DISCURSO DE FORMATURA DA ESCOLA DE ENGENHARIA DA U.F.R.J. - 1970

Srs. Professores, a vocês que nos transmitiram o que sabiam, que foram nossos segundos pais, desde o dia em que entramos para o jardim de infância e nos aturaram pela primeira vez, que nos ensinaram a ler, a escrever, a somar, a multiplicar, passando pela escola secundária, cuja professora ou professor de português vai nos perdoar os êrros que cometermos, ou o professor de física pelas leis que esquecermos durante nossa carreira, e até os que nos transmitiram sua experiência profissional e de quem agora somos colegas e concorrentes, somos gratos e reconhecidos.

Aos nossos parentes e amigos com quem convivemos todos estes anos e sempre nos estimularam a vencer, a nossa amizade.

Às nossas esposas, noivas e namoradas, que souberam aturar nossas "viradas" estudando para provas, sempre nos ajudando e incentivando, o nosso amor,

E, aos nossos pais, que nos deram a vida e a vontade de vencer, tornando possível que tudo isso se realizasse, muitas vezes com o sacrifício de seu bem estar ou até de sua saúde, diríamos apenas, que somos seus filhos e teremos dito tudo.

E é a vocês todos, que nós vamos contar o que foram cinco anos de escola de engenharia: 1966 - 1970

Durante cinco anos ganhamos, perdemos, lutamos.

Hoje, deveríamos estar aqui prontos a participar de todas as formas no desenvolvimento do Brasil, mas não poderemos fazê-lo, embora a muitos pareça que sim.

No máximo conseguiremos fazê-lo continuar a marcar passo, acompanhando o seu crescimento populacional, ou mantendo a distância das outras nações.

Qual foi a falha?

É simples:

NOS INFORMARAM MAS NÃO NOS FORMARAM

Ensinaram-nos a integrar esta ou aquela equação, a calcular esta ou aquela lage, a especificar este ou aquele motor, a estudar em livros estrangeiros, a executar, até a improvisar, mas não a criar, não a inventar.

E quais as conseqüências, ou até mesmo, quais as causas?

A maioria de nossas indústrias e firmas de engenharia são controladas por grupos estrangeiros.

Argumenta-se que elas dão uma importante contribuição ao nossa progresso econômico, que levaria muito mais tempo para acelerar o processo de industrialização, há, entretanto, o problema que nos aflige:

A relação entre esses grupos, a profissão do engenheiro e do pesquisador, e até mesmo a nossa posição de NAÇÃO. A investigação pura e aplicada dessas organizações é realizada em seus países de origem.

Em conseqüência, aqui, essas companhias não estão muito interessadas nos institutos locais de ensino e pesquisa, a não ser na medida em que através deles possam descobrir aqueles de mente mais privilegiada para levá-los às suas matrizes, de forma que tudo que é novo surja por lá e nós fiquemos sempre na dependência do pagamento de royalties, remessa de lucros, assistência técnica, etc., etc.

Poderão ainda, interessar-se pelo nosso sistema educacional no sentido de obterem técnicos e engenheiros para operarem suas fábricas locais.

Daí os temores de muitos de nós quando se criaram os cursos de operação, com a nome de engenheiro junto, e quando se fala em transformar todas as escolas em fundações.

É importante o Governo voltar sua atenção para essa faceta do programa de trazer tecnologia e capitais estrangeiros em grande quantidade, pois mesmo os grupos nacionais, com as facilidades existentes, preferem comprar conhecimento e tecnologia importados, prontos, ao invés de investirem em equipes de engenheiros e pesquisadores, de modo a obterem maiores lucros, no menor tempo possível. A classe dos engenheiros se ressente disso, e os colegas aqui presentes, sabem muito bem dos salários que nos são oferecidos para adaptar ou desenvolver projetos estrangeiros, estes sim muito bem pagos.

Estarmos, a bem da verdade, diante de um novo tipo de DEPENDÊNCIA COLONIAL.

O argumento de que as firmas estrangeiras já experimentaram, que estão por dentro, etc. etc., não procede, pois seria a negação de todos os princípios de pesquisa científica, base da prosperidade dos povos mais desenvolvidas, que são a sede dessas firmas.

À campanha de defesa da engenharia nacional, promovida pelo Clube de Engenharia, responderam os consórcios de firmas estrangeiras com nacionais, e outras formas legais de testas-de-ferro que por aí surgem às dezenas, permitidas pela legislação que apenas leva em conta o que entra, e se esquece do que sai e do que deixa de surgir aqui.

Estamos sendo lançados em um jogo de cartas marcadas, inocentemente, muitos de nós pensando que tudo isso não existe, muitos de nós nem se importando se existe ou não, pois as palafitas da Nova Holanda não atingiram o Fundão nestes cinco anos, embora tenham avançado mar adentro 500 metros.

NOS INFORMARAM MAS NÃO NOS FORMARAM.

Somos de maneira geral acomodados, cada um querendo subir individualmente, sem uma consciência de classe, sem confiarmos uns nos outros, sem união.

Para falar claro, mal nos conhecemos.

Fomos orientados de forma a que não pudéssemos incomodar nem interferir nos desejos dos donos da verdade e da escola, escola esta que nunca estimulou a amizade ou a camaradagem, nem entre alunos, nem entre professores, nem entre alunos e professores.

A maioria nem sabe quem foram os diretores da escola, embora seu diploma vá assinado por eles. Mas assim é mais fácil dirigir urna escola, com todos divididos.

Quando nos uníamos para solicitar a mudança de um professor por incapacidade do mesmo, ou a adoção de um livro texto, por causa da obsolescência das apostilas, muitas delas da década de 1930, éramos combatidos com mão de ferro, e até de moleques tivemos oportunidade de ser chamados.

A formação de alguns grupos dentro das turmas surgia mais como necessidade de sobrevivência do que por coleguismo.

O que sentimos é um querendo derrubar o outro, e negar isso, seria hipocrisia.

Enfim, fomos formados sem formação, e quem mais vai sofrer, será mais uma vez, o Brasil, já que dispersos e sem união, estaremos facilmente à mercê de qualquer grupo.

Nossa escola não é um caso à parte.

Todas as outras, quer seus alunos e professores admitam, quer não, são talvez até piores, e a nossa podemos afirmar com certeza, ainda é a que fornece melhor base técnica.

Pode-se tentar justificar a diretriz adotada, alegando que havia certos grupos agindo em nosso meio, porém é justamente aí que estava a grande lição.

As idéias e as ações desses elementos, deveriam ser combatidas por nós mesmos, que éramos os prejudicados, ou então nós não seríamos dignos de reclamar.

Eram eles que iam despertar-nos deste acomodamento, deste medo, deste deixa-prá-lá...

Não podemos dizer que tivemos uma formação escolar democrática, pois o que caracteriza a democracia não é a ausência de conflitos, mas sim a solução de conflitos dentro de valores racionais e humanos.

A democracia é a ordem sem necessidade de autoridade, um regime que desagrada tanto a extremistas de um lado quanto os de outro.

Se cada um define democracia corno lhe convém, e em seu nome são realizados todos os progressos e crimes possíveis, e se democracia não pode ser definida com clareza, pode pelo menos ter seus elementos essenciais identificados.

Esses elementos são a representatividade do poder, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de criação artística e o respeito a leis mais ou menos permanentes, em que as pessoas passam se basear para agir.

E o homem comum é tão sensível a essas verdades simples, que, se não sabe o que é democracia, sabe muito bem o que ela não é.

Por isso acham graça, quando os jornais anunciam pomposas declarações do Kremlin, mencionando a palavra.

Por quê acham graça?

Porque ninguém pode considerar democrata a regime que prende sem defesa, que censura até a produção científica, que condiciona a criação artística ao gosto duvidoso de meia dúzia de burocratas.

É verdade que os soviéticos agiram dessa maneira em nome do progresso econômico e do desenvolvimento.

Mas nós não somos comunistas e preferimos a pobreza numa democracia à alardeada prosperidade debaixo da opressão, assim como a liberdade é preferível à escravidão.

Mas é preciso ser um democrata para compreender e aceitar isso.

E como dissemos, se nós não tivemos uma formação democrática, como poderemos ser seus defensores?

Se não lhe conhecemos os pontos fracos, como poderemos ajudá-la a sobreviver? Algo está errado.

Parodiando a Agência Nacional, diríamos que "a segurança depende da confiança que cada um tem nos outras e EM SI". Talvez falte um pouco de confiança dos que se dizem democratas, na democracia, ou então, não o são.

E há muitos que realmente não são, que se aproveitam de qualquer fato ou Ação de minorias desesperadas para provar por A + B que é necessário endurecer o regime.

Mas o Estado não pode comportar-se como aqueles que pretende destruir.

A causa terrorista está condenada, porque não encontra nenhuma receptividade no povo.

Não há razão alguma que justifique a repressão indiscriminada a gregos e troianos, nem mesmo a brutalidade dos atos terroristas.

Não há de ser a loucura e o desespero de um bando de marginais o pretexto para afastar o Brasil do caminho da democracia, e alienar ainda mais o povo do processo de escolha do seu destino.

O Brasil precisa restaurar a confiança em suas instituições e em si mesma.

Devemos admitir que as autoridades cometeram erros, mas, temos de ter a certeza de que pertencemos a um mesmo povo, os de baixo e os de cima, governados e governantes.

Por uma questão de justiça, devemos dizer que tudo isso, já é velho, vem de muitos governos atrás. Mudam os personagens, invertem-se as posições, mas tudo continua igual. Falava-se muito em combater a corrupção e a subversão. Hoje, só se fala em subversão.

Será que ninguém mais é corrupto? Quantos bens foram confiscados? Aqueles que são os mais dispostos e os mais corretos, são-lhes apresentados tantos subversivos, que ficam sem tempo para cuidar dos corruptos, que são os mesmos de todos os governos.

Quando se derem conta, os corruptores já terão corrompido tudo ao seu redor, e eles ficarão com os seus subversivos, vendo a inutilidade do trabalho que tiveram.

Porque dizemos tudo isso?

Porque achamos que a única forma de progresso de uma nação, é a união, a participação coletiva em todos os atos, e porque sentimos falta de uma instrução nesse sentido.

Diz-se que somente quem pela educação e pela escola aprende a conhecer o seu país, pode adquirir aquele orgulho íntimo de pertencer ao seu povo, de lutar pela sua pátria, pois só se pode lutar pelo que se ama, só se pode amar o que se respeita e respeitar o que se conhece.

Talvez até pela consciência de que falta esse conhecimento do Brasil no que ele tem de bom e de ruim, é que alguns tentam impingir-nos urna "brasilidade" semelhante a urna torcida de time de futebol, com frases feitas, e urna tentativa de uniformização de mentes, nos termos do "ame-o ou deixe-o".

Como é que vamos admitir que a condição de brasileira, ou o amor à pátria fiquem na dependência de uma concordância de idéias, ou de uma conformidade de pontos-de-vistas?

O privilégio de todos os brasileiros é exatamente o de amar o seu país, acima e além das divergências de opinião.

Esses pretensos patriotas, na verdade são torcedores do Brasil, do tipo que marca palpite triplo ou até contra, quando seu time não vai bem, e de torcedor a brasileiro, vai uma grande distância.

Tão grande que eles nem percebem.

São esses alguns dos problemas que surgem à nossa volta, porque não são integrados representantes de todas as classes no processo decisório de nossos destinos, mas apenas alguns grupos, talvez até porque outros, como o nossa de engenheiros, não foram preparados para isso. Não sabemos se deliberadarnente ou não.

NOS INFORMARAM MAS NÃO NOS FORMARAM.

Talvez alguém pergunte onde está a solução: - Vocês não a apontam? Pergunta cômoda, pois é a usada contra qualquer tipo de crítica, pelos que se sentem responsáveis ou coniventes.

Nós diríamos apenas que não tivemos formação suficiente para responder, e que nem os de outras gerações que pretendem saber tudo, tiveram essa formação; só que custam a reconhecê-lo.

Diríamos apenas que se não sabemos exatamente a que fazer, sabemos muito bem o que não fazer. Diríamos também que temos fé.

Que temos fé em que mais cedo ou mais tarde os professores terão salários condignos, que lhes permita uma dedicação real à escola. Que temos fé em que os pagamentos não atrasem, às vezes até dez meses.

Que temos fé em que os honorários proporcionais ao tempo dedicado à escola deixem de ser promessas demagógicas e passem a ser uma realidade que permita seja formado um quadro de professores, pois hoje, o que temos são alguns idealistas que sacrificam o seu tempo de trabalho, para nos transmitir conhecimentos e que não precisam da escola para nada, pois já tem renome suficiente para que a escola se interesse em dizer que eles lecionam, e, temos também uma maioria do tipo que se interessa apenas por dizer que leciona na "escola de engenharia".

O que nós queremos, é que se acabe com isso, que o magistério superior atraia também os competentes que não podem dar-se ao luxo de se dedicar a algo que não os paga, por uma razão ou por outra, e normalmente razões de ordem econômica.

E, quando se cria uma mentalidade livre de desejos e vaidades pessoais, com estruturas administrativas independentes e autônomas, sem vitaliciedade de cargos, admissão de professores por concurso e não por pistolão ou simpatias pessoais, enfim, uma mentalidade realmente honesta e voltada para o ensino, é que a escola superior poderá dizer que está formada, e então ela poderá, realmente, formar.

E nesse dia, nós aceleraremos nosso passo, e teremos condições de tentar alcançar nosso justo lugar entre as nações. Mas será preciso sermos muito honestos, e muito brasileiros para conseguirmos fazê-lo, pois inegavelmente, vivemos em um mundo de interesses, e muitos deles serão contrariados. E as coisas andam tão confusas que às vezes confundimos os nossos interesses com os que não são nossos, pressionados por uma propaganda que não é nossa.

Falou-se muito da conveniência ou não de um discurso político, de uma tomada de posição.

- Que não haveria condições, que não seria conveniente, que não seria permitido, que seria temerário.

Mas, este é o argumento dos que desconfiam das autoridades, e nós estamos certos dos objetivos delas e dos nossos.

Não poderíamos fugir ao dever de defender nossa opinião, e chamar atenção para aquilo que julgamos certo ou errado, porque, apesar de tudo temos fé em nós mesmos.

(Miguel Fernández y Fernández, orador e autor do texto, NOV70)

Por causa deste texto tive de "comparecer" ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) durante três dias, onde tentaram demover-me de ler este discurso, sugerindo que se fizesse outro texto. Terminaram por deixar lê-lo sem modificações, com a informação entre dentes: não vai sair em nenhum órgão da imprensa. E não saiu mesmo, nem uma notinha ... Naquele ano também fomos a única turma, talvez no Brasil, a ter formatura fora de prédio da escola. Quando eles se deram conta estávamos com reserva no Teatro Municipal, já divulgada e aprovada pela direção da escola...

Se não me falha a memória, chamava-se Gastão Fernandez o chefão do DOPS nessa época e perdeu uma manhã comigo por conta deste "importante" discurso, enquanto a toda hora era interrompido porque o embaixador Americano (ou seria o Suíço?) estava raptado pelas "esquerdas".

revisão: R1