quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

ENTRE O DELÍRIO E A OUSADIA: ANALISANDO A BIBLIOTECA DE PARIS SOB ÓTICA DE BIGNESS, DE REM KOOLHAAS

Colaboração Natália Singh: http://www.facebook.com/photo.php?pid=31140887&id=1473575337&notif_t=photo_tagged_by_non_owner#!/profile.php?id=1801450923




“Especialmente entre a década de 1890 e 1940, uma nova cultura (a era da máquina) elegeu como laboratório Manhattan: uma ilha mística onde a invenção e teste de um estilo de vida metropolitano e sua consequente arquitetura poderiam ser aplicados como um experimento coletivo em que toda a cidade se tornaria uma fábrica de experiência artificial, onde o real e o natural deixariam de existir.”

Partimos deste extrato de Delirio Nueva York para tentar entender como a pesquisa de Koolhaas realizada nos anos 70 nos Estados Unidos foi capaz de se desdobrar e influenciar o nosso modelo de estudo neste trabalho: o projeto da Biblioteca de Paris e o texto Bigness, publicado duas décadas depois em Small, Medium, Large, Extra Large.

O projeto foi realizado para um concurso lançado pelo governo francês em 1989 para abrigar cinco diferentes tipos de bibliotecas, do qual seu escritório – OMA – participou, sendo derrotado.
Na década de 70, as ideias contidas em Bigness pareciam um fenômeno exclusivamente do “Novo Mundo”. Mas, na segunda metade dos anos oitenta, multiplicaram-se sinais onda de modernização que iria atingir o “Velho Mundo”, marcando um novo começo mesmo no “continente terminado”. Contra o pano de fundo europeu, o impacto causado por Bigness “(...) nos forçou a fazer o que está implícito em Nova York Delirante(...)”, como o próprio Koolhaas afirma. “Bigness se tornou uma dupla polêmica, confrontando as tentativas anteriores de integração e concentração e doutrinas contemporâneas que debatem a possibilidade de “o Todo” e “o Real” como categorias viáveis e se resigna o supostamente inevitável desmonte e dissolução da arquitetura”.

Em Bigness, Rem Koolhaas aprofundará seu manifesto retroativo: irá propor uma transição do arranha-céu para o “big building”, do qual o arquiteto perde o controle se tornando nada mais do que “(...) um máximo de programa e um mínimo de arquitetura”.

Um salto astronômico de escala, uma produção de massa crítica, influenciada pela cultura do congestionamento, o aprofundamento e radicalização no uso do elevador e o rompimento da “relação humanista entre exterior e interior” serão os pontos-chave para discussão do projeto.




“(...) a arquitetura é uma profissão perigosa porque é uma mistura venenosa de impotência e onipotência, no sentido de que o arquiteto quase sempre alimenta sonhos megalomaníacos que dependem de outras pessoas e de determinadas circunstâncias para se imporem e concretizarem.”


Para Koolhaas, a arquitetura é uma profissão perigosa. Não basta apenas uma boa aparência, deve-se abandonar o narcisismo e o conforto para dar mais atenção às realidades perigosas, deve-se também organizar-se para encontrar articulações para as possíveis e inevitáveis transformações e forças da verdadeira modernização. Uma postura otimista é como uma obrigação para qualquer arquitetura. Em suas próprias palavras “uma arquitetura séria deve desejar ser perigosa”. “Meu trabalho é deliberadamente não-utópico: tenta operar conscientemente dentro dos limites das condições prevalentes (...). Por isso meu trabalho assume uma postura crítica em relação a esse tipo de utopia moderna. Ainda assim está comprometido com a força da modernização e com as inevitáveis transformações engendradas por este projeto que vem operando há trezentos anos. Em outras palavras, para mim o mais importante é fazer com que essas forças convirjam e se articulem, mas sem a pureza dos projetos utópicos. Nesse sentido, meu trabalho é positivo ante a modernização, mas crítico com o modernismo entendido como movimento artístico”.

Koolhaas possui um discurso que defende a cultura de massa como um fenômeno que é capaz de produzir, de construir uma cidade que tem lógica e uma razão de ser intrínseca, apresentando-se como resultado de intervenções em que o desejo do lucro prevalece e onde não há, de modo algum, vontade de forma. Para ele, a congestão e a densidade são valores em si com os quais os arquitetos podem e devem trabalhar, pois estes fazem parte da lógica da metrópole. Assim sendo, a liberdade de ação, característica da cultura contemporânea, é fundamental para a produção de arquitetura que responda às necessidades do nosso tempo.

Koolhaas deseja mostrar sua arquitetura como produto que deseja ser consumido por esta sociedade. Para ele a arquitetura é vista como bem produzido pela indústria e por isso pretende, em nome da contemporaneidade, que sua arquitetura seja global, universal, não relacionada a determinadas condições do lugar, por isso o lema “fuck context”, anunciado em Bigness.

Podemos dizer que, atualmente, seu trabalho é um dos mais notáveis devido à ousadia de seus projetos e, implicitamente, pelo seu caráter quase cínico de interesse pela realidade mais cruel: a realidade construída pelos empreendedores. Ele usará isto a seu favor, como forma de propor todo seu desejo de renovação arquitetônica sob respaldo de uma cultura que deseja consumir sonhos megalomaníacos.

Certamente, o não-convencionalismo marca e molda a sua maneira de projetar. Desconstruindo paradigmas e apostando numa maneira de buscar o novo, como ele mesmo diz, “buscávamos, pela primeira vez, realmente inventar arquitetonicamente” , o projeto para a Biblioteca Nacional da França certamente abre espaço e incentiva outros pensamentos de concepção do espaço, do objeto arquitetônico e sua relação com a cidade. Ele reconhece que a tecnologia estava começando forçar a biblioteca tradicional a compartilhar outros tipos de mídia além do livro. Desta forma, Koolhaas concebe o projeto pensando uma maneira revolucionária, na forma do que ele chamou de "comprimidos mágicos", para mesclar todas as mídias em uma só.


A forma arquitetônica da biblioteca mal evoluiu desde as primeiras bibliotecas centenas de anos atrás, segundo sua visão. O antigo método genérico de empilhar andares para todos os usos da biblioteca geralmente funciona bem quando a ela é aberta, mas quando começa a aumentar suas áreas de armazenamento de livro, a leitura pública e áreas de estudo começam a se sobrepor, conferindo uma espacialidade de congestionamento. Este fenômeno como é revelado da explosão da escala. “Além de certa de massa, uma construção se torna um big building. Uma tal massa já não pode ser controlada por um único gesto arquitetônico, ou mesmo por qualquer combinação de gestos arquitetônicos. Essa impossibilidade desencadeia a autonomia das suas partes, mas que não é a mesma fragmentação: as partes mantêm o compromisso do todo.” Desta maneira, a liberdade de interpretação do programa e a criação de espaços públicos e privados é capaz de conjugar perfeitamente os cinco tipos de biblioteca diferentes que faziam parte do programa base proposto. Sua intenção era, portanto, de redefinir-la como uma instituição não mais dedicada somente ao livro e sim um armazém de informação livre.

Podemos relacionar, de maneira análoga, a forma da Biblioteca Nacional Francesa a um dos estudos propostos por John Hejduk conhecido como “nine square cube”. Seu desdobramento está no fato de, no centro de cada um desses nove cubos, Koolhaas posicionar toda a circulação vertical, a partir da incorporação de um pensamento já amadurecido do uso do elevador, como forma de estabelecer conexões espaciais diversificadas e propor novos desafios aos arquitetos. Esta máquina - com o seu potencial para estabelecer conexões mecânicas em vez de arquitetônicas - e sua família de invenções relacionadas tornam nulo e vazio o repertório clássico da arquitetura, “(...) que tem que se valer de gestos incrivelmente complicados para estabelecer conexões”.

Desta maneira, ele cria uma "caixa de informações", expulsando massas do cubo, criando os vazios esculturais que abrigam os espaços públicos da biblioteca.

















Isso nos leva a concluir que se propõe a realizar uma arquitetura que parte de um gesto de subversão da lógica projetual: a construção da não-construção, ou seja, do vazio.
Koolhaas, como normalmente faz, dá nome de cada forma escultural ou vazio na Biblioteca Nacional de França. Localizada na parte inferior da caixa estão as peebles (pedrinhas) que compõem a biblioteca de imagem e som. Nesta, salas e cabines estavam localizadas para ouvir ou assistir a filmes, músicas. A forma seguinte é o cruzamento, que abrigará a biblioteca de eventos. Esta forma é composta por dois espaços vazios que se cruzam. A próxima forma é o que Koolhaas chama de espiral. Aqui uma espiral contínua conecta cinco níveis de pilhas abertas e cabines de estudo para criar a biblioteca de estudos. A forma chamada de shell (concha) era para funcionar como sala de catálogo, bem como ligar a espiral à buckle (fivela) ou biblioteca de pesquisa. O "fecho" é essencialmente uma tira mobious e era para ter um interior científico em que o chão se transformasse em divisórias, paredes e telhado. Desta forma, Koolhaas sugere uma liberdade extrema programático-formal, que se consolidaria com a Biblioteca de Seattle 10 anos mais tarde.

A relação exterior-interior é intensificada à medida que a distância entre o centro e a pele aumenta, sendo a fachada, portanto, incapaz de poder revelar o que acontece no interior do edifício. A expectativa humanista de honestidade está condenada: interior e exterior são considerados projetos distintos em sua essência: um lidando com a instabilidade das necessidades do programa e outro oferecendo à cidade a aparente estabilidade de um objeto. Trata-se de uma relação dualista: enquanto a arquitetura revela, Bigness oculta; ele transforma a cidade de uma adição de certezas em um acumulado de mistérios. O que se vê não é mais o que se é, como afirma o próprio arquiteto.


Sem sombra de dúvidas, tais experiências tiveram seu desdobramento a partir de Nova York Delirante, no qual Koolhaas dirá que “O exterior e o interior de tais estruturas – os arranha-céus – pertencem a dois mundos arquitetônicos diferentes. O primeiro, o exterior, está preocupado exclusivamente com a aparência do edifício como objeto escultórico mais ou menos sereno. Quanto ao segundo, o interior, está em permanente estado fluido, ocupado, com seus constantes programas e iconografias, a atenção dos voláteis cidadãos metropolitanos, presos em seus superestimulados sistemas nervosos e com a perpétua ameaça de serem dominados pelo tédio”. Desta maneira, concebe as fachadas do edifício compondo um jogo de revelações e ocultamentos, produzindo “quase um efeito da natureza, no que concerne seu caráter amorfo e mutante”.

A inserção do projeto no contexto da cidade parte de uma adaptação do seu lema “fuck context”. Ele não nega o lugar, mas sim estabelece um embate. Afinal de contas, o projeto se insere sobre a rígida legislação parisiense respeitando gabarito, etc. Por outro lado, põe de lado toda a referência historicista, inserindo na paisagem um edifício na dimensão da escala da cidade, um edifício monolítico que produz um equilíbrio instável no seu contexto. É interessante observarmos que tanto esse projeto da Biblioteca de Paris quanto a inauguração da Pirâmide do Louvre, de IM Pei, se dá no mesmo ano. Este fenômeno é capaz de nos permitir uma interpretação muito específica, que é a abertura do “Velho Mundo” a uma nova experimentação favorável à renovação arquitetônica.

O pensamento de “cidade genérica”, como ele mesmo diz, rompe com o ciclo destrutivo de dependência, no qual este processo de concepção da cidade nada mais é do que o reflexo da necessidade e habilidade do tempo presente, abandonando a história como modelo. Assim sendo, admite a praticidade como sua principal característica, podendo se expandir, renovar ou autodestruir. “É superficial como um set de Hollywood e pode produzir uma nova identidade toda manhã de segunda”.

A partir daí, poderíamos dizer o mesmo sobre um edifício. Atingida esta escala colossal, tem-se não um edifício, mas sim uma cidade, que em meio a muitas necessidades desfocadas, fracas, desrespeitáveis, desafiantes, secretas e subversivas, faz com que a arquitetura se renda ao campo depois da própria arquitetura.


Na Biblioteca Nacional da França, a abordagem feita por Rem Koolhaas é quase artística, demonstrando uma atitude crítica e não convencional em relação ao programa. “Em um momento em que a revolução eletrônica parece prestes a dissolver tudo o que é sólido - a eliminar toda a necessidade de concentração e concretude física – parece absurdo imaginar a suprema e definitiva biblioteca tradicional. Ele assume uma forma muito diferente, a de criar edifícios que encapsulam a “cultura de congestionamento”, por romper com a natureza genérica modular da arquitetura moderna.

Seu projeto problematiza questões para além do contexto europeu. Uma delas é o enorme desafio que representou na procura de soluções para programas complexos de escalas megalomaníacas. Exige-se aos projetistas o acolhimento de um novo princípio projetual e não apenas articulações puramente arquitetônicas (proporção, escala, coerência volumétrica), surgindo assim, a procura de uma mecanização que una as partes que compõe o todo.

É possível perceber que, com a concepção deste projeto, as necessidades programáticas impostas a uma grande estrutura estão omitidas pela sua epiderme, não revelando o seu funcionamento interno. O exterior oferece um cenário de aparente estabilidade e coerência do todo. A forma não mais revela a função do edifício. Desta maneira, por mais que não tenha vencido o concurso, Koolhaas foi capaz de abrir uma nova visão no pensamento arquitetônico da cidade, fazendo com que deixemos a experiência moderna de lado e busquemos a solução apropriada para o nosso próprio tempo.

Objeto de variadas leituras, sob diferentes prismas, a Biblioteca de Paris provoca e instiga a arquitetura a pensar de outra forma as relações entre objeto arquitetônico e cidade, forma e função, exterior e interior, inserção no contexto histórico e cultural, e por fim, a influência da apropriação dos espaços pelo homem, sendo esta parte indissociável do projeto.



REFERÊNCIAS


KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. 2ª. Edição. Nova York: Monacelli Press, 1998.
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.
KOOLHAAS, Rem. Delirio de Nueva York. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004.
NESBITT, Kate. Uma nova agenda para arquitetura: antologia teórica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
http://www.oma.eu/index.php?option=com_projects&view=portal&id=116&Itemid=10 - Acesso em Nov/2010
http://www.riemanndesign.com/web-content/Writings/TwoLibraries.html - Acesso em Nov/2010
http://www.arch.ttu.edu/people/faculty/Neiman_B/pedagogical/bebopstudio/pdf/01_00.1_hejduk.pdf - Acesso em Nov/2010
http://www.louvre.fr/llv/musee/histoire_louvre.jsp?bmLocale=en - Acesso em Nov/2010
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.023/790 - Acesso em Nov/2010

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