Capítulo VII.

O senhor da terceira chave ou O retorno do «Senhor Diabo»

     A gargalhada que os dois amigos ouviram ecoou no Terreiro do Paço. Vindo de uma rua da "Baixa" lisboeta, Zé Maria aproximava-se deles, envolto numa ampla e longa peliça "de príncipe russo... com alamares trespassados à Brandeburgo..."

     - Até que enfim! - disse-lhes. - O conselheiro Acácio fê-los andar à deriva... É o que acontece quando nos deixamos guiar por esse tipo de gente.

     - Então o que nos disse de Bristol foi mentira?

     - O perigo dos Acácios é a demagogia. São uns "formidáveis empecilhos": cheios de certezas e de si próprios, mascaram-se de alguma verdade para convencer os ignorantes, ou os inocentes como vocês. De facto, fui cônsul em Bristol mas só parti para lá em 79. Estive aí oito anos e tal, o tempo que levei a criar e a publicar "Os Maias"! Houve tanta peripécia. Emendei, mudei, aumentei... o costume! E houve mal-entendidos e confusões com os editores! Em 88, finalmente, fui para Paris...

     - "Os Maias"? Carlos da Maia, amigo do Ega... Sempre o acabaste! - exclamou Maria. Alencar

     - Estavas tão mal a última vez que te vimos. Tememos que tivesses deixado a escrita...

     - Sabem uma coisa? Um artista não pode viver cheio de regalos, de comer muito, de dormir muito; também é necessário arrepiar-se, ter tempestades de nervos, para criar. Oh! Isso é indispensável! E foi o que me aconteceu nessa altura...

     - Se assim é, então... ainda bem! Coitado do Ega! Estava com medo que o deixasses na gaveta e não lhe desses hipótese de acabar "As Memórias de um Átomo" - disse Maria.

     - Foi uma autobiografia, não foi? - perguntou Zé.

     - Nunca chegou a fazê-la, sequer! - riu Eça. - Os átomos dele não irão a lado nenhum!

     - Espero que não aconteça o mesmo contigo... - murmurou Maria.

     - Caramba, está um calor! Esta peliça é pesada! - exclamou Zé Maria, de repente.

     - Não! -gritaram Zé e Maria ao mesmo tempo. - Não vais despi-la aqui, no meio da rua!

     - Apesar de estares "fantasma", é melhor não... - pediu Maria.

Zé Maria deu uma das suas habituais gargalhadas.

     - Mas se viveste em Bristol até 88 - perguntou Zé - estás em Lisboa? Em que data...?

     - Irás ter a explicação de toda esta confusão. Caramba, rimei! Gostaram? Ora bem, este foi um período em que viajei muito. Londres, França e, volta e meia... Portugal.

     - Ah! Vieste mais vezes cá! Afligia-te tanto estar longe do ambiente que descrevias...

     - Mas o facto de ter estado longe fez-me pensar: regressava para continuar o género de romances à moda da época, observador crítico, racional, estudando de fora a vida de certos tipos sociais portugueses? Ou refugiava-me na literatura fantástica e humorista? O fantástico continuava dentro de mim; o humor, tinha-o subalternizado. Então...

     - O Homem fechado no laboratório com a Razão, um dia rebentou a porta e foi ao encontro da Imaginação - recordou Zé.

     - Isso! E "Os Maias" ajudaram a redescobrir-me. Deram-me liberdade. São algo que conheço por dentro. Respiro, vivo o ambiente da classe social dos meus personagens!

     - Percebe-se logo! Bastou-nos ver o Ega... - disse Maria.

     - Pude, assim, dar largas ao sentido de humor e à imaginação. Eu era um deles! Tanto podia ser o Ega como o Carlos da Maia... E aí meti tudo o que tinha no meu saco: a observação do real e a fantasia; o retrato cruel da fealdade e a poesia, a emoção, o culto da beleza. Veio ao de cima a minha verdadeira natureza. Tinha feito por a ignorar, influenciado pelas correntes científicas e positivistas da época... Mas também elas mudaram. Quanto mais progredia a Física ou a Matemática, mais as verdades se tornavam provisórias e as certezas ruíam. O homem continuava a não ser feliz! O desenvolvimento técnico contribuía para aumentar as diferenças, a injustiça social. Era necessário procurar outras respostas... E lá voltou a minha busca do transcendente e do absoluto... Agora, com a experiência da vida...

     - Já percebi: o imaginário, o fantástico e o maravilhoso passaram a servir-te para realçar o que querias dizer sobre a realidade que vivias e observavas - concluiu Maria.

     - Como em "O Mandarim" e depois os Contos! - juntou Zé. - Não perdeste nada, transformaste-te, disseste-nos uma vez. Espectacular! Fizeste uma espécie de círculo!

     - Ou uma volta em espiral...

     - A minha imaginação deixou de ser caótica, abstracta, inspirada nas minhas obsessões e em livros de outros. 1880 foi a última data que viram no calendário? Nesse ano fiz "O Mandarim". De uma assentada! Uns dias que estive em França, de volta para Bristol.

     - Boa! Estavas mesmo necessitado de voltar ao fantástico! - riu-se Zé. - Tiraste a tampa!

     - Então o diálogo do Prólogo de "O Mandarim", entre os dois amigos, reflecte o caminho que tu próprio fizeste, como escritor! - observou Maria.

     - Isso mesmo! - e Zé Maria, em tom teatral, reproduziu o diálogo:- "1ºAMIGO -..."Por estes calores do Estio...Repousemos do áspero estudo da Realidade humana... Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas colinas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural e musgos verdes recobrem as ruínas do Idealismo... Façamos fantasia!..." 2ºAMIGO: - Mas sobriamente, camarada, parcamente!... Misturando-lhe sempre uma moralidade discreta..." - depois Eça mudou o tom e disse: - Tinha prometido ao Diário de Portugal um romance em folhetim. Como "Os Maias" se foram estendendo, estendendo... Ofereci-lhe "O Mandarim"! E, nesse ano de 80, comecei outro, com estilo de realismo fantástico: "A Relíquia"! Teve as revisões da praxe... Só veio a ser publicado em 87, na Gazeta de Notícias, no Brasil.

     - E "Os Contos"? - perguntou Maria. - Quando os...?

     - Vamos ao último período da minha vida. Encontrarão as respostas todas. E vão gostar de saber... - o resto da frase deixou de se entender.

     Os jovens foram arrastados para mais um salto. Depois ouviram: - Para criar cenas de "Os Maias", visitei uma imaginária quinta de Santa Olávia...

     - Santo Ovídio! - exclamaram Maria e Zé. - Os Rezende!

     O portão da quinta estava aberto. Entraram. No jardim, Zé Maria, com perto de quarenta anos, O grupo de Lequeconversava com Manuel de Rezende e outros membros da família. Hesitantes, ficaram a observá-lo, sem saber se deviam ir ao seu encontro. Este olhou na direcção deles, mudou de posição na roda dos amigos, pôs as mãos atrás das costas e agitou os dedos brancos e finos, indicando-lhes a casa. Eles entraram. Atravessaram os corredores já conhecidos e viram a porta aberta de um quarto onde nunca tinham ido.
     Então, ouviram passos; de um pulo, correram a esconder-se debaixo da cama. Uma jovem, elegante e bonita, com vinte e poucos anos, entrou, dirigiu-se para a mesa de cabeceira e nela guardou qualquer coisa. Pouco depois, saiu. Os dois saíram também do seu esconderijo e Maria foi ver o que tinha sido guardado numa gaveta:

     - Um diário!

     - Um leque! - exclamou Zé, ao vê-lo, de cetim dourado, poisado junto do diário. - Tem cinco cães desenhados! Os Autores, diz acima do desenho. Do lado oposto... - e leu:

Os latidos

I      Quem muito ladra, pouco aprende. Antero de Quental
II     Escritor que ladra não morde. Oliveira Martins
III    Dentada de crítico cura-se com pêlo do mesmo crítico. Ramalho Ortigão
IV     Cão lírico ladra à lua; cão filósofo aboca o melhor osso. Eça de Queiroz
V      Cão de letras - cachorro! Guerra Junqueiro

Envoi
São cinco cães, sentinelas
De bronze e papel almaço;
De bronze para as canelas, De papel para o regaço.
(assinada)A MATILHA


     - Isso é... excelentíssimo! Mas o que significará este leque?

     - Vou ler o diário, Zé. Cá está: "Granja, Outubro de 1884: recebi de presente do Zé Maria, um leque. Em resultado de uma aposta perdida no salão de bilhar, tinha de o trazer assinado pelos amigos com quem ia almoçar ao Porto. Tal como no ano passado, ele voltou de férias, este Verão. Estivemos juntos na casa da praia, na Costa Nova. As suas conversas encantam-me. Falamos de religião, arte ou livros, de receitas de cozinha, das notícias do Jornal Ilustrado, da cultura da beterraba e... de cães, a condizer com o leque!" Assinado: "Emília de Rezende". A irmã do Luís e do Manuel? Será desta?

     - Será desta o quê? Escuta, Maria! Passos no corredor. E música! Vamos espreitar!

     Saíram do quarto. Guiados pela música, chegaram à sala de jantar. Estava deserta, bem como o oratório contíguo. Mas a música continuava. Era a "Marcha Nupcial". No altar, o livro, sobre o qual Zé tinha encontrado uma chave, estava agora aberto. E leram: "A 10 de Fevereiro de 1886, aqui se realizou o casamento de Emília de Rezende e de José Maria Eça de Queiroz. Testemunharam a mãe da noiva, a Condessa de Rezende, e o irmão, Manuel de Rezende e a mulher, Maria, Ramalho Ortigão..."

     - Foi desta! - gritou Maria, toda contente. - Já tinha mais do que idade. Quarenta anos!

     - Um maço de cartas! - viu Zé, ao folhear o livro. - Do Zé Maria, em Bristol, e dela, antes de casarem. Nesta, ele declara-se e Emília aceita. Todo formal! Extraordinário!

     - Mas a certa altura, parece um rapazinho apaixonado! Um romântico! Bem dizia o João Penha. Afinal, foi sempre um incurável romântico. Mas sem ser lamecha.

     - Então, gostaram? Eu também! - ouviram. Era Zé Maria - Finalmente! A minha mãe e a minha irmã Aurora vieram assistir. O meu pai não, porque estava doente. No dia do casamento, partimos para Paris onde passámos umas semanas. Encontrei lá dois amigos meus, o Conde Ficalho e Bernardo Pindela, a quem convidei para nos visitarem em Bristol, onde podiam comer o bom bacalhau de cebolada à portuguesa. Eles foram os nossos primeiros convidados. E logo vieram mais. Eram animadas, essas visitas! Em Bristol e depois em Paris. Já vão ver e participar numa dessas reuniões... Estou a preparar umas coisas que eu cá sei...

     - Engraçado! O mesmo nos disse o Dr. Coelho a propósito desta aventura! - disse Zé.

     - E foi uma óptima ideia! A tua também é? Tem a ver com a chave que nos falta? - perguntou Maria. - Afinal, ainda não temos o trabalho feito!

     - Calma! Para já, Maria, tens uma surpresa! Aqui, em Santo Ovídio. Venham!

Levados por Zé Maria, chegaram à porta de um quarto.

     - Esperem aí. Há uma pessoa que quero que vejam.

Pouco depois, Zé Maria saía do quarto. Nos braços trazia uma pequena trouxa que exibiu, orgulhoso e comovido:

     - Maria e Zé apresento-vos a Maria! Já não sei se lhe pus este nome por ti ou por mim. - disse à jovem, que via uma bebé ao colo de um pai felicíssimo. - Nasceu em 16 de Janeiro de 1887. Agora, Zé, vais ser tu o surpreendido. Vamos para Londres! A Emilinha não se dava bem em Bristol e alugámos lá, uma casa, em Dezembro.

Rápido como sempre, os dois amigos viram-se em Inglaterra. Era 26 de Fevereiro de 88 e, à porta de um quarto, a cena anterior repetia-se. Só que desta vez, estava um bebé nos braços do pai todo contente:

     - Chamei-lhe José. Por ti e por mim! - disse a Zé. - E como vocês os dois e eu próprio, também Maria. É mais um Zé Maria! Foi um ano bom para mim. Além de rodeado de Zés e Marias, consegui realizar o meu sonho: ser nomeado cônsul em Paris! Tomei posse em Agosto, depois de uma cena com a mulher do anterior cônsul - e Eça, como não podia deixar de ser, teatralizou a recepção feita pela "medonha criatura". No papel dele próprio, de chapéu na mão, de boca aberta, ora de pasmo, ora de pânico, avançava ou simulava a fuga; no papel do outro personagem, actuava como um monstro, ladrando, berrando, espumando, ganindo e dando murros na mesa: - "Só eu sou cônsul, consulesa! Só eu tenho as chaves do consulado" - gritava esganiçado. - "Não as dou a ninguém!" No fim de uma pausa representando o "monstro" esfalfado de tanto esforço, retomou o papel dele, deu enormes pulos como se fugisse por uma porta e galgasse escadas até à rua. Eça e a Viscondessa Consuleza

Na rua, também se viram Maria e Zé - Rue de Crévaux, nº 5.

     - Paris! - exclamou Eça para os dois amigos. -Então, não era jeitosa esta viscondessa consulesa? Enfim... Aqui, em Paris, realizei um velho sonho; embora durasse pouco, de 89 a 92, tive um jornal, ou melhor, a Revista de Portugal.

     - Onde publicaste a minha "Correspondência" - ouviram. Era Carlos Fradique Mendes que chegava. - Eça e eu voltámos a ver-nos, como lhes disse no Egipto. Reapareci na Revista de Portugal. Uma bela obra original, cheia de humor e elegância.

     - Estás diferente - notou Zé.

     - Amadureci! - riu-se Fradique. - Como o Zé Maria. O tal círculo ou volta em espiral que ele fez... Adquiri novas características.

     - O mundo também! - disse Eça. - Foi neste ano que, pela primeira vez, fui a um jantar com o grupo a que Oliveira Martins pôs o nome de "Vida Nova". Queria a regeneração do país. E do mundo, se possível! Mas passámos a chamar-nos "Vencidos da Vida". Vencidos da Vida

     - Vencidos...?! Porquê? - perguntou Maria.- Não eram afinal vencedores?

     - Para efeitos públicos, talvez. Mas o conceito de vencido, para nós, dependia, não da realidade aparente a que chegara cada um, mas do nosso próprio ideal íntimo. Éramos onze. O Ramalho, o Ficalho, o Pindela, o Guerra Junqueiro, eu sei lá! Lembro-me de um jantar em que cantámos em coro a "Rosa Tirana"!

     Como era de prever, começou a cantar: - "Ó Rosa Tirana! Quem te deu a tirania? Trolaró, laró, laró!"- depois, pôs-se sério e disse: - No final desse ano de 89, morreu D. Luís. E em Janeiro de 90, a Inglaterra enviou um ultimato a D. Carlos...

     - O Mapa Cor-de-Rosa - lembrou Maria.-A Inglaterra quis possuir a África, do Cairo ao Cabo, do Norte ao Sul, e expulsou Portugal da zona entre Moçambique e Angola.

     - Ah! Pois! - exclamou Zé. - Foi no teu tempo. Aconteceu o que nos disseste no Egipto: a partilha do mundo pelos países ocidentais mais poderosos.

     Arco do Triunfo, Paris - Ora vês!? Tinha ou não tinha razão de ser o nome de "vencidos"? Com os nossos idealismos de liberdade e igualdade, da ciência ao serviço de todos... Caramba! Uma choldra! No Porto até se tentou uma revolução para implantar a República, em Janeiro de 91. Tive momentos de profundo pessimismo. Acreditei que Portugal tinha acabado! Mas o mal não era só português. Era de toda a civilização gananciosa do Ocidente. Nos últimos anos da minha vida olhei de modo diferente para tudo. E França já não era deslumbrante. Paris tornou-se grosseira, mais fabril que intelectual. Deixou de ser luminosa, para se tornar negra, com este ruído e cheiro terrível!

     - Automóveis!... - exclamaram Zé e Maria que tiveram de se esquivar a uma "Dona Elvira" que avançava à velocidade de 20 Km/hora.

     - Por isso os meus livros começaram a ser diferentes...

     - "Os Contos"! - disse Zé.

     - Sim, "Os Contos", as lendas de Santos, "A Ilustre Casa de Ramires"... E "A Cidade e as Serras" onde passei a ver o meu país de modo diferente; aprendi a conhecê-lo nas frequentes férias ou visitas que fazia para tratar das propriedades da família, do Alentejo ao Minho. Uma coisa era Portugal, outra eram os políticos congregados à volta de Lisboa... Daqui de longe, também o via melhor. Os podres não eram só nossos. E percorria avidamente os alfarrabistas, no cais do Sena, vasculhando livros antigos portugueses para os estudar. Lá descobria um Fernão Lopes, arrematava um Damião de Góis ou um António Vieira... Encontrei um dia, aí, Alberto de Oliveira...

     - O que contou a história do teu banho, em Cádis! Tormes

     - Pois foi a ele e a António Nobre, grande poeta português, a quem confessei a minha enorme ignorância sobre os mestres da nossa língua e história. "Meus amigos", disse-lhes, "a gente em Portugal não estuda nada na idade de estudar, não sabe nada, eis porque cheguei à velhice quase analfabeto. Ando a formar-me... bem fora de tempo..."

     - Ah! Por isso te zangaste comigo, em Coimbra, quando falei na escola - disse Zé.

     - A propósito, não deixem de ler os livros de História de Oliveira Martins. São belos... embora também partilhasse comigo do pessimismo sobre a História e a cultura do nosso tempo. Ainda tentei lançar com ele, em Portugal, uma biblioteca escolar. Mas os obstáculos foram tantos! Contudo, eu fui compensado na minha vida, entretanto com...

A conversa foi interrompida por um choro de bebé. Admirados, Zé e Maria olharam para todos os lados. Eça deu uma das suas gargalhadas:

     - Estão espantados? Também eu! Fui apanhado de surpresa com o nascimento de mais um filho, um pouco antes do tempo esperado. Venham vê-lo! Chama-se António. António Nobre

     Era 28 de Dezembro de 1889 e a cena do pai feliz voltava a repetir-se.

     Mas o calendário trazido de Neuilly dava outro salto - 16 de Abril de 1891 - o choro ouviu-se de novo... a cena foi a mesma. Chamava-se Alberto.

     - Tiveste quatro filhos! - exclamou Maria.

     - Foi uma época muito atarefada! Entre o trabalho, os amigos, a família... - riu-se ele.

     - Uma grande família! - sublinhou Zé. - Mas a tua vida foi sempre muita cheia!

     - Felizmente! E em casa, não só aumentava a família como eram constantes os hóspedes: Benedita, irmã de Emília, e de quem gostava muito, Eduardo Prado, com quem queria que ela casasse e não consegui, Carlos Mayer, Carlos Valbom, Bernardo Pindela... Quando fomos morar para Neuilly, em 91, fazíamos sessões de pintura. Aos Domingos, também eu era pintor! Mas havia outras sessões... Lembram-se de vos ter dito andar a preparar uma coisa para vocês? Então, entrem! Não conhecem esta casa...

     Estavam em Neuilly, Rue Charles Laffite, junto de uma moradia com jardim. Eça apontou um pavilhão coberto de trepadeiras: - Eu trabalhava ali, longe do bulício das crianças. Vão entrando em casa. Lá me reencontrarão, com os meus 45 anos. Mas cuidado, esperem pela altura certa de poderem ser vistos pelos outros - e desapareceu.
     Cabaia Maria e Zé cumpriram à risca as ordens dadas. A casa, decorada com gosto e elegância, era grande mas, vindo de uma das salas, o som de piano e de vozes abafadas orientou-os. Encaminharam-se para lá. Espreitaram e, entre os convivas, reconheceram Emília, Zé Ortigão e Batalha Reis. Identificaram um outro que tinham visto nos tempos de Coimbra, Carlos Mayer. Ao piano, estava uma jovem que calcularam ser Benedita. Zé Maria, para divertimento geral, deixava-se fotografar em várias posições, vestido com uma sumptuosa "cabaia" chinesa de seda negra, bordada a ouro, enquanto dizia:

     - Oh, Bernardo, vês-me agora vestido com o teu presente esplêndido! Recorda o que te disse na carta quando o recebi: "...tenho medo, amigo, de não ser competente para dignamente usar esta nobre vestimenta de Mandarim erudito! Onde tenho eu as qualidades precisas para me poder encafuar com coerência dentro destas sedas literárias? Onde tenho eu o escrúpulo gramatical, a dogmática pureza de forma, a sólida gravidade dos conceitos, o religioso respeito da tradição, a serena e amável moral, o optimismo clássico de um bom letrado chinês, membro fecundo da Academia Imperial? Onde tenho eu, sobretudo, a pança, para encher estas pregas duplas e mandarinais? ...O conselho que me daria qualquer Mandarim será sempre o mais sábio e prudente: respeita a gramática e ganha barriga!" - Parou, então, a brincadeira e disse em tom cavernoso: - Meus amigos, está na hora de uma das nossas sessões especiais.

     Mesa dos Espíritos - Isso mesmo! Vamos à sessão de espiritismo - concordaram todos.

     - Sentemo-nos pois e concentremo-nos para evocar os espíritos! - e Zé Maria declamou: - Interroguemo-los sobre o destino de Portugal. Existirá daqui a um século? Resistirá, como o fez depois de 1580, sob a mão rija dos espanhóis? Cito o que escrevi uma vez: "Também então havia fome e descrença, todavia ainda cá estamos, depois de três séculos, com a nossa constituiçãozinha, o nosso reizinho... Cá estamos, na mesma choldra sim, mas numa choldra que é portuguesa, só nossa, toda nossa!" Aproximai-vos, ó espíritos do futuro! Provai-nos que Portugal não acabou! Firmai, com esta pena de pato, o vosso nome e demonstrai que existis como portugueses de boa cepa!

Maria e Zé, compreendendo ser aquela a sua deixa, entraram. Dirigiram-se a Zé Maria, que lhes deu uma folha em branco, uma pena de pato e um tinteiro:

     - Utilizai os honestos e preciosos meios de trabalho que trouxe do meu pavilhão expressamente para este momento solene. Assinai aqui. Toma, meu amigo!

Zé agarrou no papel e, no local indicado por Eça, assinou, seguido de Maria:

      
     - Portugal viverá! Estes nomes são bem portugueses! - disse Eça, guardando o papel.

     Nesse instante, todas as luzes da sala se apagaram. Zé e Maria pensaram ser mais uma brincadeira. Mas os minutos passavam sem que nada acontecesse.

     - Zé Maria! - chamaram, por fim. - Onde estás? Zé Maria!...

     Não houve resposta. Pouco a pouco, uma claridade difusa foi aparecendo: o lugar onde estavam era "nebuloso e vago, espécie de fronteira entre o céu e a terra, sem contornos definidos. A única referência concreta era aquela campainha, dourada e reluzente, poisada sobre um livro de capa vermelho escuro..."
     Foi então que uma voz insinuante e metálica lhes disse no silêncio:

     - Vamos, meus amigos, sejam fortes, estendam a mão para a campainha, se querem a 3ª chave!...- na penumbra viram um indivíduo corpulento, todo vestido de negro, rosto lívido, de linhas fortes e duras. Os olhos, fixos neles, assemelhavam-se a dois clarões: Desenho de M. Macedo

     - Vamos, sejam fortes! Para terem a última chave basta que, ao contrário do que fez o Teodoro para matar o Mandarim, impeçam a campainha de tocar. Tirem-lhe o badalo! Se ela não mais tocar, Eça de Queiroz soltará apenas um suspiro. Será então um cadáver e eu vos darei a chave! O Zé Maria aliás, não vo-la dará pois nunca fez tenção de deixar abrir o cofre da sua vida. Pregou-vos uma partida! Se quiserem abri-lo...

     - Mentes! - gritou Maria. - És o diabo a tentar-nos!

     - Senhor Diabo, se fazes favor! Como ele me chamou, nas Prosas Bárbaras. Depois quis esquecer-se de mim. Mas não conseguiu, claro! A verdade, porém, é que estou a fazer-vos um jeito e a ele também. Coitado...Os últimos anos da sua vida são tão maus! Desfaz-se o sonho de liberdade, paz e justiça para todos. Desfaz-se o sonho da França, símbolo do progresso: revela-se-lhe Nação videira, formigueira, egoísta, seca, cúpida... cruel. Desfaz-se o sonho de publicar uma revista cultural de qualidade... Também os amigos se desfazem. Além de Antero, morre Oliveira Martins em 94; em 95, outro, em 97, mais outro... E Benedita, que casou como ele tanto queria, enviuva logo depois. Sofre pulhices graves de um cunhado por causa da partilha dos bens dos Rezende. Desfaz-se Santo Ovídio. Vejam!

     A imagem da quinta passou diante deles, deserta, semi-destruida. Cá fora, começava a demolição. Lá dentro, uma só sala estava mobilada, com um velho fogão e uma cama, onde Manuel e Maria Rezende viviam os últimos dias do casarão. Zé Maria despedia-se deles, triste, alquebrado, macilento...
     E a voz metálica continuava, persuasiva: - Coitado! Sofre, de novo, problemas financeiros, agravados pelas mudanças sucessivas de casa e pela necessidade de passar temporadas em locais saudáveis. Os filhos adoecem gravemente e ele também! Lembram-se das fartas comezainas? Por isso ou por tuberculose, frequente na família e de que sempre teve medo, a saúde torna-se-lhe cada vez mais frágil. Febres, insónias, incómodos de estômago... Apodrece por dentro. Já nem escreve! Nem o ar da Suíça, onde está agora, o curará. Condoam-se! A morte é inevitável e antecipá-la torna-lhe mais breve o sofrimento. Para ele, é uma benção, para vocês, é a chave a recompensa!
     Imóveis, arrepiados, os dois amigos cravaram os olhos ardentes na imagem dele moribundo, sofredor... E a campainha continuava poisada pacatamente sobre o livro onde, gravado a letras de ouro, se lia: JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIROZ.

     - Dar-vos-ei a 3ª chave e mais ainda: sem badalo, a campainha que vos obriga a ir às aulas deixará de tocar! Ficarão para sempre livres da escola e dos trabalhos para casa!

     - Com essa é que te desmascaraste! - disse Zé, furioso. - Foi o toque da campainha que nos deu a conhecer o Dr. Coelho e Zé Maria. Desaparece! Podes levar a chave contigo!

     - Faremos nós a história dele. Eça de Queiroz não morrerá por nossa causa. Zé, regressemos ao gabinete do professor Coelho para fazermos o trabalho!

     Quando iam a tirar o equipamento, os olhos do diabo apagaram-se e o escuro voltou. E, ao som da gargalhada bem conhecida, a luz regressou.
     Estavam no quarto de Neuilly, Avenue du Roule, a 16 de Agosto de 1900. Zé Maria jazia deitado na cama. No rosto, de olhos fechados, a boca sorria. Nas mãos postas sobre o peito estava uma chave, dourada e reluzente, como a campainha:

     - Até à vista. O meu cofre não ficará por abrir, como o dos irmãos de "O Tesouro"... Lembram-se? A moral das minhas histórias vem sempre no fim...

     Então, a imagem do cofre de ferro a abrir-se sobrepôs-se à de Eça. Antes, porém, de conseguirem ver o seu conteúdo, ela começou a afastar-se, a afastar-se...
     Sentiram alguém a tirar-lhes o capacete, os óculos e as luvas. Era o Dr. Coelho.

     - Oh! E a autobiografia? Estava dentro do cofre? - perguntou Zé. - Não consegui ver!

     - Acho que o vi vazio -disse Maria. - Teremos de ser nós a contar a vida dele...

     - Num cofre como o vosso, os filhos encontraram muitos inéditos; quanto à autobiografia... Mas a história de José Maria Eça de Queiroz está aqui, impressa neste livrinho que outros jovens poderão ler. Querem ver o que se segue à palavra:


FIM     ?










MEMÓRIAS DE UM (UNS) ÁTOMO(S) ?
uma biografia ou uma autobiografia?


     - Escutem! As gargalhadas do José Maria ainda se ouvem!... "Vêm da alma, abalam todas as vidraças de uma casa"...

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