26 abril 2009

Hayek e Hobbes sobre a liberdade

Hayek, em sua magistral obra The Costitution of Liberty, defende a tese de que a liberdade individual deve ser entendida como “o estado no qual o homem não está sujeito à coerção pela vontade arbitrária de outrem”. Ou seja, a “‘liberdade’ refere-se exclusivamente a uma relação do homem para com seu semelhante, que só é infringida pela coerção do homem pelo homem”. É notável, embora Hayek pareça não perceber, a semelhança dessa compreensão com a visão kantiana sobre a liberdade exterior. Mas aqui não vou tratar dessa semelhança. O que gostaria de registrar é a menção que Hayek faz a Hobbes. Ele considera equivocada a compreensão que Hobbes tem de liberdade. Como se sabe, de acordo com Hobbes, “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais”. Porém, de acordo com Hobbes "quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que lhe falta liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; tal como uma pedra que está parada, ou um homem que se encontra amarrado ao leito pela doença".

Por que Hayek não aceita a definição hobbesiana de liberdade? Para ele, definir a liberdade “como ‘ausência de obstáculos à realização de nossos desejos’ ou, de maneira ainda mais geral, como ‘ausência de impedimento externo’ [Hobbes] [..] equivale a interpretá-la como poder efetivo de fazer qualquer coisa que se queira”. Como se pode perceber, curiosamente, Hayek não vê em Hobbes o problema que deveria ser visto. Ele precisaria cuidar da diferença entre (a) liberdade como “ausência de obstáculos à realização de nossos desejos” e (b) liberdade como “ausência de impedimento externo”. A implicação de se pensar, equivocadamente, a liberdade como poder vale para a primeira definição - isso, é claro, se concordarmos com Hobbes. É verdade que o exemplo da doença que prende alguém ao leito não representa uma ajuda muito grande (ele não joga luz suficiente para o entendimento do escopo da constituição própria de uma coisa). De todo modo, se deixarmos as coisas postas assim como faz Hayek não estaremos fazendo justiça a Hobbes. Com efeito, precisamos reconhecer que Hobbes está sinalizando a necessidade de distinguirmos entre (a) ter liberdade e (b) ter poderes para. No primeiro caso, não está em questão se dispomos ou não de meios para alcançarmos determinado fim. Trata-se apenas de saber se não somos impedidos externamente. Não é difícil perceber que a acusação mais justa e certeira a Hobbes deveria consistir em mostrar que ele dilata indevidamente o conceito de liberdade, estendendo-a aos seres animados e inanimados.

A definição de Hayek tem a vantagem de ser semanticamente restritiva. É louvável a insistência de Hayek de que a liberdade se aplica unicamente às relações humanas, sendo violada apenas quando ocorre coerção do homem pelo homem (Hayek está atento para o fato de que há coerção legítima, logo compatível com a liberdade, se bem que a solução de Kant seja, a meu ver, superior a dele, pois o autor da Doutrina do Direito pensa justamente num princípio da coexistência das liberdades). Uma vez feita a restrição da liberdade às relações entre os homens, temos dois benefícios: (a) excluem-se outros seres animados e inanimados (b) qualifica-se o tipo de impedimento externo. Pensando nesse segundo benefício, devemos reconhecer, para não fazer justiça apenas a Hobbes, mas também a Hayek, que o autor austríaco viu bem que a definição de Hobbes não poderia se acomodar a uma rigorosa compreensão da liberdade exterior (digo “exterior” para darmos ao termo a boa alcunha kantiana).

E se a defensoria hobbesiana alegasse que ele não restringe a liberdade aos homens tendo em vista o fato de que sua preocupação seria dar conta do movimento dos corpos em geral? Ora, se ela fizesse isso estaria se comportando muito mal (como acontece de sólito com defensorias e exércitos de salvação), pois a questão é se Hobbes dá conta de elucidar o conceito de liberdade e não se ele está preocupado com o movimento dos corpos em geral. E eu não vejo qual a vantagem em se dilatar o conceito de liberdade. Falar em movimento desimpedido, por si só, não deveria ser equivalente à liberdade. Acredito que liberdade tem de implicar responsabilidade. Sendo assim, deveríamos qualificar de livre apenas aquele ser capaz de responder pelos seus atos. Uma pedra sequer age. Poderia mudar um pouco esta compreensão de liberdade e dizer que livre é quem é capaz de responder por seus movimentos. Mas isso também não ajuda, pois não somos responsáveis por todos os movimentos que realizamos. Prefiro a alternativa de ligar liberdade à ação responsável, o que me leva mais uma vez a concordar com Hayek.


Copyright © 2009 Aguinaldo Pavão
Londrina - PR

Um comentário:

La liberté guidant le peuple disse...

Olá, professor!

Infelizmente estou com pouco tempo para acompanhar seu blog, que aprecio bastante pelas discussões que o senhor levanta.

Hoje pude dar uma olhadinha no que andou escrevendo e não pude resistir ao desejo de lhe de dizer que concordo com o senhor quando diz "Acredito que liberdade tem de implicar responsabilidade".

Fiquei contente em saber que há mais alguém que pensa assim. Só lamento o fato de não estudar filosofia para acompanhar melhor os temas que aborda. Dommage ...