segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Heterónimos e pseudónimos

Há alguns anos que a questão dos heterónimos tem vindo a ser debatida nos meios académicos e nas tertúlias literários com algum fervor, até porque, à medida que iam aparecendo obras de Fernando Pessoa, mais se dissertava sobre heterónimos e sobre a sua verdade.
É certo que Pessoa apresentou uma explicação a Adolfo Casais Monteiro, numa célebre carta de 13 de Janeiro de 1935, a génese da sua escrita e o aparecimento dos heterónimos, que acabou por ser publicada num compilação de textos do poeta, nas suas obras completas, Textos de Crítica e de Intervenção, publicado pelas Edições Ática em 1993. No entanto, muito se continua a falar sobre a veracidade do que Pessoa dizia ser um «fundo traço de histeria que existe em mim», para explicar a origem dos seus heterónimos. Mas, mais que o seu estado de espírito, o importante é notar a diferença que existe entre as várias facetas do autor ou dos autores.
Quem conhece a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos consegue avaliar as diferenças profundas que existe entre os diversos nomes adoptados para cada estilo literário do Poeta. Aliás, Fernando Pessoa nessa mesma carta dá a entender a Adolfo Casais Monteiro que nunca pensou publicar as obras dos seus heterónimos, «todos eles têm de ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!». Chega mesmo a avaliar os seus heterónimos e semi-heterónimos, a sua forma de escrever e de estar na vida.
De facto, existiu um estilo em Fernando Pessoa, assim como estilo próprio em Alberto Caeiro, em Ricardo Reis e em Álvaro de Campos. São notórias as diferenças literárias entre si e o que o Poeta dizia ser a «origem mental dos meus heterónimos», que estava na sua tendência «orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». tudo era fruto da sua inteligência, da sua forma intuitiva e criativa que «fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo». Tudo terminava «em silêncio e poesia…». Tudo se passava, dizia, independentemente do ortónimo. Chegava a considerar que existiam discussões estéticas entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e que talvez as desse à luz do dia através da sua publicação. Adolfo Casais Monteiro poderia notar as diferenças entre ambos «verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria».
Independentemente destas considerações do Poeta a Adolfo Casais Monteiro, a importância desta carta serve para se conhecer a problemática dos heterónimos e da forma discutível como se tem abordado a questão.
A heteronomia é um processo literário em que um autor escreve encarnando personalidades fictícias que representam a pluralidade da sua mundividência, aliás Fernando Pessoa reconhece que criava personagens que o acompanhavam, ditando mesmo o seu nascimento e a sua morte, essas manifestações começaram a produzir-se muito cedo, desde os seis anos criou um heterónimo, Chevalier de Pas, que escrevia cartas a Pessoa. Os heterónimos são diferentes dos pseudónimos, são personalidades poéticas completas: identidades, que, em princípio falsas, tornam-se verdadeiras através da sua manifestação artística própria e diversa do autor original, e isto manifesta-se no Poeta, independentemente de existir uma mudança de personalidade, como algumas vezes Pessoa quer fazer crer.
Nos últimos anos têm aparecido obras onde se admite que os seus autores têm alterações de personalidade, de comportamento e de escrita, podendo levar a pensar a existência de heterónimos, quando na realidade não passam de simples pseudónimos que os autores utilizam em formas literárias diferentes. E quando se fala em formas literárias diferentes pensamos, por exemplo, em Rómulo de Carvalho, que adoptou como pseudónimo poético o nome de António Gedeão, enquanto que o nome de baptismo serviu de chancela a livros técnicos.Há que distinguir quem tem efectivamente heterónimos, de quem tenta passar para os leitores a existência na sua génese literária de obras com características e tendências próprias, diversas do autor verdadeiro, muitas vezes nem existem outras obras para comparar a diversidade e a diferença de tendências. Por isso, não se pode falar de heteronomia. E, neste aspecto, a crítica especializada tem o papel importante de desmistificar o aproveitamento que se faz da palavra, distinguindo heterónimos de pseudónimos, porque, de facto, existem heterónimos do ortónimo Fernando Pessoa, e, até hoje, apesar se pressupor a existência de outros autores com características e tendências diversas, o certo é que não foi ainda possível encontrar a diversidade e a unidade do Poeta.
Alfredo Vieira

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