Thursday, January 31, 2008

Canto Livre Adriano Correia de Oliveira

Rosalía de Castro


Poema, Rosalía de Castro

Cando penso que te fuches,
negra sombra que m'asombras,
ô pé d'os meus cabezales
tornas facéndome mofa.

Cando maxino qu'ês ida,
n'o mesmo sol te m'amostras,
y eres a estrela que brila,
y eres o vento que zoa.

Si cantan, ês ti que cantas;
si choran, ês ti que choras,
y ês o marmurio d'o rio,
y ês a noite y es aurora.

En todo estás e ti ês todo,
pra min y en min mesma moras,
nin m'abandonarás nunca,
sombra que sempre m'asombras.

Fragmento XLII

Terra antiquissima,
Minha pátria pequenina,
Rio Minho.
Nos teus campos viceja o milho,
apanha-se a azeitona, cresce o vinho.

Levanta voo do ninho,
esguia, uma andorinha petiz.
Amarelo, amarilis, sabariz,
levada nas asas do vento, não penso, sigo.
No tempo semeio, do tempo recolho
frágeis, as flores de amaranto,
ténues teias de nostalgia e desencanto.

Tuesday, January 29, 2008

Lenine Capelo Gaivota

A Cidade do Antigamente

Lembro-me ainda do tempo em que andava pelas ruas da cidade e acreditava, com muito exagero que, em breve, com um pouco de boa vontade, pratica e educadamente, conheceria toda a gente que havia para conhecer. Frequentava, nessa altura, o liceu feminino e vivia apavorada com as aulas de lavores. Nunca tive muita queda e, paciência? muito menos!, para bordados e malhas. Nunca consegui acabar uma única peça. Em compensação devorava os livros que me caíam nas mãos de fio a pavio. Às vezes escondia-os porque tinha a sensação que aqueles livros não deviam ser exactamente para a minha idade ou condição, mas na verdade ninguém se dava o cuidado de saber o que é que eu lia.
Aos fins de semana eu e as outras raparigas da mesma idade que também andavam a estudar, e ser estudante tinha então o cheiro particular do privilégio social e ser senhor doutor... ó a fineza!, mas continuando, aos fins de semana eu e as colegas, cheias de perliquitetes, enfiadas nos nossos trajos domingueiros, corríamos o "Passeio dos Tristes", instituição celebérrima, rua do Souto abaixo, rua do Souto acima, com uma breve paragem no jardim de Santa Bárbara e o lanche tomado no café Diana, em cuja entrada dardejava fulgurante na sua nudez a deusa da caça.
Pela parte que me tocava tinha horror a essas saídas em que semanalmente me sujeitava à audição de toda a praxe sonora que certa percentagem da população da cidade e refiro-me, naturalmente, aos rapazes julgavam fazer parte indispensável do assédio às saias. E verdade seja dita, as outras raparigas também achavam que sim e as mais atrevidas não poupavam nos comentários. Tínhamos horários rígidos para chegarmos a casa e eu cuidadosamente evitava dizer que tinha ido ao café, considerado nunca percebi porquê, um antro de devassidão para donzelas inocentes, que nada devia perturbar ou desviar do seu dever de castidade, prova inefável de que seríamos as esposas modelo que as nossas famílias em particular e toda a comunidade cristã em geral, fervorosamente e com meios punitivos se fosse caso disso, desejavam que fossemos.
Naquele tempo altura a única coisa que eu realmente queria era ser adulta e fazer tudo o que me desse na real gana. Supunha eu que quando fosse crescidinha beberia rum se me apetecesse e seria imune a qualquer tipo de chantagem e castigos variáveis e óbvios com que frequentemente me ameaçavam. Teria fugido de casa aos treze anos se soubesse de outro lugar onde pudesse viver. Mas não sabia e tinha medo. Por isso continuava a viver na cidade dos olhos colados nas persianas das casas azulejadas e cheirando a bafio como as velhas igrejas que a todas as horas do dia faziam badalar a voz calma e solene dos sinos. Sonhava com mundos diferentes, outras gentes, Eldorados, que pensava talvez existissem algures e se não retirei daí a ilação de que também eu existia, como Descartes, foi porque o corpo serviu-me sempre como prova suficiente para o delito da existência.
Quanto a certezas não as tinha, mas mais tarde percebi que a morte era uma certeza. Seria minha quando eu a quisesse ou mesmo não querendo, se assim aprouvesse à minha negra tecedeira.

Thursday, January 24, 2008

Phantom of the Opera

Conversas desconexas diante de um espelho

Ontem à noite entrou-me um desconhecido em casa. Vestia um fato cinzento e parecia muito triste. Contou-me a história da sua vida. Era divorciado. Tinha um filho crescido e muito crédito na banca. Senti-me um pouco aturdida pelo inesperado da situação e perguntei se poderia ser útil. Respondeu-me que não. Estava apenas de passagem e um pouco doente. Mal lhe vislumbrava o rosto e o momento era embaraçoso. Não nos entra um desconhecido assim em casa! A minha atitude confundia-me. Como conseguira ele entrar? Normalmente desconfio e receio os desconhecidos. Seria algum antigo amigo? Daqueles que não vemos há tanto tempo que os confundimos no nosso álbum de recordações com um livro ou um personagem perdido, uma cassete ou um filme que guardamos algures numa estante do sótão?
Tentei descobrir mais coisas. Pouco a pouco comecei a sentir medo. Tanto mais que por vezes surpreendia na sua voz ameaças veladas. Quem era ele? O que queria de mim? Qual o motivo da sua aparição? Parei um segundo. Ele não dissera uma única palavra. Olhei-me no espelho. Teria sonhado? A casa onde vivia seria assombrada?
Recusei-me a pensar mais no assunto. Disse para comigo que pararia para fumar um cigarro e mais tarde reflectiria sobre o caso. Ele desaparecera e da sua presença não tinha restado senão aquele amontoado de pensamentos nublados e sensações desatinadas. Gostaria de ter feito um apelo à polícia. Queria que o identificassem. Mas talvez não haja perigo. Talvez ele não regresse e se voltar como uma alma defunta que venha em paz e como amigo. Bem preciso!

Monday, January 21, 2008

Janis Joplin, Summertime (Live Gröna Lund 1969)

Fragmento XXXIII

Na concha pousada no parapeito da janela a sombra nocturna esvai-se, lentamente, transfigurada em palidez solar. Ouço um pássaro estremunhado que canta numa das árvores despidas da rua. Quantas horas não dormidas sonhando o momento da partida. Choras a casa velha que abandonas, os sapatos cambados que adoravas, penosamente, deitados ao lixo. Nos fios do teu cabelo principia, hesitante, a madrugada. Algures um avião levanta finalmente voo. Continuo respirando, reaprendendo a viver.

Monday, January 14, 2008

Edith Piaf - La Vie En Rose

Unity, Ralph Sirianni


Fragmento XLIX

Deus morreu!
(tant mieux)
Viva a Natureza,
irrepetível e eterna,
a vida, a teia dos dias,
o sempre esperado
renascimento do mundo,
o infinito da aparência,
o abismo feminino.

Thursday, January 10, 2008

Da weasel - No Principio era ( o Verbo )

"Álcool", Mário de Sá-Carneiro, 1890-1916

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraiso? ...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante-
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Fragmento XLVII

Para o trânsfuga não há caminho. O paraíso sonhado é um esconderijo: a cave abandonada dos arredores da cidade ou, talvez, o sótão esquecido de um prédio urbano.

Wednesday, January 09, 2008

Eduardo Viana, K4 Quadrado Azul, 1916


Fragmento XLI

Naquela cave sentiam-se como os budas parisienses que presidiam em absurdos banquetes sem guardanapos e sem convidados de smoking. Pretendiam encontrar a harmonia impossível, o nirvana prometido nas caixas de chocolate, sonhado em noites intermináveis, com velas acesas, espiraladas em azul. A casa, em delírio permanente, baqueava todos os dias. Lá fora, a realidade desfalecia em chamas de raiva e pânico. O mar de sargaços tropeçava nas avenidas, nas ruas, no olhar dos vencidos, abrindo corredores infinitos por onde a lua irrompia.
No andar de cima, no armário envidraçado, os animais postados em fila, estremeciam mudos na sua frialdade de bibelots. Numa madrugada, sem memória, o gato raro de porcelana da Pérsia caiu e partiu-se em mil bocados. A empregada da limpeza quando chegou, de avental branco e dedos rugosos, varreu os cacos e deitou-os no caixote de lixo, sempre limpo e perfumado.
Na manhã seguinte, um elefante de cristal, iridescente como a espuma do mar tocada pelo sol de Novembro, ocupava o lugar do gato e fitava sem ver com o seu olhar cego de objecto opulento, destilando pó e cansaço, a janela entreaberta por onde entrava o vento fresco da manhã, antecipando a solidão nocturna.

Monday, January 07, 2008

Purcell, Dido's lament (1689), Emma Kirkby

Sophia de Mello Breyner Andresen


"Se todo o ser ao vento abandonamos", Sophia de Mello Breyner Andresen

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos -
Nus, em sangue, embalando a própria dor -
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

Fragmento XII

Coração mineral,
luz de pedra,
olhar de coruja,
deusa Atena,
astuciosa e serena,
pé ante pé vem até mim
(que ele não se aperceba)
conta-me o teu segredo,
amputado o joelho,
voo sem asas
e espero o regresso sem amanhã possível.
- o sonho no meu seio oculto.

Wednesday, January 02, 2008

Natália Correia


Auto-retrato, Natália Correia

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Maria Callas, "Suícidio", Amilcare Ponchielli (1834-1886)

Fragmento XIII

Evanescente como a espuma do mar,
pluma que esvoaça,
assim a minha alma
quando no mesmo leito
o tempo passamos,
gota a gota sangrando,
mãos e memórias,
outras vidas, outros rostos,
por momentos, vislumbrando,
na penumbra do quarto,
o fundo do poço vazio.

Vem sono leve,
refrescar o meu seio,
a transpiração dos meus cabelos.