que essa interpretação que confunde o marxismo com uma espécie de pragmatismo não é inteiramente gratuita. É uma solução fácil para um impasse difícil localizado no interior do marxismo, em suas premissas ontológicas e epistemológicas. No pensamento genuíno de Marx e Engels há uma limitação teórico-filosófica que, se é verdade que não autoriza o pragmatismo, tampouco elimina a possibilidade de certas deduções sutilmente pragmáticas. Uma questão mal resolvida em seus últimos termos (filosofia) tende a gerar, no pensamento sistemático que a prática política exige, soluções simplistas nas quais desaparece, inclusive, a grandeza do impasse originalmente colocado e não resolvido pela filosofia.

         Para Situar o Impasse

         Para localizar esse impasse e, pelo menos, indicar seus contornos mais gerais é imprescindível discutir alguns aspectos da relação entre Marx e Hegel.

         Segundo Hegel, a filosofia seria a interpretação de um movimento histórico que, a rigor, já estaria findando quando ela aparece para o explicar. Sua missão seria, então, "pintar o cinza de cinza". Ao entardecer. quando já caem as sombras sobre um período histórico agonizante, é que o Pássaro de Minerva levanta vôo. O conhecimento é uma luz que se acende para que possamos ver melhor aquilo que, de qualquer modo, já é algo realizado pela história. "A ciência - diz Hegel - apenas se limita a trazer à consciência este trabalho que é próprio da razão da coisa."(3)

         A primeira vista poderia parecer que, na filosofia hegeliana o "espírito" (a consciência, notadamente em sua forma mais elevada que para Hegel é filosofia) teria um papel diminuído, insignificante e derivado na evolução do mundo. A consciência, o pensamento, a ciência, a teoria e a filosofia não teriam a possibilidade de exercer um papel crítico e constitutivo no processo histórico. Essa conclusão, entretanto, não é legítima em relação ao pensamento hegeliano.

         Na concepção hegeliana o próprio mundo, enquanto fenômeno, é a manifestação do Espírito no espaço e no tempo. No espaço ele se chama natureza, no tempo se chama história. "A Idéia, para Hegel, é a realidade total. Por isso, ela não depende do pensamento na cabeça dos indivíduos, mas ao invés, são os indivíduos e o próprio Hegel que dependem da Idéia." (4) Mas existe um "saber absoluto" ao qual o homem tem acesso, na medida em que se confunde com o absoluto espiritual que constitue o pressuposto do próprio mundo natural e histórico. O "saber absoluto" é, em conseqüência, o saber do absoluto por si mesmo. É a autoconsciência da Idéia, através da qual ela se reconhece como "espírito absoluto" por meio da filosofia. Trata-se, assim, de um percurso dialético que parte da identidade entre sujeito e objeto para retornar a ela, ou seja, de um retorno à Idéia sem nunca ter deixado de estar na Idéia.

         O mundo é o próprio Espírito se auto-realizando e, nessa medida, se autoconhecendo através do conceito para, finalmente, tornar-se transparente a sí mesmo na filosofia hegeliana. Portanto, a dignidade do Espírito, sua prioridade e superioridade estão dadas no sistema hegeliano já como premissa. Assim, a ciência, a teoria e a filosofia, que são formas da autoconsciência do Espírito, estão com sua grandeza e importância asseguradas no desenrolar da história. Mas a consciência, desse modo, é elevada a píncaros tão altos (em virtude do pressuposto do Espírito Absoluto) que, inevitavelmente, seus representantes individuais tornam-se relativamente pequenos. A unidade individual da consciência, seus portadores ao nível dos fenômenos históricos, passam a constituir apenas a presença determinada da Idéia que vai tomando consciência de si mesma.

         "Para Hegel, toda a dialética reside na Idéia e esta dissolução supõe um monismo filosófico. O absoluto ganha consciência de si no homem, que ele engole todavia como um ponto."(5)

         Não obstante, persiste no sistema de Hegel uma ambigüidade: são os homens que fazem a história e constróem a consciência universal ou é esta que se realiza, através dos homens, segundo uma lógica imanente? É evidente que a resposta de Hegel procura desviar o simplismo dos extremos. A partir da tensão emanada desses termos contraditórios, Hegel quer extrair uma resposta superior. Porém, o problema não fica satisfatoriamente solucionado.

         A Teoria Mistificada

         Denis L. Rosenfield, que não esconde sua simpatia pela integralidade do sistema hegeliano, procura demonstrar que, para Hegel, os indivíduos não são passivos: "É precisamente a atividade dos indivíduos, em suas diferentes expressões como ‘pessoa’, 'sujeito', e 'membro da comunidade', que atualiza as determinações lógicas produzidas por essas figuras. "(6)

         Ora, se a atividade dos indivíduos atualiza as determinações lógicas produzidas pelas figuras históricas, isso quer dizer que, mesmo potencialmente, a liberdade dos indivíduos não pode transcender a essas figuras. Noutras palavras, a liberdade dos indivíduos concretos é constituída apenas por aquelas determinações lógicas contidas nas figuras históricas. A pergunta que se impõe é a seguinte: quem produz essas figuras? O sistema de Hegel responde inequivocamente a essa indagação: é o Espírito Absoluto, através da diabética objetiva do mundo, mediando-se por essa objetividade para realizar a sua vocação para a liberdade. Em síntese, a liberdade dos indivíduos está delimitada no ponto de partida. As figuras históricas atualizam e realizam a Idéia, que é o Espírito Absoluto no mundo transitando para seu autoconhecimento, e os indivíduos atualizam e realizam as figuras. O indivíduo, então, com sua consciência singular, realiza apenas a liberdade que o pressupõe. O caminho inverso, que parte do indivíduo e de sua liberdade concreta em direção às figura históricas e à Idéia, é apenas uma realização e representação da essência pressuposta.

         Por isso Rosenfield afirma: "Despertar os indivíduos para a liberdade de sua própria interioridade - que é interior à efetividade do mundo -, eis como o espírito pode chegar a coincidir consigo mesmo." (7) No entanto, do ponto de vista da visão materialista da práxis, não é a "liberdade da interioridade dos indivíduos" que é interior à "efetividade do mundo", mas tão somente sua possibilidade. A possibilidade de ser livre ainda não é o ato da liberdade. Não se trata, portanto, apenas de despertar o indivíduo para a liberdade dada na efetividade do mundo, mas de produzi-la como consciência das possibilidades e transcendência da efetividade dada pela interioridade do mundo. E assim, percorrendo também o caminho inverso àquele proposto pela dialética hegeliana, ou seja, da particularidade (e individualidade) para a construção da própria essência da universalidade.

         No sistema de Hegel, os homens concretos não são essencialmente os sujeitos, mas agentes de uma substância que é, essencialmente, o sujeito. Por isso, a crítica, na perspectiva hegeliana, jamais poderá ser radical e revolucionária. Sua tarefa, no máximo, será a de liberar a essência que se constitui e se expressa pela substância, através da enunciação que faz. Por isso o Pássaro de Minerva é tardio e lhe cabe "pintar o cinza de cinza", tal como um arauto que, ao dar as notícias, precipita as conseqüências dos fatos já consumados.

         Podemos dizer que a teoria em Hegel tem um papel grandioso, insubstituível, mas que não possui um papel revolucionário de transformação e construção do mundo pelos próprios homens concretos. "0 ato pelo qual a filosofia apreende o mundo tornou-se o ato através do qual o mundo se pensa como seu próprio objeto". (8)

         Ao contrário de Hegel, para Feuerbach o Pássaro de Minerva levantou vôo muito cedo, às cegas, e se perdeu nos céus da abstração, transformando-se em religião. É a religião que aliena o homem de sua natureza propriamente humana e generosa, projetando-a misticamente num ser superior. As potências infinitas do Homem estariam alienadas pela própria consciência humana. Por isso, segundo Feuerbach, a crítica da religião representaria uma espécie de "reintegração de posse" da natureza humana, ou seja, a desalienação num plano puramente ideal, já que teria sido nesse plano que o Homem se perdeu de si mesmo.

         A Teoria como Crítica Radical

         A reflexão de Marx procura superar tanto Hegel quanto Feuerbach. Criticada a alienação religiosa, diz Marx, é preciso identificar e destruir a alienação terrena da qual aquela é apenas a projeção. Os homens não projetam a sua essência humana na religião, mas projetam a sua alienação material configurada no plano das relações sociais - na alienação religiosa. Logo, a tarefa fundamental é a de criticar e destruir as relações sociais alienadas, que atingem seu ápice no capitalismo, para liquidar suas projeções na consciência. Mas em Marx não se trata, simplesmente, de destruir pragmaticamente - sem a interferência da teoria e da ciência - a realidade alienada das relações sociais. Ele quer que a crítica atinja o ponto certo no qual a alienação se configura concretamente, sua origem, que são as relações sociais de produção. Sem a crítica e a destruição efetiva das mediações não é possível criticar radicalmente e destruir os resultados. Sem a liquidação dos pressupostos objetivos não é possível liquidar os efeitos.

         Sem dúvida, nessa perspectiva, a teoria tem um papel radical e revolucionário, enquanto consciência critica dos homens concretos e não de uma Idéia que lhes é transcendente. Não obstante, a teoria perde muito do significado e da grandeza sugerida por Hegel.

         Essa perda de grandeza e significado da consciência e da teoria no interior do pensamento de Marx (embora em Hegel essa grandeza e significado estejam mistificados e, como indicamos, impliquem a subordinação dos homens reais à uma essência pressuposta), decorre fundamentalmente de uma superação incompleta de Hegel. Marx inverte o sistema hegeliano, mas a relação entre a subjetividade e a objetividade continuará sendo uma relação interior a um monismo - e Engels afirmará que "a natureza ganha consciência de si no homem". (9)

         A questão é saber se "a natureza ganha consciência de si no homem " - e nesse caso temos, de fato, uma espécie de monismo filosófico -, ou se o homem ganha consciência de si mesmo na natureza. Uma resposta exclui a outra. Se é a natureza que toma consciência de si mesma através do homem, há precisamente uma inversão da proposição hegeliana de que o Espírito, através da filosofia, se pensa como seu próprio objeto. Se é o homem que toma consciência de si no interior da natureza, temos uma ruptura ontológica que supera o monismo de Hegel.

         A partir dessa ruptura se impõe, então, a mútua criação entre sujeito e objeto na própria relação e através dela, como criação do homem por si mesmo e para si mesmo. Em conseqüência, o Espírito não é o seu próprio objeto numa identidade com o mundo, mas o homem é o seu próprio objeto e sujeito enquanto o mundo é apenas o seu objeto, sendo a identidade do homem com o mundo apenas um momento da sua auto-afirmação como sujeito. Dessa forma, a teoria não procura o seu reencontro consigo mesma (como autoconhecimento do Espírito através da filosofia, tal como propõe Hegel), nem busca seu reencontro com a natureza (tal como na inversão marxista) para torná-la consciente de si mesma.

         Pensada desse modo, a teoria terá um papel mais autônomo e constitutivo do que sugere o marxismo e tão importante quanto lhe atribui Hegel, sem que seja mistificada e apareça como manifestação de uma essência transcendente que subordina logicamente o curso da história. A consciência, a filosofia e a teoria ficam resgatadas como instrumento e expressão dos homens concretos, ao invés de ficarem reduzidas à mediação humana pela qual o Espírito se torna transparente para si mesmo em seu caminho de realização pelo mundo. E tampouco ficam limitadas a uma função de crítica radical e revolucionária que, no fundo, apenas realiza e desenvolve uma essência contida já no mundo natural. São os homens que se tornam transparentes para si mesmos (em sua realidade e possibilidades), à medida que vão se construindo enquanto consciência e liberdade.

         O Ponto de Partida

         Nesse caso, o verdadeiro ponto de partida da filosofia não estaria situado numa dialética interna do Espírito, da qual os fenômenos naturais e históricos seriam determinações, nem na dialética interna da natureza, da qual a consciência humana seria mera conseqüência. Logo, nem o mundo natural e histórico como diferenciação interna do Espírito, nem o espírito como diferenciação interna do mundo natural. Trata-se de afirmar um ponto de partida ontológico que reconhece, primeiro, que o espírito (a consciência humana) foi gerado como diferenciação interna do mundo natural e, depois, que este foi produzido como conhecimento enquanto diferenciação interna do espírito, que dele se apropria. A identidade, portanto, não é mais do que um aspecto do momento conceitual da apropriação, não sendo o ponto de partida e nem o resultado efetivo e concreto dessa apropriação.

         Em Hegel, os homens concretos acabam subsumidos na abstração grandiosa que fazem da dialética do Espírito, na qual são incluídos internamente como momentos determinados. Em Marx, o espírito e, por conseguinte, os homens, tornam-se epifenômenos da dialética natural que, ao fim e ao cabo, lhes cabe cumprir. A premissa fundamental da filosofia, capaz de superar esse impasse localizado nos extremos, é a ruptura trágica entre a consciência e o mundo, desde que compreendida de forma materialista. O prioritário torna-se inferior (a consciência torna-se superior à matéria), mas o superior continua a carregar o peso do vencido, pois é a objetivação que atribui realidade à autoconstrução do sujeito.

         A essa ruptura, na qual o espírito que nasceu como diferenciação do mundo natural se torna superior a ele, mas é obrigado a constituir-se através dele pela objetivação, podemos chamar de práxis. E no interior da práxis, assim compreendida, os homens concretos desenvolvem sua consciência (a teoria e a filosofia) ao mesmo tempo como momento de identidade e também de diferenciação com o mundo natural, isto é, enquanto apropriação do mundo e liberdade de autodeterminação. A teoria e a filosofia, assim, ficam resgatadas em todo o seu significado na história humana, pois enquanto desvendamento fazem mais do que realizar uma identidade pressuposta da Idéia ou da natureza consigo mesma. Enquanto crítica, fazem mais do que enunciar o que já é (Hegel) ou do que profetizar revolucionariamente aquilo que inevitavelmente será (Marx). A teoria fica, portanto, com um pé no objeto outro no sujeito, um pé na necessidade outro na liberdade. Ficam asseguradas as possibilidades da verdade objetiva e a necessidade da crítica revolucionária, ao mesmo tempo teórica e prática, no processo de invenção histórica que o homem faz de si mesmo.

         A Subjetivação da Práxis

         No processo global da práxis, através do qual o homem se produz historicamente, podemos dizer que a subjetividade envolve dois aspectos essenciais: a finalidade e o conhecimento. Porém, em termos objetivos, o sujeito é o nexo dinâmico de todo o ciclo da práxis, da produção e reprodução social que ela realiza. É a ação do homem que integra numa totalidade autoprodutiva - por meio da intenção e do conhecimento - a técnica, o objeto e as próprias relações sociais, tenha ou não consciência dessa totalidade. Podemos perceber, em conseqüência, que as conexões da práxis e todas as suas determinações estão entranhadas de subjetividade, ou seja, de finalidade e conhecimento.

         O desenvolvimento das forças gradativas, quer dizer, da apropriação efetiva do homem sobre a objetividade do mundo, implica dois movimentos contraditórios e complementares. De um lado, o sujeito se objetiva cada vez mais, na medida mesmo em que se apropria do objeto. De outro lado, a realidade objetiva e natural se subjetiva ou, noutras palavras, o mundo se humaniza. A objetividade resulta progressivamente penetrada pela subjetividade humana, pela intencionalidade e o conhecimento transformados em instrumentos e produtos.

         No entanto, a subjetivação da objetividade (transformação do mundo e apropriação humana) e a objetivação da subjetividade são dois aspectos que, a rigor, compõem um mesmo processo de realização da subjetividade no interior do mundo material. Na mesma medida em que o sujeito transforma o mundo segundo os seus desígnios, o sujeito é objetivamente transformado pelas mediações e produtos que vai construindo.

         Por outro lado, no plano da consciência, da subjetividade em si mesma ou do "espírito", ocorre uma complexificação e um desenvolvimento correlato da intencionalidade e do conhecimento. Mas, à medida que só a consciência é teleológica, é a subjetividade que se desenvolve em dois sentidos (objetivação e "subjetividade pura") e não o mundo objetivo. Esse processo permite compreender um fenômeno contraditório que se constitui como fundamento da alienação: o capitalismo representa a culminância da dominação do homem pela sua própria objetivação e, por outro lado, também um desenvolvimento sem precedentes das possibilidades da liberdade. A dominação decorre das leis da acumulação do capital, a ampliação das possibilidades da liberdade é produto do desenvolvimento da subjetividade no interior da práxis.

         Não ocorre apenas uma acumulação progressiva da consciência humana nas suas variadas formas (entre as quais a teoria em geral aparece como centralidade, como instrumento e expressão da apropriação humana do mundo natural), mas a práxis (no sentido global) incorpora, cada vez mais, o peso específico da consciência.

         O homem se plasma como sujeito na forma da objetivação, que recebe um conteúdo de subjetividade sempre mais intenso. De outro lado, esse processo exige e pressupõe um desenvolvimento correspondente da consciência social (conhecimento, filosofia, teoria, ciência, etc.), ou seja, da subjetividade em si mesma, do pensamento humano em suas variadas formas e determinações, da abstração pura enquanto representação e intencionalidade, da idealidade entendida como algo distinto do mundo material.

         Algumas Conclusões

         Colocadas tais reflexões, pode-se resumir algumas hipóteses mais incidentes no plano político:

         1. A realidade objetiva do mundo, notadamente a partir do capitalismo, está cada vez mais grávida de conhecimento e teoria.

         2. As diversas formas da consciência, o conhecimento e a teoria em si mesmos, são cada vez mais fundamentais na reprodução e produção da realidade humana, portanto, na sustentação, manutenção e funcionalidade das estruturas historicamente determinadas da práxis humana.

         3. Logo, a crítica das formas determinadas da práxis (do modo de produção capitalista, por exemplo), se não for mediada pela complexidade da teoria - considerando que a teoria é o núcleo racional da objetividade constituída pelo homem e, também, a própria racionalidade subjetiva que a complementa - não conseguirá mais do que arranhar a superfície da realidade concreta. Será uma crítica sem eficácia objetiva nem apelo subjetivo.

         O gigantesco desenvolvimento das forças produtivas patrocinado pelo capitalismo (tecnologia, ciência, teoria, comunicação e cultura) significou um salto radical da consciência na composição orgânica da práxis. Não obstante, essa subjetividade que penetrou em tudo, não adquiriu globalmente uma correspondente consciência de si, ou seja, de suas imensas possibilidades. Como consciência individual ela distinguiu-se dos momentos particulares da práxis, nos quais podia reconhecer-se e identificar-se como consciência da particularidade. O artesão que elaborava o seu produto desde a concepção até a finalização, controlando integralmente o processo, ou a família que praticava agricultura de subsistência, são exemplos dessa consciência prisioneira da particularidade, porém feliz, à medida que podia reconhecer-se inteiramente na sua cômoda prisão.

         A partir do capitalismo, com a apropriação real do trabalho pelo capital, foi aprofundada e ampliada a divisão técnica do trabalho, ao mesmo tempo em que as conexões do processo produtivo se universalizavam. A consciência individual, então, jamais encontraria sua identificação na particularidade e nem encontraria um bálsamo para o seu dilaceramento na imediaticidade de suas relações. Agora, ela será consciência da universalidade que ela mesma construiu por sua teleologia particular ou sofrerá eternamente a sua própria fragmentação. Sua tragédia, no entanto, é tão significativa quanto o desafio que lhe é lançado por suas novas possibilidades.

         Pela primeira vez, a universalidade da consciência pode tornar-se objeto da consciência universal, vale dizer, de si mesma. Pois somente desse modo ela poderá pensar a totalidade do mundo criado pelos homens, assumindo-se enquanto liberdade do gênero humano em sua autoconstrução. Essa é a tarefa da "filosofia da práxis", que encontrou no marxismo o momento que referencia a sua fundação e os pressupostos em torno dos quais se constrói criticamente.

         REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

         (1) A primeira parte deste trabalho originou-se de um texto denominado "Algumas palavras sobre o projeto de um Centro de estudos e debates do marxismo". Esse texto, sofrendo algumas modificações formais, tornou-se a Carta de Princípios do Centro de Estudos Políticos e Filosóficos, com sede em Porto Alegre. Para sua publicação foram desenvolvidos e explicitados alguns aspectos, sendo acrescentada uma segunda parte que pretende oferecer subsídios para a fundamentação filosófica das propostas apresentadas na primeira parte.

         (2) Apud: CLAUDIN, Fernando. A crise do movimento comunista. São Paulo, Global, vol. I. p. 173.

         (3) HEGEL. Princípios da filosofia do direito. Lisboa, Guimarães Editores, 1986. p. 47.

         (4) D'HONDT, Jacques. Hegel e o hegelianismo. Lisboa, Inquérito. p. 24 (Cadernos Culturais).

         (5) Idem. p. 104.

         (6) ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 15.

         (7) Idem.

         (8) D'HONDT, op. cit. p. 29.

         (9) Idem. p. 104.