sexta-feira, agosto 24, 2007

Seja marginal, seja herói

Chamar alguém de marginal nos dias de hoje tem uma forte conotação pejorativa, mas nem sempre foi assim. Quando o termo começou a ser utilizado na literatura social, o marginal era visto de forma positiva.


Robert Park, por exemplo, que tinha grande interesse em contatos e conflitos culturais, acreditava que “é na mente do homem marginal – onde têm lugar as mudanças e as fusões da cultura – que melhor podemos estudar o processo da civilização e do progresso”. Isso foi em 1928. Antes disso, Georg Simmel já havia dito, em O estranho, que o marginal encontra-se numa posição especial de objetividade e abertura, que lhe aguça as percepções e a criatividade.


Como ocorre no braço de um rio, estar à margem é estar distante da parte mais profunda, ou seja, estar menos suscetível à ação da correnteza, num local onde você tem onde se segurar e não ser levado pelo fluxo das doutrinas e das idéias pré-moldadas. Ser marginal, portanto, é não rezar a cartilha do conformismo e ter mais autonomia individual em relação ao que se pensa, faz e acredita.


É claro que quase todos querem, de alguma forma, ser aceitos em algum grupo como iguais, ao mesmo tempo em que desejam ser únicos e exclusivos, preservando suas idiossincrasias e particularidades. Mas há um preço a ser pago por aqueles que desejam contestar certas regras ou – pior ainda – quebrá-las. Vou ilustrar este argumento com um simples exemplo:


1995, auge do metal entre a minha galera: vestidos de jeans rasgados e camisas pretas, independente da intensidade do calor senegalês carioca, ouvíamos apenas músicas que falavam sobre morte, demônio, cadáveres e escatologias afins. Eu namorava então uma menina metaleira que usava, precisamente, 17 pulseiras de couro no antebraço esquerdo. Eis que, em seu aniversário, com todos os amigos dela enfurnados naquele pequeno apartamento em Bonsucesso, botei o CD Vamo Batê Lata, dos Paralamas do (Bom) Sucesso.




Até quem nunca foi fã do metal extremo pode imaginar os olhares de reprovação que recebi. Aquela galera odiava música brasileira (com exceção de Sepultura, Sarcófago, Ratos de Porão, Korzus e algumas bandas punk) e abominava percussão; a única coisa que neguinho batia era cabeça. E por mais que eu argumentasse que o João Barone era um batera foda e tinha até bumbo duplo no disco, não consegui conter a fúria dos headbangers.





Hoje, o termo marginal está associado ao que se convencionou (erroneamente, claro) chamar de bandido. No mesmo diapasão, criticar e contestar os padrões sociais, religiosos ou políticos só faz de você um marginal se for pobre; se tiver um pouco de grana, provavelmente irão te chamar de “alternativo”.


E com globalizações e demais processos homogeneizantes à vista, tem-se cada vez menos espaço para ser diferente: basicamente, só quem pode fazê-lo livremente são os adolescentes: “seja você, mesmo que seja bizarro”, canta a baiana Pitty, para delírio dos teens. Mas seja você por enquanto, porque depois da faculdade, meu velho, vai ter que cortar esse cabelo ridículo, sentar em frente a um computador e começar a receber ordens de um recalcado qualquer.


Parece pesadelo? Bom, por aqui isso tem outro nome: chamam de sucesso profissional.







As posições de Park e Simmel foram extraídas de O Mito da Marginalidade, livro de Janice Perlman.

27 comentários:

gigi disse...

‘Eis que, em seu aniversário, com todos os amigos dela enfurnados naquele pequeno apartamento em Bonsucesso’

Não imagino você, meu bem, criado a leite Ninho pela Dona Ângela e Seu Flávio do Bigode, nessa situação.

Bem, eu não acho que cortar o cabelo ridículo e receber ordens de um recalcado qualquer seja sinônimo de pesadelo. Com o tempo a gente vê que, muitas vezes, a calça rasgada e o cabelo ridículo eram muito mais desejo de pertença ao grupo que parte de nossa identidade, e aí a gente vai e corta. Receber ordens do recalcado é bom pra gente aprender que a vida não é aquela molezinha da casa da mamãe e ficar mais safo na vida e lutar pra crescer e fazer o que a gente realmente quer. É possível. O destino não é sempre dar a bunda oito horas por dia.

4rthur disse...

A foto que abre este texto é a reprodução de uma obra feita pelo artista plástico Hélio Oiticica nos anos 60, intitulada "Homenagem a Cara de Cavalo". Tratava-se de um conhecido criminoso do morro da Mangueira, que foi morto pela polícia naquela década.

Além de uma reprodução da foto do bandido Cara de Cavalo morto, esta obra traz a polêmica frase "seja marginal, seja herói", cunhada pelo próprio artista.

Nana disse...

Receber ordens de uma recalcada me mata os poucos... E com dor!

Samantha Abreu disse...

pois é.
certamente, existem milhões de explicações (principalmente sociais) para a transferência semântica dessa palavra.
E todas estão corretas, na medida do aceitável.

mas tenho uma coisa a dizer: Paulo Leminski era (ou, talvez, ainda seja) meu marginal favorito.
Beijos!


ps: olha... quanto às fotos, eu acho na rede mesmo... fuçando, principalmente em site de fotografias. Tem dois ótimos linkados lá no meu blog. A maioria "roubo" de lá.
;D
beijos de novo.

Cascarravias disse...

nessa mesma épova do evento em bonsucesso, eu me esforçava ao máximo pra ser reconhecido como marginal. a blasfêmia costumava ser o atalho mais curto pra isso.

Tchello Melo disse...

Consegui ser bacharel em produção cultural munido de um trabalho sobre a representação da personagem marginal no cinema brasileiro, focando-me no papel de Antonio Pitanga em "Câncer", de Glauber Rocha, e na interpretação de Paulo Miklos em "O Invasor", de Beto Brant. E atualmente também recebo ordens. Por ser um sucedimento positivo ou negativo, sucesso não significa tão-somente êxito. O que importa mesmo é que me embeveci com o comentário de 4rthur no meu blog.

Cascarravias disse...

por increca que parivel, a situacao anda tao preta pro nosso lado que eu me vejo obrigado a fazer parte do grupo que clama por algum imbecil que lhe de ordens

Anônimo disse...

Casca what the fuck are you doin' up this late? What are you waitin' for? Fuck dude, you have no idea how this makes me feel. I have really gotten to you, haven't I? Man, you should see this baggy of good stuff I have in front of me...wanna join me? C'mon man, I can pack a mean bowl. You can sleep peacefully until noon with this stuff...

Anônimo disse...

Ok I am still laughing...the "headbanger" era of rock has given poor casca insomnia I guess. Casca man, no need to worry, there is always Nickleback. I mean what else is there? Rihanna's "Umbrella" played 30 times a day on fm radio?
"....Hey Hey Hey...under my umbrella..ella ella... ay ay ay...."
Exactly 3 fingers worth for the casca. "....under my umbrella...ella ella...ay ay ay...."
I could say a lot more but I won't. Yes I also lament Pluto's recent demotion, the imminent demise of proper portuguese due to the forces of globalism and the good times of the "head banger" era. It all sucks no matter how you look at it.
Shit, I am still laughing...

Paulo Bono disse...

Caro, 4.

Você faz, de maneira simples, uma puta leitura da realidade. E nos presenteia com outra puta leitura.

E sua história me lembrou alguns versos da Legião Urbana (se me permitem os que desprezam as bandas brasileiras):
"e meus amigos parecem ter medo de quem fala o que sentiu / de quem pensa diferente / nos querem todos iguais / assim é bem mais fácil nos controlar / e mentir, mentir, mentir / e matar, matar, matar..."

grande abraço.

Jana disse...

Marshall McLuhan Feliz falou há 50 anos atrás dessa retribalização que Pitty em suas vestimentas pretas e cara pálida-muito-pálida, elqüentemente canta como se fosse novidade.

Quanto à marginalidade, acho que nasci no que Stuart Hall chama de entrelugar.

Até os treze anos, achava que conseguia falar bem dos meus sentimentos, mas eu tive que ler Guimarães Rosa. Ele conta a história do velho que um dia, do nada, decidiu pegar o barco dele e ir pra terceira margem, pra lugar nenhum e não deixava ninguém chegar perto. Vez-por-outra, a família tinha que ir deixar comida e roupa pra ele na margem. Ele nunca mais portou.

Só não entendi oq vc esperava qdo colocou Paralamas pros metaleiros ouvirem.

Diogo Lyra disse...

Na verdade eu fiz a faculdade pra dar ordens...

Cascarravias disse...

eu devo ter jogado pedra na cruz

Cascarravias disse...

dig, tu ate fez a faculdade certa; nninguem mandou mudar de ideia depois de formado.

jana, vou repetir o que disse pro dig no post anterior - o achtung e dado a essas heterodoxias...

Anônimo disse...

Foste também ao MAM, esses dias? Nos lembramos da exposição no momento em que batemos o olho no slogan do Hélio Oiticica. Essa frase faz realmente pensar - principalmente na mudança de significado da palavra "marginal". Hoje, qualquer pessoas que esteja à margem (em qualquer sentido, não apenas o social) é alguém com quem devemos ter o pé atrás. Bons tempos em que, ao ler essa frase, as pessoas conseguiam pescar o significado contestador dela...

Vivi disse...

Eu acho que isso que você chama de "sucesso pro-ficcional" não aniquila a individualidade, ou o caráter "marginal" do sujeito. Se ele vai sentar no computador pra receber ordens, cortar o cabelo e fazer a barba, apenas abandona o estereótipo, não suas convicções. Suas peculiaridades não saltam mais aos olhos, não sei se isso é problemático, a não ser pro "marketing visual", digamos.

Madame S. disse...

Tenho a impressão de que a magia entorno da marginalidade no Brasil tem mais a ver com os anos de chumbo, onde o Estado se fazia presente de forma tirânica e seus perseguidos eram tidos como heróis aos olhos da intelectualidade.

Quanto à polêmica do pertencimento... Não sei. Todo grupo tem seus códigos, não é?

Lia Drumond disse...

Muito legal seu texto. E acho que ser marginal é se permitir ser livre. Viver é estar em si mesmo e não deveríamos nos importar tanto com quem está de fora... Bjs

Anônimo disse...

pesquisas comprovam que crianças que lêem contos existencialistas aprendem a falar melhor dos seus sentimentos

gigi disse...

eu atualizei e acho que você deveria fazer o mesmo.

vakagoloka disse...

bacana demais seu texto, citei um trecho num artigo que escrevi ;)

Madame Blue disse...

Você é lindo

maria disse...

seja artista
seja herói

ailton martins disse...

E aí cara? Parabéns pelo post. Se puder dê uma olhado no meu Blog. Chama-se Produção Marginal.

William Garibaldi disse...

Cara genial este post, acredito na positividade de ser marginal. já que vão me dar um rótulo, que seja o melhor. Creio que minha poesia seja marginal, que eu seja marginal... mas sei que um ser pode ser o que quiser desde que não machuque o próximo e bla e blal bala bla... mas estar ofra da massa realmente é ser criativo! marginal... versosdefogo.blogspot.com.br

Lua'na! disse...

Muito bom seu texto, estou escrevendo um artigo sobre minha poética e usei vários trechos como referência!

Ana Júlia disse...

muitos comentaram sobre faculdades, trabalho, vida... ahh a vida real , depois que vc estuda sai das asas dos seus pais, pra voar. Voar aonde? se não tem espaço. Acho que a gente precisa criar esse espaço, sem chefes, obrigações, pais, leis, sem dinheiro. Só marginais .