domingo, 20 de julho de 2008

Pichação é arte ou vandalismo?

osgemeos - gigante na fachada da Tate

pichação - numa fachada qualquer

No dia 18 de julho, uma manchete na Folha on Line chamou a atenção das ântropas: Escola expulsa aluno que vandalizou prédio para discutir arte.

A notícia conta que o rapaz comandou uma ação em que jovens, alguns mascarados, pintaram a fachada e outras dependências da escola de Artes com "letras pontudas de difícil decifração que caracterizam a pichação paulista"!

A ação aconteceu de noite, os rapazes esconderam as latas de spray debaixo das roupas como fazem os autênticos pichadores e houve troca de socos e pontapés com seguranças e prisão pela PM que foi chamada ao local. O rapaz considerava a ação como seu trabalho de conclusão do curso, mas a professora da matéria e a direção da escola consideraram a ação como um ato de vandalismo e o rapaz acabou expulso às vésperas da formatura.

Isto traz de volta a velha questão: o que é arte, o que não é.

O grafite já é considerado arte. A Tate, inclusive, já convidou grafiteiros para expor seu trabalho em sua fachada.

Mas a Tate ainda não convidou pichadores para expor lá as pichações.

Grafite é arte. Pichação é adrenalina, é vandalismo, é proibido...

Grafite também já foi, agora é permitido, é bonito, é expressão artística...

Grafite é desenho.

Pichação não é.

Não é mesmo? Por que? Se letras são desenhos, vieram de desenhos (basta saber um pouco da história da escrita).
Algum dia a pichação será considerada arte?
A respeito desta polêmica, segue um texto de Olívia Niemeyer, que discute a questão da oposição ARTE/NÃO-ARTE:
ARTE/NÃO-ARTE
Olívia Niemeyer
Nunca vamos conseguir resolver a oposição arte/não-arte. Não podemos dispensá-la nem aceitá-la como ponto pacífico, como verdade absoluta, sem discutir seus limites de todas as formas que soubermos.
Herdamos dos gregos a possibilidade de organizar nosso pensamento a partir de oposições, confiamos na possibilidade de estabelecer limites bem demarcados entre dois termos opostos e de considerar que um dos termos é inferior, ou secundário, ou complementar do outro. Segundo Jacques Derrida, pensamos a partir de dicotomias hierarquizadas. E isso é válido também para a questão artística.

As dicotomias na história da arte segundo Gombrich

Para Gombrich (teórico que inspirou Thomas Kuhn, o autor que fala de ‘mudança de paradigma’, citado por Romano Affonso de Sant´Anna no texto que você enviou), a preocupação normativa com rótulos e classificações levou à criação de várias dicotomias (uma “proliferação de polaridades”) ao longo da história da arte. Ele cita: sublime e belo, ingênuo e sentimental, ótico e háptico, aditivo e divisório, fisioplástico e ideoplástico, linear e pictórico, forma fechada e aberta, clareza e obscuridade, multiplicidade e unidade. E, naturalmente, podemos acrescentar arte e não-arte, a preocupação maior de artistas, críticos, teóricos e apreciadores de arte. Podemos também observar que o grande número de polaridades já aponta para uma diversidade impossível de ser contida dentro, justamente... de polaridades.

Essa proliferação de dicotomias ao longo da história da arte (e em todos os campos do pensamento ocidental) não é inútil e, assim como rótulos e classificações, contribuem para organizar nosso saber e continuam sendo pertinentes para explicitar e comunicar um conhecimento, sobretudo depois que reconhecemos seus limites e os pressupostos que lhes servem de base.

A questão então é examinar quais os pressupostos atuais que nos servem de paradigma para podermos dizer o que ‘é’ arte e o que ‘não é’. Qual arte é, atualmente, considerada séria (a que está nos museus e galerias?) e qual é a não/séria? (a do grafiteiro? A do aluno que foi expulso da faculdade?). Qual arte está, atualmente, dentro do campo artístico e qual está fora? Como sabemos que ultrapassamos esse limite (não demarcado) entre arte/não-arte. Para mim, é claro, o filósofo que melhor examina os limites e os pressupostos das dicotomias é o Jacques Derrida.

A questão do limite

O limite marca um espaço em volta de um território geopolítico, de uma obra de arte, de um texto, determina o lugar onde uma coisa termina e a outra começa. A história da arte sempre se ocupou em examinar e justificar suas fronteiras, traçando-as repetidas vezes e de diferentes maneiras. Concebeu, estabeleceu e.... transgrediu esses limites, transportando o que era visto como ‘fora’ do campo da arte para ‘dentro’ de seus limites. Duchamp consegue isso, ao colocar a roda de bicicleta ‘dentro’ de um museu.

A auto-imunidade segundo Derrida.

Podemos apreciar melhor a questão da apropriação ou transbordamento entre limites pela noção de auto-imunidade na forma que é desenvolvida por Derrida em seus últimos textos (como Voyous
[1], e na entrevista “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos”[2]).
Numa longa nota de rodapé Derrida tenta explicar o uso desse termo retirado da biologia e articulado, por ele, à religião, à ciência, à democracia. E que eu gostaria de aproveitar para pensar a arte contemporânea.
O sistema imunológico protege nosso organismo contra agressões externas, cria fronteiras para nos defender contra o que não faz parte do nosso corpo, contra o que está ‘fora’, como vírus e bactérias. Mas, ao mesmo tempo, precisa abrir suas fronteiras, por um processo de auto-imunização, para o estrangeiro, para a aceitação do outro, aceitação de algo que não é propriamente seu, por exemplo, um órgão transplantado, um enxerto. A auto-imunidade é vista, portanto, não somente como ameaça, mas também como a possibilidade de sobre-vida do corpo, da democracia, do texto.
O que é conceituado como arte em determinada época deve permanecer atento às suas fronteiras (não pode aceitar um ‘vale tudo’, não pode se deixar contaminar pelo que está ‘fora’), mas não pode deixar de se abrir para o outro, para as novas formas do fazer artístico.
O paradoxo de ter de se situar dentro do que os críticos consideram arte e a necessidade (para a sobrevivência dessa própria arte) de aceitar o que está ‘fora’ gera, certamente, um desencorajamento no artista, e naqueles que apreciam arte. Mas essa é uma provação necessária. Arte não é feita por meio de um projeto tranqüilizador, sem aporias, sem contradições, sem a indecisão que gera decisões corajosas e responsáveis. Para Derrida, não há decisão nem responsabilidade sem a prova da aporia ou da indecidibilidade.
O artista, ao fazer sua obra, assume um risco, sem garantias e sem proteção, consciente da possibilidade do seu trabalho não ser aceito como ‘arte’, de não ser séria, de estar oferecendo somente uma ilusão, uma fraude ao seu espectador.
Não podemos deixar de acrescentar que nem todos nossos projetos artísticos se equivalem, há aqui uma questão de limite, de fronteira entre erros e acertos... com toda a riqueza problemática do limite, com toda sua economia e estratégia, como está sendo discutido aqui. Muitas vezes, o limite do erro só é visto depois de transposto, na observação do outro (de um crítico, por exemplo) ou na sua própria crítica depois de um certo tempo, de um certo afastamento, quando a própria obra é examinada como se fosse a obra do outro.

[1] Derrida, J. (2003). Voyous. Paris : Editions Galilée.
[2] Borradori, G (2004). ‘Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos’, em Filosofia em tempo de terror - diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida (tradução de Philosophy in a time of terror por Roberto Muggiati). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (N.da T.).




2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom,gostei da inclusão da idéia de limite no plano das artes .No meu trabalho tento muito questionar tudo e limetes é um dos meus assuntos preferidos.Parece que hoje cada um cria seus proprios limites.LImite não é mais pensado com um dever social,para um bem comum.Todos só querem se expor não importando o outro.Se é arte não sei ,mas que está nos nossos tempos ,inserido na sociedade,há isso está.Beth

Anônimo disse...

Pichação ainda não é vista como arte porque é sempre feita em locais pobres e semi-destruídos. Se pintassem numa parede bem branquinha essas letras pontudas será que não ganharia outro status? Uma sugestão aos pichadores: antes de pichar, recuperem as paredes, dando-lhes a cara de lugar decente... depois pichem a parede recuperada.