OS CULTOS PRÉ-CRISTÃOS
A INFLUÊNCIA MESOPOTÂMICA
OS HEBREUS
OS CULTOS MISTÉRICOS
OS CULTOS HELENÍSTICOS
NASCER DE MÃE VIRGEM
DO JUDAÍSMO AO CRISTIANISMO
AS ORIGENS DO CRISTIANISMO
DO JESUS DA HISTÓRIA AO CRISTO DA FÉ
O CRISTIANISMO DE PAULO DE TARSO
IGREJA E EUCARISTIA
O CRISTIANISMO
JESUS
PODER HEGEMÔNICO SOBRE CONSCIÊNCIAS
MANDAR SOBRE QUEM MANDA
A HIPÓTESE ANIMISTA
MILAGRES
PARÁBOLAS
CRIACIONISMO E EVOLUCIONISMO
FÉ E PROFECIAS
AS CRUZADAS
O CRISTIANISMO
A NOVA RELIGIOSIDADE
O MOVIMENTO NEW AGE
ANÁLISE DO SER HUMANO
ANÁLISE DO SER HUMANO
SOBRE A SUPERAÇÃO DO MEDO
CREDULIDADE
LEALDADE
PRESTÍGIO
O AGNOSTICISMO
A ORIGEM DO UNIVERSO
SOBRE A TEODICÉIA
O MODERNISMO
RACIONALIZAÇÕES
IDEOLOGIAS
LINGUAGEM SIMBÓLICA
O AGNOSTICISMO ANTIGO E MODERNO
A PERSONALIDADE AGNÓSTICA
ÉTICA AGNÓSTICA
CONCEPÇÃO DE DEUS
. Considerações
ANIMISMO . Considerações
PÓS-ANIMISMO . Considerações
O LEGADO DOS HEBREUS . Considerações
A CONTRIBUIÇÃO DOS GREGOS
. Estudo básico
..........
a influência mesopotâmica
João Laurindo De Souza Netto
1. OS SUMÉRIOS 3500 – 2000 a.C.
- A civilização Suméria teve início
por volta de 3500 a.C.
- Suas características: vivia no presente e olhava com
indiferença seu destino além-túmulo.
- Sua religião: politeísta e antropomórfica;
Monista no sentido de considerar todas as divindades como capazes
tanto do bem como do mal.
Os deuses não eram considerados seres superiores, mas criaturas
com características humanas, com as fraquezas e paixões
do homem mortal.
- Mitos: narrativas épicas da Criação e do
Dilúvio, que, posteriormente, serviram de base a muitas
histórias hebraicas do Velho Testamento.
O mito da Criação conta o triunfo mágico
do deus Marduc sobre os deuses que o criaram, a formação
do mundo com os despojos de um de seus rivais mortos e a confecção
do homem com barro e sangue de dragão.
Quanto ao Dilúvio, os deuses, com inveja dos homens, resolveram
destruí-los, afogando-os. Um deles, no entanto, revelou
o segredo a um seu favorito, ensinando-o a construir uma arca
para salvação de sua família e de espécies
animais. A inundação durou 7 dias. Os deuses decidiram
nunca mais tentar destruir o homem.
- Atividades: inventaram a famosa escrita cuneiforme, que consiste
em caracteres em forma de cunha, gravados em tabuletas de argila,
que foi usada durante milhares de anos.
- Capital: a cidade de Ur.
2. OS BABILÔNIOS 2000 – 1700 a.C.
- Não possuíam uma cultura própria; foram
profundamente influenciados pelos Sumérios. Quando chegaram
ao vale mesopotâmico apropriaram-se do que os Sumérios
já tinham desenvolvido.
- Por volta do ano 2000 a.C., o império sumério
foi conquistado pelos babilônios, povo semita que tinha
como capital a cidade da Babilônia.
- Seu mais famoso rei foi Hamurabi, que compilando leis sumérias
criou o famoso “Código de Hamurabi”, do qual
consta a lei de talião: “olho por olho, dente por
dente”.
- Quanto à religião, Marduc, primitivamente um deus
local da Babilônia foi elevado à mais alta hierarquia
Várias lendas foram escritas. Uma espécie de protótipo
do Livro de Jó, chamado Jô Babilônio também
foi escrito nesse período.
- Posteriormente o império babilônio foi declinando
até que por volta de 1700 a.C. foi destroçado por
um povo bárbaro, os Cassitas.
3. HITITAS E CASSITAS 2500 – 1200 a.C.
- Os Hititas foram os senhores de um poderoso império que
cobria grande parte da Ásia Menor e se estendia até
as vizinhanças do Alto Eufrates.
- Quanto à religião, os Hititas formaram um panteão
abrangendo quase todos os deuses dos povos que conquistaram.
- Estabeleceram “Códigos de Vassalagem” que
os conquistados tinham que cumprir para obter a sua proteção.
- Ajudaram os Cassitas na conquista da Babilônia.
4. OS ASSÍRIOS 1300 – 600 a.C.
- Por volta de 1300 a.C., os Assírios, que tinham um pequeno
império no planalto de Assur, começaram a se expandir
e logo se fizeram donos de todo o vale mesopotâmico.
- Seu império alcançou o auge por volta de 750 a.C.
sob Sargão II. Cem anos depois, Assurbanipal conquistou
todo o mundo civilizado da época.
- Sua capital era Nínive.
- Os Assírios eram antes de tudo uma nação
guerreira.
- Lançavam mão do terror para subjugar seus inimigos
e por isso foram a nação mais odiada da antiguidade.
- As leis assírias definiam sujeição das
mulheres a seus maridos; o divórcio era exclusividade do
homem; permitia-se a poligamia; as mulheres não podiam
aparecer em público sem um véu cobrindo o rosto,
advindo daí a segregação oriental das mulheres.
- A demonologia desenvolveu-se nesse período.
5. OS CALDEUS 600 – 500 a.C.
- A civilização mesopotâmica entrou em seu
estágio final com a destruição da Assíria
e o estabelecimento da supremacia caldaica.
- Esse estágio é comumente chamado neobabilônico,
porque Nabucodonosor e seus seguidores restauraram a capital em
Babilônia e tentaram reviver a cultura da época de
Hamurabi.
- Religião: Marduc foi restaurado na posição
de chefe da hierarquia sagrada. Os caldeus desenvolveram uma religião
astral. Os deuses foram exaltados como seres transcendentes e
onipotentes. Foram identificados com os planetas.
- Conclusões: primeiramente uma atitude de fatalismo; uma
vez que os atos dos deuses ficavam além da compreensão
humana, tudo o que o homem tinha a fazer era resignar-se à
sua sorte. Cumpria, por conseguinte submeter-se de maneira absoluta
aos deuses.
Em segundo lugar, surge pela primeira vez na história uma
concepção de piedade (respeito às coisas
religiosas) como submissão, concepção que
foi adotada por diversas outras religiões.
Como decorrência de uma religião astral surge o desenvolvimento
de uma consciência espiritual mais forte, embora não
se delineie de forma nítida a distinção entre
a moral ritual e a moral genuína.
Os seus hinos foram depois usados pelos hebreus com pequenas variações,
substituindo-se como é óbvio, o nome do deus Caldeu
por Jeová.
Com os deuses promovidos a um plano tão alto, seria inevitável
que os homens fossem rebaixados, pois criaturas possuidoras de
corpos mortais não poderiam ser comparadas a seres transcendentes,
impassíveis e imóveis, que habitavam as estrelas
e guiavam os destinos da terra. O homem era uma criatura rasteira,
mergulhada na iniquidade, pouco merecedora de se aproximar dos
deuses. A consciência do pecado atingia nessa época
um grau de intensidade quase patológica.
- Ciência: criaram a semana de 7 dias e a divisão
do dia em 12 horas duplas. Fizeram mapas celestes. Procuravam
descobrir o futuro que os deuses tinham preparado para os homens
através de seus deuses que eram planetas.
Sua astronomia era principalmente astrologia. Criaram os horóscopos.
Criaram os signos do Zodíaco.
6. OS PERSAS 600 – 300 a.C.
- Na aurora de sua história os Persas não constituíam
uma nação independente; eram vassalos dos Medos,
um povo que regia um grande império do norte a leste do
Rio Tigre.
- Em 559 a.C., um príncipe chamado Ciro tornou-se rei de
uma tribo persa do sul. Aproximadamente cinco anos depois, tornou-se
o senhor de todos os persas e então concebeu a ambição
de dominar os povos vizinhos. Passou para a história como
Ciro o Grande, um dos maiores conquistadores de todos os tempos.
Dentro de um período de 20 anos fundou um vastíssimo
império, maior do que qualquer outro que já existira.
Foi aceito pelos Medos como rei logo depois de se tornar monarca
dos persas. Supõe-se que fosse neto ou genro de um rei
Medo. Ciro aproveitou-se também da dissensão interna
do estado caldeu e do estado de decadência dos impérios
do Oriente próximo para conquistá-los.
- Creso, o famoso rei da Lídia, estabeleceu alianças
com o Egito e com Esparta para se proteger de Ciro. Feito isso,
consultou o oráculo de Delfos sobre a conveniência
de um ataque imediato aos Persas. O oráculo respondeu que
ele destruiria um grande exército. Mas o exército
destruído foi o seu próprio. Suas forças
foram completamente derrotadas por Ciro. Sete anos depois, 539
a.C., Ciro submeteu a seu poder a cidade da Babilônia, o
que lhe tornou possível anexar a seus domínios todo
o Crescente Fértil. Finalmente, a independência da
Pérsia foi aniquilada por Alexandre Magno, quando o soberano
persa era Dario III, em 330 a.C.
- Religião: o fundador da religião persa foi Zoroastro,
que viveu cerca de uma centena de anos antes de Ciro. De seu nome
provém o Zoroastrismo, religião que eliminou o politeísmo,
o sacrifício de animais, a magia e elevou a adoração
a um plano espiritual e ético. Era dualística, admitindo
que duas grandes divindades regiam o universo: Ahura-Mazda, infinitamente
boa, e Ahriman, traiçoeira e maligna. O deus da luz por
fim triunfaria sobre o deus das sombras. Além disso, o
Zoroastrismo era uma religião escatológica. Incluía
ideais como a vinda de um messias, a ressurreição
dos mortos, o julgamento final e a transladação
do redimido para um paraíso eterno. Depois de 12 mil anos
ocorreria a 2ª. vinda de Zoroastro, que seria seguida pelo
nascimento do messias que viria aperfeiçoar os bons como
preparação para o fim do mundo. Os mortos então
se ergueriam de suas tumbas para ser julgados por Mazda que derrotaria
Ahriman. Os justos entrariam no gozo imediato da bem-aventurança,
enquanto os maus seriam sentenciados ao fogo do inferno, do qual
se salvariam pois o inferno persa não durava para sempre.
O zoroastrismo tem significado especial por ser uma religião
revelada, supostamente a primeira na história do mundo.
Esse foi sem dúvida um fator que aumentou a sua força,
pois pregava a “verdade absoluta”, ditada pela própria
divindade, mas favoreceu o seu dogmatismo e intolerância,
como aconteceu com o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
7. O MITRAÍSMO
- A religião dos persas, tal como foi pregada por Zoroastro,
não permaneceu por muito tempo em seu estado original.
Foi corrompida, gradativamente, por superstições
primitivas, pela magia, e, sobretudo, pela ambição
do clero. Com o passar do tempo, a influência de outras
crenças, particularmente a dos caldeus, determinou muitas
modificações. O resultado foi o desenvolvimento
de uma poderosa síntese na qual o primitivo sacerdotismo,
o messianismo e o dualismo do Zoroastrismo combinaram-se com o
pessimismo e o fatalismo dos Neobabilônios. Dessa síntese
emergiu uma profusão de cultos, semelhantes em seus dogmas
básicos, mas concedendo a eles valores diferentes. O mais
antigo desses cultos era o Mitraísmo, nome derivado de
Mitra, o principal assessor de Mazda na luta contra o mal. Mitra,
a princípio uma divindade menor da religião zoroástrica,
passou a assumir, na concepção da seita persa que
se derivou do Zoroastrismo, a posição de deus merecedor
de adoração. Seus adeptos acreditavam que tinha
nascido num rochedo, em presença de um pequeno número
de pastores, que lhe trouxeram presentes em sinal de reverência.
Depois de terminada sua pregação na terra, Mitra
teria subido aos céus, de onde deverá voltar para
dar a todos os crentes a imortalidade. O mais importante sacramento
instituído por Mitra era o batismo do crente, do qual se
seguia uma refeição sagrada de pão e vinho.
Outros ritos incluíam a queima de incenso, os cânticos
sagrados e a guarda dos dias santos. Destes últimos eram
exemplos típicos o domingo e o dia 25 de dezembro. Imitando
a religião astral dos caldeus, cada dia da semana era dedicado
a um corpo celeste. Uma vez que o sol era o mais importante desses
corpos, seu dia era o mais sagrado, sendo o dia 25 de dezembro
o solstício de inverno no hemisfério norte, considerado
o dia do “nascimento do sol”.
- Após o colapso do império de Alexandre, a adoração
a Mitra transformou-se num culto definido e sua expansão
foi muito rápida. No último século a.C. foi
introduzido em Roma, fazendo conversos principalmente nas classes
mais baixas constituídas por escravos e soldados estrangeiros.
Finalmente o mitraísmo atingiu a situação
de uma das mais populares religiões do império,
superando mesmo o velho paganismo romano.
- Não é difícil perceber sua semelhança
com o cristianismo, que o superou por volta de 300 d.C.. É
muito provável que o cristianismo, por ser posterior ao
mitraísmo, tenha tomado um bom número de aspectos
deste culto.
- Quando o imperador Constantino invocou a autoridade divina como
base de seu absolutismo e exigia que os súditos se prostassem
em sua presença, estava, em realidade, identificando o
estado com a religião, como os Persas tinham feito em seu
tempo.
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os hebreus
João Laurindo De Souza Netto
As origens do povo hebreu continuam sendo ainda um problema não
resolvido. Certamente não constituem uma raça à
parte, nem possuíam qualquer característica física
capaz de distingui-los nitidamente dos povos vizinhos. A origem
do seu nome é duvidosa. Segundo alguns historiadores ele
deriva de “ khabiru “ , apelativo, depreciativo dado
pelos seus inimigos significando “ nômade ou bandido”.
De acordo com outros, no entanto, ele se relaciona com “
Eber “, designativo dos que procediam do outro lado do Eufrates.
De qualquer maneira, o nome era aplicado originalmente aos povos
imigrantes de origem desconhecida.
A maioria dos historiadores admite que o berço
primitivo dos hebreus foi o deserto da Arábia, advindo
daí seu caráter rústico e sua insignificância
histórica original. A tradição faz começar
a história dos hebreus a partir do momento que o patriarca
Abraão abandonou Ur ( Caldéia ) por volta de 1800
a.C, ou mais provavelmente, durante o reinado do rei babilônico
Hamurabi ( 1700 a.C) para dirigir-se com seu clã nômade
para o sul, até a borda do deserto de Canaã, de
onde uma centena de anos mais tarde, forçados pela fome,
partiram para o Egito, guiados pelo patriarca Jacó, neto
de Abraão, que posteriormente adotou o nome de Israel.
Daí, o nome de israelitas dado aos hebreus.
No Egito foram escravizados pelo governo do Faraó.
Por volta de 1300 a.C, encontraram um novo líder, Moisés,
que os libertou da escravidão e conduziu-os à península
do Sinai, convertendo-os ao culto de Jeová. Utilizando
como núcleo o culto a Jeová, Moisés uniu
várias tribos de seus seguidores numa confederação,
a qual desempenhou papel dominante na conquista da Palestina ou
Terra de Canaã.
Comparada com os desertos da Arábia, a
Palestina representava uma região muito menos rústica.
Mas era estéril e inóspita, nunca a “terra
onde mana leite e mel” descrita na Bíblia. Grande
parte da região já estava ocupada pelos fenícios,
também chamados cananeus. No entanto, graças ao
contato com babilônios, hititas e egípcios, os hebreus
haviam desenvolvido uma certa cultura. Praticavam o comércio,
conheciam o uso do ferro, e a arte de escrever e tinham adotado
leis do código de Hamurabi às necessidades de sua
existência simples. Mais ou menos no ano 1000 a.C. fundaram
a monarquia hebraica. Até esse tempo a nação
fora governada por “juízes” que possuíam
a autoridade religiosa. O primeiro a ser escolhido como rei, foi
Saul, pertencente à tribo de Benjamim, mas logo depois,
incorreu no desagrado de Samuel, o último dos grandes juízes,
que esperava conservar o poder mantendo-se nos bastidores. Foi
então que surgiu Davi, que, encorajado por Samuel, executou
ardilosas manobras para tomar o poder. Sofrendo reveses contra
os filisteus, Saul matou-se com a própria espada, enquanto
que Davi, tendo conseguido sangrentos triunfos contra os filisteus,
tornou-se rei, tendo governado por 40 anos, uniu as 12 tribos
num estado forte e começou a construção de
uma magnífica capital em Jerusalém à custa
de tributação pesada sobre o povo e conscrição
( alistamento militar ) compulsória.
Em conseqüência, antes que Davi morresse,
ouviam-se brados de descontentamento do povo. Davi teve como sucessor
seu filho Salomão, o último rei da monarquia unificada.
Como resultado das aspirações nacionalistas dos
tempos posteriores, Salomão foi descrito pela tradição
hebraica como sábio, justo e esclarecido. No entanto, foi
um articulador ladino e grande comerciante. Ambicioso, procurava
copiar a magnificência dos déspotas orientais tendo
posteriormente que ceder vinte cidades e recorrer ao sistema de
trabalho obrigatório. As extravagâncias de Salomão
produziram agudo descontentamento no povo. Após sua morte
em 935 a.C, as dez tribos do norte recusavam-se a submeter-se
a seu filho Reoboão, separaram-se, e fundaram o reino de
Israel, totalmente à parte das demais. As duas tribos do
sul, compostas na maioria de pastores e lavradores, formaram o
reino de Judá.Em 722 a.C, o reino de Israel, acostumado
a uma vida urbana e ao infiltramento de influências estrangeiras,
foi conquistado pelos assírios, tendo seus habitantes sido
absorvidos pela população circundante, muito mais
numerosa. O reino de Judá conseguiu sobreviver por mais
100 anos, mas em 586 a.C, foi destruído pelos caldeus,
sob Nabucodonosor. Estes pilharam e queimaram Jerusalém,
que teve seu templo destruído.
Quando Ciro, rei da Pérsia conquistou
a Caldéia, permitiu que os judeus regressassem a sua terra
natal. De 539 a 332 a.C. a Palestina foi estado vassalo da Pérsia.
Em 332 a.C, foi conquistada por Alexandre, e depois da morte deste,
ficou sob o governo de Ptolomeu I. Em 63 a.C tornou-se um protetorado
romano sob Pompeu. Sua história política acabou-se
em 70 d.C, depois de uma revolta desesperada que os romanos puniram
destruindo novamente Jerusalém e anexando o país
como uma província. Começou então a diáspora
e os judeus se dispersaram pelo Império Romano.
RELIGIÃO
A parte da Bíblia que conhecemos como
“Antigo Testamento” é um conjunto de 40 livros,
sendo o número total diferente entre católicos e
judeus; alguns não são admitidos pelos judeus, e
em outros existe certa controvérsia entre os católicos.
No Antigo Testamento consta a história e as crenças
religiosas do povo hebreu, que aglutinado na nação
de Israel , apareceu na religião da Palestina durante o
século XIII a.C. A análise científica tem
demonstrado que boa parte dos livros legislativos, históricos,
proféticos ou poéticos da Bíblia é
produto de um longo processo de elaboração –
não menos de 1000 anos – durante o qual foram atualizados
os documentos mais antigos, acrescentando-se dados novos e interpretações
diversas, de acordo com a concepção e interesses
dos novos autores-revisores.
Neste processo surgiram anacronismos tão
manifestos como o do livro de Isaías, profeta do século
VIII a.C, onde aparece uma série de oráculos datados
certamente do século VI a.C, dado que se menciona o rei
persa Ciro (550 a.C.); também é citada a impossível
relação de Abraão com os filisteus ( Gênesis,
21.32 ) quando ambos estavam separados por muitos séculos
de história; há também o fato de atribuir
a Moisés (século XIII a.C ) um texto como o Deuteronômio
que só foi composto no século VII a.C; poder-se
ia citar ainda a denominação Jeová _ pronúncia
dada ao tetragrama YHWH _ relativo ao deus de Abraão, quando
o nome Jeová só surgiu com Moisés muito mais
tarde; ( Êxodo .6, menciona Adonai ( meu Senhor ) e não
Jeová, como está no original ).
A Igreja Católica, assim como seus tradutores
da Bíblia, sustenta que todos os textos incluídos
nas chamadas “Sagradas Escrituras”, foram escritos
sob a inspiração do Espírito Santo, e são
portanto, obra divina. Admite Deus como autor principal, ainda
que os escritos sejam ao mesmo tempo humanos sendo cada livro
de um autor que, inspirado por Deus,o escreveu .
Mas obviamente, a questão de ser uma obra
de Deus, não se coaduna com os despropósitos que
se afirmam na Bíblia. Basta recordar a descrição
da criação do mundo, no Gênesis, para se dar
conta de que a “narração divina” não
é mais que uma repetição dos mitos cosmogônicos
mesopotâmicos e que a descrição da abóbada
celeste, por exemplo, não difere nada da que faziam os
antigos sacerdotes caldeus.
O clero católico tem sempre afirmado que
se Deus tivesse falado da realidade como ela era, o povo de então
não o haveria compreendido, mas a evidência universal
mostra que qualquer crente, de qualquer religião, está
disposto sempre a crer qualquer coisa que tenha sido dita por
seu Deus, ainda que não a compreenda em absoluto! Tanto
mais crível será quanto mais incompreensível
pareça. Não é em vão que se diz que
“os caminhos do Senhor são inescrutáveis”.
Assim, sendo uma obra ditada por Deus, como explicar
que tenha sido adjudicada a Moisés a mesma narrativa mítica
escrita mais de 1000 anos antes, referida ao grande rei sumério
Sargão I ( 2500 a.C ), que após nascer, foi depositado
numa cesta de juncos e abandonado nas águas do rio Eufrates
até ser resgatado por um camponês que o adotou e
criou? Este tipo de lenda conhecida sob o modelo de “salvos
das águas”, é universal e, além de
Sargão e Moisés, fazem parte dele Krisna, Perseu,
Ciro, Rômulo e Remo, etc. Estaria Deus plagiando uma história
pagã?
Também a narração do Dilúvio
pela Bíblia, é plágio de outra lenda sumérica,
ainda mais antiga, conhecida como “Ciclo de Ziusudra”,
narrada nas tabuletas de argila em escrita cuneiforme; a narrativa
bíblica de Noé é inteiramente similar.
Dada sua insignificância histórica
original, é compreensível que o povo de Israel necessitasse
desesperadamente da proteção de um deus todo poderoso,
ao qual estava disposto a submeter-se através de um pacto
de exclusividade. Essa tendência megalômana plena
de mitomania, foi a chave que possibilitou a sobrevivência
dos israelitas e tornou-se o eixo da sua identidade étnica
e, posteriormente, por herança direta, deu sustentação
à religião cristã.
Mas os pactos de aliança estão
documentados arqueologicamente desde épocas anteriores,
que datam do III milênio a.C. No que se refere à
aliança dos hebreus com seu Deus, trata-se de uma flagrante
imitação dos tratados de vassalagem hititas, dos
quais foram conservados até hoje diversos exemplares. Tanto
em Êxodo, como em Josué, e também no Deuteronômio,
encontramos diversos elementos deste mesmo esquema: as obras de
YHWH, suas exigências, a ordem de ler o “Livro da
Aliança”, a invocação a testemunhas,
as maldições, as bendições, etc. Deus
fica assim definido frente a Israel como o imperador Hitita frente
a seus vassalos. Resulta portanto estranho que Deus todo poderoso
não fosse capaz de redigir um texto de pacto diferente
dos tratados de vassalagem de uso tão antigo como foram
os dos hititas.
Tal como o deus semítico Baal, descrito
nos documentos da cultura urbana de Ugarit ( século XIV
a.C ) Jeová “aplaca o furor dos mares e o estrépito
das ondas...Com grandes rios e abundantes águas prepara
o seu trigo...” ( Salmos 64,8-10 ), pelo que é evidente
que para os israelitas Jeová é o verdadeiro Baal
(termo usado inicialmente para o seu verdadeiro Deus) e,ao mesmo
tempo, o verdadeiro deus El, manifestação de poder
supremo que criou o universo e os homens e assegura o equilíbrio
das forças cósmicas. O deus El havia sido a divindade
principal da região na qual se assentou o povo de Israel,
sobretudo dos cananeus.
Israel se viu obrigada a afirmar desde logo a existência
de um único deus. O principio da unidade divina aparece
como tradução ideológica de um sentimento
muito forte da unidade da nação. Trata-se na realidade
de um monoteísmo puramente prático, mas na verdade
de um henoteísmo (crença em vários deuses
com um superior aos demais), dado que não punha em questão
a existência de outros deuses, senão que o sentimento
nacional exigia que YHWH fosse concebido como o mais poderoso
dos deuses. A cultura israelita impunha ao povo esta concepção
nacionalista da divindade que não poderia admitir o dualismo:
Jeová é o princípio tanto do bem como do
mal que cai sobre o mundo e sobre a vida, mas está animado
pela lealdade à aliança com o povo eleito e que
o elegeu.
Desse modo, seguindo fórmulas empregadas
pelos escribas mesopotâmicos para referir-se a seus reis,
os escritores bíblicos também apresentaram o rei
Davi como um protegido de Jeová e filho de Deus, como está
em Salmos 2.7-8: “Tu és meu Filho, hoje eu te gerei.Pede-me
e dar-te-ei, como herança, as nações, e como
domínio, os confins da terra”. Assim, se empregou
o nome de Deus como escusa para impor, por golpe, o princípio
da monarquia hereditária ( muito alheia à tradição
dos hebreus ) e se implantou o regime teocrático para o
futuro de Israel.
A forma atual dos livros históricos e
legislativos da Bíblia tem pouco ou nada a ver com os documentos
originais em que se basearam ou – e aqui se aplica o termo
exato – se inspiraram, já que são resultado
da amálgama de diferentes coleções documentais
e tradições orais que foram postas por escrito e,
freqüentemente, reescritas, reinterpretadas, e ampliadas
em épocas distintas e por pessoas ou escolas diferentes.
No que concerne à criação
do homem, o Antigo Testamento menciona que em virtude de um “sopro
vital” Adão foi criado como ser animado vivente.
O Antigo Testamento não tem nenhuma doutrina formal relativa
ao destino reservado aos mortos. Tudo que se diz sobre este tema
pertence ao domínio do saber popular. O homem aparece “conversando”
com os animais e a ele se põe uma barreira que é
a árvore do conhecimento. Nada se diz sobre a imortalidade
da pessoa humana. Logo depois ( Gênesis 3.1-24 ) é
relatada a “queda” de Adão, que perde como
castigo sua imortalidade e se converte em presa da morte. Crassa
contradição! Em Gênesis 2.17 se ameaça
pois, ao homem com perder o que não possuía; ele
é intimidado com um destino de morte se comer da árvore
do bem e do mal, o que implicaria que foi criado imortal. Ora,
se era imortal, a escatologia do “ Sheol “ ( inferno,
no sentido de residência dos mortos, sem definir, segundo
os hebreus, se é lugar de castigo ou não ) cai por
terra. Segundo esta teologia, a constituição da
natureza humana nada continha no sentido se significar que pudesse
sobreviver à dissolução da morte: “porque
és pó e ao pó retornarás” (Gênesis
3.19 ). Em conclusão ao mito (Gênesis 3.22-24), no
que parece ser uma interpolação, Deus toma a precaução
de impedir que Adão coma da árvore da vida e se
torne imortal. Como se vê, as inconseqüências
se sucedem: o homem não é imortal, mas é
ameaçado com a morte se come da árvore do conhecimento;
é mortal, mas Deus o castiga com a perda da imortalidade
( ? ) Ainda depois do castigo, o homem poderia recuperar uma imortalidade
que nunca possuiu mediante o expediente de comer da árvore
da vida! Como, de um mito tão contraditório, pode
nascer nada menos que a legitimação da noção
de culpa que está na própria base da história
bíblica da redenção, da História Sagrada?
Daí emerge o problema do mal, que por
caprichosa transmissão, se estende a toda a espécie
humana sob a forma de pecado original. Se Adão e Eva desobedeceram
a Deus livremente, haveria que supor que já conheciam a
essência do bem e do mal, pois não pode haver livre
arbítrio sem prévio conhecimento. Se não
conheciam – de acordo com a hipótese – a essência
do bem e do mal, então não haveria pecado. Se conheciam,
a hipótese do tabu, da proibição se desmorona
sem remédio, pois nem ante Deus pode haver moralmente castigo
sem imputabilidade. Os atos do homem lhe são imputáveis
– tanto se obedece ou desobedece a quem quer que seja –
só se são fundados em seu livre arbítrio.
E o exercício do livre arbítrio implica em prévio
conhecimento da natureza moral do objeto. Teria o Deus dos hebreus
colocado más inclinações no primeiro casal
humano?
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os cultos mistéricos
João Laurindo de Souza Netto
Os estudiosos mais objetivos da história do cristianismo,
isto é, aqueles que puderam manter-se alheios às
determinações das supostas verdades inquestionáveis,
emanadas da cúpula da Igreja Católica, concordam
em que a sua doutrina desenvolveu-se, originariamente, não
diretamente de Jesus, que não fundou Igreja alguma, mas
sim de seus seguidores, particularmente de Paulo de Tarso. Com
Jesus, o objetivo era de devolver ao povo judeu a esperança
de libertação e de salvação que praticamente
havia sido perdida. Naquele tempo, a vida religiosa em Israel
estava convertida em um absurdo conjunto de ritos obrigações,
contraídas com um Deus que pouco oferecia a troco da devota
esperança que Lhe dedicavam seus crentes. Por um lado,
o povo era dominado pelos romanos; por outro, pela classe sacerdotal,
composta majoritariamente por fariseus e membros da tribo de Levi,
que representavam oficialmente Jeová e proclamavam atuar
sempre em seu nome.
Jesus representou para seus discípulos
o Messias anunciado pelos profetas, aquele que haveria de restaurar
o Reino de Israel, libertando-o de seus opressores. Contudo, a
morte no Gólgota anulou as idéias de poder, triunfo
temporal e aniquilamento dos romanos. Restou, para os seguidores
mais próximos, a mensagem de que teria vindo para restabelecer
a perdida relação sagrada de Deus com suas criaturas.
Mas esse era precisamente o aspecto da doutrina cristã
que a classe sacerdotal hebréia nunca haveria de aceitar.
Também havia rejeitado, quase cem anos antes da vinda de
Jesus, a doutrina similar pregada pelo Mestre de Justiça
dos Essênios, que viviam, isolados do mundo, sua experiência
coletiva ante a numinosidade, nos penhascos arenosos de Qumram.
Mal conhecidos, ainda que citados por escritores
judeus_ Filon de Alexandria e Flávio Josefo _ como também,
depois, por exegetas cristãos, os essênios viviam
agrupados em pequenas colônias de tipo monástico,
em torno das margens desérticas do Mar Morto, longe das
tribulações do restante do povo hebreu. Flávio
Josefo citou os essênios como “escola filosófica”,
porém eram mais conhecidos como “piedosos”.
Regidos por regras estritas, viviam intensamente uma existência
marcada pela espiritualidade, sem tomar parte ativa nem na política
nem na religião oficial, apartados totalmente de sua ditadura.
Praticavam uma doutrina salvífica que, discretamente, tratavam
de transmitir ao povo através de missionários e
predicadores, entre os quais muitos incluíram João
Batista. Há, inclusive, a hipótese, levantada não
sem muitos argumentos coerentes, de que o próprio Jesus
teria passado com eles alguns anos, antes de iniciar sua vida
pública.
Também se aponta que a substituição
do rito judaico da circuncisão pelo batismo por água
foi uma das modalidades de procedência essênia, adotada
pelo cristianismo recém- constituído. Os essênios
se vestiam de branco, alimentavam-se com o estritamente necessário,
renunciaram ao sacrifício de animais e praticavam a pureza
como mandamento principal, sendo o matrimônio, que só
era permitido a alguns escolhidos, destinado exclusivamente à
perpetuação da comunidade. Cumpriam dois mandamentos
essenciais: o batismo e a ceia; condenavam a dedicação
ao comércio e a maior parte deles dedicava-se exclusivamente
à agricultura.
Resulta muito significativa a semelhança entre o Mestre
de Justiça dos Essênios _ que foi identificado por
muitos como o Messias_ e a figura de Jesus Cristo,a quem chamavam
também de Mestre, denominação que sempre
lhe foi negada pelos judeus ortodoxos. Coloca-se também
uma questão de identidade, só resolvida com a aberta
oposição da Igreja Católica, de adjudicar
a Jesus uma personalidade fundamentalmente política e revolucionária,
ligada ao movimento dos zelotes, que tentaram liberar o povo de
Israel do jugo da ocupação romana e restaurar a
dinastia da Casa de Davi.
A prisão, julgamento e morte de Jesus
por parte dos romanos permite assegurar que estes o atacaram com
crueldade, não por suas idéias religiosas, que importavam
pouco a um Império saturado de doutrinas forâneas,
mas pelas ameaças que elas podiam representar para a segurança
do próprio Império. O fato de que o cristianismo
tenha convertido os hebreus em causantes diretos daquela morte,
eludindo sua ação de incentivadores dela e colaboradores
dos romanos, é parte do anti-judaísmo que caracterizou
a separação das doutrinas cristã e judaica.
Contudo, a Bíblia continuou sendo, como
Antigo Testamento, o livro sagrado do cristianismo. Esta atitude
da Igreja, em seus primeiros tempos deveu-se ao fato de que poderia
aspirar maiores vantagens materiais da Roma Imperial do que do
povo do qual procediam seus líderes, um povo vencido e
condenado a uma diáspora que o faria espalhar-se por todo
o mundo conhecido. A instauração do cristianismo,
como doutrina, constituiu, além de uma magna operação
de caráter religioso e espiritual, uma grande manobra de
assalto, capaz de proporcionar à Igreja o poder absoluto
que tem perseguido, e sem dúvida alcançado, ao longo
dos seus dois mil anos de presença ativa no mundo ocidental,
num processo permanente, embora às vezes doloroso, de manutenção
do poder.
Se analisarmos em profundidade as circunstâncias
que envolveram o estabelecimento da doutrina cristã e seus
dogmas, nos daremos conta de que o Cristo do evangelho_ ou seja,
o Jesus reinterpretado por Paulo de Tarso e seus seguidores_ foi
em boa parte inspirado pelos essênios, como se pode constatar
através dos rolos do Mar Morto. E Garcia Martinez, em sua
obra “Textos de Qumram”, afirma que a doutrina dos
essênios, por sua vez, tinha muito a ver com o talante manifestado
pelos seguidores de diversos cultos mistéricos , que haviam
se expandido, desde a antiguidade, por todo o mundo mediterrâneo.
Esses cultos surgiram e se desenvolveram, em
grande medida, como reação à religião
olímpica greco-romana, segundo a qual os deuses míticos
se limitavam a velar sobre a humanidade, não pela humanidade.
Embora oficializada pelo Império Romano, a religião
olímpica não concedia aos seus seguidores nenhuma
esperança de supervivência, quer fosse de vida perdurável,
além da morte, quer de reencarnação em outra
vida.
As formas religiosas emergentes dos cultos mistéricos,
recuperando rituais simbólicos tradicionais, muito mais
acordes com os ciclos vitais da natureza, nunca consideraram o
ser humano como dono absoluto do espaço sagrado. Pelo contrário,
fazendo surgir suas divindades de uma íntima relação
com o ser vivente, tratavam de evidenciar as raízes do
numinoso nos fenômenos naturais. Divinizavam, assim, o comportamento
das estações, a alternação da vida
e da morte em tudo o que palpita no universo e o exemplo que oferece
a existência cotidiana, regida pelo mistério da geração,
de que é protagonista principal o lado feminino de tudo
que existe.
Diferentemente do Deus essencialmente masculino
de Israel, que não se lembrou da mulher senão ao
dar-se conta _ tarde, por certo _ de que, ao criar o homem, havia
esquecido da máquina de parir que garantiria a continuidade
da espécie, os fiéis cultos mistéricos adoravam
a divindade feminina, tanto como a causa da Criação
como a segurança da imortalidade. Efetivamente, todas as
representações das Grandes Mães, redentoras
da humanidade, Cibeles ou Réia, Ísis ou Deméter,
Anaíta ou Ártemis, eram efetivadas através
de um personagem divino, fundamentalmente salvador (soter).
A intenção de Paulo de Tarso de
evangelizar aqueles coletivos pagãos, cujas bases doutrinais
procediam de tradições opostas ao judaísmo,
fez com que o trabalho de ordenação da nova crença
cristã procurasse pontos de contacto com os cultos pagãos
que se propunha a substituir. Dessa forma, a oferta salvífica
do Deus único de Israel não deveria romper, de forma
demasiadamente violenta, determinados apoios sagrados que o paganismo
mais espiritualizado tinha firmemente arraigado em sua consciência.
Assim, o cristianismo, nascente pelas mãos
de Paulo, potenciou sua história sagrada fazendo com que
tanto o hipotético nascimento de mãe virgem, como
a paixão, morte e ressurreição do Salvador,
coincidissem como percurso simbólico dos distintos “salvadores”
das religiões mistéricas: Osires, Dionísio,
Mitra, Adônis e Átis. Todos eles apresentavam conjunturas
míticas coincidentes: nascimento prodigioso, morte cruel
e sobrenatural ressurreição.
O fato de que no Salvador cristão concorressem
idênticas circunstâncias, garantidas ademais pela
prova evangélica, apoiava a suposta base sobrenatural da
crença pagã e facilitava a conversão para
o cristianismo, sem que esta significasse uma ruptura radical
com as convicções anteriores. Vejamos alguns traços
das divindades pagãs:
Cibeles
“Deusa da Ásia Menor; identificada pelos gregos como
Réia, mãe de |Zeus. Era uma personificação
das forças naturais, a deusa da Terra, da Agricultura,
das Minas e das Florestas. Era representada sendo escoltada por
coribantes (sacerdotes frígios que nas festas de Cibeles
dançavam emitindo gritos estridentes), por leões
e por outras feras. Tinha grande número de santuários
por toda a parte da Ásia Menor. A partir do século
V a.C. o culto de Cibeles espalhou-se por toda a Grécia
Continental, onde ficou conhecida como Réia, mãe
dos deuses. Seu culto foi introduzido em Roma por volta de 204
a.C.”
Ísis
“Na mitologia egípcia, deusa da maternidade. Irmã
e esposa de Osíris e mãe de Hórus. Os egípcios
acreditavam que as inundações dos campos do Nilo
eram resultado das lágrimas de Ísis, que chorava
o esposo morto, a quem ressuscitou. O centro de seu culto era
Buto, onde segundo a tradição, concebeu sozinha
e deu à luz seu filho Hórus. Os gregos transformaram-na
numa expressão do pensamento helênico, identificando-a
com Demeter. Em seu caráter de deusa-mãe, tornou-se
uma das grandes divindades do mundo grego. Seu culto, combinado
com o de Hórus, tornou-se a religião principal do
Império Romano em sua fase final. Era representada por
uma mulher com o filho, Hórus, ao colo.”
Anaíta
“Divindade dos cultos politeístas da Caldéia,
simbolizava a fecundidade da terra e da vida animal. Entrou nas
crenças dos Medas e dos Persas; aparce, principalmente
no Avesta, livro sagrado do masdeísmo pregado por Zoroastro.
Os gregos identificaram esta divindade com Ártemis."
Quanto ao personagem salvador, o exemplo mais
importante é o de Mitra, divindade principal dos arianos.
Quando estes partiram de sua região de origem, os ramos
dividiram-se em indianos e iranianos, tendo o deus continuado
a ser venerado em ambas as regiões. Na Índia, no
entanto, foi associado a Varuna e acabou por ser esquecido. Na
Pérsia, com a reforma de Zoroastro, passou a ocupar um
lugar intermediário entre Ahura-Mazda, divindade do bem
e Arimã, deus do mal. Seu seguidores não lhe adjudicaram,
então, a categoria de Deus, mas a de “salvador”,
encarregado pela Divindade Suprema de cuidar dos humanos e ajudá-los
em sua viagem à glória reservada aos justos.
Mitra simbolizou o Sol, sendo considerado o proclamador
da verdade. Seu culto, iniciado em grutas, chegou a ser exercido
em templos suntuosos. Nos séculos I e II, o mitraísmo
foi levado para Roma onde sua difusão coincidiu com a do
cristianismo. As duas religiões tinham em comum o dilúvio,
a lenda dos pastores com presentes, a confissão e a comunhão,
a concepção de céu e inferno e a ressurreição
da carne. No entanto, apesar de sucessivas perseguições,
o cristianismo, graças à proteção
de Constantino, acabou sobrepujando o mitraísmo.
Mitra, no panteão naturalista era ligado
à Grande Mãe Anaíta. De sua doutrina emanaram
alguns textos, dos quais, um deles, conhecido como “Oráculo
de Hystaspe”, merece destaque pela semelhança que
viria a ter com ele, posteriormente, um fragmento importante da
doutrina cristã:
“Escuta, porque vou revelar o maravilhoso mistério
do Grande Rei que deve vir reger o Mundo. Quando os tempos se
cumprirem, no instante da dissolução que deve por
fim ao tempo, um menino será concebido e formado completamente
no seio de uma virgem, sem que varão algum se tenha acercado
dela”.
Segundo a pregação de Zoroastro,
Mitra se tornara um personagem adotado pela Divindade. Era um
intermediário junto aos humanos para propiciar-lhes o acesso
a um céu situado mais além no tempo e no espaço.
Ainda que carecendo de uma história de sacrifícios
como a de Átis, tinha muitos pontos de contato com a doutrina
cristológica que seria exaltada posteriormente pela Igreja.
Átis era uma divindade frigia masculina.
Morrendo e ressuscitando, simbolizava a morte da vegetação
no inverno e sua revivescência na primavera. Era ligado
à Grande Mãe Cibeles, desempenhando junto a ela
papel análogo ao de Adônis junto a Afrodite, que
foi identificada pelos romanos como Vênus.
Os ritos de iniciação ao culto
de Mitra eram realizados para poucos, não mais do que uma
centena. A ceia era constituída de pão e água
e supunha a participação dos eleitos em uma eucaristia
sagrada que os identificava com a numinosidade. Muitos dos templos
dedicados a Mitra ainda existem, convertidos em criptas de igrejas
consagradas ao culto cristão. Os adeptos dos mistérios
de Mitra tratavam-se mutuamente de “frates”, e a iniciação
era considerada como um autêntico sacramento, que vinculava
a todos em uma espécie de compromisso transcendental. Por
isso, diferentemente de outras religiões mistéricas,
que tendiam à proclamação da liberdade de
seus correligionários e abriam suas portas de par em par
a quem quisesse integrar-se em sua doutrina, o mitraísmo
não foi nunca uma crença acessível a todo
aquele que solicitasse. Pelo contrário, era exigido do
postulante que assumisse compromissos expressos.
Partindo do conhecimento que hoje se tem do mitraísmo,
baseado quase totalmente na iconografia e nos relatos dos historiadores,
cabe ver neste culto uma religião que havia estabelecido
forte barreira, quase intransponível, entre dois tipos
de fiéis: por um lado, uma grande maioria de crentes sujeitos
à fé salvífica; por outro, a estrita minoria
de adeptos que, pelo fato de haver ascendido aos mistérios,
podia exercer sua autoridade sobre a massa de fiéis e,
inclusive, erigir-se em intermediários do personagem que
representava a figura do salvador. A extrema coincidência
com o catolicismo é evidente.
Os mistérios de Mitra despertaram, em
seu tempo, admiração pela sua coesão ideológica
e pela influência que exerciam entre seus membros, ligados
por uma convicção e por um fanatismo que lhes conferia
poder e inspirava temor naqueles que se encontravam alheios ao
seu círculo de fidelidade. Essa foi a razão que
incrementou a importância do culto mitríaco. Foi
também o motivo que permitiu à Igreja Católica,
ao apropriar-se dessa doutrina, elevar-se a uma altura considerável,
até conformar o centro de poder mais importante da Europa
e do mundo mediterrâneo naquela época, e, depois,
espalhar-se pelo mundo inteiro.
Também de modo paralelo, a tradição
das “Trimurti”, tríade hindu que manifesta
as funções cósmicas da Grande Mãe
como representada por Brahma, Vixenu e Shiva, determinou, na incipiente
estrutura teológica cristã, a introdução,
logo cuidadosamente dogmatizada, das três pessoas da Santíssima
Trindade. Na Trimurti original, Brahma é o equilíbrio
entre os princípios opostos de preservação
e destruição, simbolizados por Vixenu e Shiva, respectivamente.
Como a tradição judia supunha sempre um Jeová
essencialmente masculino, a figura feminina foi desconsidera,
aparecendo, no entanto, um “espírito” Santo.
Finalmente, havia que resolver a questão
reservada em outras religiões por uma autêntica multidão
de deuses menores, aos quais adjudicavam-se funções
delegadas pelas grandes deiades. Assim, surgiram, na doutrina
eclesiástica, as distintas categorias de anjos e demônios,
que, na tradição do Antigo testamento, aparecem
como enviados de Jeová para comunicar aos humanos os Seus
desígnios. Os primeiros são classificados em três
hierarquias: serafins e querubins; virtudes e potestades; arcanjos
e anjos. Os segundos, tendo Satanás como cabeça,
surgem a partir de uma hipotética rebelião Angélica
que havia tentado, antes mesmo da Criação, usurpar
os infinitos poderes do Altíssimo.
Uma vez estruturada a doutrina cristã,
firmemente estabelecidas suas instituições, consolidada
sua hierarquia graças à experiência adquirida
por seus líderes na relação com a sociedade
romana, aquele firme propósito de poder absoluto, que nasceu
com Paulo, converteu-se em uma perspectiva que ultrapassou os
limites do sonho original. Durante os últimos vinte séculos,
através de um autêntico mandato espiritual, a Igreja
tem imposto seus dogmas sobre uma enorme massa de fiéis,
que vê na autoridade de Roma o único caminho para
a salvação da alma e, muitas vezes, para a preservação
da vida mesma.
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os cultos helenísticos
João Laurindo de Souza Netto
As conquistas de Alexandre Magno, da Macedônia,
que determinaram a formação de um imenso império
supranacional partindo do modelo persa, trouxeram conseqüências
desestabilizadoras para os povos que habitavam as regiões
do Mediterrâneo. A política adotada por Alexandre
ante os povos conquistados consistiu em apresentar-se como continuador
do soberano vencido. Na Pérsia, adotou os costumes locais,
outorgou à monarquia um caráter sagrado e estabeleceu
que à pessoa do imperador seriam tributadas honras divinas.
No ano 324 a.C., proclamou sua própria divindade e decretou
que lhe fosse prestado culto. Pouco depois da campanha persa,
no Egito, Alexandre foi declarado filho de Amon (Zeus na interpretação
grega). Este fato constituiria a premissa do culto ao rei e da
soberania universal.
Após a morte de Alexandre, seu império
se viu submetido a fortes tensões, provocadas pelos generais
que aspiravam a sucedê-lo. As forças centrífugas
geradas pela sucessão deram lugar a que fossem criados
três reinos: o da Macedônia, com os descendentes de
Antígono; o da Síria, com os de Seleuco; e o do
Egito, com os de Ptolomeu. Até à consolidação
de Roma, foi o Egito o centro propulsor da vida cultural daquela
época. Finalmente, Roma, após ter derrotado Cartago,
recomporia a unidade universal ambicionada por Alexandre.
Neste período, a história grega
se converte, progressivamente, na história de todos os
que falavam e pensavam em grego, independentemente de sua origem.
O grego se transformou, assim, na língua vernácula,
falada em toda a área do Mediterrâneo, sinal de distinção
cultural, de que se apropriariam os povos que tinham contato com
os gregos. No Egito, o grego parecia haver substituído
a língua local, sobretudo entre as classes cultas.
O mundo cerrado das cidades gregas, microcosmos
organizados onde o homem se sentia seguro, protegido, desaparece
totalmente ao instaurar-se o império universal. Os novos
horizontes, abertos pelas conquistas de Alexandre, trazem uma
visão cosmopolita do mundo, mas, ao mesmo tempo, produzem
uma sensação de isolamento e de extravio. O homem
já não é o artífice de seu próprio
destino; está à mercê da Tyche (Sorte), Ananke
(Necessidade) ou do Heimarmene (Destino). A sensação
de extravio inclina-o para formas de pensamento que, sob a aparência
de racionalismo, ocultam fortes tendências dogmáticas.
Ao mesmo tempo, as religiões tradicionais experimentam
impulsos universalistas, enquanto se reclama uma proximidade maior
dos deuses, que garanta aos homens a “salvação”.
Um deus deve ser antes de tudo um “Soter”, Salvador.
Seguindo a tendência destes impulsos, no
mundo helenístico-romano se difundem os cultos mistéricos,
junto com a astrologia e as práticas mágicas.
No Egito, Ptolomeu I e seus descendentes seguem uma política
de helenização dos povos submetidos a seu domínio.
A famosa tradução da Bíblia a o grego, conhecida
como versão dos Setenta, porque, segundo a tradição,
foi confiada a setenta sábios a mando de Ptolomeu II, também
conhecido como Ptolomeu Filadelfo, em 283 a.C., provavelmente
é fruto desse processo de helenização. A
tradução da Bíblia formava parte do projeto
dos Ptolomeus, um projeto que procuraram realizar de forma mais
ou menos sistemática entre os egípcios, cujo uso
do grego nas práticas religiosas foi apresentado como uma
concessão feita aos gregos que abraçaram os cultos
egípcios.
O processo de helenização se produz
através de um fenômeno convencionalmente denominado
sincretismo, tanto religioso quanto cultural. No Egito ptolomaico
este processo dá lugar a um deus como Serápis, que
reúne as características de divindades gregas e
egípcias como Hades, Zeus, Hélios e Osíris,
em uma síntese que aspira a reproduzir em plano divino
o papel assumido pelo soberano na terra. Na prática do
culto, isto dá como resultado uma helenização
dos próprios cultos, que se tornam domésticos, como
no caso dos deuses egípcios, antropomorfizados e despojados
de seu zoomorfismo, característica que maior resistência
encontrava nos gregos. Por outro lado, os cultos gregos experimentam
profundas transformações, impensáveis para
a religião tradicional.
Do ponto de vista histórico, o sincretismo
é um fenômeno de transculturização,
que conduz a uma integração das diversas civilizações
reunidas primeiro por Alexandre e depois por Roma, do qual nascem
produtos culturais completamente renovados, fruto de uma nova
interpretação das distintas tradições.
O mundo da Antiguidade, de vocação politeísta,
foi um mundo de tolerância religiosa, diferentemente do
cristianismo que estava por vir.
A época helenística foi dominada
por quatro correntes filosóficas principais:
• os epicuristas, que elaboraram uma teoria materialista
do universo e adotaram uma postura anti-religiosa, sem negar,
no entanto, os deuses;
• os céticos, que rejeitavam toda a divindade do
mundo e negavam a Providência;
• os cínicos, contrários a qualquer tipo de
especulação, para os quais o ideal da sabedoria
coincidia com uma vida em acordo com a natureza, opondo-se aos
costumes e à tradição, a ponto de negar os
deuses;
• os estóicos, que fizeram uma doutrina para indicar
ao homem como alcançar o “bem”. O estoicismo
propunha uma concepção monística da divindade,
que teria no Logos, Razão, o princípio concreto,
ordenador do universo: não negava os deuses do politeísmo,
mas reduzia-os a divindades que contribuíam para realizar
o ideal da ataraxia ou imperturbabilidade frente à dor
ou ao sofrimento.
Nos dois primeiros séculos da era cristã
se produz uma recuperação do platonismo, que desembocará,
no século II d. C. no neoplatonismo de Plotino. Esta doutrina,
limitada sempre a um círculo intelectual de elite e marcada
por um notável esoterismo _ que impediu a sua difusão_
contribuiu de forma decisiva para a transformação
dos princípios ideológicos e religiosos sobre os
quais se havia baseado o mundo antigo. Não obstante, o
neoplatonismo foi um baluarte contra o cristianismo, que o combateu
acirradamente. Os discípulos de Plotino não renunciaram
às práticas mágicas e teúrgicas.
De outra parte, “endeusar-se”, isto
é, converte-se também em deus, era o objetivo do
hermetismo, um movimento igualmente esotérico, que convidava
o homem a livrar-se do corpo e atravessar as esferas celestes
para conseguir a salvação. O hermetismo, de tradição
egípcia, apresentava influências estóicas,
neoplatônicas e gnósticas. Considerado à princípio
com admiração por alguns cristãos, foi mais
tarde duram,ente combatido por Agostinho, muito embora tenha exercido
influência me sua obra. A teologia cristã posterior,
durante a Idade Média, seguiu, sobretudo, uma linha de
influência aristotélica, mas diversos pensadores
da época foram influenciados pelas concepções
platônicas e neoplatônicas. Era inevitável
o conflito com o cristianismo, pois o hermetismo propunha “instrumentos”
de natureza mágica-teúrgica para exercer um controle
sobre os deuses, não negados, mas subordinados a uma divindade
suprema, o Nous, a razão divina adotada pelo neoplatonismo
como a primeira emanação de Deus, do qual procedia
o Logos, ordenador do mundo. A teurgia era considerada em dois
níveis: a inferior, constituída pelos usos mágicos,
adivinhações, sortilégios, etc e a superior
cultivada pelos teólgos. Nesta segunda forma, apareceu
no oriente e culminou na época da Filosofia greco-oriental.
Pode-se dizer que a teurgia constitui a fase pela qual passaram
os mais diversos povos, sendo a sua superação uma
das formas de desenvolvimento da civilização. Há
quem admita certas formas de teurgia mesmo nas condições
de vida moderna.
O proselitismo de Paulo de Tarso, ao pregar o
cristianismo nas regiões orientais, instaurou, para fazer
adeptos, intolerância e coação religiosa,
registrada pelo história universal, diferentemente da tolerância
politeísta. De certa forma, pode-se dizer que a ação
do cristianismo foi subjugar aquelas antigas tradições.
Na teologia de Paulo, o substrato básico do mito do pecado
original vai se fundir com a antropologia específica na
qual o conceito grego “sarx” (carne), intimamente
ligado à lenda da queda de Adão, funciona como nos
mitos gnósticos. Trata-se de uma categoria antropológica
básica da misteriologia cristã-helenística
forjada por Paulo, e essencial para compreender a dinâmica
sincretista dos sacramentos eclesiásticos.
Segundo Paulo, o Filho de Deus, um ser celeste,
pneumático (espiritual), porém encarnado, preexistente,
de natureza divina, enviado pelo Pai para operar expiatoriamente
a salvação escatológica, não poderia
ser um simples ser humano nascido na Galiléia e condenado
por sedição. Este mito sincrético, constituído
por categorias judaicas e conceitos helênicos, forma o núcleo
da dogmática de Paulo. Com anterioridade de um par de décadas
à redação dos Sinópticos, Paulo constrói
sua teologia em imediata e estreita vinculação coma
idéia de um ser que se sacrifica como “soter”,
Salvador, para expiar os pecados da humanidade, resgatá-la
para Deus e reconciliar com ele toda a criação.
As comunidades cristãs influenciadas pelo
helenismo, moviam-se em uma atmosfera intelectual receptiva ao
pensamento grego, sobretudo em seus conteúdos favoráveis
às formas monoteístas. O termo “soter”
aparece no relato evangélico de Lucas (2.11) e no Atos
dos Apóstolos (5.31 e 13.23). Em Paulo, aparece em Filipenses
(3.20), onde procura adaptar a tradição escatológica
do cristianismo primitivo à idéia helenística
de uma visão cristã como já vivida no mundo
celeste imaterial.
A identificação feita por Paulo
_ amplificada e levada em outro contexto à sua expressão
clássica no quarto Evangelho _ de Jesus com o Logos-Sabedoria
divina, lança suas raízes no simbolismo alegórico
do judaísmo helenístico, que no período pós-pascoal
havia adquirido já caráter convencional tanto nas
escolas rabínicas como em individualidades como Filon de
Alexandria. Porém o fato de transferir a Jesus, ser humano,
as especulações sobre o Deus inefável dos
ambientes judaico-helenísticos é uma façanha
que se deve adjudicar às comunidades cristãs mais
helenizadas e adeptas do proselitismo de Paulo. No processo de
converter Jesus em “soter”, enviado pela divindade
e participando dos atributos desta, e , “logos” criador
por quem se efetuam e em quem se resumem todas as coisas, transmuta-se
um personagem da história hebréia, vítima
mortal dos avatares de seu tempo, em um ser divino.
O trecho considerado clássico da literatura
paulina, onde se faz o giro neotestamentário, além
das referências sinópticas, está em Filipenses
2.5-11, onde se apresenta a estranha idéia de um Jesus
consubstancial com o Deus Pai, de natureza idêntica a este:
“E haja entre vós o mesmo sentimento que houve também
em Jesus Cristo. O qual tendo a natureza de Deus, não julgou
que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus:
mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo,
fazendo-se semelhante aos homens e sendo reconhecido na condição
de homem. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à
morte, e morte de cruz. Pelo que Deus também o exaltou,
que é sobre todo o nome: para que ao nome de Jesus se dobre
todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e
nos infernos. E toda a língua confesse que o Senhor Jesus
Cristo está na glória de Deus Pai”.
A primeira oração do versículo
“tendo a natureza de Deus” procederia de comunidade
de orientação helenística, enquanto que a
segunda “não julgou que fosse nele usurpação
o ser igual a Deus” refletiria a mentalidade judaica da
Igreja da Palestina. Paulo, pois, apresentou uma cristologia ambígua,
mediante um artifício literário que evitasse a extensão
de sua hostilidade com os de Jerusalém sobre a questão
da divindade de Jesus.
Ao tratar do Deus encarnado, Bulmann, em Theology
of New Testament, diz textualmente:
“A figura de um filho de Deus era familiar para os modos
helenísticos de pensar, familiar segundo algumas variações.
Uma dentre elas foi uma herança da tradição
grega, que aplicava a idéia mitológica de ser engendrado
por um deus a homens que pareciam, por seus feitos heróicos,
por suas façanhas mentais ou por suas ações
benéficas à humanidade, transcender as proporções
humanas ordinárias. O período helenístico
conhece toda uma série de tais “homens divinos”,
que pretendiam ser filhos de um deus ou eram vistos como tais...
Outra variação era a concepção da
filiação divina que foi comum no helenismo oriental
como uma herança da mitologia oriental antiga: os filhos
de divindades eram adorados nos cultos mistéricos ou “mistérios”.
Seus mitos relatavam que haviam sofrido o destino humano da morte,
porém haviam ressuscitado. Mas, de acordo com a crença
de seus adoradores, o destino destas divindades estabelece uma
salvação que é concedida àqueles que
experimentam com a divindade sua morte e ressurreição
nos ritos dos mistérios”.
Se a divinização de Jesus foi um
processo iniciado no seio das comunidades cristãs helenísticas,
a elaboração teológica de Paulo teria imposto
o peso de sua densidade doutrinal nessa direção,
de tal modo que quando os evangelhos sinópticos forma compostos,
a natureza deiforme de Jesus já havia sido afirmada avassaladoramente.
A descrição da morte de Cristo, segundo Paulo, é
feita em analogia com a morte de uma divindade das religiões
mistéricas. Os efeitos expiatórios da morte de Cristo,
nesta concepção, conferem aos homens um sentido
novo e original que consiste na participação no
destino da divindade mistérica, através do batismo
e da comunhão sacramental, e outorga ao iniciado a participação
no morrer e posterior reviver da divindade. Tal participação
ao conduzi-lo à morte, ao mesmo tempo liberta-o da morte.
O notável é que Paulo só pode aludir a idéia
da culpa solidária e hereditária de todos os homens,
ainda que individualmente inocentes, recorrendo ao mito pagão
que faz da morte e ressurreição do Nazareno “acontecimentos
cósmicos” que tiveram lugar uma vez no tempo pretérito
(ICor.4.7-12).
Em termos econômicos, sociais e políticos,
a mensagem de Paulo, que perpetua hoje a Igreja, é profundamente
alienante. A preocupação principal é sempre
a “sarx” (carne), e o âmbito do pecado inclui
toda a atração de ordem corporal. Reivindicar, por
qualquer meio, pacífico ou violento, direitos e liberdades,
fica excluído para Paulo. Clama em ICor.7.20-22, que:
“Cada um na vocação em que foi chamado nela
permaneça. Foste chamado sendo servo? Não te dê
cuidado: e se ainda podes ser livre aproveite melhor. Porque o
servo que foi chamado no Senhor, liberto é do Senhor: assim
mesmo o que foi chamado sendo livre, servo é de Cristo”.
Doutrina de total submissão e obediência
aos poderosos do mundo, que nenhuma teologia pode desvirtuar,
como souberam muito bem, durante séculos, as classes dominantes,
incluídos os hierarcas da Igreja. E, em Efésios
6.5:
”Servos, obedecei a vosso senhores temporais com temor e
tremor, na sinceridade de vosso coração como a Cristo”.
As referências aos “rebeldes”
ou “ revoltosos”, são sempre desqualificadoras.
O lema é sempre o mesmo “irmãos, persevere
cada um ante Deus na condição em que foi por Ele
chamado” (I Cor7.24).
A projeção destas máximas
sobre a vida pública leva Paulo a formular sua estremecedora
doutrina de obediência civil, que fez as delícias
de todas as potestades opressoras, como estabelece em Rom.13.1-7.
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nascer de mãe virgem
João Laurindo de Souza Netto
Todas as culturas manifestaram sempre um profundo horror à
esterilidade, quer fosse da natureza quer das mulheres, já
que suas precárias formas de existência _ dominadas
pelas guerras e enfermidades que dizimavam homens e rebanhos,
pelas calamidades da natureza que destruíam as colheitas
e, também, pelas insalubres condições de
vida que provocavam elevada mortalidade, sobretudo infantil _
lhes haviam feito associar indelevelmente reprodução
com sobrevivência.
Desde os primeiros florescimentos culturais do
paleolítico superior, esta crença levou a pensar
que a fecundidade era uma prova clara da amizade dos deuses e,
por isso, realizavam freqüentes sacrifícios aos deuses
geradores, os quais, em sua imaginação, teriam o
maior poder celestial. Esta é a razão pela qual
só foram achadas representações de divindades
femininas_ Grandes Mães e deusas da fertilidade, nos jazimentos
arqueológicos pertencentes ao período que oscila
entre 30.000 e 10.000 a.C.
Dada a evidente incapacidade dos homens para
parir e, portanto, para deter o controle da capacidade geradora,
a imagem da divindade foi exclusivamente feminina até cerca
de 3.500 a.C.; a partir daí, devido a um conjunto de mudanças
sócio-políticas e econômicas, a imagem do
Deus varão se apropriou da atribuição geradora
da deusa e relegou esta ao papel de mãe, esposa ou amante
do deus masculino para, finalmente, em uma última redefinição
do papel que representava, reduzi-la ao de deusa virgem. Este
processo, básico e complexo, permite entender melhor nossa
cultura atual.
O horror à esterilidade lançou
as culturas antigas ao processo de gerar mitos, crenças
e ritos, carregados com um pretenso poder de exorcizar tão
terrível castigo divino. Ao mesmo tempo, porém,
foram desenvolvidos costumes sexuais que poderiam ser tomados
como excessivos, inclusive para a mentalidade mais liberal da
atualidade. Este é o motivo porque no Antigo testamento
são abundantes as histórias sexuais truculentas.
Assim, Sara, estéril, lançou seu marido Abraão
aos braços da escrava egípcia Agar, Gen. 16.1-2:
“ Ora Sara, mulher de Abraão, não tinha filhos:
mas como tinha uma escrava egipciana, chamada Agar, disse a seu
marido: Bem vês que o Senhor me fez estéril, e que
eu não posso ter filhos. Toma pois a minha escrava, a ver
se ao menos por ela posso ter filhos”. Nacor, irmão
de Abraão, teve muitos filhos com sua concubina Roma, conforme
Gen. 22.24:
“ Uma concubina, chamada Roma, deu-lhe (a Nacor) também
estes outros quatro filhos: Tebéia, Gãao, Taás
e Maaca.”
As duas filhas de Lot embriagaram seu pai para ter filhos com
ele, conforme Gen.19.31-32:
“ Então disse a mais velha para a mais moça:
Nosso pai está velho, e na terra não ficou homem
algum com quem possamos casar, segundo o costume de todos os países.
Demos pois a beber vinho a nosso pai, e embebedemo-lo e durmamos
com ele para que ele nos dê filhos”.
Jacó se casou ao mesmo tempo com as irmãs Raquel
e Lia, que ao se revelarem estéreis, facilitaram a seu
marido suas escravas Bala e Zelfa para que gerasse filhos com
elas, Gen 30.1:
“ Ora Raquel vendo que era infecunda, teve inveja a sua
irmã, e disse a seu marido: Dá-me filhos senão
morrerei. Prosseguiu Raquel: Eu tenho minha criada Bala: toma
a ela, para que ela me dê filhos... Lia vendo que tinha
cessado de ter filhos, deu também a seu marido sua escrava
Zelfa, a qual concebeu e deu à luz um filho”.
Tamar se casou sucessivamente com os irmãos
Er e Onan, filhos de Judá, porém ao ficar viúva
sem ter descendência, temendo ser acusada de esterilidade,
disfarçou-se e teve assim dois filhos de seu sogro, Gen
38.14-18:
“ Tendo-se dito a Tamar que Judá seu sogro ia a Tanas
fazer tosquiar suas ovelhas: largou ela seus vestidos de viúva,
cobriu-se com um grande véu, e em traje disfarçado
se assentou numa encruzilhada do caminho que guia para Tanas:
porque achando-se Sela, filho de Judá, em idade de casar,
Judá não lho tinha dado por marido. Judá
tendo-a visto, imaginou que era alguma mulher de má vida...
Tendo-se pois ajuntado com Judá uma só vez, concebeu
dele a mulher”.
Elcana substituiu Ana, sua esposa, estéril, por Fenena,
ISam.1.2:
“ Houve um homem efrateu de Remataim Sofim do monte de Efraim,
cujo nome era Elcana, filho de Jeroboão, filho de Eliu,
filho de Tou, filho de Suf. E teve duas mulheres, uma por nome
de Ana, e outra por nome Fenena. E Fenena tinha filhos: Ana porém
não os tinha”.
Posteriormente, por ato divino, Ana deu à luz Samuel, I
Sam.1.19-20:
“ E Elcana conheceu a sua mulher Ana: e o Senhor se lembrou
dela. E sucedeu que passado o círculo dos dias, concebeu
Ana, e pariu um filho, a quem deu o nome de Samuel, porque o tinha
pedido ao Senhor”.
Com o desenvolvimentos dos cultos destinados
à veneração da fertilidade, surgiram, de
maneira natural, as lendas das intervenções divinas
reparadoras. Dado que para fazer parir uma mulher estéril
seria necessário que houvesse uma intermediação
divina direta, não se requereu demasiada imaginação
para considerar o primeiro filho de mulher estéril como
um eleito de Deus. O chamado “sinal divino” seria
dado através da “anunciação”,
em que um ser celestial, em sonhos ou diretamente, anunciava a
concepção milagrosa. Os relatos de anunciações
à mães de grandes personagens aparecem em todas
as culturas antigas do mundo.
Na China, são prototípicas as anunciações
das nascimentos de Fu-Hsi e de Chin-Nung. Fu-Hsi foi o primeiro
dos grandes imperadores lendários, denominado o “Adão
da China”. Teria outorgado a seu povo suas leis e os rituais
do matrimônio. Chin-Nung, segundo imperador dos tempos mitológicos,
foi o continuador da obra civilizadora de seu predecessor; figura
no panteão taoísta como patrono da Agricultura e
deus da Medicina.
No Japão, é relatada a anunciação
à mãe de Sotoktais; na Irlanda, à mãe
de Stanta (encarnação do deus Lug); na Índia,
à de Vixenu, cultuado como deus supremo, representando
a força restauradora e preservadora; no México,
à de Quetzalcoatl, um dos principais deuses astecas, considerado
o criador de toda a civilização mexicana, identificado
como Kukulkã, deus dos maias; na Grécia, à
de Apolônio de Tiana, considerado a encarnação
do deus Proteu, divindade do mar que tinha o poder de adivinhar
o futuro;na Pérsia, à de Zoroastro, reformador religioso
do masdeísmo, cujo nascimento e vida foram assinalados
por maravilhas; no Egito, às mães dos faraós,
sendo que no templo de Luxor pode-se ver a representação
de Thot, identificado pelos gregos como Hermes e pelos romanos
como Mercúrio, o mensageiro dos deuses, anunciado à
rainha Maud sua futura maternidade pela graça do deus supremo
Amon.
Como regra geral, nos relatos mais antigos, quando
o personagem anunciado era considerado de grandeza elevada, a
mãe era sempre fecundada pelo deus mediante algum procedimento
milagroso, confirmando assim o mito da concepção
virginal.
Este tipo de lendas pagãs de anunciação,
que poderia estender-se longamente, está também
presente na Bíblia, em vários relatos. Assim em
Juízes 13.2-5, é descrito o nascimento milagroso
de Sansão; em Lc.1.5-16, o de João Batista; em I
Sam.1.19-20, o de Samuel, filho de Ana, já mencionado anteriormente.
Culminaram com sua adaptação, bastante tardia, à
anunciação, pelo anjo Gabriel, do nascimento de
Jesus, Lc.1.26-33.
Como exemplo mais detalhado de uma lenda de anunciação,
pode-se citar a concepção do faraó Amenofis
III (1402-1364 a.C.), relatado nos hieróglifos tebanos:
o deus Thot anuncia à rainha virgem Mutemuia, esposa do
faraó Tutmés IV, que dará à luz um
filho, que será o futuro faraó Amenofis III; o deus
Knef (uma representação do deus Amon atuando como
força criadora, que teria sua equivalência posteriormente
no Espírito Santo cristão) e a deusa Hator (representação
da natureza e figura que presidia os processos de magia) colocam
na boca da rainha o sinal da vida, uma cruz, que dará vida
ao futuro menino. Este relato mítico egípcio, como
todos os seus demais equivalentes pagãos, é mais
ornamentado que o cristão, porém todo o essencial
é muito semelhante.
O expoente dos relatos escritos antigos que se
conhece é a lenda caldéia da concepção
do grande rei da Babilônia Gilgamesh (c.2650 a.C.), nascido
da filha virgem do rei Sakharos, encerrada por este em uma torre,
para evitar o oráculo ameaçador, porém fecundada
pelo deus supremo Shamash, que chegou a ela em forma de raios
de sol.
A mesma narração descreve o nascimento
do herói grego Perseu, nascido de Dânae, filha de
Acrísio, rei de Argos, que a encerrou em uma câmara
subterrânea de bronze para impossibilitar que se cumprisse
a profecia, então corrente, de que seria vinculada a Zeus.
Este deus, porém, tomando a forma de chuva dourada, desceu
por uma pequena abertura da prisão e fecundou a virgem.
O famoso fundador do império mongol Gengis
Khan foi, segundo a lenda, descendente de um dos três gêmeos
havidos pela virgem Alankav, grávida de trigêmeos
por um resplendor que percorreu todo o seu corpo. Todos os grandes
personagens, quer fossem reis, sábios _ como por exemplo
Pitágoras (570-490 a.C.) _ ou aqueles que se tornaram o
centro de uma grande religião e que acabaram sendo adorados
como “filhos de Deus”, Buda, Krishna, Confúcio,
Lao-Tsé, foram mitificados para a posteridade como filhos
de uma virgem. Jesus, que nasceu muito depois deles, ainda que
desempenhando um papel semelhante, não iria ser menos mitificado.
Dessa forma, budismo, hinduísmo, confucionismo, taoísmo,
e também o cristianismo, tornaram-se marcados pelo selo
indelével de haver sido resultado da obra de um “filho
do Céu”, encarnado através do acesso direto
e sobrenatural de Deus ao ventre de uma virgem especialmente apropriada
e escolhida.
A anunciação do nascimento de Jesus
é descrita em Lc.1.26-35:
“E estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus
o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré,
a uma virgem desposada com um varão que se chamava José,
da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando pois o
anjo onde ela estava, disse-lhe: Deus te salve, cheia de graça!
O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres.
Ela quando o ouviu, turbou-se do seu falar, e discorria pensativa
que saudação seria esta. Então o anjo lhe
disse: Não temas, Maria, pois achaste graça diante
de Deus. Eis conceberás no teu ventre, e darás à
luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será
grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor
Deus lhe dará o trono de seu pai Davi: e reinará
eternamente na casa de Jacó, e seu reino não terá
fim. E disse Maria ao anjo: Como se fará isso, pois eu
não conheço varão? E respondendo, o anjo
lhe disse: O espírito Santo descerá sobre ti, e
a virtude do Altíssimo te cobrirá da sua sombra”.
Mateus apresenta uma versão algo diferente, mas, contra
toda expectativa, Marcos e João não fazem qualquer
citação, embora este seja um acontecimento considerado
sobrenatural e fundamental para a doutrina católica. Parece
óbvio que tanto Mateus como Lucas, que não se conheceram
e que escreveram seus evangelhos em terras diferentes, Egito e
Roma respectivamente, adornaram seus relatos sobre Jesus inspirando-se
em lendas já existentes, mas que gozavam de diferentes
prestígios em um lugar e outro; por isso Mateus coloriu
de orientalismo popular o nascimento de Jesus, enquanto que Lucas
procurou adaptar sua narrativa às tradições
míticas mais correntes na capital do império.
Na maioria de relatos sobre nascimentos de deuses
ou de heróis, se faz menção ao aparecimento
de estrelas ou outros sinais celestes, que anunciam a qualidade
sobrenatural do recém-nascido. Assim, na lenda de Buda,
fala-se de uma milagrosa luz celeste que anunciou a sua concepção;
no Bhagavata-Purana há referência a um meteoro que,
por seu trajeto luminoso, anunciou o nascimento de Krishna. No
evangelho de Mateus, podemos ler o único relato neotestamentário
que fala da “Estrela do Natal”, Mt.2.1-2:
“Tendo nascido Jesus em Belém de Judá, em
tempo do rei Heródes, eis que vieram do Oriente uns magos
a Jerusalém, dizendo: onde está o rei dos judeus
que é nascido? Porque nós vimos no Oriente a sua
estrela: e viemos adorá-lo.”
E em Mateus 2.9., temos ainda:
“Eles, tendo ouvido as palavras do rei, partiram; e logo
a estrela, que tinham visto no Oriente, apareceu, indo adiante
deles, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino.”
No Evangelho citado se aplica uma prática,
habitual entre os cristãos dos primeiros séculos,
que consiste em dar por verdadeiro qualquer fato procedente da
tradição, que pudesse ser relacionado com algum
texto bíblico que anunciasse sua realização;
esta forma de “autenticação” não
só levou a tirar do contexto dezenas de frases supostamente
proféticas, mas também forçou a invenção
de acontecimentos para validar o que com anterioridade considerava-se
serem profecias. Assim, Mateus, com sua narração,
dá forma material e carrega de sentido como “profecia
messiânica” a uma só dentre as muitas frases
inocentes e matafóricas, pronunciadas, ao estilo oracular,
por Balaam, filho de Bôer, em Bamot Baal, conforme Num.24.17:
“ Eu o verei, mas não agora: eu o contemplarei, mas
não de perto. Nascerá uma estrela de Jacó,
e levantar-se-á uma vara de Israel.”
De outra parte, a presença dos “magos”
no relato de Mateus _ os quais não aparecem em nenhum outro
texto do Novo Testamento_ traz outra pista para ratificar que
a origem da “Estrêla do Natal” deve ser buscada
no contexto pagão de adoração dos astros,
que existia ainda no substrato de muitas lendas dadas como verdadeiras
por essa época. Na tradição egípcia,
por exemplo, era considerada a aparição da estrela
Sotis (Sírius) como anúncio do nascimento anual
de Osíris (materializado pela enchente do Nilo); na Pérsia
antiga, os magos e sacerdotes já tinham o costume de oferecer
a Ahura-Mazda os presentes de ouro, incenso e mirra, citados em
MT.2.11.
Resulta curioso que o anjo do senhor, citado
em Lc.2.8-14, não orientasse os pastores com referência
à estrêla brilhante que, segundo Mateus, estava parada
sobre o lugar onde repousava o menino. Também resulta estranho,
que os três reis magos não sejam mencionados por
Lucas, nem sejam tomados como testemunhas e partícipes
do glorioso concerto dado pelas hostes celestiais aos pastores,
Lc.2.8-14:
“ Ora, naquela mesma comarca havia uns pastores que vigiavam
e revezavam entre si as vigílias da noite para guardarem
o seu rebanho. E eis que se apresentou junto deles um anjo do
Senhor, e com uma luz divina os cercou de refulgente luz, e tiveram
grande temor. Porém o anjo lhes disse: Não temais:
porque eis aqui vos venho anunciar um grande gozo, que o será
para todo o povo! E é que hoje vos nasceu na cidade de
Davi o Salvador, que é o Cristo Senhor. E este é
o sinal que vo-lo fará conhecer: Achareis um menino envolto
em panos, e posto em uma mangedoura. E subitamente apareceu com
o anjo uma multidão numerosa da milícia celestial,
que louvavam a Deus”.
A narração de Lucas já tinha
antecedentes bem conhecidos em todo o mundo antigo, quando o evangelista
incorporou um tipo clássico de mito ao personagem de Jesus.
Segundo o texto de Lalitavistara, quando nasceu Buda (565 a.C.)
“a terra tremeu, rajadas de chuvas perfumadas e de flores
de lótus caíram de um céu sem nuvens, enquanto
os “devas” _ divindades resplandescentes, equivalentes
aos anjos e arcanjos católicos _ acompanhados de seus instrumentos
entoavam cânticos, enchendo o espaço com seus sons:
“Hoje nasceu Bodhisattva sobre a terra para dar paz e alegria
aos homens e aos “devas”, para expandir a luz pelos
rincões obscuros e para devolver a vista aos cegos.”
No momento do nascimento de Krishna, todos os
“devas” deixaram seus carros no céu e, tornando-se
invisíveis, foram até a casa de Mathura, na qual
estava para nascer o menino divino; unindo suas mãos, puseram-se
a recitar os Vedas e a cantar louvores em honra de Krishna e,
segundo a lenda, ainda que ninguém os tenha visto, todo
mundo pode ouvir seus cantos. Depois do nascimento, todos os pastores
da região foram levar-lhe presentes. Durante o nascimento
de Confúcio (551 a.C.), apareceram dragões no ar,
em cima de sua casa, e cinco veneráveis anciões,
que representavam os cinco planetas então conhecidos, entraram
na habitação do parto para honrar o recém
nascido; uma música harmoniosa encheu os ares e uma voz
proveniente do céu exclamou: “Este é o filho
do céu, o divino infante, e é por ele que a terra
vibra em melodioso acorde”.
A tradição de animais adoradores,
tão querida pela Igreja e por seus fiéis, é
descrita no evangelho apócrifo denominado Pseudo-Mateus,
onde se lê:
“ No terceiro dia depois do nascimento do Senhor, Maria
saiu da gruta e entrou num estábulo, ali depositando o
menino no presépio (mangedoura) e o boi e o asno o adoravam.
E então se cumpriu o que havia anunciado Isaías”.
Esta cena, contudo, não é descrita em nenhum dos
Evangelhos canônicos. Com o passar dos séculos, durante
o desenvolvimento dos relatos dos “filhos do Céu”,
acreditou-se ser oportuno insertar algum episódio de exposição
aos animais para rememorar a ancestral tradição
agrária e, com isso, poder assinalar que ficava comprovada
a paternidade divina do personagem descrito.
Os primeiros cristãos limitaram-se a recolher
este tipo de episódio de alguma das muitas tradições
que circulavam nessa época, acrescentando-o ao aluvião
de traços míticos pagãos que haviam empregado
para configurar a personificação divina de Jesus.
Porém, como era de seu costume, certificaram a verdade
do fato valendo-se dos profetas. Revisaram a Bíblia _ como
cristãos helenizados recorreram à tradução
grega, “Bíblia dos Setenta” _ e encontraram
um versículo fascinante em Habacuc, onde, em Hab.3.2.,
se diz:
“Senhor, eu ouvi a tua palavra e temi. Senhor, pelo que
toca à tua obra, vivifica-a cumprindo-a no meio dos anos.
No meio dos anos, tu a farás notória”.
O fato de haver partido de um erro, que confundia
manifestar-se em meio dos tempos, com fazê-lo em meio das
bestas, para justificar a exposição aos animais,
agravou-se até o absurdo quando relacionaram o que jamais
disse Habacuc com o que nunca pretendeu dizer Isaías, do
qual tomou-se a primeira metade de uma frase, Is.1.3:
“Conheceu o boi a seu possuidor, e o jumento o presépio
de seu dono: mas Israel não me conheceu, e o meu povo não
entendeu. Ai da nação pecadora...”
O sentido da frase completa, referindo-se a Israel, resulta óbvio,
porém para a fé cristã foi a profecia que
garantiu a veracidade de suas crenças natalinas.
Também sobrevivem claros traços
pagãos na data adotada pela Igreja para comemorar o nascimento
de Cristo. A eleição do dia 25 de dezembro não
obedeceu, nem sequer, a data em que nasceu o Jesus de Nazaré
histórico. O dia de Natal não foi adotado pela Igreja
até o século IV (entre os anos 354 e 360). Foi fixado
pelo papa Libério com a finalidade de cristianizar o então
muito popular culto ao “Sol Invictus”. No Natal, solstício
de inverno no hemisfério norte, o sol alcança o
seu zênite no ponto mais baixo, ou nadir, e a partir daí
o dia começa a aumentar de duração progressivamente,
até o solstício do verão, em 21 de Junho
(hemisfério norte). Era, pois, para os antigos, o autêntico
nascimento do Sol e, com ele, toda a Natureza começava
também a despertar. O dia 25 de dezembro era também
o natalício de deuses solares jovens como Mitra e Dionísio.
O predomínio agrário dentro da esfera de influência
do cristianismo se manteve até que o desenvolvimento industrial
levou ao olvido os mitos ancestrais. Um olvido que, finalmente,
traduziu-se na celebração comercializada que caracteriza
o Natal nas sociedades desenvolvidas.
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do judaísmo ao cristianismo
João Laurindo De Souza Netto
Andava Paulo por terras do Mediterrâneo oriental, ocupado
na tarefa de atrair adeptos para o cristianismo, nascente entre
os judeus da diáspora, quando algo sucedeu que acelerou
seus planos de expansão universal. Tal fato é narrado
nos “ Atos dos Apóstolos “ 11.19-26 :
“ E na verdade aqueles que tenham sido
dispersos pela tribulação, que tinha acontecido
por causa de Estevão, chegaram até Fenícia,
Chipre, e Antioquia, não pregando a ninguém a palavra,
a não ser aos judeus. E entre eles havia alguns de Chipre
e Cirene que, no entanto, quando entraram em Antioquia, falavam
também aos gregos, anunciando-lhes o Senhor Jesus. E a
mão do Senhor era com eles, e um grande número de
crentes se converteu ao Senhor. E chegou a fama destas coisas
aos ouvidos da Igreja, que estava em Jerusalém, e então
enviaram Barnabé a Antioquia o qual quando lá chegou
e viu a graça de Deus, se alegrou: e exortava a todos a
perseverar no senhor pelo propósito do seu coração.
Porque era um homem bom e cheio do Espírito Santo. E se
uniu ao Senhor uma grande multidão. E dali partiu Barnabé
para Tarso em busca de Saulo, e tendo-o achado o levou a Antioquia.
Estiveram juntos durante um ano inteiro nesta Igreja e doutrinaram
uma grande multidão.Em Antioquia foi onde pela primeira
vez os discípulos receberam o nome de cristãos.”
Era, pois, ali que estava efetivamente nascendo
a Igreja, porque foi ali onde Paulo viveu várias circunstâncias
que incidiam em seus propósitos de criação
de um grande centro de poder espiritual. Em primeiro lugar, porque
a doutrina que estava transmitindo penetrava nas intenções
dos gentios pagãos, pelo menos, com o mesmo entusiasmo
que entre os judeus e talvez, até mais. Em segundo lugar,
porque se o número de conversos entre os gentios não
era ainda importante, isso se devia a que as pregações
dos que tinham a seu cargo aquela missão estavam profundamente
influídas pela tradição litúrgica
judia, que nos novos ensinamentos havia sido respeitada em sua
totalidade, exigindo-se inclusive dos novos adeptos o estrito
cumprimento da lei mosaica.
Os preceitos emanados do judaísmo exigiam
o óbolo ( donativo ) ao templo, o rito da circuncisão,
a celebração do sábado e o uso estrito das
comidas rituais. Tudo isso fazia parte da essência do judaísmo,
que os primeiros propagandistas cristãos, como judeus que
eram, respeitavam escrupulosamente.
A alternativa que se apresentava para Paulo e
que seus seguidores imediatamente deixaram a seu critério,
ansiosos como estavam de expandir aqueles novos ensinamentos entre
um número crescente de fiéis, respondia a uma confirmação
quase matemática: quanto mais se apartasse a doutrina da
estrita obediência à lei mosaica, maior seria o número
de adeptos que se poderiam recrutar e maior seria também,
portanto, o grau de influência que poderiam chegar a exercer
no âmbito do Império romano. Assim foi como começou
a cair a “ Barreira da Lei “ na doutrina cristã.sob
a direta influência de Paulo, inclusive afrontando firmemente
a opinião contrária inicial dos apóstolos
e da comunidade que havia permanecido em Israel, cujos membros
se consideravam a si mesmos como judeus sinceros, ainda que fossem
fiéis devotos dos ensinamentos de Jesus. Inclusive o próprio
Pedro, quando se decidiu a viajar a Antioquia para comprovar os
espetaculares resultados da missão de Paulo e Barnabé,
teve que aceitar, se bem que a contragosto, a progressiva aproximação
aos pagãos e, por conseguinte, o abandono, imposto por
Paulo, ao ritual tradicional judaico.
Para Paulo, a opção era clara,
não só pelo número potencial de conversos,
mas sobretudo, porque, frente ao coletivo de judeus disseminados
por todo o Império Romano, quer cumprissem ou não
a liturgia tradicional, o resto daquele extenso mundo se dividia
em uma quantidade imensa de crenças distintas, a maior
parte das quais, começando pela religião olímpica
grega tradicional, considerada como oficial, apenas eram praticadas
com autêntica devoção por uma pequena parte
dos fiéis tradicionais. Havia que ter em conta também,
que boa parte dos pagãos era inclusive constituída
por inimigos mais ou menos declarados dos judeus, em virtude da
vontade de auto-segregação destes e por sua pertinaz
negativa em aceitar e assumir os costumes que os rodeavam. Assim
a aceitação da mudança, e a separação
radical das raízes judias originárias, era para
Paulo e seus seguidores incondicionais uma vantagem a mais a ser
explorada, porque podia simplificar um incremento considerável
no número de conversos.
Para os potenciais adeptos procedentes do paganismo,
uma coisa era abraçar as propostas de Paulo, reconhecendo
o caráter salvífico do personagem que, ainda que
fosse judeu, dava seu nome à nova Igreja, e outra, muito
diferente, ter que aceitar toda uma série de hábitos,
obrigações e ritos que não só eram
totalmente alheios ao resto do mundo mediterrâneo, mas que
, também, em grande medida, exigiam o abandono de suas
próprias estruturas vitais. Paulo tinha diante de si todo
um império de adeptos latentes, enquanto que, mantendo
a tradição judia, seu campo de ação
se reduzia a, mais ou menos, sete por cento da população
do Império.
Mas a separação da Igreja recém-criada,
de suas raízes judias, não se limitou a uma mudança
de rumo. Foi uma autêntica ruptura que implicou da noite
para dia, uma satanização absoluta e imisericórdia
de tudo quanto se referisse a hebreu, e um saque na tradição
do Livro, negando que até o dia anterior os judeus haviam
sido considerados o Povo Eleito, com toda a bagagem cultural e
religiosa da qual o cristianismo se tinha alimentado durante todo
seu processo constitutivo. Desde aquele momento, os cristãos
passavam a considerar-se a si mesmos como o autêntico “
Povo de Israel “ e, com tal denominação, aludiam
explicitamente a toda humanidade. Inclusive, apoderaram-se dos
textos bíblicos – dos quais não podiam prescindir
por carecer de qualquer outra tradição – proclamando
a destra e a sinistra que os judeus jamais haviam chegado sequer
a entendê-los nem, é claro, a saber interpretá-los
em sua justa dimensão.
Todavia, no século II, Justino, um dos
padres das Igreja, considerado o mais antigo teólogo cristão,
exclamaria: “ vossas escrituras, ou melhor dito, não
vossas mas nossas!”, isso após cem anos de negação
aos judeus que eram, inclusive, o pão e o sal de sua própria
tradição. Assim a nova Igreja recém instituída
começou a saquear o que lhe convinha, recusou o quanto
quis – pouco, porque necessitava daquela tradição,
sobre a qual havia baseado a divindade de seu Messias - e, inclusive,
para justificar a natureza revolucionária de Jesus Cristo,
foram adjudicados episódios tais como a suposta cristandade
prematura dos Macabeus ( 166 A.C), negando que tivessem lutado
e morrido pela liberdade de um povo que, da noite para o dia,
havia sido definitivamente satanizado e convertido em culpado
e assassino de seu Salvador, quando todo mundo,cristãos
incluídos, sabia muito bem que havia sido vítima
de justiça romana, a única que incluía em
suas execuções a morte por crucificação.
Foi o início do que se chamaria a “
Interpretação Cristã “, que desembocaria
na conclusão de que todo o Antigo Testamento não
era senão, o anúncio glorioso da doutrina que o
cristianismo vinha a implantar em todo o mundo, começando
pelas terras do Império Romano. Para ter probabilidade
de êxito, os cristãos deviam cooptar a autoridade
imperial, e para consegui-lo, Roma devia ser isenta de culpa no
episódio da morte do Salvador. O modo de conseguir isso
não era outro senão transferir aos judeus a responsabilidade
daquele martírio e declarar abertamente anátema
toda a tradição judia. Deste modo, a nova Igreja,
fundada e impulsionada por judeus, que renegavam sua primitiva
disposição de ânimo, suprimiu de suas festividades
o sábado, substituindo-o pela festa dominical, consagrada
ao Sol, e aboliu o rito da circuncisão, substituindo-o-pelo
batismo, menos doloroso e, por essa mesma circunstância,
mais próprio para ser aceito pelos eventuais adeptos. Assim,
através da transformação da mensagem de Jesus
em religião universal, disposta a assentar-se “ urbi
et orbi “ inaugurou-se o antijudaísmo mais fanático
e político concebível, que haveria de converter-se,
envolto em uma lógica cruel e imisericórdia, em
um dos paradigmas da história do cristianismo.
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do jesus da história ao cristo
da fé
João Laurindo de Souza Netto
Quando Paulo, depois da morte de Jesus, constrói
uma mensagem cristã, que é essencialmente sua criação
pessoal, produz-se um corte brusco entre o Jesus “antecrucem”
e o Jesus “postcrucem”. Os Evangelhos, já indiretamente
influenciados pela ideologia paulina, ignoram a fronteira que
a crucificação haveria de operar, até o ponto
de alterar essencialmente a figura histórica de Jesus.
Os temas da messianidade e da ressurreição
de Jesus se tornam, neste contexto, em chaves da construção
teológica da fé cristã. Somente a confirmação
de Jesus como Messias, porque triunfou sobre a morte, poderia
desalojar da desoladora cena do martírio na cruz a lancinante
impressão de fracasso e frustração. Ao desmoronar-se
a esperança messiânica em primeira fase, por assim
dizer, segundo a primeira crença dos discípulos,
forjaram-se os instrumentos teológicos para restaurá-la
numa segunda fase: pelo expediente da imediata “parousia”
(2a. vinda) de Cristo, já não como Messiais sofredor
e humilhado, mas como Messias triunfante, que vem em poder e glória
para presidir o juízo e inaugurar o Reino sem mais tardar.
A questão da messianidade de Jesus, central
para o fundamento da fé cristã, não pôde
alcançar uma solução unânime porque
os relatos neotestamentários teceram uma inextricável
rede de ambigüidades e contradições. Contudo,
existem abundantes elementos nas narrações sinópticas
para alcançar algumas conclusões suficientes na
gênese da nova fé postpascoal sobre o magistério
e ação de Jesus. Parece evidente que a convicção
de que Jesus era já em vida o Messias designado para instaurar
o Reino, estava firmemente arraigada no coração
de seus próprios discípulos e que havia alcançado
considerável difusão entre os seus contemporâneos.
Se se analisa sem preconceitos, resulta estritamente
inconcebível que o que se apresentará depois como
o elemento distintivo da pregação de Jesus, sua
suposta condição de Messias sofredor e humilhado,
tivesse passado inadvertida e tivesse escapado à percepção
daqueles que o seguiam e participavam de seu ministério
carismático. Conclui-se pois, sobre a inexistência
de uma predição por parte de Jesus quanto à
sua paixão e morte. A firme crença de Jesus em que
o Reino irromperia pela ação milagrosa de Deus é
evidente que jamais o abandonou até o último instante.
Como Profeta, o martírio seria possível e inclusive
paradigmático. Como Messias, o martírio representava
uma contradição à pretensão de messianidade.
Estamos pois, em presença de um artifício teológico,
do gênero dos “vacticínia ex eventu”,
sobre o qual se edifica todo o Evangelho de Marcos, que será
o modelo de seus continuadores Mateus e Lucas. O famoso segredo
messiânico, designação clássica com
que se conhece o artifício de Marcos em Mc. 8.27 é
a coluna vertebral da cristologia da Igreja:
“E saiu Jesus com seus discípulos
pelas aldeias de Casaréia de Felipe; e perguntava pelo
caminho a seus discípulos, dizendo-lhes: Quem dizem os
homens que sou eu? Eles lhe responderam dizendo: uns dizem que
João Batista, outros Elias, e outros como um dos profetas.
Então lhes disse Jesus: E vós outros quem dizeis
que sou eu? Respondendo-lhe Pedro lhe disse: Tu és o Cristo
(Messias). E Jesus lhes proibiu com ameaças que a ninguém
dissessem isto dele”.
Para captar o sentido real e a verdadeira função
teológica do segredo messiânico no relato de Marcos
é necessário sublinhar que o artifício está
indissoluvelmente articulado com o propósito de introduzir
o elemento diferencial de uma nova messianidade, isto é,
a condição sofredora e humilhada de Jesus como Messias,
e sua função expiatória e propiciatória,
que constituem a essência do segredo como “vaticinium
ex eventu”. O assombro e a incredulidade dos discípulos
ante as supostas predições de paixão e morte
são prova concludente da inverossimilhança do recurso
apologético dos redatores sinópticos, porque a marca
de autenticidade de um Messias era o triunfo de seu poder, sua
capacidade, através da ação do Altíssimo,
de estabelecer o Reino prometido. Um Messias humilhado e escarnecido
não era o Messias mas um pretendente não efetivo.
De fato, em Mc.16: “não acreditaram”; “repreendeu-os
por sua incredulidade e dureza de coração, pois
não haviam acreditado que o haviam visto ressuscitado dos
mortos”...Realmente, a paixão, a cruz e a ressurreição
não estavam no programa messiânico de Jesus e dos
membros do seu séqüito.
Depois do martírio do Gólgota,
o único que mudou foi a teologia, porque a especulação
dogmática pode fazer concordar tudo pela técnica
da ambigüidade.
A fé na ressurreição, decisiva
para o destino do cristianismo, teria que ter nascido em lugar
diferente de Jerusalém, em data relativamente tardia, impulsionada
pelas comunidades helenizadas da diáspora siríaca
Antioquia, Damasco_ já pelos tempos de Paulo converso,
pois a comunidade originária de Jerusalém nem experimentou
nem conheceu a ressurreição de Jesus, nem a correspondente
fé na mesma.
Jesus jamais poderia considerar-se Filho de Deus
no sentido metafísico de coessencialidade e coeternidade
divinas. Jamais admitiu um “mais além” onde
o aguilhão material da fome e da sede_ a questão
fundamental de justiça no mundo_ se diluísse retoricamente
em um evanescente reino celestial de glórias e harmonia
no estilo eclesiástico. Foi fiel até à morte
à natureza radicalmente unitária do existente, estranho
a todo corte entre o “acima” e o “abaixo”.
Sua mirada, como judeu que era, se moveu sempre na direção
do “antes” e “depois”, isto é,
no sentido da história. A Igreja cristã, em seu
trânsito pelas comunidades helenísticas foi cancelando
a linha do horizonte hebreu do magistério e do ministério
de Jesus, que opera agora a serviço da nova teologia das
narrações sinópticas, até sua total
desnaturalização.
Com Paulo e seus seguidores, sobretudo os sinópticos,
a mensagem revolucionária, de alcance político-religioso
de Jesus, começa a transmutar-se lentamente em uma doutrina
de espera de um “reino celeste”, que cada cristão
alcança mediante seu renascimento individual, na fé
em um Jesus Cristo preexistente e ressuscitado, que já
se havia manifestado como Messias humilhado, porém que
retornaria em poder e glória em sua “parousia”.
No ínterim, que para a geração apostólica
deveria ser brevíssimo, os fiéis se consagrariam
à adoração ritual de um fato passado, em
si mesmo salvífico: a morte e ressurreição
de Jesus, Filho de Deus.
Com anterioridade de quase duas décadas
à redação dos sinópticos, Paulo constrói
sua “teologia crucis” em imediata vinculação
com a idéia de um ser divino preexistente, que se encarna
e se sacrifica em uma função mítica de salvação
universal para expiar os pecados da humanidade, resgatá-la
para Deus e reconciliar com ele toda a criação.
Este mito grandioso, e ingenuamente inverossímil,
pertence ao gênero das fabulações que sustentam
os códigos de tabus que se supõe podem proteger
contra a morte, matriz do sentimento religioso e das especulações
intermináveis, nascidas ao calor do “terror mortis”.
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o cristianismo de paulo de tarso
João Laurindo de Souza Netto
Do relato de Adão e Eva comendo o fruto proibido surgiu,
no judaísmo tardio, e passou depois ao cristianismo, a
doutrina de que este pecado segue atuando em toda a humanidade,
embora tal doutrina tenha sido desconhecida por Jesus de Nazaré.
A verdade é que o judaísmo não assumiu a
doutrina da culpa coletiva hereditária e, neste sentido,
Jesus como judeu que era, jamais acolheu as implicações
do mito da “queda” de Adão. O pecado original,
na realidade, não desempenha papel algum no Antigo Testamento,
salvo na narração do Gênesis e na Aliança
com Israel no Sinai, onde Jeová se revela “como um
Deus forte e zeloso, que castiga os filhos da culpa dos pais até
a 3° e 4° gerações (Êxodo 20.5)”.
O trânsito de uma sociedade nômade,
fechada, para uma sociedade de caráter urbano, no entanto,
conduz a uma profunda evolução da consciência
moral, que vai determinar a individualização da
culpa: cada um é responsável só por seus
próprios atos. Assim, em Deuteronômio 24.16 e em
Jeremias 31.30 se estabelece que “cada um não morrerá
a não ser pelos seus próprios pecados”. Com
isso, “o filho não sofrerá sua parte da culpa
do pai e nem o pai da parte do filho” ( Ezequiel 18.1-2
).
Os Evangelhos ignoram a noção de
pecado original. Jesus declara que “é segundo tuas
palavras que serás justificado e é segundo tuas
palavras que serás condenado” ( Mt. 12.37 ).
No entanto, de acordo com a doutrina estabelecida
por Paulo de Tarso, o pecado e, consequentemente, a morte, são
conseqüência da desobediência de Adão.
Então, para reconciliar Deus com a criatura era preciso
um ato compensatório de obediência, que não
só reintegrasse os direitos de Deus, mas que apagasse a
mancha mortal do pecado original herdado. Em Coríntios
15.21, Paulo estabelece: “tendo vindo a morte por um homem,
é também por um homem que deve vir a ressurreição
dos mortos “.
Trata-se de uma noção de justiça
tão absurda que todo aquele que reflita, mesmo que superficialmente
sobre ela, haverá de perguntar-se: como se pode conceber
que Deus necessite a morte em sacrifício de Jesus para
perdoar os pecados? Como pode exigir este rigor selvagem para
uma suposta culpa contraída por herança, sem que
os acusados nem sequer a conheçam? Nenhuma mente sã
pode dar resposta satisfatória a esta soteriologia mítica
e cruel.
Fica então para explicar como e por quê
Paulo regressou ao mito do pecado original narrado no Gênesis,
quando suas conseqüências éticas já haviam
sido superadas pelo pensamento hebreu. O retrocesso, ao assumir
esta lenda, condicionou toda a antropologia cristã, pois
o dogma eclesiástico da culpa coletiva constitui o pressuposto
teológico da encarnação e, também,
o eixo da soteriologia dogmática, marcando uma das fronteiras
decisivas entre a fé pessoal do Jesus histórico
e a fé cristã nascida, sob a inspiração
de Paulo, nas comunidades cristãs-helenísticas.
Paulo exerceu o magistério da nova fé,
como missionário, durante vários anos _ de catorze
a dezessete _ antes de escrever suas “Epístolas”
pelos anos 50 d.c. A que parece ser a primeira delas, I Tessalonicenses,
pode ter sido redatada no ano 51, o que permite situar sua conversão
no ano 36. Após sua visão no caminho de Damasco,
diz que iria para a Arábia, de onde, retornaria seguidamente
a Damasco. (Gálatas 1.17) e, passados três anos,
vai pela primeira vez a Jerusalém para conhecer Pedro.
Só depois de quatorze anos volta a Jerusalém “em
virtude de uma revelação”, acompanhado de
Barnabé e Tito. Resulta assim que transcorreram dezessete
anos durante os quais pregou “verdades que lhe foram reveladas”
; “o evangelho pregado por mim não é dos homens,
pois eu não o recebi ou aprendi dos homens, mas por revelação
de Jesus Cristo” ( Gal. 1.11-12 ).
O que interessa deste breve itinerário
cronológico é assinalar que, apesar do esforço
de muitos apologistas cristãos para retardar a data da
conversão de Paulo e, portanto, fazer depender sua doutrina
de elaborações teológicas anteriores, o “apóstolo
dos gentios”, iniciou suas especulações religiosas
poucos anos depois da morte de Jesus. Aos guardiões da
ortodoxia lhes inquieta que um personagem, apesar de genial e
criativo, tivesse sido o gerador das linhas da proclamação
cristã-helenística, que haveria de alimentar a dogmática
eclesiástica, porque este reconhecimento poderia pôr
em perigo o desenvolvimento da continuidade do cristianismo.
É, no entanto, razoável concluir
que o processo mental criativo de Paulo se inicia a partir do
instante de sua conversão, que esteve sem dúvida
precedida de uma profunda reflexão teológica baseada
na posse de importantes instrumentos de formação
bíblica e de informação sobre o panorama
religioso das sociedades de sua época e anteriores.
A soteriologia cristã-helenística
pregada por Paulo apóia-se na idéia de uma redenção
do pecado original, representada como um drama cósmico,
ainda que lendariamente situado na história, no qual um
personagem de filiação divina restaura para toda
a humanidade, a possibilidade de salvação mediante
a compensação oferecida ao Pai por seu sacrifício
expiatório. Passa-se assim de um Messias judeu a um Salvador
( Soter ) e Senhor ( Kyrios ).
A idéia de que Jesus morreu “a fim
de dar sua vida como resgate de muitos” (Mc. 10.45), é
uma idéia paulina, em concordância com o que declara
Paulo em I Cor. 15.3-4. A parousia ( 2 ° vinda ), depois de
sua ressurreição e exaltação aos céus,
abriria o Juízo Final como início do Reino escatológico-messiânico.
A fé na ressurreição é o sustentáculo
desta exegese.
A cristologia judaico-cristã não
podia satisfazer a convicção de Paulo, que atuava
no contexto helenístico. É de fato significativo
que Paulo, no conjunto de seus escritos, não faça
referência ao conceito de Servo Sofredor, mencionado por
Isaías ( Is. 53 ) que constitui o pilar de sustentação
da Igreja judaico-cristã. Assim, diz Paulo em I Coríntios
15.22: “e assim como todos morremos em Adão, assim
também todos reviveremos em Cristo”. Paulo iria,
pois, transformar o judaico-cristianismo em um “mistério”,
conforme as religiões de salvação dos cultos
pré-cristãos. Este “mistério”
é o da redenção do gênero humano graças
ao sacrifício, por substituição, oferecido
por Jesus a Deus, a fim de livrar-nos das conseqüências
do pecado original.
A pregação de Paulo encontrou receptividade
e afinidades entre os conversos dos meios de maior influência
helenística. Catalisados pelo gênio criativo de Paulo,
surgiram, nesses meios, seguidores que cristalizaram o cristianismo
paulino, surgindo daí, uma nítida linha divisória
das águas entre a fé judaico-cristã original
e a fé judaico-helenística gentia. A nova religião
se apóia em uma cristologia totalmente contrária
aos antigos costumes. O título Senhor ( Kyrios ), reservado
a Deus no judaísmo, agora vem a significar a divindade
de Cristo, sua natureza sagrada segundo o sentido que se dá
como óbvio no helenismo. Tanto o batismo como a ceia (
eucaristia ), no cristianismo consolidado por Paulo, lançam
suas raízes neste “ mistério “ do Deus
encarnado, Cristo, por cuja morte e renascimento também
os crentes morrem e renascem, como nos cultos mistéricos.
Não é casualidade – nem se
deve a sua forma de conversão – que não interessa
a Paulo o Jesus histórico, a ponto de que o messianismo
do Nazareno tenha ficado totalmente esvaziado do seu significado
histórico. Só lhe interessa a redenção
universal “ por amor e obediência a Deus “,
operada no “ reino dos corações “. A
novidade e o êxito da nova religião funda-se na transcendentalização
e na transformação ao plano cósmico de fatos
ocorridos na Palestina no início do século I. Para
Paulo, Cristo teria que ser um personagem histórico que
desempenhara a salvação universal pelo desígnio
de Deus de encarnar seu Filho em um homem.
Quem se fixar em uma hermenêutica (interpretação)
fideísta (de fé) e casuística (conveniente)
do Novo Testamento, está condenado a situar-se às
margens dos fenômenos históricos, que jamais será
capaz de compreender, apesar de toda a sua competência profissional,
se a tem. Identificar historicamente os processos ideológicos
é totalmente o contrário de ideologizar a investigação
histórica: é exatamente desideologizar – e
desmitificar se falamos de religiões – a leitura
da história.
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igreja e eucaristia
João Laurindo de Souza Netto
Do ponto de vista histórico, o conceito
de “igreja” como lugar físico, destinado ao
culto divino – equivalente portanto aos templos pagãos
– é bastante tardio. No final do século III,
como resultado dos intentos anteriores de alcançar uma
organização eficaz para o cristianismo, que se expandia
em função da tolerância do Império
Romano para com a nova religião, começaram a surgir,
nas grandes cidades, lugares de reunião destinados à
formação religiosa dos fiéis. Tais pontos
de encontro eram separados por bairros e orientados por um presbítero
– função que até então só
podia ser exercida por um bispo. Em Roma, foram denominados “tituli”
e em outros lugares “paroikiai”. Deste modo, o culto
cristão começou a conceber-se cada vez mais como
uma cerimônia pública, diferente dos encontros fechados
que caracterizavam o cristianismo inicial.
A partir dos dias de Constantino, começou
a produzir-se a metonímia da palavra “igreja”,
que passou a designar tanto a comunidade dos crentes – ekklesia
– como o local de reunião destes (antes denominado
“templum”). Constantino, o maior impulsor do cristianismo
e também, por seus interesses de dominação,
o maior promotor do distanciamento da doutrina de Jesus, fez erigir
igrejas por todo o Império e, como escreveu a Eusébio:
“todas elas devem ser dignas do nosso amor ao fausto”.
O imperador desviou recursos públicos, ainda que o povo
fosse miserável, para que as igrejas fossem construídas
com materiais nobres, emitindo ordens aos governadores para que
as doações “fossem abundantes, e até
mesmo superabundantes”, mandando aumentar “a altura
das casas de oração e, também, a planta...
sem regatear gastos, recorrendo ao erário imperial quando
fosse preciso para cobrir o custo da obra”... A modéstia
que caracterizou a atuação de Jesus acabou sendo
convertida na ostentação faustosa que chegou até
nossos dias.
Segundo a interpretação do teólogo católico
Antônio Carmona:
“durante o primeiro milênio a igreja (local) era chamada
“verdadeiro corpo de Cristo” e a eucaristia que nela
se realizava “corpo místico de Cristo”. A relação
do executante era primeiro com o “verdadeiro corpo”
e, por meio dele, com o místico. Contudo, ao adquirir o
sacerdócio a condição “sagrada”,
sua relação com o corpo de Cristo se inverteu: relacionou-se
diretamente com a eucaristia, que passou a chamar-se “verdadeiro
corpo de Cristo”, ficando para a igreja a denominação
de “corpo místico”. Nesta inversão de
termos influiu em grande medida a obsessão medieval pelo
“milagre eucarístico”, ou seja, pela chamada
presença real de Cristo na eucaristia. A “potestade
quase mágica” ou “poder” de que se arrogam
os sacerdotes para invocar à vontade a suposta presença
de Cristo na igreja, não deixa de ser uma presunção
carente de qualquer fundamento evangélico”.
Realmente, com relação ao rito
da eucaristia, que justifica a existência desses grandiosos
espaços físicos conhecidos hoje como igrejas, cabe
perguntar: foi Jesus quem instituiu o rito principal da missa?
A Igreja Católica assim o mantém, mas a simples
leitura dos textos neotestamentários mostra quão
distante está a doutrina católica daquilo que se
diz nestes textos.
A passagem conhecida como a última ceia
de Jesus, na qual ele se reuniu com seus apóstolos, anunciou
a traição de Judas e, segundo a Igreja Católica,
instituiu a eucaristia, figura nos evangelhos canônicos.
No entanto é preciso analisar os textos com cuidado. No
evangelho de João, por exemplo, não é mencionada
a instituição da eucaristia e os detalhes acerca
da ceia são totalmente discordantes com os demais.
O rito eucarístico, em suas diversas formas,
é um dos mais velhos atos de culto da antiguidade. Podemos
encontrar antecedentes claros deste sacramento da Igreja em diversos
cultos egípcios, persas, hindus e gregos.
Entre os hierofantes – sacerdotes possuidores
dos segredos da ciência sagrada dos Iniciados nos Mistérios
de Elêusis – a eucaristia tinha um significado parecido
ao que, séculos depois, viria a ter para os cristãos.
Ceres, umas das grandes divindades romanas, identificada com a
deusa grega Demeter, representava a fertilidade da terra e a regeneração
da vida que brota da semente. Era simbolizada pelo pão,
que os fiéis comiam em seus cultos. Dionísio, também
conhecido por Baco ou Líber, possuía templos em
toda a Grécia; contribuiu para introduzir na religião
o sentido do mistério e, em sua honra, eram celebradas
as festas chamadas dionísias. Era simbolizado pelo vinho.
Dionísio era um deus da categoria dos deuses solares que,
em algumas culturas, carregavam a culpa da humanidade, eram mortos
por isso, mas ressuscitavam posteriormente.
No culto a Isis, os sacerdotes egípcios
repartiam entre os fiéis tortas de trigo sem levedura,
que tinham um significado parecido ao da hóstia católica.
O “soma”, bebida sagrada que os brâmanes preparavam
com o sumo fermentado da planta rara “Asclepias ácida”,
correspondia à ambrosia ou néctar dos deuses gregos
e, em última análise, ao vinho da eucaristia católica,
posto que, em virtude de certas fórmulas sagradas (mantras),
a bebida se transubstanciava no próprio deus Brahma.
A custódia, receptáculo de ouro
ou prata em que se expõe a hóstia consagrada e que
tem, gravado, um sol radiante do qual emanam raios dourados em
todas as direções, já existia, com igual
forma e função, no culto de Mitra, originário
da Pérsia. Nesses ritos, a custódia representava
o deus jovem Mitra como força imanente do Sol, concebido
como regulador do tempo, iluminador do mundo e agente da vida.
Tão igual era o ritual pagão de Mitra e o cristão,
que Justino, filósofo e apologista cristão (100-165),
em sua I Apologia, quando defende a liturgia cristã, frente
à pagã, se vê forçado a inverter a
realidade e encobrir o plágio cristão afirmando
que “a imitação da qual (eucaristia cristã),
o diabo fez o mesmo com os Mistérios de Mitra, pois, como
sabeis, eles tomam também um copo de vinho e comem o pão
nos sacrifícios iniciados e pronunciam certas palavras
sobre isso”. Não deixa de ser inusitado que o diabo
instaurasse a eucaristia cristã num culto pagão
séculos antes do aparecimento do cristianismo! Segundo
a tradição, Mitra nasceu de uma virgem, num 25 de
dezembro, em uma gruta, foi adorado por pastores, foi perseguido,
fez milagres, foi morto e ressuscitou ao terceiro dia ...
A passagem relativa à ultima ceia de Jesus
é descrita em Mt.26.17-29:
“E nos primeiros dias em que se comiam os pães ázimos,
vieram ter com Jesus seus discípulos, dizendo: Onde queres
tu que preparemos o que se há de comer na Páscoa?
E disse Jesus: Ide à cidade de um tal e dizei-lhe: O Mestre
diz: O meu tempo está próximo, em tua casa quero
celebrar a Páscoa com meus discípulos. E fizeram
os discípulos como Jesus lhes havia ordenado, e prepararam
a Páscoa. Chegada pois a tarde, pôs-se Jesus à
mesa com seus doze discípulos... Estando eles ceando, tomou
Jesus o pão e benzeu-o e partiu-o e deu-o a seus discípulos,
e disse: Tomai e comei, este é o meu corpo. E tomando o
cálice, deu graças: e deu-lho, dizendo: Bebei dele
todos. Porque este é o meu sangue do novo testamento, que
será derramado por muitos para remissão dos pecados.
Mas digo-vos: que desta hora em diante não beberei mais
deste fruto da vide até aquele dia em que o beberei de
novo convosco no reino de meu Pai”.
O texto de Lucas, contudo, é substancialmente
diferente, conforme lemos em Lc.22.19-20:
“Também depois de tomar o pão deu graças,
e partiu-o, e deu-lho, dizendo: Este é o meu corpo, que
se dá por vós: fazei isto em memória de mim.
Tomou também da mesma sorte o cálice, depois de
cear, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento em
meu sangue, que será derramado por vós”.
Em Lucas não aparece a referência
pagã à equivalência do pão e do vinho
como o corpo e o sangue de Jesus e, ponto fundamental, ele pediu
que se recordassem dele – não que se invocasse-o
a comparecer fisicamente – fazendo o mesmo ato, levantando
seguidamente o cálice – isto é o copo que
usou durante a ceia, cheio de “fruto da vide”, Lc.22.18,
em sinal de uma nova aliança “em meu sangue”,
não “com meu sangue”-; o fato pode ser interpretado
como um brinde, similar ao que todos temos feito nas ocasiões
solenes, com o qual selou o acordo e a promessa que fez ante seus
discípulos, situando seu aval “em meu sangue que
é (será) derramado”, não “com
meu sangue que estás bebendo no cálice”.
Quanto ao relato de Mateus, cabe ter presente
que Jesus e seus apóstolos, como judeus, cumpridores da
Lei que eram, estavam celebrando a Páscoa hebréia,
uma refeição ritual anual que comemorava a liberação
do povo hebreu da escravidão egípcia e, também,
a proteção que lhes concedeu Jeová ante a
décima e última praga, que supôs a matança
de todos os primogênitos do Egito, como se pode ler em Ex.12.21-23:
“Depois chamou Moisés todos os anciões
dos filhos de Israel, e disse-lhes: Ide tomar um cordeiro para
cada família, e imolai-o. Ensopai um molho de hissopo (planta
medicinal) no sangue, que estiver posto no limiar da porta, e
borrifai com ele a verga da porta, e das umbreiras. Nenhum de
vós saia da porta de sua casa até pela manhã.
Porque Jeová passará, ferindo os egípcios:
e quando ele vir este sangue sobre a verga das vossas portas,
e sobre as suas umbreiras, passará a porta da vossa casa,
e não deixará entrar nela o anjo exterminador a
ferir-vos”.
Além de outras considerações
possíveis, supostamente Jeová não era capaz
de conhecer todos os seus, tal como diz a Igreja, e precisava
de uma vulgar marca para estar em condições de poder
distinguir os seus dos egípcios.
A ceia, de cumprimento obrigatório, é
descrita em Êxodo 12.5-11:
“...Um cordeiro sem mancha, macho, e de um ano...Será
imolado pela tarde...E esta mesma noite comerão a carne
do cordeiro assada no fogo, e pães asmos com leitugas (alfaces)
silvestres... Vós o celebrareis de geração
em geração com um culto perpétuo, como uma
festa solene à honra do Senhor... Guardai este mandamento,
como uma lei, que deve ser inviolável para sempre, tanto
para vós como para vossos filhos”.
Cada elemento desta ceia pascal tinha um simbolismo concreto para
o povo de Israel: o cordeiro sacrificado rememorava o fato de
haver-se salvo do terrível juízo de Deus graças
à exposição do seu sangue (do cordeiro);
o pão ázimo recordava a pressa com que tiveram que
fugir do Egito; o sabor amargo das hervas silvestres representava
o desagradável período de escravidão passado
no Egito. Ante esta mesa e dentro deste ritual judeu esteve Jesus
com seus discípulos, e isso obriga a analisar o sentido
de suas palavras dentro deste contexto histórico-religiosos
tão concreto. Ademais, não existia então
outro contexto histórico-religioso. O catolicismo ainda
tardaria vários séculos para consolidar-se.
Quando Jesus, segundo o texto de Mateus _ e o
de Marcos, que lhe serviu de base _ ofereceu pão e vinho
como se fossem seu corpo e seu sangue derramado, não se
pode, sensatamente, pensar que os apóstolos tomaram essas
palavras literalmente, como fazem os católicos na eucaristia.
Evidentemente não aceitaram que esses alimentos ritualizados
fossem de verdade o corpo eo sangue de Jesus. Em primeiro lugar
porque Jesus estava ali, vivo, junto a eles em corpo inteiro.
Em segundo lugar, porque os judeus _ e todos eles eram judeus_
não podiam ingerir qualquer alimento que contivesse sangue.
De fato, em At.28-29, temos:
“Porque pareceu bem ao Espírito
Santo e a nós, não vos impor mais encargos do que
os necessários, que são estes: a saber: que vos
abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos, e
do sangue, e da impureza, e das carnes sufocadas ( de afogados),
das quais coisas fareis bem de vos guardar”.
Em terceiro lugar porque o próprio Jesus
acabou seu discurso dizendo que “não beberei mais
deste fruto da vide até o dia em que o beberei de novo
convosco no reino de meu Pai”, isto é, deixou de
falar de “meu sangue da aliança” (Novo Testamento)
e mencionou expressamente o vinho, o que era em realidade, fixando
o brinde seguinte para depois do advento do “reino”
_ que Jesus acreditava ser imediato. Por último, porque
Jesus, segundo o texto de Lucas _ fazei isto em memória
de mim _ apresentou todo o ritual como um ato de comemoração,
ou de recordação de sua morte iminente. Do texto
evangélico, portanto, não cabe extrair mais sentido
do que o de um convite a uma comemoração equivalente
à da Páscoa judia que estavam rememorando juntos,
ainda que, obviamente, destinada a recordar o momento em que o
povo de Israel foi “liberado da escravidão do pecado”
por obra de Jesus.
Não é menos certo, porém,
que em João 6.53-57 se faz menção a outras
palavras de Jesus. Este texto, porém, resulta terrivelmente
suspeito, uma vez que contradiz gravemente _ até o absurdo
_ o que se mostra de Jesus nos outros documentos neotestamentários.
O Evangelho de João foi escrito tardiamente,
e teve grande influência da cultura pagã oriental,
na qual era muito comum o cerimonial eucarístico de comer
simbolicamente corpo e sangue do deus regenerador. Resulta óbvio,
portanto, que esta surpreendente passagem não pode ser
mais do que uma criação literária, absolutamente
alheia ao espírito de Jesus, ainda que tenha sido muito
bem pensada para incitar a adesão ao novo culto de Jesus,
divinizado pelas massas gentias, habituadas a esse tipo de crença
pagã.
A doutrina atualmente vigente sobre este assunto foi fixada pelo
Concílio de Trento (1545-1564) e proclama que a eucaristia
não só é um ato comemorativo da crucificação
de Jesus ou uma ação de graças _ “eucharistian”
significa “dar graças” _ por sua redenção,
mas que é, antes de tudo, um sacrifício propiciatório,
isto é, que Cristo se converte, por um “milagre”,
em uma vítima real oferecida a Deus.
O Papa Pio XI, em sua encíclica “Ad
Catholici Sacerdotti (1935)”, reforçou o dogma que
a missa era um “sacrifício real” e afirmou
que “o sacerdote tem poder sobre o próprio corpo
de Jesus Cristo”. Poucos anos depois, em 1947, o Papa Pio
XII, em sua encíclica “Mediator Dei”, afirmou
que o sacrifício da crucificação é
“renovado” pelo sacrifício eucarístico
e que “nos altares de nossas igrejas ele (Cristo) se oferece
a Si mesmo diariamente para nossa redenção”.
Na Epístola aos Hebreus, Heb.7.26-27,
afirma-se com rotundidade:
“ Porque tal pontífice (Cristo)
convinha que nos tivéssemos, santo, inocente, imaculado,
segregado dos pecadores, e mais elevado que os céus: que
não tem necessidade, como os outros sacerdotes, de oferecer
todos os dias sacrifícios, primeiramente pelos pecados,
depois pelo do povo: porque isto o fez uma só vez oferecendo-se
a si mesmo”.
É evidente que bastou oferecer-se a si
mesmo “uma só vez”, não todos os dias,
tal como proclama necessário a Igreja Católica.
Encadear Cristo e a uma função que as próprias
escrituras declaram inútil, só pode ter sentido
sob duas considerações: coerência mítica
e rentabilidade dos rituais de poder e controle.
Coerência mítica implica em que,
seguindo o modelo pagão do deus solar jovem, que proporcionou
os elementos legendários que transformaram o Jesus histórico
no Cristo proclamado, este deve sacrificar-se diariamente para,
com seu corpo e sangue, renovar a vida do mundo. Os rituais de
muitos cultos a deuses pagãos anteriores a Cristo tinham
a mesma função e estrutura, pelo que resulta coerente
que os gentios cristanizados, após séculos de práticas
pagãs, acabaram por acrescentar também a esta dinâmica
ao ritual cristão. De fato, parecia muito natural superpor
este ritual a outros do cristianismo primitivo, como a “ceia
do Senhor”, que tanto postulou e defendou Paulo.
A busca da máxima rentabilidade dos mecanismos
rituais de poder e controle social, primordial em qualquer estrutura
religiosa, encontrou sem dúvida um eficaz instrumento quando
a Igreja Católica medieval elaborou a doutrina da transubstanciação,
que tendo surgido no século IX por proposição
de Alamario de Metz, foi devidamente regulamentada pelo Concílio
de Trento (1545-1564). Em síntese, afirma que durante a
consagração eucarística a substância
do pão e a do vinho se transformam respectivamente no corpo
e no sangue de Cristo, sem que mude em nada seu aspecto externo.
Na análise mais profunda dos dogmas religiosos
fundamentais da Igreja Católica, demasiadas coisas carecem
de sentido. Assim, em Mc.16.17, temos:
“E estes sinais seguirão aos que
crerem: Expulsarão os demônios em meu nome, falarão
novas línguas. Manusearão as serpentes: e se beberem
alguma postagem (caldo) mortífera, não lhes fará
mal: porão as mãos sobre os enfermos, e sararão”.
Existirá algum crente que possa falar
línguas que não estudou, beber veneno ou manusear
cobras?...
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jesus
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003
Em um país de fé católica
multisecular como o nosso, a questão da existência
de Deus não chega a formular-se em sua plenitude, se antes
não se dedicar muita atenção à falta
de credibilidade histórico-teológica dos fundamentos
da fé cristã. A análise crítica desta
tradição é de suma importância, na
prática, a respeito do debate sobre a existência
de Deus.
O Jesus histórico foi seguramente o pregador
do movimento messianista que anunciou veementemente a chegada
iminente do reino de Deus na terra. Este movimento, imerso na
esperança de Israel_ reiterada literária e oralmente
por uma dilatada tradição profética vaga
e variada_ acreditou cegamente no vaticínio escatológico-messianico
como ponto de partida de uma reconversão interior, nas
mentes e nos corações, que permitisse a realização
plena da lei mosaica nos termos extremos de uma ética de
urgência escatológica para as vésperas da
iminente instauração do reino. Anunciou a vinda
do Messias, e provavelmente chegou a crer ser ele mesmo esse Messias
judeu nas últimas semanas de seu magistério público,
exigindo de seus seguidores uma confiança sem limites e
uma entrega absoluta aos imperativos daquela ética. Acreditou
firmemente na imediata instauração desse reino pela
mão de Jeová e na conseqüente mobilização
de seus fiéis. Contudo, suas expectativas acabaram na sua
trágica e inesperada execução pela autoridade
romana, em Jerusalém, como sedicioso. Jamais fundou Igreja
alguma, nem instituiu sacramentos. Teria considerado sacrílega
qualquer atribuição de qualidades de natureza divina
a sua condição de homem.
Este é o perfil básico que cabe
esboçar com alta probabilidade de certeza, mediante a aplicação
de critérios heurísticos adequados ao tratamento
científico das epístolas paulinas e dos Evangelhos
canônicos, documentos que nos oferecem o fascinante espetáculo
da fabricação histórica de um grande mito:
o mito do Cristo da fé. O Cristo da fé transmuta
o Jesus Nazareno em um ser divino, consubstancial (que tem uma
só substância) e coeterno (que existe com o outro
desde sempre) com o Pai, engendrado (gerado) sobrenaturalmente
pelo Espírito Santo no seio de uma virgem, para pagar,
com seu martírio na cruz, uma imaginária e absurda
dívida que a humanidade haveria contraído com Deus
por causa de um pecado hereditário de desobediência.
Só a paixão e morte de um ser
ao mesmo tempo Deus e homem podia, não se sabe porque,
saldar essa dívida ante uma divindade implacável
e rancorosa. Este mítico Deus e homem, que havia fracassado
em tudo o que anunciara enquanto transitou por esta terra, haveria
demonstrado sua divindade essencial em virtude de uma Ressurreição
milagrosa, supostamente avalizada por visões_ todas confusas
e não coincidentes _ sem mais valor intrínsico que
as que se aduzem cada dia na sociedade secularizada de nosso tempo.
A ascensão aos céus, mais a promessa de seu imediato
retorno para que se pudesse cumprir a profética instauração
iminente do reino messiânico, constituem o epílogo
de uma soteriologia equivocada, sobre a qual o cristianismo construiu
o imponente edifício de sua teologia e de seu poder.
Depois de ácidas polêmicas, desde
a imposição imperial do Concílio de Nicéia
(325), caracterizado por intimidações morais e violências
físicas, o Concílio de Calcedônia (451) determinou
definitivamente que houve “um só Cristo em duas naturezas”,
“dotado de uma alma justa e semelhante em tudo aos demais
homens exceto o pecado”. Mas seguia pendente o espinhoso
problema de conciliar de modo convincente o Jesus evangélico,
que sentia fome e sede, comia, bebia, se irritava colericamente
e padecia, com o Cristo celeste, perfeito, imperturbável
e insensível como deus, isento de toda mudança ou
movimento.
Paulo de Tarso, em Filipenses 2.7, apresentou
uma idéia que viria a ser posteriormente adotada pelos
Padres da Igreja:” mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando
a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens, e sendo
reconhecido na condição como homem”. Essa
doutrina ficou conhecida como a doutrina do esvaziamento. Contudo,
Calcedônia_ como sempre_ não cancelava a insuprimível
contradição ontológica entre um Deus que,
por definição, não pode sofrer, porque toda
paixão comporta mudança ou movimento_ inconcebível
em um Deus de suma perfeição_ e um Homem-Deus que
se altera, muda de humor, sofre e se alegra. Mas havia ainda outra
dificuldade: podia uma só pessoa ter duas vontades? O Concílio
de Constantinopla (680) proclamou definitivamente a existência
em Jesus de duas vontades, uma divina e outra humana. Assim são
estabelecidos os mistérios da fé cristã.
Porque a contradição segue em pé, porém
desta vez a questão se situava não em um nível
metafísico que o fervor de uma fé podia mais ou
menos passar por alto, mas em um nível operativo, psicológico,
histórico. Pois se há duas vontades plenas, autônomas,
poderiam, ao menos em princípio, divergir. Deus, por definição,
não pode ter a vontade de padecer. Jesus, se é Deus,
tampouco, salvo que se trate de vontades excludentes respectivamente.
Em todo o caso o Homem _ Deus não poderia querer e não
querer ao mesmo tempo. Quando se nega a lógica, o sentido
comum procura vingar-se, salvo se a mente ficar paralisada. E
este é o drama do crente que luta por manter a honestidade
intelectual. Sofrer é mudança, contingência,
imperfeição. Se Jesus quis sofrer, e sofreu, como
poderia ser Deus? E se era Deus, como poderia sofrer e querer
sofrer?
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poder hegemônico sobre consciências
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003
Foi no âmbito das consciências que
a Igreja avassalou a sociedade cristã, erigindo-se em árbitro
dos critérios do bem e do mal. Sua dilatada caminhada no
mundo medieval, como cabeça da cristandade, colocou em
suas mãos todas as ferramentas necessárias para
a manipulação psicológica e coação
moral dos povos sob o seu domínio. E mesmo quando interrompida,
pelo avanço de outras instituições, sua dominação
temporal, o poder hierocrático, inclusive nas sociedades
não submetidas à doutrina cristã, segue sendo
o fator principal nos pactos com outros poderes ideológicos.
O passo fundamental deste processo de dominação
espiritual crescente foi a transformação dos carismas
(dons), aí incluídos os sacramentos, de um ato do
operador (carismático) em um ato da instituição
(Igreja), representada por seus sacerdotes. Na concepção
inicial, era essencial o estado de graça, ou seja, a pureza
moral de quem difundia o carisma, ficando invalidado o ato ritual
na situação de pecado do sacerdote. Posteriormente,
por obra da Igreja, os dons ou carismas deixaram de ser possuídos
pelo carismático, que o comunicava a título pessoal,
para pertencer exclusivamente à Igreja, que se intitulou
depositária de toda a graça, alegando ser-lhe a
mesma concedida por Deus. Dessa forma, deixava de ser invalidante
a situação de pecado do oficiante que na verdade,
se convertia em um mero funcionário institucional anônimo,
sem atributos carismáticos próprios.
À medida que diminuía o peso e
a presença dos carismáticos propriamente ditos,
adquiria crescente importância a designação
de membros das igrejas locais para desempenhar funções
comunitárias, de assistência e de administração.
Consolidando-se a “sacramentalização da ordem”
(ordenação de sacerdotes) e distanciando-se o papel
predominante da “assembléia de fiéis”
na designação dos cargos, o ritual judaico da imposição
de mãos vai adquirindo relevo preponderante; primeiramente
é a hierarquia apostólica, e, a seguir, os bispos,
que aparecem como transmissores da matéria do mistério.
O papel da assembléia dos fiéis, antes o mais importante,
foi gradativamente perdendo terreno no consentimento e na aclamação,
inclusive, ante os bispos forâneos. Por esta via, tanto
a transmissão de carismas quanto a sucessão apostólica
(ordenação) sofreram um processo de burocratização
sistemática.
Nas últimas décadas do século
III, a burocratização do sacramento da ordem é
plena e irreversível, chegando a interpretação,
mágica e mecanicista, dos símbolos sacramentais,
ao cúmulo de outorgar plena legitimidade às ordenações
de membros de reputação sacrílega ou herética.
Reassumindo o poder pleno na linha de seus interesses, o episcopado
monárquico converteu a Igreja em um organismo oligárquico-autoritário,
que culminaria na monarquia absoluta da Sé Romana.
O passo decisivo se deu quando a sucessão
episcopal começou a ser concedida, não como sucessão
de cargo, conferida pela eleição da comunidade,
mas como transmissão do carisma conferido pelo rito da
consagração ou ordenação. A Igreja
já havia decretado, por meio de seus bispos, que a santidade
celestial não residia no eventual estado de graça
de seus membros, mas sim, em sua própria qualidade de depositária
institucional dos carismas transmitidos por Cristo. Tal questão
é de importância superlativa.
Inicialmente, a Igreja assumiu a noção
escatológica-messiânica de “comunidade dos
justos”. Como a parousia era dada como iminente, essa comunidade
não necessitava de organização alguma. Porém,
o tempo passava e Cristo não vinha. Não houve, pois,
parousia. Houve, no entanto, uma recaída em pecado, após
o batismo, tanto para ovelhas como para os pastores. Os efeitos
da purificação pelo batismo, supostamente definitivos,
acabaram sendo desmentidos pelos fatos. O que era inicialmente
a “comunidade dos eleitos”, foi se transformando em
uma estrutura organizada para durar. Mas como legitimar teologicamente
esta contraditória novidade? Este foi realmente um grande
problema doutrinal da Igreja. E, juntamente com este, havia que
considerar a rotinização do carisma e a institucionalização
da graça.
A dilação “sine die”
da vinda de Cristo, obrigou a Igreja a abandonar a visão
paulina do renascimento no Divino salvador que chegaria. Houve
então, a metamorfose da “comunidade sobrenatural
dos santos”, criada pela esperança messiânica
nunca chegada, em uma Igreja empírica, regida pelos meios
naturais da sociedade vigente. Apesar da oposição
acerba dos cristãos mais rigorosos, marcionistas, montanistas,
donatistas, e outros, a já então denominada Igreja
Católica considerou vãs as suas pretensões.
Houve então a necessidade de improvisar uma eclesiologia
que explicasse teologicamente o fato generalizado do pecado e
habilitasse os meios de perdão.
A idéia paulina da Igreja, no sentido
estrito do conjunto dos eleitos coparticipantes da Ressurreição_
como corpo de Cristo, baseava-se na concepção pessoal
que teve Paulo da redenção como um atual morrer
e ressuscitar em Cristo, através do batismo. Tal noção
foi abandonada pela Igreja. A redenção passou a
ser interpretada como a união do corpo físico do
batizado com o Logos-Filho de Deus, ficando desta forma, assegurada
a imortalidade.
Tal imortalização seria consumada
com a futura ressurreição, ao final dos tempos.Assim,
a redenção passa a ser concebida em termos totalmente
helenísticos, como uma divinização mediante
o renascimento, no estilo dos cultos mistéricos. O corpo
de Cristo, neste conceito de redenção, passa a significar
a Igreja institucional, com sua capacidade soteriológica,
como um organismo sócio-sobrenatural, no qual o Logos-
Filho de Deus (Cristo) alcança a redenção
através dos sacramentos.
No dizer de Ireneo de Lyon, onde está a Igreja, também
está o espírito de Deus, e onde está o espírito
de Deus, está também a Igreja. Em lugar de participar
do Reino iminente, como havia anunciado Jesus, participava-se
agora, da Igreja, num mundo em que nada, na verdade, mudou. A
técnica sacramental constituiu-se na ferramenta essencial
de toda a eclesiologia.
Subsistia, contudo, a magna questão da
remissão dos pecados. Tanto para o pecado das “ovelhas”,
como para o dos “pastores”, a solução
encontrada foi o desenvolvimento do monarquismo episcopal. Inicia-se
com a I Epístola de Clemente e sua incipiente doutrina
da sucessão apostólica; consolida-se com Ignácio
de Antioquia, em princípios do século II, por sua
teoria do ofício episcopal (afirmação dos
bispos); finalmente, aperfeiçoa-se com a tese da representação
da igreja como um todo pelo colégio episcopal. Ignácio
já havia dado por assentado que o bispo era, com respeito
à comunidade, o representante de Deus e de Cristo e, como
tal, designado como mandatário para fazer a mediação
da graça sacramental à “eclésia”
(Igreja), assim como para dirigi-la e decidir sobre tudo o que
os fiéis necessitassem para sua salvação.
A estrutura política do Império Romano passa a ser
o principal modelo do novo governo religioso.
No dicionário prático da Bíblia,
edição Barsa, 1966, encontramos a seguinte definição
de sucessão apostólica: “a sucessão
contínua de bispos legitimamente sagrados desde o tempo
dos apóstolos até o presente. Através desta
sucessão, a autoridade de reger e ensinar, bem como os
poderes de ordenar sacerdotes (bispos) e de sagrar bispos (Papa),
conferidos por Cristo a Pedro e aos outros apóstolos, passaram,
por sucessão, ao Papa e bispos da Igreja Católica”.
E assim, a história da Igreja foi feita e conseguiu atravessar
os séculos até nossos dias.
Nas comunidades de raízes paulinas, havia
“episkopoi”, os chamados vigilantes, porém,
nunca no sentido de hierarquização monárquica
dos bispos atuais. A eficácia dos sacramentos cristão-paulino-primitivos
não dependia de uma consagração especial,
nem no caso do batismo nem ceia do Senhor. Por conseguinte, ainda
não existia necessidade alguma de uma ordem hieráquica
de mediadores sacerdotais da salvação. Daí
que esta novíssima estrutura eclesial requeresse uma sanção
teológica.
Ignácio havia recorrido ao uso dos privilégios
dos mártires, como especialmente qualificados (tais privilégios),
para referendar a difusão dos carismas. Neste uso se concentrava
o chamado poder das chaves _ o poder de governar fiéis
_ com o qual se fortalecia a sucessão apostólica,
já destacada por Clemente. A doutrina de Ignácio,
porém, poderia pôr em concorrência mártires,
confessores (os que se dispunham a dar a vida pela fé)
e bispos, o que realmente ocorreu. Por todos os modos, era buscado
o monopólio hierárquico. A descontinuidade da existência
de mártires ou confessores, porém, inclinou a balança
a favor dos funcionários permanentes, ou seja, dos bispos.
Estes obtiveram então, o título de sucessores dos
apóstolos na doutrina oficial da Igreja. Com Cipriano de
Cartago foi definitivamente estabelecido o dogma da autoridade
plena dos bispos, e com este dogma, se resolveu a questão
de “santidade” ainda que não sem muitas disputas
e resistências. A Igreja pós-apostólica decidiu
as controvérsias mediante um decreto formal de seus bispos,
segundo o qual, a santidade da Igreja não depende da pureza
de seus membros. Ora, se a santidade da Igreja não depende
da santidade particular de seus membros, nem sequer a do episcopado,
(bispos), tampouco pode depender a validade dos sacramentos da
moralidade de seus sacerdotes. Então o batismo, que é
o sacramento do rito de passagem à condição
de cristão, também comportava a eliminação
não só da adesão consciente do batizado,
mas também do requisito de seu uso pela razão, o
que foi feito.
Muitos exegetas modernos negam que o batismo
tenha sido instituído por Jesus. Na verdade, nem Jesus,
nem os apóstolos, nem a Igreja Cristã dos primeiros
séculos, tiveram a mínima idéia que Deus
fosse trino. O credo trinário só foi aprovado pelo
Concílio de Nicéia, em 325, por imposição
do Imperador Constantino. A doutrina vigente mantém que
o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três
pessoas (hipóstases) que compartilham da mesma substância
(ousia) e da mesma energia (energeia), mas até chegar a
esta tese, seus defensores tiveram que lutar violentamente contra
os que mantinham posições teológicas contrárias.
A análise posterior, feita por especialistas independentes,
sustenta que o evangelho de Mateus, original, termina em Mt 28.15,
sendo os cinco versículos finais uma interpolação
tardia. Assim, como poderia Jesus dizer como em Mt 28.19: “Ide
pois e ensinai a todas as gentes: batizando-as em nome do Pai,
e do Filho, e do Espírito Santo”, se a doutrina trinitária
só seria estabelecida três séculos mais tarde?
É muito provável que tenha sido
João Batista quem elevou o batismo, de simples ato de purificação
a símbolo de arrependimento, isto é, querido e assumido.
Porém, foi Paulo quem iniciou a doutrina mística
do batismo como ritual de renascimento efetivo do batizado na
vida espiritual do Cristo Ressuscitado (renascido em Cristo),
exigindo que fosse um ato único e irrepetível, dramaticamente
assumido com todas as potências anímicas (conhecimento,
desejo, vontade).
O salto a uma concepção de sacramento
operado pela instituição significa pois um regresso
a uma visão mágica do simbolismo sacramental. Permite
medir a distância que existe entre a doutrina de Paulo e
a Igreja posterior, ainda que Paulo tivesse se afastado grandemente
da primeira comunidade cristã e do culto judaico-cristão.
A religião cristã, além
disso, reintroduziu a politeísmo prático, através
do culto à imagens e aos santos, além de introduzir
a doutrina trinitária, de forte tonalidade antropomórfica.
Também restaurou conceitos essencialmente mágicos,
apesar de sutis reelaborações teológicas.
A orientação mágica, das religiões
mistéricas antigas, veio impregnar de modo sensível,
o repertório das práticas sacramentais do cristianismo.
Nas religiões mistéricas, baseadas
na existência de um Salvador – geralmente um ser mais
ou menos divino e encarnado, que se submete a si mesmo ao sacrifício
– o sacerdócio administrador desenvolve como ética
religiosa uma pretensa revelação. Doutrina e sacerdócio
reforçam-se reciprocamente e projetam uma simbiose na distribuição
da graça que o Salvador acumulou. Há sempre uma
dupla face: mágica e ritual. No princípio a doutrina
sacramental se apóia na posse “pessoal” detida
pelos profetas, dos dons e graças. À medida em que
a profecia passa a ser rotina, o funcionário sacerdotal
vai substituindo definitivamente o profeta, porém o estado
de graça dele é exigido. Deve haver pureza ritual
e moral. Ao final deste processo, no entanto, é a organização
que detém o monopólio da gestão carismática,
e são os seus funcionários sacerdotais que, através
um ritual essencialmente mágico, na prática, distribuem
os carismas. O ato é independente da pureza do executante.
Seguindo este modelo, a Igreja erigiu sua doutrina,
adquirindo todo o seu significado o lema “extra ecclesium
nulla salus” _ fora da Igreja não há salvação_
pois somente um delegado da instituição pode ministrar
os dons santificantes, garantindo assim, a base permanente do
proselitismo eclesiástico. Este axioma costuma passar por
um simples postulado soteriológico, no sentido de que só
a fé cristã salva o indivíduo. Mas seu significado
inocente não é o que corresponde ao axioma, pois
não se trata de um mero postulado de fé, e sim de
um postulado de poder: sem os sacramentos, não há
salvação, e sem Igreja, não há sacramentos.
E assim se exerce um poder total e hegemônico sobre as consciências.
O arquétipo histórico da intolerância
no mundo antigo foi representado pelo judaísmo;porém
tratava-se de um intolerância por exclusão. Era motivada
pela extremada consciência intragrupo, na convicção
de um singularidade única, orientada por um obsessivo sentimento
etnocêntrico de ser um povo diferente, beneficiário
de um Deus superior. O cristianismo seguiria nessa mesma esteira,
porém desembocando em uma intolerância por inclusão.
Praticando um proselitismo pugnaz e avassalador, procurava ocupar
todos os espaços possíveis, a fim de forjar uma
estrutura universal de fé e de obediência.
A ascensão ética da humanidade
foi sempre carregada, em maior ou menor medida, de concepções
míticas, geradoras de credos religiosos. No entanto, estes
nunca se apresentaram como cruzadas do proselitismo, sob o signo
da intolerância religiosa. Esta vocação foi
sempre característica da herança judaico-cristã,
que dificilmente poderá pagar sua dívida de sangue
e de sofrimento moral, que contraiu no curso de sua implantação
nos povos que avassalou. Emancipar a humanidade dos mitos sancionados
pelas religiões vigentes _ em particular pelas revelações
proféticas ou religiões do Livro_ é uma das
tarefas urgentes de nossa hora.
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mandar sobre quem manda
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003
Se há algo que se deve reconhecer no cristianismo
e, sobretudo, na Igreja Católica, é a sua capacidade
de supervivência, apesar do tempo e de dificuldades, mostrada
através das vissicitudes da história. Os fiéis
costumam reafirmar seu caráter divino, que lhes teria permitido
superar embates do tempo, enquanto outras instituições,
impérios, potências, crenças ou regimes caíam
ao seu redor. No entanto, ao fim e ao cabo, é o mesmo o
que pensam, em outros âmbitos, os fiéis do judaísmo,
do islamismo e das grandes religiões do Oriente, que não
só resistiram aos ataques históricos mais diversos,
como também, em alguns casos, persistiram em seus princípios
e renasceram das próprias cinzas.
Contudo, para aqueles que abordam este assunto
sob uma perspectiva agnóstica, isto é, estranha
à eventual componente sagrada, tais modificações
deslocam-se do espaço emocional para se tornar um questão
íntima da consciência individual de cada um. O cristianismo,
e sobretudo a Igreja que o sustém, sempre foi o suporte
de pessoas humanas, que, em seu trânsito de ascensão,
valem-se da pseudo numinosidade transmitida pelo seu projeto para
fabricar um núcleo de poder transcendente, a partir do
qual exercem influência e estendem sua autoridade com uma
amplitude cada vez maior.
Com base nesse paradigma, a história eclesiástica
tem transcorrido e se desenvolvido, com intolerância, sobre
o setor da humanidade que pode tomar a seu cargo, usando para
isso procedimentos de todo tipo, inclusive despóticos.
Paralelamente, adaptando-se às circunstâncias de
momento e olvidando, quando necessário, os mesmos princípios
de que se vangloriava, a Igreja conseguiu sobreviver aos acontecimentos
adversos e emergir das ruínas, criadas, muitas vezes, por
ela própria. Para isso, sempre soube valer-se de suas origens
teoricamente divinas. Venceu dificuldades ideológicas,
conspirou de forma encoberta e retorcida contra regimes que manifestavam
hostilidade aos seus esquemas, ainda que tolerassem sua presença,
e colaborou em todos os distúrbios cuja vitória
pudesse beneficiá-la de alguma forma, por cruéis
e brutais que pudessem ser. E sempre, em defesa de seus interesses,
vangloriou-se de seus particulares sofrimentos, tolerando, mas
provocando em contrapartida, sem a menor compaixão, as
dores e angústias dos que se mostravam reacionários
a deixar-se dominar por suas intenções absolutistas
em prol do domínio universal.
Quando repassamos a história da Igreja,
ao menos desde os tempos de Constantino, o Grande, e ao longo
dos 400 anos seguintes, causa-nos surpresa descobrir que a maior
parte de seus problemas e a base de todos os conflitos em que
esteve envolvida, foram condicionadas por questões teológicas
que se poderia qualificar como pueris. As mais diversas famílias
eclesiásticas se degladiavam, e se condenavam mutuamente
como heréticas, por suas diferenças de critério
sobre a personalidade de Cristo. Até mesmo as relações
da Igreja com o Império ora se deterioravam ora se reconciliavam,
segundo os soberanos e os que os cercavam se inclinassem caprichosamente
para uma ou outra solução doutrinal. E eram várias
as que se sucediam a respeito da pessoas, origem, natureza, substância,
vontade ou das energias do Salvador e de sua presumida relação
com o destino final dos homens, o qual teria que ser a meta de
todo sentimento transcendente.
Tais discussões bizantinas encerravam
outros motivos, não revelados. Estes, necessitavam expressar-se
mediante conceitos de complicada doutrina para não desvelar
as razões mundanas que na realidade continham. Razões
que não eram senão um empenho continuado e intolerante
para fazer-se respeitar pela comunidade de fiéis. Não
envolviam idéias convincentes, mas sim o propósito
de conduzir à obediência passiva, mediante a mansa
adesão dos fiéis à vontade dos supostos representantes
de uma divindade inalcançável, só intelegível
para os poucos eleitos
No fundo, tanto as proclamadas verdades teológicas
como os dogmas inamovíveis de aceitação obrigatória,
assim como boa parte da doutrina que foi sendo desenvolvida pelo
cristianismo, não chegavam a constituir sequer uma filosofia
de transcendência. Não eram, em sua maior parte,
senão palavras ou atitudes etiquetadas, ocas e ritualizadas.
Desconcertadamente concebidas em suas origens, dissimulavam, em
geral, sob a capa de uma doutrina estruturada, a necessidade de
obter o mais alto grau de submissão por parte dos crentes.
Assim, a Igreja justificava a relação de dependência
absoluta que sempre manteve com seus fiéis e que segue
caracterizando, até hoje, sua ânsia de dominação
e de poder.
Nesse contexto, a cabeça visível
da instituição, isto é, o Sumo Pontífice,
perde imediatamente seus atributos distintivos como ser humano,
para converter-se em uma figura representativa do poder que simbolizava.
Sua categoria humana passa a constituir um traço complementar
de sua pessoa, porém de nenhuma maneira uma qualidade essencial
capaz de condicionar o rumo estabelecido pela Igreja que preside,
a qual será sempre guiada pelo propósito que a caracterizou
desde que foi criada.
A Igreja Cristã, em realidade fundada
por Paulo de Tarso, desenvolveu-se como uma iniciativa decidida
de poder universal e como uma opção suscetível
de converter-se em um autêntico governo teocrático
do mundo. A necessidade de um pontífice que a representasse
formava parte de sua própria estrutura, do mesmo modo que
uma “holding” necessita de uma representatividade
concreta, porque, em última análise, não
é mais do que uma abstração.
A Igreja, pois, tentou materializar os princípios
de autoridade, já praticamente perdidos com o poder bizantino,
em todos os estados em que estava presente depois da queda do
Império Romano, ou seja, todos aqueles em que se dividiu
a Europa ocidental após a invasão dos povos bárbaros.
O reino franco, que se estendia por territórios que na
atualidade abarcam amplas zonas da França e da Alemanha,
contava com uma numerosa população católica.
Em tempos do papa Gregório, sentava no trono franco Clóvis
I, ainda pagão, membro da dinastia dos merovíngios.
Esta dinastia havia sido fundada por Meroveu,
membro de uma tribo germânica pagã, adoradora de
uma Deusa-Mãe que nos tempos romanos havia sido identificada
como Diana. As origens desse rei mítico estavam ligadas
à misteriosa magia de seu nascimento, que lhe havia atribuído
poderes sobrenaturais, capazes de fazer com que, entre sua gente,
fosse considerado uma espécie de semi-deus. Entre seus
descendentes estava seu bisneto Clóvis,
que reinou entre os anos 481 e 511.
Profundamente venerado por seus súditos
e surpreendentemente ativo e empreendedor, Clóvis lançou-se
à conquista da Gália já cristianizada, anexando
boa parte dos territórios que na atualidade constituem
o solo francês e os chamados Países-Baixos. Casou
com uma cristã borgonhesa chamada Clotilde, posteriormente
canonizada pelo Vaticano. Graças ao trabalho de proselitismo
de Clotilde, que exercia considerável influência
sobre o marido, Clóvis converteu-se ao catolicismo e, juntamente
com ele milhares de francos de ambos os sexos.
Mediante um pacto prévio com o papa, fez-se
a unificação de todos os povos conquistados por
Clóvis, constituindo-se assim um novo império católico,
adotado pela autoridade pontifícia e capaz de enfrentar
os heréticos, adeptos do arianismo. Com isso foram cortadas
as amarras que ainda prendiam Roma ao Império Bizantino,
com sede em Constantinopla.
Em 496, com seu batismo na catedral de Reims,
juntamente com 3000 guerreiros merovíngios, Clóvis
escutava de Saint Remy, bispo da cidade, as palavras que o convertiam
em súdito tácito da Igreja:
“Mitis depone colla, sicamber, adora quod
incendisti, incendi quod adorasti” . Inclina humildemente
a cabeça, sicambro (da Germânia), adora quanto incendiaste,
incendeia quanto adoraste”.
Naquele momento recebia das mais altas instâncias
da Igreja o apelativo de “Novus Constantinus” e aceitava
o destino que se lhe determinava: converter-se em um autêntico
imperador do Ocidente europeu, o embrião do que viria a
chamar-se Sacro Império Romano Germânico. Desde aquele
instante, até sua morte em 511, Clóvis ampliou as
fronteiras e formou uma unidade política que permitiu sua
vitória sobre os visigodos e sobre os próprios aliados
borgonheses.
Contudo, aquela unidade era absolutamente fictícia,
pois, apesar da recém- adotada catolicidade, o antigo costume
dos merovíngios de dividir o reino entre filhos e parentes,
desatou, a partir da morte de Clóvis, uma longa série
de episódios sangrentos, só resolvidos mediante
extorsões e assassinatos. A realização daquele
idéia imperial, que a Igreja havia concebido como solução
para seus problemas, e como partida definitiva para o domínio
da Europa ocidental, tornou-se praticamente inviabilizada.
Seguindo, pois, a prática usual dos merovíngios,
os sucessores de Clóvis consideraram o território
de seu reino como propriedade particular. Seus filhos lançaram-se
uns contra os outros até que Clotário, desfazendo-se
de seus irmãos, conseguiu deter o poder total . Neste jogo
de morte, a Igreja se convertia, enquanto lhe convinha, em aliada
de todos, ainda que, para conseguir a vitória final, tivesse
que praticar crimes e traições. Isso provocava,
não raro, represálias contra o clero e, sobretudo,
contra aqueles prelados que haviam se colocado do lado vencido.
Contudo, uma ajuda, um conselho ou um pronunciamento terminavam
quase sempre em concessões, até que os grandes bispos
permitissem qualquer excesso e perdoassem, e até fomentassem
qualquer tipo de crime em troca de melhora de seu status.
Quando se conhecem os luxos realmente principescos
dos prelados francos, os palácios e os templos que mandaram
edificar e os territórios que possuíam comprova-se
que constituíram sempre um constante atentado à
teórica humildade proclamada pela Igreja. E enquanto incrementava
seu patrimônio e fazia crescer seu poder político
e econômico, diminuía a fé e caía ao
solo aquele princípio de cultura na qual o clero chegou
a ser representante destacado. De outra parte, o culto às
relíquias incrementou-se até se converter em um
negócio rentável para o erário eclesiástico,
o qual, aproveitando-se das superstições pagãs
que o povo ainda mantinha pelos amuletos mágicos, utilizou-as,
como seguiu utilizando-as durante muitos séculos, para
seu próprio proveito.
O último descendente de Clóvis
por linha direta, Dagoberto II, foi assassinado durante uma caçada.
Alguém cravou uma lança em seu olho, ao tempo em
que a sua família era exterminada no palácio onde
residia. É conservada uma carta de um bispo franco a Winfried
de York, depois conhecido como São Bonifácio, onde
se justifica e até se enaltece o regicídio. Apesar
disso, Dagoberto foi enterrado na Capela Real e dois séculos
mais tarde, canonizado. Nestas circunstâncias, pode-se pensar
que a Igreja, depois de haver depositado confiança em Clóvis,
com vistas à criação de um Império
que a libertasse dos velhos compromissos com Constantinopla, considerou
conveniente dar um giro total no rumo político daquele
propósito.
O cristianismo institucionalizado necessitava
ter a sua disposição um braço armado para
implantar e fazer respeitar “urbi et orbi” sua incessante
vontade de domínio. Do Império Romano não
havia obtido mais do que o reconhecimento oficial, ou o recurso
à ação direta em casos pontuais, como quando
entregou Prisciliano aos soldados imperiais para que o decapitassem,
quando foi condenado por heresia. Com o avanço muçulmano
por um lado e a conquista lombarda da península itálica
por outro, urgia dispor de uma força militar a seu serviço.
Foi então que, como do nada, surgiu um
documento apócrifo que vinha resolver qualquer dúvida
sobre o direito do papado de contar com uma força de choque
que atuasse como braço armado a seu serviço. Foi
a chamada “Doação de Constantino” ,
que simulava ter sido redigida 400 anos antes (312). Por este
documento, a Igreja seria detentora da autoridade imperial total,
podendo dispor tanto da coroa como de seus atributos, cujo poder
poderia delegar a quem lhe aprouvesse. Por este meio, puramente
capcioso e falso, o papado se arrogava o direito inalienável
de nomear e depor imperadores e reis a seu critério, sem
que precisasse para nada do referendo de Constantinopla. Além
disso, o papa recebia em propriedade não só a cidade
de Roma “mas todas as províncias, distritos e cidades
da Itália e das regiões ocidentais”.
A falsidade deste documento somente se evidenciou
no século XV. Na realidade, tudo indica que o falso documento
foi inventado entre 714 e 750. A ambiciosa engrenagem de poder
da Igreja se pôs, a partir de então, definitivamente
em marcha. Ninguém parecia discutir seu direito de intervir
na vida secular do mundo cristão. Podia contar com o apoio
da sociedade civil, porque a Igreja já não reconhecia
reis: nomeava-os, atribuindo a si mesma a transmissão da
“Graça de Deus”, mediante o ritual da unção.
Então, todos os monarcas passavam, em essência, a
ser subordinados do pontífice.
O papa Estevão II se apressou a conceder
a Pepino, o Breve, o título pontifício de patrício
romano, em troca do que este comprometeu-se a proteger a cidade
e o papado. Com isso, a Igreja conseguiu obter um soldo de ouro
por habitante da Cidade Eterna, tributo que o duque lombardo Astolfo
havia imposto aos romanos.
Desde então, e ao longo dos seguintes
1200 anos de história da Igreja até os nossos dias,
qualquer acontecimento supostamente sobrenatural seria admitido
e propagado aos quatro ventos, enquanto contribuísse para
aumentar o prestígio da Igreja, mas, ao contrário,
seria condenado se, por alguma razão, viesse a prejudicar
seus interesses. A Igreja, enquanto pode, manipulou como quis
a existência dos cristãos, do rei ao último
escravo; controlou a vida pública e a particular de cada
um através do sacramento da confissão ou da obrigatoriedade
de delação ante qualquer ofensa institucional, determinou
condutas e estabeleceu níveis universais de comportamentos,
leituras, justiça, sentimentos e vontade.
Afirmava estar em posse exclusiva da “Verdade
Absoluta” estabelecida por Deus e tudo o que dizia e determinava
era considerado como Vontade de Deus, ainda que se tratasse do
maior desatino ideado por um papa ou pelo mais indigno dos membros
de sua estrutura hierárquica. O único obstáculo
ao exercício de uma autoridade absoluta era ainda a falta
de um exército poderoso. Procurou então obter a
ajuda do exército mais poderoso de todos: o de Carlos Magno,
a quem a Igreja havia ungido. Em resposta ao pedido de Leão
III, Carlos Magno deixou assentadas suas intenções
a favor do pontífice:
“Minha tarefa, assistido pela piedade divina,
consiste em defender em todas as partes a Igreja de Cristo...”
No entanto, os conflitos internos subseqüentes,
puramente políticos, e certamente muito pouco piedosos,
fizeram com que as palavras de Carlos Magno não passassem
de algo mais do que uma formulação de intenções
e que os projetos imperialistas da Igreja tivessem de contentar-se
em aceitar o respeito, porém não a submissão,
daquele Império Ocidental que sempre teve a intenção
de submeter ativamente.
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a hipótese animista
João Laurindo de Souza Netto
Em sua obra mestra “Primitive Culture”,
publicada em 1871, Edward Tylor, considerado o primeiro grande
nome da antropologia, talvez o mais renomado até o presente,
soube associar harmonicamente a indagação fenomenológica
com o esforço interpretativo. O material fenomenológico
é o suporte dado pelos fatos, sem o qual não é
possível identificar as crenças e os conteúdos
mentais do homem primitivo _ quer se trate do pré-histórico,
quer do atual. Na esfera da religião, a investigação
antropológica tem como meta conhecer as crenças
religiosas dos povos pré-históricos, com base na
análise e na interpretação do material fenomenológico
disponível, com o especial propósito de conhecer
como e quando os seres humanos começaram a manifestar sentimentos
que, muito mais tarde, puderam ser identificados como religiosos.
O animismo é uma concepção
básica do mundo. Constitui um alicerce, compacto como rocha,
da visão dualista corpo-alma, sobre a qual vieram a se
assentar todas as filosofias espiritualistas que alimentam as
inumeráveis formas de fé religiosa. A apologética,
contudo, isolou o termo animismo para designar as crenças
e práticas religiosas de certas etnias africanas. Isso
lhe permitiu realizar estrategicamente a exclusão das grandes
religiões do gênero animismo, termo que, no entanto,
as define a todas por igual quanto à essência, ainda
que vistas com roupagens bastante diferentes.
Em sua obra, Tylor interpreta a gênesis,
ou seja, a origem, da crença animista de forma muito detalhada:
“Pode-se explicar o que é a doutrina
da alma entre os homens primitivos, estabelecendo-se a teoria
animista e seu desenvolvimento. Parece que os seres pensantes,
ainda num nível muito baixo de cultura, estivessem profundamente
impressionados por dois grupos de problemas: em primeiro lugar,
qual é a diferença entre um corpo vivo, durante
o sono, e um corpo morto? Que é o que dá origem
ao despertar, ao sonho, à alienação, à
enfermidade, à morte? Em segundo lugar, o que são
as formas humanas que aparecem nos sonhos e nas visões?”
Tais questões referem-se a experiências
que se apresentam ao homem desde o início da pré
história, para as quais, desde então, este tem buscado
respostas capazes de apontar para as raízes dos fatos.
A análise de Tylor leva à conclusão de que
as alegações de irracionalidade, quando não
de suposta estupidez do homem pré-histórico, obedecem
a preconceitos deliberados, que nada têm de científicos.
Prossegue Tylor em sua análise:
“Atendendo pois a estes dois grupos de
problemas, os “pensadores” pré-históricos
deram, provavelmente, seu primeiro passo. Sua dedução
óbvia era a de que todo homem teria duas coisas próprias
de si mesmo, a saber, uma vida e um fantasma. Ambos estariam,
evidentemente, em estreita relação com o corpo;
a vida permitindo-lhe sentir, pensar e atuar, e o fantasma constituindo
sua imagem ou segundo eu. Ambos seriam percebidos como coisas
separáveis do corpo: a vida por poder abandoná-lo
e deixá-lo insensível, ou seja, morto; o fantasma
por poder aparecer a outros, longe dele, em sonhos ou visões.
O segundo passo parecia também muito fácil de ser
dado por aqueles primitivos, sobretudo se comparado com a dificuldade
encontrada pelos civilizados para desandá-lo, ou seja,
invalidá-lo. Trata-se simplesmente de combinar a vida e
o fantasma. Dado que ambos pertencem ao corpo, por que não
haveriam de pertencer também um ao outro e ser manifestações
de uma só e mesma alma? Que sejam considerados, pois, como
unidos, sendo o resultado essa bem conhecida concepção,
tão própria dos antigos, descrita como um alma-aparição
ou alma-espectro.”
É necessário evitar a interpretação
desta hipótese de Tylor como se o homem pré-histórico
tivesse elaborado mentalmente um arrazoado formal, do tipo dedutivo,
ou uma exposição de caráter silogístico.
Ao contrário, deve-se supor que a vaga interpretação
de que dispunham os primitivos era apenas a de uma inferência
de que existiria um elemento anímico, o que evidentemente,
não equivaleria a pensar em termos de um conceito preciso
e bem definido do que, muitos milênios depois, veio a ser
designado como alma, ou, em latim, anima, donde o termo animismo.
Na verdade, a forma concisa adotada por Tylor pode levar a uma
tergiversação, principalmente nos casos de interesse
ideológico ou de caráter religioso. Apesar disso,
constata-se, ainda hoje, entre as massas ignaras, e até
mesmo em meios cultos, a crença em aparições,
fantasmas, espectros, etc., de que se valem aqueles que exercem
o poder para influenciar, de alguma forma, esses grupos.
Continua Tylor:
“Em todo caso, isto corresponde à
autêntica concepção da alma para o homem primitivo,
a qual poderia ser definida como segue: uma imagem humana, sutil
e imaterial, constituindo, por sua natureza uma espécie
de vapor, de película ou de sombra; seria a causa da vida
e do pensamento no indivíduo ao qual animaria; possuiria
independentemente a consciência e a vontade pessoais de
seu dono corpóreo; seria capaz de desprender-se do corpo
para transladar-se, fulgurantemente, como um relâmpago,
de um lugar para outro; fundamentalmente impalpável e invisível,
também mostraria um poder físico e poderia aparecer
aos homens, acordados ou adormecidos, como um fantasma separado
do corpo, cujo aspecto conservaria; continuaria existindo e aparecendo
aos homens depois da morte desse corpo; seria capaz de introduzir-se,
de possuir e de atuar nos corpos de outros homens, de animais
e inclusive de coisas.” Ainda que esta definição
não seja, em absoluto de caráter universal, tem
o suficiente caráter generalizador para ser tomada como
uma norma, modificada por maior ou menor divergência dentro
de cada povo determinado.
E acrescenta ainda Tylor:
“É uma doutrina que responde, do
modo mais concludente possível à evidência
dos sentidos dos homens, interpretados por uma filosofia primitiva
mas totalmente consistente e racional. Na realidade, o animismo
primitivo explica tão bem os fatos naturais, que conservou
o seu lugar nos níveis superiores de ilustração”.
Há um trânsito teórico e
prático entre almas e espíritos. Originariamente,
parece provável que o homem pré-histórico
“projetou”, a partir de experiências e reflexões,
a noção de um ente anímico ou alma, como
contraparte de seu corpo, conforme foi bem detalhado por Tylor.
A noção de espírito, porém, dá,
paulatinamente, um passo adiante, desde que, na concepção
primitiva, as almas alcançam uma autonomia total frente
aos corpos respectivos. A partir de então, espíritos
de toda classe passam a constituir um mundo etéreo, que
circunda o mundo real.
Esta passagem vai desde o fenômeno animista original, que
define o desdobramento do indivíduo humano em um elemento
corporal e outro anímico, separável e distinto,
até um universo animado ou vitalista, povoado por espíritos.
É assim que a importância dos sonhos cede sua primazia
à experiência das visões, aparições
ou presenças desses entes chamados espíritos, algumas
vezes dotados de poderes sobre-humanos, outras vezes sem poder,
mas aos quais há que temer, propiciar ou exorcizar.
A crença em espíritos, ou numes,
com os apropriados matizes, foi o ponto de partida para os antigos
cultos religiosos, como cristalização das projeções
animistas originais. Cultos, ritos e mitos iriam então
modelar um mundo de emoções que conformaria o que
historicamente foi denominado espaço do sagrado.
Na análise de Tylor:
“O animismo caracteriza as tribos mais
primitivas da humanidade, e, a partir delas, vai ascendendo, profundamente
modificado, porém conservando, desde o princípio
até o fim, uma continuidade ininterrupta, mesmo em meio
à cultura moderna. A crença animista haveria de
proliferar com naturalidade nesse enxame de outros espíritos,
que, se diz...influem ou controlam os acontecimentos do mundo
material, e também a vida terrena e ultraterrena do homem;
e ao admitir que mantêm comunicação com os
homens e que as ações humanas lhes causam prazer
ou desgosto, a crença em sua existência conduz, de
um modo natural, quase poder-se-ia dizer inevitável, antes
ou depois, a uma reverência e a uma propiciação
ativas”.
Trata-se, pois, de um animismo ampliado e desenvolvido,
quase inevitável em comportamentos de caráter religioso.
Quando se formaliza a crença em espíritos autônomos,
os paralelismos com o corpo, do animismo originário, vão-se
debilitando e transformando em animismo religioso e vão-se
limitando ao papel de simples sucedâneos de seres espirituais
que já não necessitam do suporte corporal.
Sobre a questão do sentimento religioso
diz Tylor:
“Devemos admitir que a crença em
seres espirituais aparece em todos os povos primitivos. Ao longo
dos tempos, o uso da palavra animismo ultrapassa sua estreita
significação de doutrina das almas. Ao usá-la
para expressar a doutrina dos espíritos em geral,afirma-se
praticamente que as idéias de almas, demônios, divindades
e de qualquer outra classe de seres espirituais, são concepções
de natureza similar”.
O passo do animismo original ao animismo extensivo
se deu em um contexto intensamente emotivo. Originalmente, o halo
de numinosidade que acompanhava o descobrimento das almas humanas,
pelos primitivos, ainda não outorgava a essas ilusórias
entidades os extraordinários poderes que o ser humano das
culturas posteriores veio a atribuir aos espíritos, de
tal modo que uma explicação “racional”
veio a se transformar num “sentimento religioso”.
Só a partir desta transformação, o animismo
vai se converter em “religião”, com todas as
conseqüências estreitamente ligadas à angústia,
à dor e à morte, determinantes da “alienação
religiosa”, em cuja virtude o ser humano espera encontrar
a garantia de uma supervivência num “mais além”.
Tylor descreve esta passagem com bastante propriedade:
“Certamente, o animismo parece estar avançando
para concentrar-se em sua principal posição, que
é a “doutrina da alma humana”. Esta doutrina
experimentou uma extremada modificação no longo
curso da cultura. Sobreviveu à perda quase total de um
grande argumento inerente a ela: a realidade objetiva da alma-aparição
ou alma-fantasma, que aparece em sonhos e visões. A alma
então abandonou sua concepção de uma substância
etérea e se converteu, com o passar do tempo, em uma entidade
imaterial, na “sombra da sombra”. Sua teoria afastou-se
das investigações da ciência psicológica,
que agora discute os fenômenos da vida, do pensamento, dos
sentidos, da inteligência, das emoções e da
vontade, sobre uma base de pura experiência. O lugar da
alma no pensamento moderno está na metafísica da
religião, e sua missão especial consiste em proporcionar
uma vertente intelectual à doutrina religiosa de Vida Futura.
Contudo, apesar desta profunda mudança, a concepção
de alma humana continua desde a “filosofia” do “pensador”
selvagem até a do moderno professor de teologia. Sua definição
continua sendo, desde o princípio, a de uma entidade animadora,
separável e supervivente, o veículo da existência
pessoal individual. A teoria da alma tornou-se uma parte do sistema
de filosofia religiosa que une, em uma ininterrupta linha de conexão
mental, o selvagem adorador de fetiches e o cristão civilizado.”
Todas as grandes doutrinas religiosas do mundo
admitem a crença na continuidade da existência em
uma Vida Futura. Esta crença apresenta duas divisões
principais: uma é a teoria da Transmigração
das Almas, instalada sobretudo nas comunidades da Ásia,
grande em sua história, mas detida, em sua grande parte,
no seu progresso, como consequência da pobreza de sua enorme
população. A outra doutrina é a existência
independente da alma pessoal depois da morte do corpo, em uma
Vida Futura. Esta instalou-se no coração da religiosidade
moderna, na qual a fé em uma existência futura constitui
um movimento para a divindade, uma confortadora esperança
em meio aos sofrimentos desta vida e ao terror da morte, e uma
resposta ao confuso problema da distribuição da
felicidade e da miséria neste mundo, mediante a expectativa
de outro em que tudo se ponha na devida ordem.
A crença em espíritos, almas ou
numes, com todos os matizes, é o ponto de partida para
a fabulação religiosa como cristalização
das projeções animistas originais. Cultos, ritos
e projeções iriam modelando esse mundo de emoções
que conformam o que, historicamente, foi denominado “sentimento
religioso”, que supostamente, influi, ou até mesmo
controla, os acontecimentos do mundo real.
Ainda que não tenha sido tema do livro
de Tylor, aqui analisado em seus pontos essenciais, poder-se-ia
acrescentar que, de maneira bastante surpreendente, o mundo civilizado
vem sofrendo uma nova invasão de “espíritos”
de toda natureza, que nos são impostos pela confusão
do que se poderia chamar “fase anárquica do animismo”,
onde igrejas e seitas competem ferozmente no “marketing
do irracional”, fortalecendo as velhas culturas do milagre
para impor as suas “verdades” através de sacerdotes,
pastores e gurus. Todos pregando a doutrina da alma à sua
própria maneira. E, é preciso dizer, são
aceitos pelas massas não pensantes, ou pseudo-pensantes,
que os seguem fielmente como ovelhas ao caminho do aprisco.
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milagres
João Laurindo de Souza Netto
Segundo parece, os “administradores dos mistérios
de Deus” _expressão de Paulo em 1 Cor 4.1. _ apontam
desdenhosamente àqueles que, como mentes de curto alcance,
são incapazes de elevar-se à sublime contemplação
dos mistérios, para o que se exige o sacrifício
do intelecto. Isso leva a crer que eles decidiram não ser
a razão o nível mais alto da inteligência
humana, que é considerada como instância diretora
dos critérios que devem governar a faculdade de julgar
os acontecimentos registrados em documentos suspeitos de falsidade
e, também, as doutrinas reveladas em escrituras supostamente
inspiradas por entes invisíveis. Envoltos nas brumas do
mistério, esses “administradores” despojam
o ser humano do atributo de sua dignidade racional e exigem dele
aceitação total.
R.H. Ibarreta, em 1883, cita os que são, a seu ver, os
três milagres principais relativos a Jesus: o nascimento,
a ressurreição e a ascensão.
Quanto à narrativa de Jesus ter nascido de uma virgem,
depois de cotejar com esmero as contradições e inconseqüências
dos textos de Mateus e Lucas, conclui: “naturalmente, se
desejará saber o que de particular dizem os outros dois
evangelistas, Marcos e João. Porém, nem um nem outro,
dizem uma só palavra sobre onde nascer Jesus, nem sobre
quem o concebeu nem sobre quem o engendrou, nem sobre estrela,
nem sobre Herodes, nem sobre fuga para o Egito, nem de nada enfim
referente ao seu nascimento”.Contra toda a expectativa,
Marcos e João não fazem qualquer citação,
embora este seja um acontecimento sobrenatural considerado fundamental
pela doutrina católica.
A respeito da ressurreição, diz
Ibarreta: “O primeiro que salta à vista é
uma surpreendente resistência por parte dos apóstolos
em crer que Jesus pudesse ter ressuscitado, o que demonstra que
todas as passagens dos Evangelhos que atribuem a Jesus sua ressurreição
ao terceiro dia, não são originais, mas sim, interpolações
tardias. Do contrário, como poderiam os apóstolos
negar a ressurreição?”
De fato, em Mc.16.11, temos:
“Mas eles, ouvindo dizer que Jesus estava vivo e que fora
visto por ela (Madalena), não o creram”.
Em Lc.21.10-11, encontramos:
“E as que referiam aos apóstolos estas coisas eram
Maria Madalena e Joana, e Maria, mãe de Tiago, e as demais
que estavam com elas. Mas o que as mulheres lhes diziam, pareceu-lhes
como um desvario, e não lhes deram crédito.”
Em Lc. 24.41:
” Mas não crendo eles ainda...”
Em Jo.20.9:
“Porque ainda não entendiam a Escritura, que importava
que ele ressuscitasse dentre os mortos”, referência
naturalmente ao Antigo Testamento, pois os Evangelhos ainda não
haviam sido escritos.
Em Jo 20.25:
“E se não vir nas suas mãos a abertura dos
cravos, e se não meter a minha mão no seu lado,
não hei de crer”.
Mas, além disso, os discípulos
ignoravam a tal ponto a expectativa da morte e ressurreição
de Jesus que nem sequer lhes era possível imaginá-la,
como prova o sentimento de surpresa e frustração
que expressam as palavras de dois deles, que se encaminhavam a
Emáus, ante a súbita aparição do Nazareno,
a quem não foram capazes de reconhecer:
Lc. 24.13-21: “E eis que no mesmo dia caminhavam
dois deles para uma aldeia, chamada Emaús... E eles iam
falando um com o outro... E sucedeu que chegou-se a eles Jesus.
E ele lhes disse: Que é isso que ides praticando e por
que estais tristes? E respondendo um deles chamado Cléofas,
lhe disse: Tu só és forasteiro em Jerusalém
e não sabes o que ali se tem passado estes dias? Ele lhes
disse: Quê? E responderam: Sobre Jesus Nazareno, que foi
um varão profeta, poderoso em obras, e em palavras diante
de Deus, e de todo o povo; e de que maneira os sumos sacerdotes
e os nossos magistrados o entregaram a ser condenado à
morte e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que
ele fosse o que resgatasse Israel: e agora sobre tudo isso, é
já hoje o terceiro dia depois que sucederam essas coisas”.
Para dissipar este sentimento de decepção,
o compositor evangélico faz Jesus replicar:
Lc.24.25: “Ó estultos, e tardos de coração
para reconhecer o que anunciaram os profetas! Porventura não
importava que o Cristo (Messias) sofresse estas coisas, e que
assim entrasse na sua glória?”
Note-se que o Nazareno nem sequer disse _ como
seria natural e procedente_ “o que eu vos anunciei”.
Mas, iniciando-se assim a grande manipulação exegética,
mediante os “vacitinia ex eventu” fabricados com materiais
veterotestamentários, não se refere em nada a si
mesmo, senão que aduz, com genérica vaguidade: “
o que anunciaram os profetas”, começando por Moisés...
Esta resistência em crer o que nunca foi imaginado é
a prova diáfana e concludente do caráter fraudulento
da proléptica (antecipada no tempo) ficção.
Esta falsidade e outras similares, é o
que “os administradores dos mistérios” qualificam
desdenhosamente de “crítica racionalista”.
Conclui então Ibarreta: resulta pois que no único
em que os quatro evangelhos estão conformes é que
ninguém, absolutamente ninguém, viu Jesus ressuscitar
nem sair do sepulcro”.
Não menos perspicaz é o exame que faz Ibarreta da
suposta ascensão de Jesus aos céus. A ela aludem
Marcos e Lucas:
Mc.16.19: “ E na realidade o Senhor Jesus, depois de assim
lhes haver falado, foi assunto ao céu, onde está
assentado à mão direita de Deus”.
Lc. 24.51: “E aconteceu que enquanto os abençoava,
se ausentou deles, e era elevado ao céu”.
As passagens de Marcos e Lucas não coincidem
entre si nem em tempo nem em lugar. Mateus e João omitem
simplesmente esta embaraçosa questão por motivos
derivados de suas respectivas teologias.
A busca da verdade, ainda que nunca a alcancemos,
nos faz livres. Para quem assim pensa, a idéia de uma verdade
intemporal e definitiva, outorgada por um criador onisciente,
consagra a arrogância dos administradores de mistérios
e a credulidade dos crentes, que dão as costas à
razão.
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parábolas
João Laurindo de Souza Netto
O testemunho das Parábolas do Reino é o argumento
mais apreciado pela exegese idealizante do “reino nos corações”.
Os biblistas apologetas afirmam que “Jesus usou as parábolas
para impor e ilustrar a idéia de que o Reino de Deus havia
chegado aos homens ali e então”.
A introdução “O Reino de
Deus é como...” apresenta uma certa rotinização
da fórmula que assim se torna vaga:
Em Mc.4.11: “ E lhes disse: A vós
outros é concedido saber o mistério do reino de
Deus: mas aos que são de fora tudo se lhes propõe
em parábolas”.
Em Mt.13.10-13: “ E chegando-se a ele os discípulos
lhe disseram: Por que razão lhes fala tu por parábolas?
Ele respondendo lhes disse: Porque a vós outros vos é
dado saber os mistérios do reino dos céus; mas a
eles não lhes é concedido. Porque ao que tem, se
lhe dará, e terá em abundância; mas ao que
não tem, até o que tem lhe será tirado. Por
isso é que eu lhes falo em parábolas: porque eles
vendo não vêem, e ouvindo não ouvem nem entendem”.
Tem-se a impressão _ e este é certamente
o sentido dos evangelistas _ que as parábolas que não
são compreendidas pelo povo apresentam supostamente os
“ segredos do Reino de Deus”.
O que se quer significar é uma descrição
das circunstâncias do Reino de Deus, o qual é visto,
de um modo ou de outro, como coincidente com o interesse do Evangelho
ou com a comunidade dos discípulos. O dito em Marcos inspirou
os outros evangelistas para que acrescentassem esta fórmula
a uma ampla variedade de outras parábolas. Porém
deve-se notar que:
1. Uma grande quantidade de parábolas
são introduzidas desta maneira e não têm nada
em absoluto a ver com o Reino de Deus, ou só se podem relacionar
com ele com dificuldade.
2. Por isso, e pelo estilo da introdução,
somos obrigados a descartar completamente o sentido dos evangelistas
e explicar estas parábolas, antes de tudo, sem relação
com o Reino de Deus e, como corolário, a idéia do
Reino de Deus sem relação com as parábolas.
A manifesta tendência eclesiástica
que seguem os Sinópticos de interiorizar e espiritualizar
a noção do Reino de Deus, despojando-o de seu significado
histórico concreto, constitui com toda a probabilidade,
a principal motivação teológica para estabelecer
a vinculação dessas parábolas com a chegada
do Reino.
O Reino aparece como uma irrupção
milagrosa e visível em um momento preciso do tempo, como
término do processo histórico do cumprimento das
promessas a Israel. Se as parábolas estão formuladas
para dar coragem e estimular a fé dos discípulos,
então haveria de mostrar-lhes que, “apesar das aparências,
seus trabalhos dariam fruto, o milagre ocorreria: Deus estabeleceria
o reino da terra”. O Reino é futuro e iminente por
sua própria natureza de Reino visível sobre uma
terra transformada (edênica).
Jesus não pregou um reino nos corações,
mas um reino real na terra renovada, isto é, a descida
sobre a terra do reino dos céus. O Reino não só
é temporalmente iminente mas também espacialmente
próximo.
O projeto messiânico-apocalíptico que assume Jesus
como herança da fé hebréia _ as promessas
de Deus a Israel _ não pode desalojar-se de sua mensagem
sem destruir seu sentido _ que se impõe nos Sinópticos
no curso de narrações que, apesar de manipuladas,
truncadas ou obscurecidas, têm subsistido como testemunho
de um Jesus que anuncia a iminência do reino messiânico
final.
Os exegetas tidos por respeitáveis têm
mostrado uma incurável alergia ao Jesus histórico,
ao ponto de afirmar que A. Schweitzer teria apresentado um Jesus
fanático, psiquicamente desequilibrado, o que o obrigou
a responder-lhes através de sua conhecida obra. Esses exegetas
estão em seu direito em apresentar um Jesus espiritual
e idílico, que nada tem a ver com o áspero hebreu
da Galiléia, porém não deveriam esquecer
que para o povo do tempo de Jesus, este defendia sua combativa
mensagem em uma fé sem limites, capaz de assumir sem titubear
mesmo utopias inverossímeis, como em Mc. 11.22-24: “E
respondendo-lhe, Jesus lhe disse: Em verdade vos afirmo, que todo
o que disser a este monte: Tira-te e lança-te no mar, e
isto sem hesitar no teu coração, mas tendo fé,
ele o verá cumprir assim”. Em sua mente se esfumavam
as fronteiras entre a experiência externa e a fantasia,
fronteiras que só o acontecer cotidiano se encarregava
de restabelecer com toda a crueza e às vezes tragicamente.
O que resulta manifesto é que Jesus Nazareno
acreditou firmemente na concepção teológica
revelada tanto por suas palavras como por seus atos. São
portanto inadmissíveis as interpretações
puramente alegorizantes ou simbólicas como intencionais
do próprio Jesus. Nem à teologia liberal dos reformados,
nem à teologia dogmática dos católicos lhes
interessa fazer justiça ao Jesus da história. Nenhuma
delas aceita que a “redenção” que contemplava
Jesus era a vinda do reino escatológico de Deus na terra
e não a sacramental salvação de almas para
uma vida eterna, espiritual, em um outro mundo.
Pode haver-se pensado a si mesmo como Messias,
mas se equivocou em sua esperança de que o Reino chegaria
logo. Ainda não chegou...
O 4º. Evangelho marca a linha do abandono
do Jesus histórico. A vida eterna, iniciada na terra para
ser completada no céu, começa a substituir a ânsia
pela chegada do reino de Deus à terra. Jesus não
necessitará vir como Messias (mesmo que ainda se anuncie
sua chegada para a redenção final na parousia) porque
já veio como tal, segundo o 4º. Evangelho.
Porém, justamente na questão chave
iminente mas futura, produz-se um hiato entre a fé eclesiástica
e as convicções de Jesus. Compreensivelmente, as
passagens do Novo Testamento que traziam uma promessa à
esperança de comer e beber no Reino de Deus, foram progressivamente
passadas em silêncio, ou, quando não, sujeitas a
uma reinterpretação “espiritual” ou
“alegórica”.
Já desde Paulo, podemos ver o começo
de deslocamento para o futuro na doutrina cristã, desde
a antecipação da comensalidade no reino de Deus
para a esperança de uma vida celestial em um corpo espiritual.
Mais tarde, com a emergência da imortalidade da alma, pouco
espaço ficava para a perspectiva de comer e beber no reino
de Deus.
A crença cristã de que Jesus havia
ressuscitado dentre os mortos mostra que a Igreja primitiva buscava
igualmente uma nova vida na transformação, não
no abandono, da existência física.
O domínio sobre as almas havia sido bem afirmado com a
utilização da teologia do 4º. Evangelho. Paulo
inicialmente, e depois os escritos do Novo Testamento forneceram
os materiais para que as gerações seguintes elaborassem
a teologia, não do reino que assoma, mas do ritual de repetição
cotidiana do mistério soteriológico passado, segundo
o qual um Jesus divinizado e convertido na 2ª. Pessoa do
Deus trinitário havia instaurado sua Igreja como detentora
da fé e dispensadora da Graça.
Uma nova religião que o Jesus da história, monoteísta,
jamais houvera podido imaginar!
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criacionismo e evolucionismo
João Laurindo de Souza Netto
Desde a publicação, em 1859, do ensaio de Charles
Darwin "On the origin of species", a idéia de
um Deus criador de todas as espécies de seres vivos, sobre
os quais, como obra perfeita e insuperável, se colocava
o homem, começou a ser discutida e questionada. Contudo,
ainda se estava longe de um conhecimento satisfatório dos
mecanismos biogenéticos que explicavam o evolucionismo.
Ainda que combatida inicialmente com ferocidade
pelos vários credos religiosos e, particularmente, pela
Igreja Católica, a teoria evolucionista foi gradativamente,
sendo reconhecida pela comunidade científica. E com o passar
do tempo, as igrejas fundadas sobre credos teístas foram
admitindo a necessidade da aceitação do evolucionismo,
ou, pelo menos, de uma conciliação que não
as alijasse completamente do avanço científico.
A Igreja Católica, como exemplo maior
de uma religião dogmática, resistiu durante quase
um século e meio a aceitar a evidência do avanço
científico. Sua tenaz resistência se deveu ao fato
de que não se tratava, desta vez, de impugnar cláusulas
de sua dogmática, ao seu tempo fundamentais mas agora menos
importantes _ como o geocentrismo, a autoria e cronologia dos
escritos da Bíblia, etc._ mas sim a cláusula básica
da fé cristã: a de que Deus criou sobrenaturalmente
o primeiro homem, de modo direto e imediato, e logo também
a sua alma e a de cada novo indivíduo. Alterar substancialmente
este dogma fundador apresentava-se como um desafio inassuntível.
Nenhuma concordância parecia viável, nem mesmo como
leitura alegórica ou simbólica do Gênesis.
No entanto, apesar de sua inicial condenação
radical à hipótese evolucionista, a Igreja Católica,
numa mudança impensável cinquenta anos atrás,
declarou, em dezembro de 1996, sua aceitação parcial
dessa teoria. Vejamos como isso se deu. A Pontifícia Comissão
Bíblica _ PCB, instituída em 1902 por Leão
XIII para proteger as Sagradas Escrituras da crítica exegética
dos Modernistas, emitiu, em 1909, um parecer sobre o caráter
histórico dos primeiros capítulos do Gênesis,
pelo qual
"afirma-se o sentido literal histórico de fatos narrados,
que não se pode pôr em questão, como são,
entre outros, a criação de todas as coisas feitas
por Deus no princípio do tempo; a peculiar criação
do homem; a formação da primeira mulher a a partir
do primeiro homem; a unidade do gênero humano".
E acrescentava ainda Leão XIII de modo
indiscutível:
"é obrigação de todo crente submeter-se
às sentenças do Pontifícia Comissão
Bíblica..., do mesmo modo que nos Decretos das Sagradas
Congregações referentes a questões doutrinais,
sob pena de excomunhão”.
Pouco mais de trinta anos depois, entretanto,
a alocução de Pio XII, de 30 de novembro de 1941,
dava uma nova e surpreendente interpretação ao distinguir
entre Gênesis do corpo e da alma:
"o homem, dotado de alma, foi colocado por Deus no alto da
escala dos seres vivos como príncipe e soberano do mundo
animal".
A forma dessa declaração parece
intencionalmente vaga quanto a determinar se essa colocação
ocorreu subitamente, de uma só vez, ou se foi um fenômeno
evolutivo. Já não se dizia mais, como em 1909, que
se tratava de uma "criação". A alocução
de Pio XII agrega um ponto importante:
"não resta senão deixar em
suspenso a resposta à pergunta de que se um dia a ciência,
iluminada e guiada pela Revelação, poderá
oferecer resultados seguros e definitivos sobre tão importante
assunto".
O passo inaugural do giro doutrinário
estava portanto dado: o texto do Gênesis não é
normativo em sua literalidade, uma vez que a ciência pode
evoluir.Todavia, é um passo inédito e impensável
antes de Darwin.
Na Encíclica Humani Generis, de 12 de
agosto de 1950, a preocupação de Pio XII com o evolucionismo
se apresenta de forma manifesta, quando afirma:
"o Magistério da Igreja não proibe que, segundo
o estado atual das ciências humanas e da sagrada teologia,
se trate, nas investigações dos entendidos em um
e outro campo, como busca da origem do corpo humano em uma matéria
viva preexistente_ pois as almas nos manda a fé católica
sustentar que são criadas imediatamente por Deus...”
Já não se fala mais na totalidade
_ corpo e alma _ e sim apenas da alma, o que significa um abandono
à primitiva interpretação do Gênesis.
Em sua "Mensagem à Pontifícia Academia de Ciências",
em 22 de outubro de 1996, João Paulo II focalizou os problemas
estabelecidos pelas
"origens da vida e evolução, um assunto essencial,
que interessa profundamente à Igreja, pois a Revelação,
por sua parte, contém ensinamentos concernentes à
natureza e às origens do homem.Como as conclusões
alcançadas pelas várias disciplinas científicas
coincidem com as contidas na mensagem da Revelação?
E se à primeira vista há contradições
manifestas, em que direção buscaremos sua solução?
Sabemos que a verdade não pode contradizer a verdade".
A mensagem rejeita acertadamente a tese de que
o discurso da fé não pode entrar em conflito com
o discurso científico, e assume o fato de que os referenciais
reais de certos enunciados de um e de outro discurso são
comuns, tais como a natureza e a origem e estrutura do Universo:
"No domínio da natureza animada e inanimada, a evolução
da ciência e suas aplicações suscita novas
questões. O Magistério da Igreja tem feito pronunciamentos
sobre estas matérias dentro do marco de sua competência".
João Paulo II interpreta a Encíclica
Humani Generis, de 1950, como uma declaração de
que "não há oposição entre a
evolução e a doutrina da fé sobre o homem
e sua vocação, com a condição de que
não se percam de vista vários pontos indisputáveis".
Estima, ademais, que dita Encíclica considerou
a teoria da evolução como "uma hipótese
séria, digna de investigação e estudo em
profundidade, o mesmo que as hipóteses que se opõem
a ela. Hoje, meio século depois da publicação
daquela Encíclica, novos conhecimentos levaram ao reconhecimento,
na teoria da evolução, de algo mais que uma hipótese
É realmente notável que esta teoria tenha sido progressivamente
aceita pelos investigadores seguindo uma série de descobrimentos
em vários campos do conhecimento A convergência,
nem buscada nem fabricada, dos resultados de uma obra que foi
conduzida independentemente é, em si mesma, um argumento
significativo em favor desta teoria".
Estamos portanto a uma enorme distância
da rejeição expressa terminantemente pela declaração
do Concílio local de Colônia, de 1860, e também
da doutrina da Pontifícia Comissão Bíblica
de 1909. A mensagem de João Paulo II, reconhece ainda que:
"o Magistério da Igreja é diretamente afetado
pela questão da evolução, porque implica
na concepção do homem: a Revelação
nos ensina que foi criado à imagem e semelhança
de Deus".
E citando a Constituição Conciliar
Gaudium et Spes, o Papa afirma que: "assim, o homem é
a única criatura sobre a Terra que Deus quis por si mesma".
Após todo esse preâmbulo, a Mensagem,
de João Paulo II, declara que por todas essas razões
"Pio XII acentuara este ponto essencial: se o corpo humano
toma sua origem da matéria viva pré existente, a
alma espiritual é criada imediatamente por Deus”.
Ou seja, a grande inovação contrária ao Gênesis
e a Tradição eclesiástica havia sido dada
por Pio XII. A Mensagem de João Paulo II não faz
mais do que confirmá-la solenemente: evolução
biológica imemorial do corpo humano e criação
imediata por Deus da alma humana.
A Igreja crê haver posto então uma
barreira intransponível contra novas incursões da
ciência no domínio sacro. Porém, mais uma
vez, está a ponto de equivocar-se, pois o prodigioso avanço
das neurociências nas últimas décadas gerou
uma situação conflitante para a noção
da mente como não sendo manifestação do evolucionismo.
O que acontece agora é que a Mensagem,
de João Paulo II, ao mesmo tempo que admite a evolução
material, e portanto abre mão da criação
direta do homem, como mencionado no Gênesis, exacerbou o
dogma da alma imaterial, separável do corpo e imortal Convém
então assinalar que o ardor com que se esforça atualmente
por concordar, ainda que parcialmente, a ciência com a fé,
outorga à Igreja Católica um certo grau de credibilidade
por parte da ciência. No entanto, a solução
antropológica, radicalmente dualista, que propõe_
cedendo à ciência o corpo e salvaguardando a alma_
acaba por aprofundar a fissura sobre a concepção
do ser humano.
A Mensagem, de João Paulo II, penetra
fundo nos campos da metafísica: “as ciências
da observação descrevem e medem as manifestações
múltiplas da vida com precisão crescente e as correlacionam
com a linha do tempo. O momento da transição ao
espiritual não pode ser objeto desta classe de observação,
que, contudo, pode descobrir, no nível experimental uma
série de sinais muito valiosos, que indicam o que é
específico do ser humano. Porém a experiência
do conhecimento metafísico, da consciência e autoreflexão,
da consciência moral, da liberdade, ou, de novo, da experiência
religiosa e estética, cai dentro da competência da
análise e reflexão filosóficas, enquanto
que a teologia extrai seu sentido último de acordo com
os planos do Criador".
Vê-se, por este trecho, o subjetivismo
do pensamento desiderativo e a especulação gerada
pelos estímulos da emoção religiosa. O verbalismo
da nova solução não é uma rota de
progresso na árdua empresa de conhecer, mas uma rota de
regresso à reiteração da mentalidade mítico-religiosa,
que tenta dar pseudo-soluções aos que não
são mais do que pseudo problemas Um verbalismo que não
reconcilia nada com nada, pois os polos da antinomia pertencem
a âmbitos opostos: corpo e alma.
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fé e profecias
João Laurindo de Souza Netto
Um analista, crítico e objetivo da história
das religiões, poderia perguntar-se sobre os mecanismos
psicológicos e sociológicos que permitem ao homem
de fé seguir crendo nas predições proféticas,
mesmo que as mesmas não sejam confirmadas pelos fatos.
As três grandes religiões monoteístas do ocidente
nasceram de revelações proféticas e se desenvolveram
_ cada uma a seu modo e medida _ através de predições
e previsões intimamente vinculadas a seu acervo doutrinal
e dogmático. Seu contorno histórico é configurado
por um processo de promessas de salvação e esperanças
de confirmação, que se desenvolve entre um presente
_ ou passado_ e um futuro, cujo elo final culminaria com o final
dos tempos ou escatologia. Este trânsito, entre o anúncio
da mensagem e seu cumprimento, constitui a estrutura da religião
de salvação, que é particularmente intensa
no judaísmo antigo e no cristianismo.
Do anúncio da iminência do Reino, na terra de Israel,
à total desesperança, ocorrida com a morte de Jesus,
passou-se, mediante processos mentais peculiaríssimos,
ao anúncio de uma parousia _ segunda vinda_ também
iminente, e também frustrada pelo inexorável passar
do tempo. Dupla predição e dupla decepção.
Contudo, a fé dos crentes não só se manteve
como se incrementou, e dessa dupla frustração emergiram
formas variadas de milenarismos e de adventismos, tanto no seio
da Igreja como em seitas diversas.
No tocante às profecias, quando as predições
se formulam em uma perspectiva de curto prazo e estão referidas
a acontecimentos concretos, seu descumprimento pode determinar
o que se chama “paradoxos do eventual descumprimento”.
Em um contexto sem indicação precisa de tempo, uma
predição profética reduz-se a puro verbalismo
e funciona como mera cláusula de um credo. De fato, em
Deuteronômio 18.21,22, encontramos:
“ E se tu disseres lá no teu coração:
como poderei eu discernir qual é a palavra que o Senhor
não disse? Terás este sinal: se o que aquele profeta
predisse em nome do Senhor não sucedeu assim: isto não
o disse o Senhor, mas o profeta por soberba do seu ânimo
o fingiu; e por isso não o temerás”.
Robert P. Carroll, em sua obra “When prophecy fails”
– Londres, 1979, ressalta o seguinte fato:
“Um traço importante das declarações
proféticas é o fato de que sempre foram feitas a
curto prazo. Foram dirigidas a comunidades específicas,
e, por conseguinte, as expectativas criadas por elas podiam ou
não ser confirmadas pelo transcurso do tempo”.
Afirma ainda Carroll em outro trecho:
“Quando, à generalidade da linguagem e a uma frequente
ambigüidade, se acrescenta uma profecia centrada em um desastre
ou grande calamidade, só pode existir uma vaga aproximação
entre linguagem e acontecimento. Tal vaguidade protegerá
muitos oráculos de um fracasso evidente”.
Isto sucede também em vaticínios venturosos, pois
a qualificação de um fato depende de critérios
subjetivos. No Antigo Testamento, no entanto, predominam os profetas
de catástrofes. Os vaticínio de desastre são
geralmente inverificáveis em termos concretos, dado que
os infortúnios são o preço da história
da vida cotidiana. Assim, no Israel antigo, resultava mais difícil
corroborar fatos de ventura ou salvação, porque
o ser humano está,por sua própria natureza, mais
propenso ao lamento que à exaltação.
Em 1956, uma equipe de psicólogos e sociólogos da
Universidade de Chicago, dirigida por A. Riecken e S. Schachter,
deu a conhecer o resultado de um estudo de campo _ realizado com
os melhores instrumentos de observação_ destinado
a identificar os mecanismos pelos quais o fracasso das predições
pode tender, paradoxalmente, a incrementar a fé e estender
sua difusão (A Social and Psychological Study of a Modern
Group that Predicted the Destruction of the World _ Minneapolis,
1956).
O objeto do estudo recaiu em uma pequena seita, que nunca excedeu
trinta adeptos, dirigida pelo médico Thomas Armstrong e
por Maria Keech. Armstrong, interessado em misticismo, ciências
ocultas e discos voadores, reconhecia a liderança de Keech,
que funcionava como núcleo da atenção e da
atividade. Seres espirituais, chamados por Keech os “guardiões”,
haviam-lhe enviado “mensagens” procedentes de outros
planetas, as quais ela transcrevia por um suposto mecanismo de
“ escrita automática” e que constituíam
o sistema de crenças religiosas da seita _ semelhantes
ao pensamento cristão tradicional, de caráter apocalíptico
e adventista.
As mensagens começaram a predizer a iminência de
um grande desastre: o dilúvio que alagaria o mundo, mas
do qual seriam salvos os que cressem nas lições
ministradas por Keech. Antes do desastre, extraterrestres se transladariam
em discos voadores para conduzir os fiéis a um lugar seguro
_ presumivelmente num outro planeta.
Festinger, Rieckem e Schachter, que observavam os preparativos
semanas antes da data do dilúvio, observaram quatro aspectos
significativos do comportamento dos adeptos: 1) alto grau de compromisso
com o sistema de crenças da seita; 2) certeza de estar
em posse da verdade; 3) indiferença em fazer prosélitos;
4) secretismo e inibição ante os meios de comunicação.
O dia fixado para a catástrofe era 21 de dezembro de 1950.
À medida que se acercava o dia, os adeptos se fixaram em
um silêncio expectante, enquanto faziam os últimos
preparativos. Quando faltavam quatro minutos para a meia noite,
a tensão e a ansiedade alcançaram seu grau máximo.
E quando se ouviu as 12 badaladas, os Buscadores (Seekers), como
se chamavam a si mesmos, permaneceram rigidamente imóveis.
Contudo, não apareceu nenhum guia para resgatá-los.
Ante essa falha, caberia esperar que o grupo se desintegrasse,
porém, ao contrário, pareciam estar satisfeitos
com as novas mensagens de Keech, segundo as quais, Deus teria
ficado tão impressionado pela luz difundida pela seita
que havia resolvido salvar o mundo da destruição,
dilatando o prazo. Entretanto, a expectativa adicional de que
os fiéis seriam recolhidos no dia 24 de dezembro também
falhou.
Essa segunda falha gerou um estado de ânimo de dolorosa
desesperação e confusão, ainda que Armstrong
e Keech reiterassem a sua fé. Falava-se então abertamente
em fracasso. Quando a seita parecia estar prestes a se dissolver,
teve lugar um incidente notável, assim descrito por Festinger
e seus colegas:
“A atmosfera do grupo mudou bruscamente. Poucos minutos
depois de haver lido a mensagem Keech recebeu outra, na qual lhe
indicava que deveria dar publicidade à explicação.
Todo o grupo se sentiu identificado com ela e os adeptos passaram
a revelar aos meios de comunicação assuntos até
então considerados secretos. Todos buscavam avidamente
a publicidade.”
Foi, pois, um giro radical do segredo para a divulgação.
E, de repente, decidiu-se fazer proselitismo. Armstrong e Keech
pareciam não vacilar em sua fé e Keech procurava
intensamente receber as mensagens do espaço exterior. No
entanto, muitos membros se sentiram decepcionados e separaram-se
do grupo. Isso exigia a busca de novos conversos para preencher
suas vagas. Armstrong chegou a declarar: “Tive que percorrer
um grande caminho. Abandonei a maior parte do que tinha. Queimei
quase todas as pontes atrás de mim. Não posso permitir-me
duvidar. Não há outra verdade.”
O cientista social R.B. Cialdini, analisando o trabalho do grupo
de Festinger, assim se expressou:
“Ao grupo só restava um saída. Tinha que estabelecer
outro tipo de demonstração para dar validade a suas
crenças: a sanção social e, portanto, o proselitismo,
era a única esperança que lhes restava. De acordo
com o princípio da sanção social, quanto
maior o número de pessoas que aderem a uma idéia,
maior a possibilidade de que esta idéia seja correta. A
missão do grupo era clara: posto que não podia mudar
a realidade, haveria de conseguir a sanção social”.
Repete-se a história das mensagens apocalípticas
de salvação. Como indica ainda Cialdini:
“Arriscando-se a serem ridicularizados, lançam-se
às ruas afirmando publicamente o seu dogma e buscando com
um fervor que se intensifica em lugar de diminuir. O proselitismo
é um imperativo de sobrevivência para uma fé
falida, uma necessidade psicológica de preencher um vazio
subjetivamente insuportável”.
Segundo Festinger, as condições
para que se incremente a ação proselitista e a fé,
após o descumprimento das profecias, são as seguintes:
1. firme convicção na crença
2. compromisso com a fé
3. crença suficientemente específica em sua conexão
com o mundo real, de modo que os acontecimentos possam desmentir
a fé, resultando a necessidade do proselitismo
4. apoio social desfrutado pelo crente
5. fracasso ou descumprimento reconhecidos pelo crente.
As condições 1 e 2 precisam as circunstâncias
que fazem uma crença refratária à mudança.
As condições 3 e 4 indicam fatores que exercerão
pressão social sobre o crente para que abandone sua crença
(caso em que o proselitismo torna-se vital). A condição
5 assinala as circunstâncias nas quais o crente pode ser
capaz de manter a sua crença.
Os elementos que configuram uma resposta possível ao descumprimento
das profecias, de acordo com Festinger, são de três
ordens:
1. técnicas que evitem a dissonância: exclusão
do grupo dos indivíduos ou coletivos que mantenham opiniões
divergentes
2. esquemas explicativos: racionalizações de cognições
que apresentem desconformidades com as crenças ou predições
3. apoio social e proselitismo. Hábeis métodos de
polêmica são a base do proselitismo.
R.P.Carroll, em sua análise, acrescenta
que “se mais e mais pessoas vêm compartilhar das crenças
cognitivas do grupo, então, admite-se, deve haver algo
correto ou influente nessas crenças”.
O proselitismo alcança seus máximos níveis
de urgência nos momentos iniciais de tomada de consciência
do fracasso profético, porém jamais se interrompe,
pois a sombra do fracasso profético espreita, com intermitência,
qualquer debilidade no esforço de persuasão. Em
conseqüência, o esforço apologético deve
ser constante.
Como ilustração complementar ao caso dos Seekers,
pode-se citar, entre outros, dois casos interessantes de obsessão
na defesa de uma fé impossível ante a evidência
dos fatos. A seita das Testemunhas de Jeová é um
vasto grupo adventista e fundamentalista bem conhecido, cuja doutrina
prega a existência de um “escravo” fiel, que
vive na Terra e a quem “estão confiados todos os
interesses terrestres de Jesus”. Este notabilíssimo
escravo está representado em formas visíveis pelo
Colégio Central das Testemunhas de Jeová, citando
MT.24.45-47:
“Quem crês que é o servo fiel e prudente, a
quem seu Senhor pôs sobre a sua família, para que
lhes dê de comer a tempo? Bem-aventurado aquele servo, a
quem o Senhor tarda em vir. Na verdade vos digo, que ele o constituirá
administrador de todos os seus bens”.
Para os adeptos da seita, em 1914 havia terminado
o tempo da religião dos gentios, o Reino de Deus havia
sido já estabelecido nos céus e a parousia anunciada,
da segunda vinda de Cristo havia também começado,
conforme Lc.21.7-24 e Apoc.1.15-2.10. A grande batalha final,
Armagedon, está próxima, citando Apoc.16.14, 19.11-21,
e será seguida pelo reino milenário de Cristo, que
instaurará o Paraíso sobre a Terra nesta geração.
Enquanto isso acontece, os 144.000 “ungidos”, tranformados
em entes sobrenaturais, subirão finalmente aos céus;
e os fiéis de outras religiões, ou carentes de religião,
serão aniquilados na “segunda morte”, pois
a alma não é imortal.
A datação para esta policrômica escatologia
teve que ser sucessivamente retificada, assim como vários
pontos da doutrina. Do ano de 1914 passaram à pregação
de 1918 e, posteriormente a 1925,1930,1975 e 1986. As dissonâncias
cognitivas deixam, contudo, incompreensivelmente incólume
a fé destas surpreendentes testemunhas.
J. Vernette, em seu livro “Les Sectes”, Paris, 1991,
conta as causas da manutenção desta crença:
“O fracasso da predição
é interpretado como fator de credibilidade incrementada,
segundo um processo de cinco tempos:
1. curto período de decepção geral
2. reexame dos textos e descobrimento de que algo se produziu,
porém de forma invisível
3. reassunção de fragmentos de predições
frustradas, para formação de novo esquema profético
4. insistência nas catástrofes, comoções
e problemas do mundo moderno, para mostrar que a seita sempre
teve razão em anunciar o fim do mundo para logo
5. modificação dos textos para fazê-los corresponder
à realidade (mudanças de datas previstas para o
acontecimento). Num segundo passo, o erro se converte em uma razão
suplementar para crer, sendo o sinal de que Jeová acaba
de conceder um complemento de verdade”.
Haverá nos Seekers ou nas Testemunhas de Jeová insânia
moral? Podemos pensar, com benevolência, que na inverossímil
resposta ao desfio que o descumprimento das profecias apresenta,
há, em qualquer caso, um elevado grau de desordem na sindérese
dos crentes, que altera o bom funcionamento dos seus mecanismos
perceptivos e intelectivos.
Vejamos um outro caso. Também aqui manifesta-se o fenômeno
paradoxal de que quando as pessoas se entregam a uma fé,
provas claras em contrário podem simplesmente levar a uma
convicção mais firme e a um maior proselitismo.
A obra que narra o caso de Sabbatai Zevi foi escrita por G. Scholem
sob o título “The Mystical Messiah 1626-1676”,
Londres (1973), no contexto histórico de uma crença
que surgiu entre os judeus da Turquia. Segundo essa crença,
o Messias deveria manifestar-se na Judéia, em 1648, para
inaugurar o Reino Messiânico. Em 1648, Sabbatai Zevi proclamou-se
o Messias para um pequeno grupo de seguidores. O descumprimento
da predição naquele ano não o desalentou.
Continuou fazendo proselitismo e, em 1665, renovou sua proclamação
messiânica, provocando a acolhida entusiasmada de muitos
judeus residentes na Europa, que venderam suas propriedades e
se prepararam para retornar a Jerusalém. Em 1666, Sabbatai
Zevi e seus seguidores dirigiram-se a Constantinopla, coma intenção
de depor o Sultão como ato preliminar dos judeus à
Terra Santa. Foi, no entanto, detido e encarcerado.
Esse fracasso, porém, não conduziu
ao colapso do movimento, mas, ao contrário, o incrementou.
Sabbatai converteu-se ao islamismo, sendo seguido por alguns de
seu grupo, enquanto outros continuaram, em seu nome, a tarefa
de fazer prosélitos para a causa. Finalmente, o movimento
foi perdendo adeptos, restando contudo um núcleo de relativa
importância que subsiste até hoje no Oriente Médio.
R.P. Carroll comenta este assunto da seguinte
maneira:
“A dissonância causada pelo descumprimento das expectativas
pode modificar-se pela busca de explicações razoáveis;
o fato de que Sabbatai Zevi estivesse ainda vivo na prisão,
era prova de sua condição de Messias. Para que tais
racionalizações sejam efetivas, requerem forte apoio
social. Se o apoio social for ganho através do aumento
de novos prosélitos, então a dissonância tende
a reduzir-se”.
Scholem resume a essência da convicção dos
crentes em uma frase: “É inconcebível que
a totalidade do povo de Deus erre intimamente, portanto, se sua
experiência é contestada pelos fatos, então
são os fatos que devem ser explicados”. Em realidade
os seguidores de Sabbatai decidiram que o descumprimento foi parte
de um plano divino. E nisto estavam (conscientemente ou não)
seguindo o precedente estabelecido por anteriores transmissores
bíblicos a respeito de profetas que enganavam a seus ouvintes,
como em Jeremias 4.10:
“ E eu disse: ai,ai,ai, Senhor Deus. É possível
que enganaste a este povo e a Jerusalém, dizendo-lhes:
Vós tereis paz. E eis agora lhes chega a espada a te a
alma.”
Em Ezequiel, 14.9, temos:
“E quando algum profeta errar, e falar qualquer palavra:
eu, o Senhor, sou o que enganei este profeta: mas eu estenderei
a minha mão sobre ele, e o exterminarei do meu povo de
Israel”.
Um plano divino é o artifício que explica tudo,
que pode outorgar coerência a um desenlace imanejável.
Isto é familiar a quem recorda Romanos 3,21-26:
“Mas agora sem a lei se tem manifestado a justiça
de Deus: testificada pela lei, e pelos profetas. E a justiça
de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo em todos,
e sobre todos os que crêem nele: porque não há
nisto distinção alguma. Porque todos pecaram, e
ficaram privados da glória de Deus tendo sido justificados
gratuitamente por sua graça, pela redenção
que têm em Jesus Cristo. Ao qual propôs Deus para
ser vítima da propiciação pela fé
no seu sangue, a fim de manifestar a sua justiça pela remissão
dos delitos passados, na paciência de Deus, para demonstração
de sua justiça neste tempo: a fim de que ele seja achado
justo, e justificador daquele que tem a fé em Jesus Cristo”.
O mais inverossímil é legitimado
desde que, supostamente, Deus onipotente o tenha preordenado.
Os fenômenos de profecia descumprida e fortalecimento subseqüente
da fé são todos da mesma natureza, quer sejam os
Seekers, Testemunhas de Jeová, Sabbataianos ou Cristãos,
embora estes recusem admitir qualquer semelhança com os
demais. Apenas variam as circunstâncias de tempo e lugar,
assim como as motivações pessoais de seus protagonistas
e adeptos. Evidentemente, a fé dos cristãos de hoje
não se originou mediante os mesmos mecanismos que a fé
dos cristãos primitivos. Esta se forjou em processos de
solidariedade social, enquanto que a nova fé é baseada
em modelos de racionalização e reinterpretação
num clima de elevado ardor proselitista. A fé dos cristãos
de hoje é uma fé herdada mediante uma tradição
que experimentou numerosas manipulações –
interpolações, adições, supressões
e modificações dos textos mais antigos, muito embora
sem alterar seu núcleo e fontes originais. É baseada
no sentimento de segurança e poder que outorga o saber-se
membro de uma potência temível e universal.
A fé religiosa adquire-se mediante os
conhecidos mecanismos de reprodução ideológica
que funcionam em toda a sociedade.É pois, o resultado das
primeiras fases do aprendizado social, cujas agências básicas
são o lar e a escola. A fé é adquirida na
infância, quando o indivíduo está sob a pressão
_ e ao mesmo tempo sob a proteção e o cuidado_ de
um superego potentíssimo que molda e permite simultaneamente
a maturação do ego. A fé é geralmente
abandonada através de experiências pessoais e variadas,
no bojo de processos vitais complexos, normalmente intensos e
extensos, que exigem uma considerável inversão de
energia psíquica, tanto no plano emotivo quanto no intelectivo.
Na crise da fé se põe à
prova a força e o equilíbrio do ego como núcleo
da personalidade. Ainda que os fatores afetivos ou emocionais
desempenhem um papel relevante, um elevado nível de formalização
intelectual é indispensável _ e pode ser determinante_
para o abandono da fé. Sensibilidade, inteligência
e informação _ só fornecidos por um certo
nível de cultura _ mais uma vontade de discernimento verdadeiro,
por cima dos preconceitos herdados, são o motor capaz de
liberar das ataduras da fé. As igrejas sabem isto muito
bem, e por isso obstaculizam por todos os meios ao seu alcance
as pretensões epistemológicas e o debate intelectual
sobre a origem de seus credos. Uma fé religiosa sem um
refinamento intelectual que lhe forneça a munição
necessária para compreender, é uma causa perdida.
No caso da religião católica, nada
do anunciado _ Reino Iminente na Terra, ação proselitista
para converter todas as criaturas durante a vida de Jesus, fundação
de uma igreja por Jesus (evangelhos) _ se cumpriu, porém
houve uma crucificação inesperada. Os evangelistas,
várias décadas mais tarde, montariam seus relatos
a serviço da Igreja cristã, seguindo o modelo de
Marcos, desenhado para exonerar os romanos do martírio
de Jesus e atribuir toda a culpa aos judeus, apresentados como
povo deicida. Desde então todos os apologistas concordariam
com toda a sorte de contradições dos textos neotestamentários
a fim de mascarar as antinomias e incongruências do discurso
cristão.
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as cruzadas
João Laurindo de Souza Netto
Ao aproximar-se o tempo do término do primeiro milênio(ano
1000), os papas se encontravam quase sob a absoluta dependência
da nobreza romana. Esta, havia se apoderado, na pratica, da instituição
pontifícia, e havia conseguido que o chamado “trono
de São Pedro” fosse ocupado por seus próprios
representantes, nenhum deles com mérito doutrinal algum,
porém todos ansiosos por gozar as prerrogativas materiais
que tal cargo comportava. Esta situação, curiosamente
silenciada por uma Igreja que parecia simplesmente deixar passar,
foi no entanto enfrentada com vigor pela Ordem de Cluny, que decidiu
impor, secretamente, esperando por um momento melhor para recuperação
do antigo prestigio eclesiástico, seus projetos de independência
de reis, nobres e imperadores.
Cluny era uma instituição monástica,
reformada do beneditismo primitivo, que pretendia implantar um
projeto imperialista de teocracia universal, de tal modo que a
Igreja fosse capaz de impor sua vontade de domínio absoluto
sobre aquela sociedade, então submissa às autoridades
temporais. Para Cluny, a Igreja não deveria depender da
nobreza da antiga Cidade Imperial (Roma), mas sim esta daquela.
Assim, seus membros deveriam, gradativamente, perder sua condição
de conjunto de indivíduos unidos por um propósito
religioso, para converter-se em um sistema de poder no qual todos
os seus componentes responderiam às necessidades de um
paradigma que teria que cumprir-se a qualquer custo: o Império
Cristão.
Nesse panorama, o papa passava a ser apenas uma figura representativa,
que cumpriria o paradigma. Nem sequer importava que, nos últimos
tempos, tal figura estivesse representada até mesmo, para
atender os interesses da nobreza, por menores de idade, por assassinos,
por degenerados, por incapazes, por ambiciosos, por homossexuais
ou, inclusive, por indivíduos com idéias heréticas.
Tampouco importava que se deixassem dominar por imperadores ambiciosos
e por reis que queriam adquirir as máximas cotas de poder.
O que contava realmente era assumir o poder como instituição
superior, a cujo serviço haveria de se por toda a cristandade,
para conformar um mundo unificado, comandado, supostamente, pelo
poder teocrático, mas na verdade tutelado pela nobreza.
O papa Gregório V viveu, dentro desse
panorama, ate 999. Após sua morte, o abade Odilon, Geral
da Ordem de Cluny, conseguiu o apoio do imperador Otón
para a indicação de Gerbert d’Aurillac, um
monge de 45 anos, que havia sido preparado pela Ordem de Cluny
para ser a cabeça da cristandade, naquela grande operação
eclesiástica que Cluny havia iniciado secretamente para
fazer explodir sua bomba imperialista de domínio universal.
Gerbert d’Aurillac é, possivelmente,
a personalidade mais importante da Idade Media cristã.
Ingressou na Ordem de Cluny quando já era professor da
escola universitária de Reims e arcebispo de Ravena. Em
Toledo e em Córdoba aprofundou seus conhecimentos das ciências
puras muçulmanas – matemática e física
– e introduziu no mundo cristão os números
arábicos, do matemático Al Kwarismi. Era também
versado em ciências ocultas como alquimia e astrologia,
o que lhe permitiu adquirir um prestigio hipertrofiado, que lhe
proporcionou muita fama, alem de rodeá-lo de lendas. Assumiu
a tiara pontifícia (papado) com o nome de Silvestre II.
Graças à força disciplinada
e unitária que desenvolveu como papa, e também às
mudanças radicais que implantou em uma Igreja à
beira da desintegração total, o trabalho de Silvestre
II nos anos seguintes preparou a implantação de
um imperialismo pujante e impetuoso, capaz de conduzir o cristianismo
aos caminhos sonhados por Paulo. Contudo, Silvestre II morreu
em 1003, mas não antes de conseguir que todos os paises
da Europa Medieval passassem a depender de uma Roma pontifícia,
que ditaria o comportamento dos governantes com a força
moral que lhe dava a pregação da posse da verdade
absoluta.
Na verdade, Otón III, que morreu em 1002,
e Silvestre II, realizaram, em conjunto, um intento de criação
de um Império cósmico que converteria Roma na Cidade
Eterna: seria a “Universitas Christiana”, uma comunidade
de sábios unidos pelo acatamento à fé crista.
Assim, no começo do 2o milênio do
cristianismo estavam já estabelecidas as bases do Império
Universal da Igreja, ainda que os resultados tardassem algum tempo
para concretizar-se, tendo em vista que os sucessores de Silvestre
II não apresentaram as qualidades necessárias para
aquele intento.
Entretanto, apesar de todos os altibaixos que
atravessou na seqüência, a Igreja, graças ao
legado disciplinador de Silvestre II, pôde retomar seu poder
e influência no mundo de então. Porém, se
este poder foi aceito pelos Estados da Europa Ocidental, cujas
Igrejas estavam dominadas pela influencia de Cluny, não
o foi pelo patriarcado do Oriente bizantino. O patriarca de Constantinopla
rechaçava de plano qualquer dependência ao papado
romano e qualquer perda de autoridade sobre as Igrejas, chamadas
ortodoxas, que tinha sob sua jurisdição e que diferiam
da Igreja romana na aceitação de certos dogmas considerados
fundamentais por esta. E as duas Igrejas, que formavam a cabeça
da cristandade, excomungaram-se mutuamente, o que constituiu o
primeiro grande cisma do cristianismo.
Pouco a pouco as duas Igrejas católicas,
a de Roma (catolicismo romano), e a de Constantinopla (catolicismo
ortodoxo), foram se distanciando até traçar entre
ambas um abismo que haveria logo de cobrir-se de sangue e destruição.
Metade da cristandade havia deixado de sê-lo aos olhos da
outra metade. À perda territorial e humana que havia sofrido
a Igreja de Roma, determinada pela expansão islâmica,
se unia agora o desgarre, ainda mais visceral, ocasionado pela
separação do mundo bizantino, saído dos mesmos
princípios fundamentais do cristianismo.
A Igreja romana, genericamente – a Igreja
– tinha a necessidade de encontrar um motivo que fosse capaz
de unir “sua” cristandade em um esquema unitário,
capaz de aglutinar todos os crentes sob um mesmo e único
credo. Deveria ser um projeto como aquele que já dava seus
frutos na península Ibérica, onde a penetração
da fortíssima e influente Ordem de Cluny tinha conseguido
despertar em distintos reinos cristãos o espírito
de cruzada que, sob o comando de Cid El Campeador, conduziria
à Reconquista total, que terminaria com a presença
islâmica no território espanhol e daria origem ao
Estado mais fervorosamente católico daquela época.
As relações da Igreja romana com
o Império giraram para a submissão deste à
vontade pontifícia, numa luta de poder em que destacou-se
o monge Hildebrando, da Ordem de Cluny, depois convertido, com
o nome de Gregório VII (1073), no mais firme defensor da
primazia papal, cuja meta era impor uma ditadura espiritual para
estabelecer definitivamente o domínio eclesiástico
como desejo divino, que todos deveriam acatar. Gregório
VII, porém, morreu sem alcançar seus propósitos,
mas não sem abrir os caminhos para o inicio do Império
Pontifício, que deveria submeter à vontade da Igreja
de Roma, em nome do Criador, aquela outra metade da cristandade
que havia ficado fora do seu âmbito de poder, a Igreja Ortodoxa.
Em 1088, outro monge de Cluny, Eudes, ascendeu
ao pontificado com o nome de Urbano II. Em 1095, Urbano II convocou
o Concilio de Clermont-Ferrand, no qual a Igreja iria impor sua
vontade a toda a cristandade, sem contar para nada com a aquiescência
de qualquer autoridade civil: em uma alocução “urbi
et orbe” (para a cidade e para o mundo), exortou a todos
para que, como soldados de Cristo, atendessem `a convocação
de participar das “Santas Cruzadas”, contra os infiéis
(muçulmanos). Segundo ele: “é Cristo quem
ordena que expulsemos estes entes desprezíveis das terras
habitadas por nossos irmãos. Aos que forem e perderem a
vida durante a viagem, por terra ou por mar, ou na batalha, ser-lhe-ão
perdoados todos os pecados. Aqueles que até agora foram
bandidos, façam-se soldados de Cristo e ganhem dupla recompensa.”
A idéia, por trás da convocação,
era obter a adesão dos bizantinos, formando uma frente
única contra os muçulmanos sob a proteção
da Igreja de Roma que, então poderia reclamar a união
das duas Igrejas sob um único poder, o da Igreja de Roma.
Como isto não se concretizou, a Igreja de Roma, através
de seu pontífice, acabava de ordenar, com toda a autoridade
que Deus supostamente lhe havia concedido, aquilo que se transformaria
numa das mais horrorosas matanças que a historia registrou:
os duzentos anos seguintes foram de morte e destruição,
durante os quais não só foram enfrentados infiéis
e hereges, mas também foram enfrentados a sangue e fogo
outros cristãos pela única razão de dissentirem
de alguns dogmas e praticarem a liturgia com variantes que a ortodoxia
romana não aceitava.
A chamada da Igreja foi acolhida com inusitado
entusiasmo por uma Europa à beira do colapso. Os desastres
ecológicos e econômicos que haviam seguido o início
do 2o milênio – migrações violentas
dos povos do Norte, caindo sobre os do Sul, fome generalizada,
pressões feudais sobre os camponeses, e “sinais”,
que supostamente anunciavam mais calamidades se o “povo
de Deus” não reagisse contra a intervenção
do “Maligno” e libertasse os Lugares Santos de Jerusalém,
fizeram que a mensagem papal fosse aceita unanimemente. A idéia
foi admitida por todos, mas com tanto mais entusiasmo quanto mais
penosa era a situação que atravessavam.
Por isso os mais pobres foram os primeiros a
se lançar naquela aventura e também os primeiros
a sofrer as conseqüências. Pois se aos grandes lhes
impulsionava o perdão dos pecados, aos abandonados da fortuna
lhes atraia a esperança de enriquecer. A eles se dirigiam
os sermões entusiastas de Pedro, o Eremita, e Walter Sans-Avoir,
entre outros.
A chegada das primeiras levas deu-se antes do
previsto, e os bizantinos ortodoxos, que haviam aceitado a “desinteressada”
ajuda dos católicos romanos, encontraram-se com uma nuvem
de esfarrapados e famintos, ávidos por saciar sua fome
e sem saber sequer onde se encontravam. Enquanto os bizantinos
das fronteiras pediam instruções a Constantinopla
para decidir o que fazer com eles, aquela massa famélica
entrava em suas casas e saqueava tudo. Foi então que a
resistência eclodiu com toda a força. As tropas bizantinas
lançaram-se contra os invasores e após vários
choques, cento e quarenta seguidores de Walter Sans-Avoir foram
encerrados numa Igreja e queimados vivos. Os demais foram retidos
às portas de Constantinopla sem a mínima ajuda que
lhes permitisse sobreviver. Os seguidores de Pedro, o Eremita,
em iguais condições de penúria, assaltaram
povoados e cidades da Hungria e mataram, em um só dia,
quatro mil pessoas daquele pai’s, incendiaram os celeiros
e profanaram os lares, arrebatando esposas de seus maridos. Todos
se mantinham entre assassinatos e saques e ainda se vangloriavam
proclamando que fariam o mesmo na terra dos turcos.
Contudo, a campanha não foi um caminho de rosas; antes,
uma vereda marcada pela morte e pelo sofrimento. Antes de transcorrido
um ano da convocação de Urbano II, as mortes dos
chamados cruzados – porque costuravam uma cruz de tela em
suas roupas – já superavam dez mil. Outros contingentes
no entanto, conseguiram atravessar o território bizantino
e chegaram à Anatólia (atual Turquia), onde foram
totalmente destruídos, sendo os mortos avaliados em mais
de vinte mil. Consta que os esqueletos formavam uma pilha gigantesca,
onde os sobreviventes se escondiam, como se fora um mausoléu.
Em inícios de 1099, um exército
medianamente organizado foi enviado para a conquista da Terra
Santa, além de sucessivas milícias de improvisados
cruzados, que partiam umas após as outras. Naarat, na Síria,
era uma pequena cidade de menos de 10.000 habitantes. Os cruzados
cercaram essa cidade, que propôs uma rendição
com garantias. No entanto, a tomada do lugar resultou numa carnificina.
Ao longo de três dias os cruzados passaram a fio de espada
toda a população. Essas eram as tropas de Deus,
que a Igreja havia mandado com o piedoso fim de recuperar os Lugares
Santos.
Em 15 de julho de 1099 foi concluída a
retomada de Jerusalém, quando incontáveis sarracenos
foram decapitados e outros queimados vivos. Após vencer
a resistência das muralhas, os vencedores se lançaram
sobre os que corriam para refugiar-se nas ruínas do Templo
de Salomão, sem distinguir entre guerreiros, velhos, mulheres
e crianças, matando-as a todos. Isto sucedia enquanto os
cruzados vitoriosos, cheios de fé, corriam a dar Graças
no Santo Sepulcro, que, na verdade, nunca havia sido profanado
por aqueles sarracenos que jaziam mortos nas ruas de Jerusalém.
O saldo dessa luta foi avaliado em 137.000 mortos: 76.000 cristãos
e 61.000 muçulmanos.
Durante esse tempo, o papa e sua corte, uma vez
instaurada a monarquia eclesiástica que Cluny havia estruturado,
tratavam de impor aos cristãos do Oriente as verdades dos
dogmas em litígio, procurando mostrar-lhes que toda aquela
prática guerreira iria afetar-lhes ainda mais diretamente
que aos muçulmanos. Mas os cristãos ortodoxos rebatiam
dizendo que também eles agiam em nome de Deus. E as duas
Igrejas católicas continuaram separadas.
As Cruzadas, através de oito convocações
sucessivas, constituíram um recurso ao qual os papas recorriam
cada vez que necessitavam demonstrar sua autoridade e impô-la
ante qualquer inicio de demonstração de poder laico.
A perda de Jerusalém, menos de cem anos depois de haver
sido conquistada, não significou nada para Roma. Ao contrario
constituiu um motivo para lançar mão sempre que
as circunstâncias assim o reclamassem. Foram dois séculos
de sangria ininterrupta. A Igreja, como instituição
e como fonte de poder, só cuidou de se fazer cada vez mais
influente na sociedade daqueles tempos e de frear, quanto possível,
qualquer intento, dessa sociedade, de proporcionar crescentes
graus de liberdade a seus indivíduos. Por isso, aprofundar
no saber islâmico, assim como penetrar na autentica espiritualidade
ou lutar pelo respeito às convicções do individuo
era tido como coisa de hereges. E tudo o que não fosse
acatar de olhos fechados a doutrina propalada pela Igreja a seus
seguidores – independentemente dos largos limites que se
concedia a si mesma e a sua corte – era objeto de ameaça,
de castigo ou de excomunhão.
Que correlação se pode fazer com o poder e a ação
dos Estados Unidos no mundo de hoje?
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o cristianismo
João Laurindo de Souza Netto
O fenômeno cristão é um fato
único e irrepetível, não no sentido teológico
de um credo superior a todos os outros e revelado definitivamente
por Deus como “a verdade”, nem no sentido de máximo
desenvolvimento e síntese da religião em seus conteúdos
e funções, mas porque é o único caso
no qual se pode observar como um mito, o “mito cristão”,
vai crescendo, de forma gradativa, confusa, mas visível,
como resultado de uma fratura incurável, primeiro, e de
uma flagrante antítese, depois, entre o Jesus da história
e o Cristo da fé.
Este credo, tão contraditório e
paradoxal, não tem paralelo em nenhuma outra religião
monoteísta, nem no Antigo Testamento, nem no Corão,
nem na floresta de mitologias orientalistas e nem tampouco nas
sabedorias de fundo religioso como o budismo, o confucionismo
ou o xintoísmo, e, por isso mesmo, não pode ser
um fenômeno generalizável. Assim, pois, o fenômeno
cristão deve ser analisado em sua concreta origem histórica
e se faz, posteriormente,ininteligível como religião
que, surgida num “onde” e num “quando”
identificáveis, se transforma num verdadeiro cataclisma
teológico e ideológico, em si mesmo irrepetível.
Assim, o fenômeno cristão há que ser analisado
como fenômeno religioso que adquire seu genuíno sentido
em um marco documental referido a um tempo e a um lugar geográfico
precisos, sem se poder deixar de lembrar sempre que Jesus não
foi um cristão, foi um judeu transformado, depois de sua
morte, no “Filho de Deus feito Homem”.
O cristianismo é pois um fenômeno
constitutivamente híbrido e ambíguo. Híbrido
porque seus fundamentos são judaicos e helenísticos.
Ambíguo porque, de um lado, apresenta a doutrina de Paulo,
de total submissão e obediência aos poderosos do
mundo, a chamada obediência civil pregada em Romanos 13.1-7
e em Efésios 6.5; de outro, a relegação das
realidades terrenas com vistas à obediência exclusiva
à Igreja para a salvação da alma num mundo
do Além, conforme Filipenses 3.20-21.
Na Gênese do cristianismo situa-se um hiato
entre a figura do Jesus histórico, que assumiu com exemplar
e trágica seriedade o oráculo messiânico da
esperança de libertação de Israel do jugo
romano, e aquele que seus seguidores acreditaram ver como um ser
sobrenatural, ressuscitado, Messias, que ascendeu aos céus,
mas que deveria retornar em brevíssimo tempo para instaurar,
na Nova Jerusalém, o Reino que ele acreditou, antes de
sua paixão, estar já ao alcance da mão. Não
estava.
Não é possível saber com
certeza se algumas das parábolas do Reino de Deus procedem
diretamente de Jesus. Porém, mesmo neste caso,sua interpretação
adequada haveria de situar o Reino na perspectiva de um acontecimento
súbito e iminente, que alcançaria o seu pleno e
efetivo cumprimento conclusivo por aqueles mesmos dias, no solo
da Palestina. Mas o que verdadeiramente ocorreu foi que, embora
Jesus esperasse que esse grande acontecimento escatológico
irrompesse antes de concluir seu próprio ministério,
os escritores sinópticos dilataram os prazos e transformaram
as perspectivas com sua idéia de uma segunda parousia gloriosa.
Isso quer dizer que os autores sinópticos, por não
viverem a mesma experiência de Jesus, aquela experiência
de alta temperatura messiânica, reinterpretaram essa intensa
e angustiosa experiência em termos de uma teologia de novíssima
orientação e diverso significado. A urgência
de inserir a experiência de Jesus nessa nova perspectiva
_ crucificação e ressurreição como
ponto de partida da era da Igreja_ impulsionou os sinópticos
para a tarefa de construir o acontecimento escatológico
com categorias apocalípticas, como o “Filho do Homem”,
a “Parousia” (2ª. Vinda), etc, que se inscreviam
já em um marco doutrinal que tendia a interpretar aquele
acontecimento em um contexto de passado, transformando essencialmente
o sentido da escatologia; isto significou arrancá-la de
sua matriz judia para inseri-la na concepção das
soteriologias helenísticas.
O acontecimento, interpretado desta forma, implicava
no entanto na instauração de um reino presente-futuro,
como uma realidade espiritual que se prolonga no tempo histórico;
um “já” da salvação que chegaria
ao seu ápice somente no término da segunda vinda,
no final dos tempos. O vocábulo “christós”
vai se esvaziando de sua conotação adjetiva messiânica
e convertendo-se na função denotativa de um nome
próprio. Da dupla dimensão presente-futura, contrariamente
à expectativa, o primeiro termo vai crescendo em importância
e o segundo debilitando-se na sua vivência de cada dia.
Esta é a radical novidade que introduzem
os autores do Novo Testamento na esperança messiânica,
arruinando assim a significação original da idéia
escatológica, pois o Jesus histórico aparece sempre,
não definindo ou interpretando o significado do Reino de
Deus, mas, simplesmente, anunciando-o como algo iminente e de
significação objetiva: Jesus falava do reino de
Deus nesta terra.
Contudo, para Paulo, que veio depois, a vida
do Jesus histórico era só uma breve manifestação
incidental, no espaço e no tempo, de um plano divino para
a salvação da humanidade. O essencial, para ele,
era que, mediante a identificação mística
com o Cristo crucificado e ressuscitado, o cristão se transformava
em um novo ser que morre e renasce com o Salvador, sendo o “já”
do renascimento um acontecimento a ter lugar no final dos tempos,
após a parousia. E assim o cristianismo se transformou
em uma soteriologia universalista, que chegou aos nossos dias,
através da Igreja, como uma instituição espiritual
e temporal que tende a invadir todas as esferas da vida humana.
A tarefa do Agnosticismo é pois não
perder de vista o caráter híbrido e ambíguo
do cristianismo,buscando sempre afirmar-se como uma “doutrina
libertadora”.
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a nova religiosidade: o movimento new
age
João Laurindo de Souza Netto
1ª Fase:
A história dos novos movimentos religiosos deve ser considerada
em duas fases. A primeira surgiu nos Estados Unidos pelo final
da década de sessenta, a partir da chamada “Revolução
das Flores” e do movimento de contracultura juvenil que
lhe estava vinculado. Muito embora essa revolução
tivesse inicialmente um caráter político, foi logo
envolvida por movimentos de inspiração cristã
e, também, oriental, que abrangiam desde o Jesus People
até a meditação transcendental. Tais movimentos
constituíam a expressão de dois aspectos fundamentais
da mudança religiosa que então se produzia: por
um lado, o aparecimento de movimentos cristãos de tipo
fundamentalista, que iriam extravasar suas doutrinas pelos decênios
seguintes; por outro lado o crescimento do orientalismo em um
país como os Estados Unidos, que dirigia sua mirada cada
vez mais para o Oriente por razões geopolíticas
e, em parte, como conseqüência do aumento da imigração
procedente daquele lado do mundo.
Dentro desse contexto, surgiram ou se afirmaram
nos Estados Unidos, ao longo dois anos setenta, movimentos religiosos
como o Hare Krishna ou a Igreja da Unificação do
reverendo Moon. Esses movimentos, apesar de terem origem e objetivos
diferentes, apresentavam características comuns que merecem
ser destacadas. Tratava-se de movimentos laicos que não
delegavam a uma casta sacerdotal o monopólio do sagrado.
Dominava nesses movimentos uma visão apocalíptica,
isto é, a idéia da iminência do fim da ordem
presente, que logo seria destruída para ceder o passo ao
triunfo da nova ordem anunciada. Ainda que de origem localizada,
como a Igreja da Unificação, nascida na Coréia,
ou como algumas das novas religiões japonesas exportadas
ao Ocidente, de que é exemplo a Soka Gakkai, esses movimentos
caracterizavam-se pela prática de exacerbado proselitismo
universal, sobretudo entre os jovens, o que explica o seu êxito
relativo apesar das diferenças de doutrina e objetivos.
No final dos anos setenta produziu-se uma crise
progressiva nesses movimentos, que determinou, em muitos casos,
o seu total desaparecimento nos EE.UU. ou um lento processo de
extinção. Isso se explica pelo fato de que tais
movimentos se apoiavam em uma base social de tipo sectário,
isto é, propensa a encontrar nas novas formações
religiosas relações de tipo “afetivo”,
próprias das comunidades emocionais, que as novas igrejas
aparentemente não eram capazes de oferecer. Não
respondendo adequadamente a esse tipo de relação,
os movimentos perdiam força de atração. No
entanto, as mudanças estruturais produzidas criaram um
tecido sociológico (cultic milieu) mais inclinado a uma
religiosidade fluida e magmática, não propriamente
afetuosa. Este tipo de religiosidade, que começou a vigorar
a partir dos anos oitenta, coincide basicamente com a religiosidade
do movimento New Age, que constitui a segunda fase dos novos movimentos
religiosos.
2ª. Fase
De certo modo, o New Age designa apenas um título
para abranger conteúdos heterogêneos: o “channeling”,
ou a comunicação com espíritos e mestres
superiores, uma reinterpretação, mais acorde com
os novos tempos, do espiritismo clássico do século
XIX; as distintas artes de cura, vinculadas entre si pela idéia
tradicional de que a enfermidade tem uma origem espiritual, e
até certo ponto psicológica, devido a que o ser
humano não conhece o autêntico alcance do poder de
sua mente; uma espécie de Naturphilosophie (na terminologia
alemã) que, contrariamente ao mecanismo da ciência
tradicional e baseando-se em determinadas concepções
de astrofísica e do saber convencional, propõe uma
visão do Cosmos reinterpretada, a partir de uma perspectiva
holística; finalmente, um neo-paganismo multiforme, que
vai em busca do mistério impregnado de magia.
As características estruturais desta concepção,
que se encontram em quase todos os textos representativos das
distintas correntes mencionadas, podem reduzir-se a quatro elementos
fundamentais: um fundo panteísta, uma interpretação
holística, uma perspectiva evolucionista e, por último,
uma psicologização da religião que coincide
com uma socialização da psicologia. Estes quatro
elementos se inserem, como lembra o próprio nome do movimento,
em uma perspectiva claramente milenarista e apocalíptica:
a crença no advento de uma nova era, a de Aquário,
que sucederá a era de Peixes, na qual temos vivido até
agora, marcada pelo predomínio de uma fé cristã
do tipo monoteísta. New Age anuncia a chegada de uma nova
época pós-cristã, caracterizada por uma fé
que já não gira em torno ao Deus pessoal e exclusivo
da tradição judaico-cristã.
O primeiro elemento constitutivo dos movimentos
New Age é um certo fundo panteísta, que se traduz
na rejeição, mais ou menos explícita, da
fé em um Deus criador, pessoal, que transcende o Cosmos,
em favor de uma Realidade última que, embora receba diferentes
denominações, configura-se sempre como Mente, Energia
ou Vida; uma Realidade impessoal, que pode, inclusive, assumir
os traços pessoais da fé em Deus, ainda que somente
de forma temporal e instrumental. Disso deriva uma postura não
dualista, que tende a uma visão otimista deste mundo, no
qual não há lugar para a existência do Mal.
Como é próprio dos panteísmos genuínos.
Isso coincide basicamente com a ignorância de nossa mente
a respeito de nossa própria natureza que, segundo a concepção
New Age, é de origem divina. Mente que, ao reunir-se com
a Energia e a Vida de que procede, é capaz de superar todos
os obstáculos que a rodeiam.
O segundo elemento fundamental que aparece no
movimento New Age é o holismo. Este se opõe ao dualismo
e ao reducionismo, considerados os traços do modelo cultural
dominante, e é próprio de todos os ramos do movimento,
desde as distintas formas de arte de cura, unidas precisamente
por uma concepção holística de saúde
e de cura, até a busca de uma consciê4ncia global,
unitiva, que abarque a realidade, desde a consciência ecológica
até a idéia mesma de que o New Age é uma
rede, um network global. Este holismo tem algumas implicações
que podem manifestar-se de diferentes formas: desde a possibilidade,
implícita na perspectiva panteísta antes mencionada,
de reduzir a complexidade do real e de suas manifestações
a uma “fonte última”, até a idéia
de que existe uma “simpatia”, uma rede de relações
entre todos os elementos, animados e inanimados, que compõem
o Cosmos. No fundo aparece a crença de que o Cosmos é
um organismo vivo, tendência que se opõe à
concepção mecanicista do Cosmos como universo das
quantidades isoladas.
O terceiro elemento é a evolução,
que poderia considerar-se criadora no sentido de que a realidade
do Cosmos, que coincide com o fundamento último, não
é cega e irracional, mas que tem uma orientação
teleológica e ao indivíduo lhe corresponde precisamente
entrar em sintonia com este Infinito, elevando-se através
de uma tomada de consciência progressiva. Os mitos cosmogônicos,
que aparecem de forma ocasional, se baseiam em uma idéia
comum expressada de diferentes formas. Esses mitos contam como
a partir de uma unidade originária, o fundamento do Cosmos,
surge, em consequência de uma espécie de big-bang
inicial, a dualidade, uma ruptura que põe em movimento,
como uma reação em cadeia, a multiplicidade do que
existe. Este típico processo de emanação
e diversificação do Uno ao múltiplo deixa
intacta, por outra parte, a integridade essencial do universo:
isto é, existem polaridades mas nunca um autêntico
dualismo, como nos antigos mitos gnósticos, dualismo que
se considera uma ilusão da mente humana; em outras palavras,
a “queda”, mencionada pela doutrina gnóstica,
é de natureza psicológica, não cosmológica.
O quarto e último elemento pode resumir-se
no tema da transformação da consciência, porém
também na fórmula de uma psicologização
da religião e uma socialização da psicologia.
Por um lado, o mundo religioso se interioriza radicalmente: deste
ponto de vista o New Age representa à perfeição
a religiosidade da era do individualismo. Convida-se o indivíduo
a realizar, em tempo pessoal de seu próprio eu, o processo
decisivo de transformação da própria consciência,
que coincide com o típico processo de gnosis: descobrir
o próprio Si mesmo, que equivale à possibilidade
de “criar a própria realidade”. A idéia
subjacente é que todas as coisas são significativas,
que portanto o que conta é o que fazemos quando reagimos
ante um tipo de vida carente de sentido e totalmente atomizada,
tornando-nos completamente responsáveis pela própria
vida, posto que não existem poderes misteriosos fora de
nós mesmos, e aprendendo portanto a superar todos estes
bloqueios, originados sobretudo pela ignorância, que nos
impedem de realizar-nos autonomamente. Daí que o processo
salvador seja necessariamente um processo psicológico,
uma viagem interior pelos meandros da própria psique. Porém,
por outro lado, assistimos a um processo de socialização
da psicologia. Trata-se de um processo que aspira a uma gnosis
perfeita, capaz de liberar-nos definitivamente do véu de
ilusão e do olvido da ignorância. Cada indivíduo
é convidado a converter-se em terapeuta de si mesmo, libertando-se
de toda classe de dependência, reconhecendo e desconstruindo
em primeiro lugar as falsas crenças e bloqueios que obstruem
a mente, para poder depois, graças a estas novas experiências
em uma espécie de autodeterminação total,
chegar a alcançar a iluminação. Só
assim será possível contribuir ao processo evolutivo
geral: em outras palavras, criar a própria realidade e
despertar a própria consciência coincidem com o processo
geral de crescimento de Consciência Cósmica e contribuem
ao processo geral de reunificação da Realidade.
Trata-se, em definitivo,de um tipo de religiosidade
perfeitamente de acordo com as transformações que
se produzem em nossa sociedade, que tende a proporcionar a cada
indivíduo um sistema de crenças baseado na consciência
de sua natureza originária, coincidente com o Si mesmo,
que lhe permita “navegar” pelo mundo virtual no qual
estamos cada vez mais imersos. O que penetra no New Age penetra
em um “network” capaz de pô-lo em contato imediatamente,
em tempo real, com os outros usuários desta especial “rede”.
É um fenômeno ao mesmo tempo popular, no sentido
de que é acessível a todo mundo, e elitista, porque
somente a elite intelectual decidida a aprofundar o vínculo,
a compreender, por exemplo, o que se oculta em realidade por trás
da bela música que escuta, poderá aceder aos lugares
realmente importantes, evidentemente do ponto de vista de sua
própria viagem espiritual. Desse modo é possível
juntar práticas e crenças que a primeira vista parecem
incompatíveis (é a chamada religião “à
la carte”).
De acordo com esta concepção, aquele
que é capaz de navegar realmente pelo New Age pode criar
por si mesmo a própria realidade, sem necessidade de nenhuma
mediação institucional. Sendo sempre inspirao por
alguma voz interior. Esta espécie de neo-idealismo de inspiração
panteísta surpreende por sua radicalidade, que simplifica
complexos problemas filosóficos, retomando antigas receitas
religiosas tradicionais, como viagens interiores e visualização
criadora, readaptadas às necessidades de uma nova religiosidade.
O FUTURO DA RELIGIÃO
O enfrentamento com a modernidade mudou de maneira
radical o cenário religioso contemporâneo, tanto
no terreno religioso institucional como nas diferentes áreas
que formam a chamada nova religiosidade. Em consequência,
sobretudo, da afirmação do princípio moderno
do individualismo frente aos dados coletivos, impõe-se
hoje em dia a dimensão particular e subjetiva, juntamente
com as dimensões racionais. Por causa desta primazia do
interior, do individual, as crenças tradicionais e, em
particular, os sistemas teológicos, entraram em crise,
com um conseqüente debilitamento do terreno institucional.
Hoje, admite-se que não é necessário afiliar-se,
no sentido de que a afiliação religiosa configura-se,
em geral, em formas débeis de crenças, formadas
e reformadas segundo lógicas que se apartam das religiões
institucionais. Neste cenário, as religiões e, em
geral, o religioso e o sagrado, aparecem como destinados a desempenhar
um papel menos importante, pois a imaginação e a
criatividade são refratárias aos intentos de homogeneização
e catequese.
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análise do ser humano
João Laurindo de Souza Netto
1. INTELECTO – Faculdade que tem o ser humano de:
1.1. APRENDER
1.1.1. Reter na memória, ou saber procurar
em fontes adequadas, mediante o estudo, a observação
ou a experiência.
memória – faculdade mental de reter idéias,
impressões e conhecimentos adquiridos.
1.1.2. Tornar-se apto ou capaz de alguma coisa
em
conseqüência de estudo, observação, experiência,
advertência, etc.
1.2. APREENDER – assimilar mentalmente
1.2.1. Assimilar – apropriar-se ou compenetrar-se
de alguma coisa, como idéia, sentimento, estilo, etc.
1.3. COMPREENDER – Perceber ou alcançar o sentido
de alguma coisa.
sentido – significação, objetivo
2. INTELIGÊNCIA – Faculdade que tem
o ser humano de usar os recursos do intelecto, sobretudo para
resolver situações problemáticas novas com
eficiência e rapidez. A inteligência pode ser racional
ou talentosa, envolvendo esta as habilidades.
3. INTELECTUALISMO – Tendência a
considerar a inteligência como o fator mais importante do
conhecimento. Segundo a concepção intelectualista,
a origem do conhecimento é deduzida da experiência,
submetida a uma elaboração conceitual.
4. MENTE – Complexo de elementos do ser
humano, que determinam:
4.1. O SENTIR (com origem nos sentidos);
4.1.1. Sentidos – meios de que dispõe
o organismo para conhecer os objetos exteriores e a própria
posição e estado do corpo e suas partes. Anteriormente,
consideravam-se 5 sentidos: olfato, paladar, vista, audição
e tato. Posteriormente, o sentido cutâneo, dentro do qual
se englobava o tato, passou a compreender o contato e a pressão,
a dor e as relações de calor e frio. Além
disso, passou a admitir a existência de um sentido do equilíbrio,
tendo como órgão receptor o labirinto do ouvido
interno. Para que se forme uma sensação, é
necessário, além do órgão de recepção
do estímulo, um nervo transmissor da impressão e
uma região do sistema nervoso central onde o estímulo
se transforma em sensação.
4.2. O PERCEBER (com origem nos sentidos e na inteligência);
4.3. O CONSCIENTIZAR (com origem na consciência);
4.3.1. Consciência – conhecimento
imediato do indivíduo de sua própria capacidade
psíquica e da capacidade de julgar a virtude ou a culpa
moral da própria conduta.
Psíquico – relativo ao psiquismo.
Psiquismo – conjunto dos processos mentais conscientes e
inconscientes de um indivíduo, relativos ao Id e ao Superego.
Inconsciente – conjunto de processos e fatos psíquicos
que atuam sobre a conduta do indivíduo, mas escapam ao
âmbito da consciência e não podem a esta ser
trazidos por nenhum esforço da vontade ou da memória,
aflorando, no entanto, nos sonhos, nos atos falhos, nos estados
neuróticos ou psicóticos, isto é, quando
a consciência não está vigilante.
Neurose _ designação comum a vários distúrbios
emocionais, em especial fenômenos de histeria.
Histeria _ neurose que se caracteriza pela transformação
de conflitos psicológicos em sintomas orgânicos.
Psicose _ idéia fixa, obsessão.
Id – a parte mais profunda da psique, receptáculo
dos impulsos instintivos, dominados pelo princípio do prazer
e pelo desejo impulsivo.
Superego – conjunto dos processos psíquicos
pelos quais um indíviduo exerce censura sobre os seus próprios
atos; também chamado consciência moral.
4.4. O PENSAR (com origem na combinação de idéias);
4.4.1. Idéia – representação
mental de uma coisa concreta ou abstrata.
4.5. O QUERER (com origem na vontade);
4.5.1. VONTADE – faculdade de representar
mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência
a um impulso ou a motivos ditados pela razão. A vontade
está ligada à inteligência racional.
4.6. O SENTIR (com origem nos sentimentos);
4.6.1. SENTIMENTOS – conjunto dos estados
afetivos determinados por impressões de naturezas variadas.
4.7. O RACIOCINAR (com origem na razão);
4.8. O IMAGINAR (com origem na representação
mental de imagens);
5. O PROCESSO MENTAL – Sucessão de estados mentais
decorrentes da interação entre os vários
elementos da mente.
5.1. Sentir – experimentar sensação
física ou emocional;
5.1.1. Sensação – processo
relativo aos centros nervosos, correlacionado com um processo
fisiológico, que proporciona o conhecimento do mundo externo;
sensação física – a provocada através
dos sentidos;
sensação emocional – a provocada através
das emoções;
emoção – reação intensa e breve
do organismo a um lance inesperado, que se acompanha de um estado
afetivo agradável ou penoso. As emoções báscicas
são o medo, a cólera e o amor. O medo determina
a atitude de defesa; a cólera, a de ataque; e a de amor,
a criatividade. As demais emoções são combinações
das básicas.
estado afetivo – situação de afetividade num
determinado período.
Afetividade _ conjunto das impressões que se manifestam
sob a forma de sentimento.
Impressão – influência que um ser, um acontecimento
ou uma emoção exerce sobre um indivíduo,
repercutindo-lhe no ânimo, no moral, no humor, etc.
Sentimento – manifestação da afetividade que
se expressa como alegria, tristeza, mágoa, despeito, inveja,
ciúme, esperança, prazer, desprazer, dor (não
física), etc.,e que determina uma regra de ação
em relação ao objeto que a provoca.
5.2. PERCEBER – adquirir conhecimento de algo por meio dos
sentidos ou da inteligência;
5.2.1. Conhecimento – capacidade de apreciar,
julgar, avaliar, discernir coisas; apropriação do
objeto pelo pensamento através de análise detalhada.
apreciar – dar apreço ou merecimento a alguma coisa
ou
pessoa;
julgar – formar opinião sobre alguma coisa ou pessoa;
avaliar – determinar o valor de alguma coisa;
discernir – distinguir ou diferençar uma coisa de
outra.
5.2.2. Conhecimento Imediato - aquele que supera
os mecanismos discursivos normais do raciocínio lógico
e intelectual, como a consciência, a percepção
extra-sensorial, etc.
5.2.3. Níveis de Percepção
– aqueles que procedem da análise
introspectiva e podem extrapolar ao nível objetivo.
nível sensorial – relativo à sensação.
nível racional – relativo à razão.
nível inefável – relativo à expressão.
expressão – ato de exprimir alguma coisa.
exprimir – manifestar sem palavras nem texto, como por exemplo
na arte em geral: pintura, escultura, música, dança,
etc. Quanto mais vinculante é uma obra de arte, menos diz
e mais expressa.
inefáveL – o que não se pode exprimir por
palavras.
“O que não se pode dizer expressa”. Muitas
coisas não se pode dizer por palavras, como por exemplo
a beleza de um pôr do sol, expressam algo que está
além da linguagem, constituindo o chamado êxtase
por arrebatamento.
5.3. RAZÃO – Faculdade de estabelecer relações
lógicas e ponderar idéias.
5.3.1. Relação – uma das
categorias fundamentais do pensamento.
5.3.2. Lógica – estudo das formas
(conceitos, juízos e raciocínios) e leis de pensamento.
5.3.3. Ponderar – considerar os vários
aspectos de alguma coisa, examinando com atenção
e minúcia.
5.4. RACIOCINAR – usar a razão para conhecer, julgar
a relação das coisas, fazer cálculos e para,
a partir de proposições conhecidas, chegar a outras
proposições às quais se atribuem graus variados
de verdade.
5.5. IMAGINAR – Construir ou conceber na imaginação;
fantasiar.
5.5.1. Imaginação – Faculdade
de representar imagens mentais de objetos já percebidos
(reprodução) ou não percebidos (criação).
5.5.2. Imagem – representação mental de um
objeto, de uma impressão, de uma pessoa, etc.
6. PENSAMENTO – Processo mental específico que abarca
os
fenômenos cognitivos, distinguindo-se do sentimento e da
vontade.
6.1. COGNITIVO – relativo à cognição
ou conhecimento;
6.2. CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO PENSAMENTO –
qualidade, quantidade e relação;
6.2.1. Qualidade – maneira de ser que
se afirma ou se nega de uma coisa;
6.2.2. Quantidade – caráter do
que pode ser medido;
6.2.3. Relação – caráter
de dois ou mais objetos de pensamento que não são
concebidos como sendo ou podendo ser compreendidos num único
ato intelectual de natureza determinada, como identidade, coexistência,
sucessão, correspondência, etc.;
6.3. NOÉTICA – estudo das leis
gerais do pensamento;
6.4. NOESE – o aspecto subjetivo da vivência,
constituído por todos os atos que tendem a apreender o
objeto: o pensamento, a percepção, a imaginação,
etc.;
Noético – relativo à noese;
6.5. NOEMA – o aspecto objetivo da vivência,
considerado pela reflexão em seus diferentes modos de ser
dado: o percebido, o pensado, o imaginado, etc.;
Noemático – relativo à noema;
6.6. LINGUAGEM – o uso da palavra articulada
ou escrita como meio de comunicação;
Supõe-se que uma linguagem religiosa só pode fundamentar-se
em experiências que pertencem essencialmente à esfera
do inefável. No tocante a estas experiências religiosas,
é pretensão da apologética que ao não
crente não é dado o conhecimento imediato do inefável.
No entanto, para o sujeito da experiência religiosa postulada
como inefável, pela apologética, a tomada de consciência
dos conteúdos que constituem sua experiência cancela
a suposta inefabilidade. Não há experiência
sem consciência da mesma, e a consciência trabalha
sempre com representações mentais. Em termos cognoscitivos,
o que não se conscientiza não existe. O inefável,
defendido pela apologética seria o não-conscientizável.
Mas então não haveria, em rigor, o inefável.
Por conseguinte, a religião não pode legitimar-se
adequadamente pelas experiências supostamente inefáveis,
nem tampouco por sua pretensão de verdade absoluta, através
dos enunciados que a constituem em geral. Todo ser humano, crente
ou não crente, pode conhecer muito mais do que proporcionam
suas próprias experiências pessoais, porque é
faculdade dos instrumentos noéticos (subjetivos) do ser
humano ultrapassar o limitado círculo de suas próprias
experiências, e assumir os conteúdos noemáticos
(objetivos) das experiências de outros seres humanos que
estejam no seu campo de observação, quer direta
– contatos de convivência – quer indireta, através
de contatos informativos de caráter testemunhal. A razão
é capaz de tematizar qualquer objeto de experiência,
tanto de ordem intelectiva, como emocional ou desiderativa; as
técnicas noéticas da psicanálise e da sociologia
compreensiva são exemplos. Também ao não
crente é dado o inefável imediato, como por exemplo,
na arte ou numa intensa emoção. Isso não
significa, no entanto, que as fantasias da imaginação
religiosa constituam, em sua atividade incontrolável, objetos
que pertençam ao campo da realidade objetiva.
6.6.1. Apologética – parte da teologia
que explica e defende os dogmas católicos.
7. ESPÍRITO – Disposição
da mente que determina as ações do indivíduo,
através do pensamento, do sentimento e da vontade.
7.1. DISPOSIÇÃO DA MENTE –
o poder-potência do ser humano;
7.1.2. Poder – capacidade de influir ou
de determinar comportamentos;
7.1.3. Potência – qualidade daquele
que pode originar ação;
7.1.4. Poder-Potência – Faculdade
do espírito de originar ações que determinem
comportamentos adequados para responder a cada desafio da vida:
atos de coragem, para superar os medos; resolução
de agir para superar os estados de apatia e de abulia; sindérese
para evitar a insensatez; energia para superar as fraquezas; disposição
para concretizar aquilo que a pessoa é potencialmente,
etc.
7.2. INFLUÊNCIA DO ESPÍRITO - o espírito influi
no e é influenciado pelo corpo físico do indivíduo,
com o qual forma um todo inseparável constituindo o que
se chama “soma-psique”. Se o ser humano sentir-se
dominado por uma força superior, - para os religiosos,
uma força transcendente, Deus - sentir-se-á indefeso
e amedrontado e será afetado de alguma forma. Como ser
físico, está sujeito às forças da
Natureza e à força do Homem e sua possibilidade
de resistir a essas forças depende de fatores da sua própria
força física. Mas o espírito, pelo contrário,
não está subordinado ao poder externo. A disposição
da mente, o espírito enfim, não pode ser invalidado
por uma força externa ao indivíduo, mas somente
por ele próprio. O verdadeiro poder-potência do ser
humano é a disposição determinada de sua
mente para a ação. E quando esta é orientada
para evitar a “queda” do ser humano, ou superá-la,
ele será capaz de vencer todos os obstáculos que
a vida apresentar. O seu poder-potência é capaz de
livrá-lo das superstições, do fundamentalismo
religioso e do “terror mortis” na linha de uma emancipação
intelectual, e de dar-lhe os recursos para preservar a sua integridade
mental e conquistar a sua liberdade conforme as leis da vida.
7.2.1. TIPOS DE ESPÍRITO – (exemplos)
FORTE - indivíduo de inteligência
superior às opiniões e
crenças comuns;
FIRME – indivíduo de caráter reto, bem formado,
incapaz de ser abalado ou corrompido;
BRILHANTE – indivíduo de imaginação
inventiva e fecunda;
EMPREENDEDOR – indivíduo ativo, arrojado;
LÚCIDO – indivíduo de grande penetração
agudeza de inteligência;
PRÁTICO – que não se deixa levar pelas aparências;
procura sempre agir praticamente;
DO MUNDO – que segue ou mantém os hábitos
da sociedade;
DE ROTINA – que tem a tendência de praticar as mesmas
coisas, sempre do mesmo modo;
CRÉDULO – indivíduo de ânimo supersticioso;
FRACO – tímido, indeciso, ignorante, improdutivo;
8. TEMPERAMENTO – característica
constitucional e imutável do
indivíduo;
8.1. MODO DE SER EMOTIVO DO INDIVÍDUO;
8.2. MANEIRA COMO O INDIVÍDUO REAGE AO
ESTÍMULO DE
UMA EMOÇÃO;
8.2.1. Constitucional _ inerente à organização
física ou psíquica do indivíduo;
9. CARÁTER – conjunto dos traços psicológicos
do indivíduo;
9.1. TRAÇOS PSICOLÓGICOS –
traços psíquicos essencialmente formados pelas experiências
vividas na primeira infância e modificáveis até
certo ponto pelas novas experiências, sobretudo as da segunda
infância;
9.2. TRAÇOS DE CARÁTER –
hábitos e opiniões mais profundamente arraigados
no indivíduo, que lhe são característicos,
resistem a modificações na idade adulta e constituem
os modos de ser, de sentir e de reagir predominantes do indivíduo.
10. PERSONALIDADE – o complexo biológico e psíquico
do indivíduo, compreendendo:
10.1. CONSTITUIÇÃO FÍSICA
– conjunto dos caracteres morfológicos, físicos
e patológicos, hereditários e adquiridos do indivíduo;
10.2. TEMPERAMENTO
10.3. CARÁTER
10.4. INTELIGÊNCIA
10.5. “EU”- a individualidade metafísica
do indivíduo;
10.5.1. METAFÍSICA – corpo de conhecimentos racionais
(e não de conhecimentos revelados ou empíricos)
em que se procura determinar as regras fundamentais do pensamento
(aquelas de que devem decorrer o conjunto de princípios
de qualquer outra ciência, e a certeza e evidência
que neles se reconhece) e que nos dá a chave do conhecimento
do real (em oposição a aparências).
10.6. EDUCAÇÀO – processo
de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e
moral do indivíduo, visando à sua melhor integração
individual e social ao mundo;
10.7. CULTURA - o complexo dos padrões
de comportamento, das crenças e de outros valores espirituais
e materiais característicos de um indivíduo ou de
uma sociedade.
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sobre a superação do medo
João Laurindo de Souza Netto
ESPÍRITO:
Disposição da mente que determina as ações
do indivíduo através do pensamento, do sentimento
e da vontade.
Disposição:
Decisão, determinação, propósito,
desígnio.
Pensamento:
Processo mental específico que abarca os fenômenos
cognitivos, distinguindo-se do sentimento e da vontade.
Vontade:
Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não
ser praticado, em obediência a um impulso ou a motivos ditados
pela razão.
Faculdade: Aptidão inata, tendência, dom, talento.
Impulso: Estímulo, encitamento.
Razão: Faculdade de estabelecer relações
lógicas e ponderar idéias.
Ponderar: Considerar os vários aspectos de alguma coisa
com atenção.
Sentimento:
Manifestação da afetividade que se expressa por
pares de elementos antagônicos: alegria ou tristeza; satisfação
ou insatisfação; agrado ou desagrado; prazer ou
dor (não física); aflição ou tranqüilidade;
pesar ou contentamento; mágoa ou estima; despeito ou satisfação;
inveja ou indiferença; ciúme ou frieza; esperança
ou desesperança; melancolia ou euforia, etc.
DISPOSIÇÃO DA MENTE:
É o “poder-potência” do ser humano.
Poder:
Capacidade de influir ou de determinar comportamentos em outrem
ou em si mesmo.
Potência:
Qualidade daquele ou daquilo que pode originar ação.
PODER POTÊNCIA:
Faculdade do espírito de originar ações que
determinem comportamentos adequados para responder a cada desafio
da vida. Como exemplo: atos de coragem para superar os medos;
disposição para a pessoa concretizar aquilo que
ela é potencialmente, etc.
Superar:
Vencer, dominar, livrar-se de, afastar.
Medo:
Emoção determinada pela idéia de um perigo
real ou imaginário; pela presença de alguma coisa
estranha ou perigosa; por algo ou alguém que represente
uma ameaça; ou por uma promessa de castigo ou malefício.
1ª. CONCLUSÃO
Para superar um medo é necessário
realizar um ato de coragem, de intensidade superior ao medo, que
a ele se oponha. A emoção oposta ao medo é
a cólera, mas sempre há, no processo de superação,
sentimentos envolvidos que podem dar sustentação
ao medo e precisam, portanto, ser reconhecidos.
2ª. CONCLUSÃO
Para realizar um ato de coragem que se oponha
a um medo, é necessário que o espírito, através
da vontade e por motivos ditados pela razão, decida-se
a realizá-lo, procurando desenvolver sentimentos opostos
àqueles que sustentam o medo.
Realizar:
Por em prática, executar.
EMOÇÃO:
Reação intensa e breve do organismo a um lance inesperado,
que se acompanha de um estado afetivo agradável ou penoso.
As emoções básicas são:
o medo, que determina a atitude de defesa;
a cólera, que determina a atitude de ataque;
o amor, que determina a atitude de criatividade;
e o ódio que origina a atitude de destrutividade.
Estado Afetivo:
Situação de afetividade num determinado período.
AFETIVIDADE:
Conjunto dos fenômenos psíquicos que, por influência
de uma impressão, desencadeiam sentimentos.
Impressão:
Estímulo causado por um ser, por um acontecimento ou por
uma emoção, que repercute no ânimo, no moral
ou no humor do indivíduo e influencia a sua afetividade.
SENTIMENTO:
Manifestação da afetividade que se expressa por
pares de elementos antagônicos: alegria ou tristeza; satisfação
ou insatisfação; agrado ou desagrado; prazer ou
dor (não física); aflição ou tranqüilidade;
pesar ou contentamento; mágoa ou estima; despeito ou satisfação;
inveja ou indiferença; ciúme ou frieza; esperança
ou desesperança, etc.
3ª. CONCLUSÃO
Para dominar um sentimento não desejado, que pode sustentar
o medo, a razão, impulsionada pela vontade,deve desencadear
o sentimento que lhe é oposto; o sentimento oposto ao medo
é a frieza.
FRIEZA:
É, neste contexto, entendida como: serenidade, imperturbabilidade,
tranqüilidade pela análise racional dos fatos e decisão
de agir.
INFLUÊNCIA DO ESPÍRITO
O espírito e o corpo físico do indivíduo
formam um complexo psicossomático inseparável. Não
existem, como pregam as religiões, espíritos que
se movam livre, misteriosa ou sigilosamente em uma realidade transcendente.
Só há seres humanos em que o complexo matéria-espírito
não implica em cisão ontológica, que nascem
e morrem no único mundo que existe, o mundo da finitude.
Cisão
Separação, divisão
Ontológica
Relativo à ontologia: parte da metafísica que estuda
o ser.
Finitude
Tudo o que concerne ao ser humano, incluindo a sua humanidade,
e excluindo o que é transcendente.
Transcendente
O que ultrapassa os limites da experiência. Por exemplo:
a idéia de Deus.
Como ser físico, o homem está sujeito
às forças da natureza e à superioridade da
força de outros homens, e isso, por gerar medo, exige que
o espírito venha em sua ajuda. O espírito não
está subordinado a nenhum poder externo, somente ao próprio
indivíduo. Uma vez que a disposição da mente
não pode ser invalidada por nenhuma força externa,
basta, para superar o medo, acionar, pela vontade, o poder-potência
do espírito. Dessa forma, o indivíduo poderá
não só superar o medo como também vencer
todos os obstáculos que a vida lhe apresentar.
O poder-potência, apesar de ser uma faculdade do espírito,
não é, como o instinto, posto em prática
automaticamente. Algumas condições são necessárias
para isso. Vejamos:
1ª. CONDIÇÃO:
Ainda que a carência de uma base de conhecimentos científicos
possa causar dificuldades para a compreensão dos fenômenos,
é possível abandonar definitivamente as superstições
e crendices, que moldaram nossa educação tradicional.
A razão é a instância capaz de corrigir a
si mesma e indicar novos comportamentos, totalmente isentos das
superstições e crendices da nossa infância
e mesmo de nossa vida adulta anterior.
A primeira condição é pois: eliminar as superstições
e crendices, não apenas no modo de falar (às vezes
em tom de brincadeira para iludir a si mesmo), como na verdadeira
e sincera convicção. As superstições
e crendices são geradoras de medo.
2ª. CONDIÇÃO
Não existe fronteira precisa entre superstição
e religião, porque ambos os fenômenos procedem de
uma só raiz, que é a busca de proteção
contra as inseguranças da vida. A religião, com
a promessa de uma vida futura, após o julgamento dos atos
na terra, promove, sub-repticiamente, pelo temor do julgamento,
o “terror-mortis”.
Sub-reptício
Obtido por omissão ou alteração de fatos
que iriam influir em medidas de ordem moral, legal ou de consciência.
A superstição é um sentimento
essencialmente religioso, que associa, irracionalmente, efeitos
desejados a causas imaginárias.
A segunda condição é, pois: admitir que as
“verdades” da Igreja sobrevivem pela simples inércia
histórica, que os chamados “administradores dos mistérios
de Deus” afirmam ser o conhecimento último da realidade.
Mas essa é a penas a linguagem do sobrenatural, que deve
ser suprimida porque inspira medo.
3ª. CONDIÇÃO:
O antropomorfismo impulsionou a atribuição de guias
humanos de comportamento: orações, súplicas,
tributos, promessas, como se fora para os grandes potentados da
terra.
Antropomorfismo
Crença que atribui a Deus formas ou atributos humanos.
Segundo a Igreja, Deus representa os próprios
poderes do homem, de modo que o homem só está em
contato com seus próprios poderes através da adoração
a Deus. Quanto mais forte e rico for Deus, mais fraco e pobre
se torna o homem. Encontrar a certeza pela anulação
do “eu” individual, tornando-se um instrumento sob
um poder esmagadoramente mais forte e alheio ao ser humano é
a tese cristã. E isso gera medo e insegurança.
A terceira condição é, pois: situar-se firmemente
na finitude, não admitindo a necessidade de uma divindade
transcendente. Para isso o agnosticismo se impõe como uma
doutrina que encontra na serenidade (frieza) a vitória
sobre o “terror mortis” e, vencido este, os demais
medos passam a ter menor valor.
AGNOSTICISMO
Doutrina que nega a faculdade de conhecer a verdade
absoluta. Admite que a fé é a submissão a
determinada afirmação de ordem transcendente, aceita
como verdadeira, quer seja ou não, que não procede
de Deus, mas ao contrário, determina a existência
de Deus, assim como pode determinar a existência de qualquer
ser de natureza divina.
CONCLUSÃO
O Agnóstico encontra em si mesmo a força
para não ser instrumento de nenhuma autoridade transcendente
de qualquer tipo;
Não é resignado, porque a resignação
supõe admitir uma instância superior à razão;
Não sente-se infeliz, nem desencorajado,
nem culpado, porque entende que o mundo, com arbitrariedade própria
(doenças, sofrimento, dores físicas e morais), é
resultado de sua imperfeição. E, paradoxalmente,
segundo a Igreja, ele foi criado por um Ser perfeito.
Não admitindo esta última tese,
o Agnóstico supera os medos e vive uma tranqüilidade
vital, que provém de estar satisfatoriamente instalado
na finitude, mesmo nos casos em que o finito é dor ou preocupação,
na crença de que é o espírito quem outorga
sentido aos acontecimentos da vida porque as coisas, por si mesmas,
apenas desempenham funções, nunca determinam sentido.
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credulidade
João Laurindo de Souza Netto
O gênero humano tem uma capacidade inesgotável para
a credulidade supersticiosa. Não obstante, o homem é
capaz de formular perguntas, pelas quais se estabelece o dilema,
em toda crença religiosa, de ignorar e crer, ou de saber
e não crer. Credulidade supersticiosa. Expressão
chave para definir a mente cativa, porque se alimenta a credulidade
quando se tem o hábito de evitar o risco de discernir por
conta própria e, também, quando se busca segurança
enganosa que ninguém pode outorgar: ante a aventura do
conhecimento da realidade, ante o imprevisível da vida,
ante o fato indefectível da morte.
Inventando garantias e consolações
ingênuas, a Igreja e seus sub-rogados: sacerdotes, curas,
párocos _ sem falar nos bispos, cardeais e o Papa _ têm
sempre explorado as debilidades humanas através de um proselitismo
sinuoso, mas eficaz, que põe ao seu dispor os instrumentos
psicológicos e sociais de dominação das consciências.
Para isso, não se furta a anular, ou pelo menos obstaculizar,
o livre exercício da inteligência, reprimindo, com
vigor, a coragem moral daqueles que são potencialmente
capazes de substituir a falsa segurança das crenças
supersticiosas pela lucidez da razão.
As etapas de um itinerário crítico
bem estruturado devem ter seu início pela reflexão
sobre a possibilidade de ser Deus cognoscível e sobre sua
incompatibilidade com a injustiça do mundo e das misérias
que o assolam: pragas, pestes, fome, doenças, cataclismos,
etc.; segue-se o estudo da origem das religiões com suas
escrituras e tradições, partindo-se depois para
as questões centrais da Bíblia: a criação
do mundo, a origem da vida e do ser humano, a existência
do mal e da dor, o monoteísmo. Estas questões cedem
logo lugar aos grandes “mistérios” da fé
cristã: a Virgem Maria, Cristo, a Trindade, a Ressurreição,
a Ascensão, o Juízo Final e a Escatologia, a Igreja
e os Sacramentos, seguindo-se o Matrimônio e o papel da
mulher, a consciência moral, a autoridade religiosa e a
liberdade da pessoa, os cultos aos santos e anjos, as devoções
íntimas, o clero, sem esquecer a degradação
humana a que conduzem o fundamentalismo e o fanatismo.
Verifica-se, nesta andadura, que não é
fácil refutar o que não existe, e as religiões,
entre elas o cristianismo, só têm existido nas mentes
de seus fundadores e de seus seguidores. Haja vista as falsificações,
manipulações, adições, omissões
e tergiversações que denunciam a falta de autenticidade
dos textos supostamente sagrados.
Não existe fronteira precisa entre religião
e superstição, porque ambos os fenômenos procedem
de uma só raiz, desde os mais remotos tempos, quando o
homem começou a buscar ansiosamente instâncias protetoras
contra os riscos e inseguranças de cada dia. O horizonte
totalizador se manifestava em um “terror mortis” onipresente,
ante a aniquilação pela fome, pelas enfermidades,
pela violência das forças cósmicas de todo
tipo, o que gerou fantasias mentais nas quais se assentavam, e
ainda se assentam, todas as religiões como vínculos
imaginários com seus protetores.
É notável que em nosso mundo secularizado
atual tenham voltado a florescer com vigor as condutas supersticiosas,
enquanto que as confissões religiosas tendem a perder vigência.
Em todas as sociedades de tradição cristã,
as pessoas se persignam, associando o sinal da cruz a situações
ou objetos materiais num culto fetichista que, na maioria dos
casos, não passa do gesto. É claro o sintoma de
insegurança, que denota uma atmosfera de medo, angústia
e superstição.
A superstição, no vasto repertório
de suas modalidades é um sentimento essencialmente religioso,
que associa irracionalmente efeitos desejados a causas imaginárias.
Ignorância, compulsão psíquica e alienação
estão na base da superstição, a qual alimenta
um tipo de comportamento que nada tem a ver com o êxito
ou com o efeito buscado. O comportamento se repete, qualquer que
seja o resultado do ato supersticioso, porém a mescla aleatória
de êxitos e fracassos não autoriza a inferir a menor
relação de causalidade entre o ritual supersticioso
e o resultado esperado. Mesmo que nessa mescla predominem os fracassos,
a conduta supersticiosa prosseguirá, dominando a vida das
pessoas que encontram nesta conduta um estado anímico gratificador,
mediante sensações tranqüilizantes ou estimulantes.
Não são certamente as Igrejas nem os promotores
de religiões, mas sim a comunidade científica, a
instituição competente para controlar e promover
os dados empíricos e as hipóteses explicativas que
permitam aperfeiçoar a representação da realidade.
Ainda que a carência de uma base de conhecimentos científicos
possa causar dificuldades para a compreensão dos fenômenos,
é possível, sem dúvida, abandonar definitivamente
as velhas e caducas crenças que, conformaram nossa educação
tradicional. É a razão a instância que corrige
a si mesma, fazendo com que o método científico
seja, sem exceção, insubstituível e soberano.
Hoje sabemos que a retórica do conhecimento
último da realidade, que segundo os administradores dos
mistérios de Deus pertence à religião, não
é senão a linguagem do sobrenatural, a saber a teologia.
As “verdades” da Igreja sobrevivem pela simples inércia
histórica, uma abrumadora hegemonia ideológica que
sua exemplar organização hierárquica torna
pouco menos que inexpugnável.
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lealdade
João Laurindo de Souza Netto
A lealdade _ entendida como o procedimento de
quem age de forma perseverante, numa linha de ação
retributiva a algo recebido, prometido ou comprometido _ pode
ser analisada sob vários aspectos:
• como fidelidade, quer a um compromisso assumido, quer
a uma causa a ser defendida;
• como constância nas afeições;
• como retribuição, devida pelos filhos a
seus pais, pela formação recebida desde a primeira
infância até o início da vida profissional,
a qual inclui o desvelo, e vai possibilitar o acesso a uma posição
desejável no mundo social, compatível com suas possibilidades,
mesmo que este acesso tenha sido obtido, posteriormente, pelo
esforço próprio;
• e, de uma forma genérica, como reconhecimento a
qualquer estímulo ou apoio recebido num momento de carência,
como demonstração de franqueza e de confiança.
Perseverante significa de forma não transitória,
isto é, a lealdade não se resume a um simples ato
mas sim a uma maneira constante de ser, que inspira confiança.
Em todos os casos em que a lealdade é praticada, a frase
que melhor a define é “pode contar comigo”,
ou, se tiver que optar, “estou do teu lado”. Quem
quer que tenha alguma vez recebido demonstração
desse tipo, saberá apreciar o valor da lealdade, enquanto
que o contrário, também verdadeiro, não deixará
de produzir marca indelével.
A fidelidade a um compromisso pode ser exemplificada,
de uma forma muito compreensível, pela relação
entre os que vivem maritalmente, quer numa relação
formal, quer na informalidade, sendo a condição
“sine qua non” para a manutenção do
relacionamento.
Tratando-se de uma causa, é devida a um grupo organizado
quer esteja dentro ou fora da lei. Nestes casos, a infidelidade,
ou a não lealdade, é punida severamente, muitas
vezes, sobretudo nos grupos secretos fora da lei, com a própria
morte.
Mas é no grupo familiar que a lealdade adquire um caráter
excepcionalmente importante. Mesmo em nosso mundo ocidental moderno,
supostamente liberto dos atavismos característicos dos
povos orientais e do patriarcalismo de antanho, os pais, quanto
mais forte forem os seus valores, esperam lealdade dos filhos
aos seus usos e costumes, apesar de eventuais adaptações
ou concessões impostas pelo transcurso dos tempos. Geralmente,
quanto mais a idade dos pais avança, mais sólidas
se tornam suas convicções e, apesar de procurarem
acompanhar as mudanças, o núcleo essencial dos valores,
se bem estruturado, permanece, e a lealdade, assim como a sua
falta, é sentida com grande intensidade.
Não é difícil concluir que quanto mais forte
tiver sido o impulso dado aos filhos no passado, maior será
a expectativa de reconhecimento no presente, por mais que essa
realidade tenda a ser despercebida ou não valorizada pelos
filhos, às vezes até mesmo em decorrência
de expressões de racionalização dos próprios
pais do tipo “ não espero nada” ou “
não fiz mais do que a minha obrigação”,
etc. Mas é evidente que, mesmo encoberta _ e não
deveria sê-lo, a expectativa existe.
Olhando-se a questão do ponto de vista dos filhos, a verdade
nua e crua é que nunca iriam atingir, por meios honestos,
uma posição privilegiada no mundo social se não
tivessem recebido, na fase de formação e muitas
vezes além dessa fase, um impulso dos pais, tão
forte quanto possível a estes, independentemente de seu
próprio esforço posterior e de apoios fortuitos
ou intencionais que venham a receber no decorrer de suas vidas.
Haja vista a vida dos favelados e marginalizados pela fortuna,
cujos pais não puderam dar-lhes o impulso necessário.
Dificilmente conseguirão emergir da situação
de pobreza e alcançar posições de destaque
no mundo social, a menos que se tornem presas fáceis dos
traficantes e adentrem o mundo do crime.
Voltando à definição inicial, como pode haver
ação retributiva perseverante sem disponibilidade
e sem proximidade? A lealdade como dever de consciência
deve ser manifestada através de ações concretas,
que exigem disponibilidade e proximidade. Acaso palavras substituem
a ação?
Olhando-se agora a questão do ponto de
vista dos pais, estes, se puderam dar aos filhos a formação
almejada, receberam algo de alguém: do governo, se servidores
públicos; de empresa ou firma, se profissionais liberais;
do público em geral, se prestadores de serviços,
etc. Generalizando, pode-se dizer que, afora meios ilícitos,
a provedora de recursos é a sociedade, uma vez que há
uma rede nas transações, em que uns recebem e outros
pagam, formando-se o chamado mercado, em sentido lato, onde se
manifestam a oferta e a procura de produtos, serviços e
valores.
Se se quiser estender o conceito de sociedade
à sua maior abrangência, não se pode deixar
de falar do conceito de nação, que é a comunidade
de cidadãos sob o mesmo regime de governo, que partilham
a mesma história e possuem uma cultura comum. Assim, o
sentimento de brasilidade nunca poderá confundir-se com
o americanismo, que é o apreço exagerado à
cultura dos Estados Unidos. Enquanto a brasilidade é o
caráter distintivo do povo brasileiro e, por extensão,
o sentimento de apego ao Brasil em relação a qualquer
outra nação, o americanismo é o culto ao
que é próprio dos Estados Unidos, disseminado maciçamente
pela mídia em todo o mundo.
Assim, o indivíduo de que se trata, a
família, a sociedade e, por extensão a nação,
formam uma rede inextricável, que não permite considerar
cada elemento isoladamente. Daí porque a lealdade à
família, desde que esteja bem estruturada e tenha oferecido
o impulso de que se fala, e a lealdade à nação,
encarada como a sociedade estendida, que provê os recursos
para a família, são absolutamente indiscutíveis
e implicam em constância e firmeza no sentimento de retribuição,
ou seja , em perseverança.
Falou-se em mundo social sem que dele se desse
uma definição, o que não torna claro o seu
conceito neste contexto. Mundo social é aqui entendido
como o conjunto de unidades em que se divide a sociedade e que
compreendem:
• um determinado indivíduo, que pode representar
uma coletividade ou a si mesmo: um imperador, um rei, um líder,
um chefe, um pai, um parceiro e seus respectivos femininos;
• grupos de indivíduos como por exemplo os ligados
por laços de sangue_ a família;
• ou os ligados por fortes raízes comuns_ a nação;
• além desses, a quem a lealdade é considerada
obviamente devida, há os grupos ligados por interesses
comuns, como o social, o religioso, o profissional, o econômico,
o político, o militar, etc. aos quais se espera lealdade
pelo menos enquanto o indivíduo considerado a eles pertencer
e. em certos casos, por uma questão moral, como por exemplo
no caso dos grupos econômicos e militares, mesmo depois.
A força de coesão que estimula a lealdade de um
indivíduo para com outro ou daquele para com um grupo,
é constituída pelos laços de sangue no caso
da família, pelas raízes comuns no caso da nação,
pela defesa de uma causa ou pelo ideário comuns, como em
guerras religiosas, de independência, separatistas, doutrinárias
e outras, ou por códigos de honra, às vezes muito
fortes, decorrentes da tradição ou da formação
individual.
Afora grupos organizados fora da lei, como a
Máfia, terroristas, traficantes, etc, para os quais a lealdade
é exigida como condição de sobrevivência,
as relações do mundo social supõem lealdade
com disponibilidade, isto é, com um estado de espírito
ditado pela consciência que predisponha o indivíduo
a aceitar os deveres impostos pela qualidade de ser leal. É
evidente que sem que a consciência atinja o estado de disponibilidade,
o indivíduo pouco ou nada se preocupa com a lealdade que,
neste caso, é um conceito estranho para ele. Até
mesmo as relações com a família, envolvendo
laços de sangue, tendem a se esfumar com o tempo, se não
houver disponibilidade, e a nação pode se tornar
uma entidade distante, que será definitivamente desarraigada,
desaparecendo assim aquela citada rede inextricável.
A lealdade é pois uma dívida, despertada pela disponibilidade
da consciência para com as unidades do mundo social que
mais impulsionaram o indivíduo, da qual ninguém
é imune. O conceito de “self-made-man”, entendido
como a pessoa que se elevou da obscuridade ao sucesso unicamente
por seus próprios esforços, com honestidade e honradez,
não passa de uma ilusão. Tal conceito só
é verdadeiro se entendido em termos de desenvolvimento,
por si mesmo, de seu próprio potencial, através
do processo, árduo, de questionar afirmações
impostas dogmaticamente e de definir, pela sua própria
razão, uma filosofia de vida capaz de torná-lo útil
a si mesmo e à sociedade e invulnerável ao “lançamento
das flechas da fortuna”. Ninguém pode prescindir,
na infância ou além dela, do impulso de alguém.
E a esse alguém deverá ser leal.
O pagamento dessa dívida é avaliado
pela sensação de íntima aprovação
da consciência ao questionamento íntimo sobre a necessidade
do reconhecimento. E essa dívida implica em uma ação
constante, perseverante e firme no sentido de retribuição
ao agente promotor do impulso. Só assim será remida.
Palavras apenas não bastam. É preciso ação
e presença!
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prestígio
João Laurindo de Souza Netto
Prestígio de uma pessoa é o tipo
de deferência que outras pessoas demonstram na sua presença
ou com relação a ela, ou negam-lhe se acharem que
cometeu um ato não digno; manifesta-se pelo grau de respeito,
de admiração, de formalidade, de reserva, ou de
um modo geral, pelo tratamento diferenciado.
Deferência
Atenção, importância, acatamento
O prestígio é algo intangível
que a sociedade atribui à pessoa de que se trata. Na realidade,
ao nascer, uma criança herda o status de seus pais. Em
alguns casos, isso é suficiente para levá-la durante
toda a vida numa “onda de prestígio”. Assim,
por exemplo, um Ford, um Rockfeller, um Rothschild, ou os membros
das casas reais em geral, herdam prestígio através
de seus nomes. Como vão utilizar esse prestígio
em suas vidas depende naturalmente de cada um.
Intangível
Impalpável, que não se pode tocar
Status
Característica do nível sócio-econômico-cultural
de uma pessoa em suas relações com a sociedade.
Durante suas vidas, as pessoas procuram obter prestígio
porque este, além de proporcionar-lhes satisfação
pessoal, facilita a obtenção e manutenção
de seus objetivos e ajuda na realização de seus
interesses. Muitos tendem a procurar prestígio através
dos símbolos materiais de status: riqueza, notoriedade
social, etc., e a ostentação desses símbolos
passa a ser a sua meta principal. Outros, diferentemente, procuram
a realização pessoal, pela qual se impõem
e adquirem prestígio sem que este se torne um fim em si
mesmo; ele vem como decorrência da força interior
da pessoa.
Independentemente de sua forma de expressão,
parece haver uma necessidade subjacente em cada pessoa de que
tenha sua importância reconhecida e concretamente estabelecida
num nível que sente ser aquele que merece. E mesmo as pessoas
de mais baixo status social sentem-se ofendidas se não
forem tratadas adequadamente, advindo daí a chamada “luta
de classes”.
Subjacente
Que não se manifesta, mas está oculto.
Quer para ser mantido, se for herdado pelo nome, quer para ser
conquistado, o prestígio representado pelos símbolos
materiais de status requer poder. O poder é entendido como
a capacidade de induzir comportamentos ou neles influir.
O indivíduo capaz de influir no comportamento de outros
pelo exercício de sua função , qualquer que
ela seja, tem o chamado poder de posição, pois deixa
de ter prestígio ou a intensidade deste é grandemente
afetada se perder dita posição.
Já aquele que obtém prestígio
com origem na própria personalidade , independentemente
de posição, tem poder pessoal. Este exige talento:
um grande orador, um grande escritor, um grande pintor, um grande
caráter, um indivíduo de grande coragem, alguém
que demonstra ter fortaleza nas adversidades, etc.
A necessidade de prestígio, no entanto,
é mais ou menos limitadora. As pessoas tendem a procurar
prestígio apenas até um nível pré-determinado.
Quando sentem que atingiram tal nível, a força dessa
necessidade tende a diminuir e o prestígio se torna uma
questão de manutenção e não de progresso.
A motivação de conquista de prestígio aparece
mais destacadamente em pessoas mais jovens, que julgam não
terem ainda atingido o status que almejam na vida, mas têm
grande desejo de obtê-lo. Já para os mais velhos,
que entendem que já atingiram o nível de prestígio
que os satisfaz, ou para os que admitem que pouco ou nada podem
fazer no sentido de melhorar o status que já alcançaram,
a motivação de conquista de prestígio perde
força e os seus esforços se dirigem apenas para
a não perda, ou para a manutenção do status
que alcançaram. A não compreensão desse processo
pode levar a situações lamentáveis ou ridículas,
conforme se trate de um jovem que não luta para conquistar
prestígio, ou de um velho que se esforça por consegui-lo
artificialmente adotando atitudes não compatíveis
com a sua idade, mais próprias para um jovem.
Algumas pessoas têm poder de posição
e poder pessoal; outras, apenas um deles; e outras ainda, por
falta de motivação, nenhum dos dois. O poder de
posição começa numa idade muito tenra, quando
o bebê compreende que chorar pode influir no comportamento
dos pais, sobretudo no da mãe.
Esse poder de posição tende ou não a diminuir
com a idade, dependendo da educação recebida. Como
adolescente, ou até mesmo como adulto, o indivíduo
pode procurar manter ou aumentar esse poder, surgindo daí
os “conflitos de gerações”. Na verdade,
a personalidade de uma pessoa se desenvolve muito cedo na vida
e é grandemente influenciada pelo tipo de experiências
que, como criança, teve com os adultos do seu mundo.
De outra parte, para as pessoas que buscam a
realização pessoal, da qual o prestígio surge
como corolário, há necessidade do desenvolvimento
de pelo menos duas características: competência e
realização. Delas deriva o poder pessoal. A competência
é o controle sobre os fatores ambientais físicos
(competência técnica) e sociais (competência
interpessoal). A competência se revela como um desejo de
domínio sobra a tarefa a ser executada, seja ela qual for.
O trabalho de um indivíduo competente é como uma
arena em que deve pôr à prova sua capacidade, suas
aptidões e toda a sua tenacidade, numa luta que representa
um desafio permanente mas não intangível. A competência
deve ser buscada a partir da infância, mas não é
necessariamente permanente, embora possa ser cumulativa. Assim,
uma pessoa pode partir de um mau começo e desenvolver,
após tentativas fracassadas, um intenso sentimento de competência
que se acumulará com os triunfos que vier a alcançar.
Contudo, parece haver um momento em que o sentimento de sentir-se
competente tende a se estabilizar. Depois de certa idade, raramente
a pessoa atinge mais do que aquilo que foi capaz de acumular em
termos de competência. Isso acontece porque, geralmente,
não tem motivação para tentar coisas acima
de seu domínio habitual. Daí porque é importante
que, ao seu tempo, o seu potencial de competência seja desenvolvido
ao máximo possível, com decisão, bons propósitos
e honestidade. Não são poucos, lamentavelmente,
os casos em que a competência é desbaratada em detrimento
de interesse espúrios.
Quanto à outra característica _
a realização _ é própria das pessoas
que não esperam passivamente que as coisas aconteçam:
desejam fazer com que as coisas aconteçam. As pessoas com
esta característica procuram estabelecer objetivos relativamente
difíceis, mas realizáveis, e lançam-se com
vigor na tarefa de atingi-los. Contudo, algumas pessoas com esta
característica tendem ao extremo, lançando-se num
“jogo amalucado” pela reduzida possibilidade de ganho
por meios éticos. O “jogador” parece escolher
um grande risco porque sabe que o resultado está fora de
seu alcance e, portanto, pode facilmente, através da racionalização,
justificar sua escolha no caso de perda.
Racionalizar
Elaborar o raciocínio sobre falsas razões
Por outro lado, o indivíduo excessivamente
conservador escolhe objetivos com risco mínimos, talvez
pelo fato de assim minimizar o perigo de ocorrer algo errado,
pelo que poderia ser acusado, até mesmo por si próprio.
O indivíduo com alta motivação pela realização,
no entanto, escolhe o ponto médio, preferindo um grau moderado
de risco porque sabe que assim seus esforços e suas capacidades
determinarão o resultado almejado.
A pessoa com motivação para a realização
tem maior satisfação com os resultados obtidos do
que propriamente com o dinheiro ganho. O dinheiro sem dúvida
é valioso, não só como base de sustentação
das necessidades básicas da pessoa, e isto é fundamental,
mas também como medida da realização pessoal.
No entanto, é necessário frisar, a pessoa realizadora
não procura o dinheiro para a realização
de status material e sim para o desenvolvimento de uma atividade
produtiva. Tal pessoa não está interessada nos comentários
daquelas com motivação de status social, mas deseja
obter respostas ligadas à significação de
sua tarefa, porque seu objetivo é fazer de forma melhor
aquilo que fazem. Estão orientadas para a realização
como um todo, envolvendo os aspectos técnicos e psicossociais,
mas não para a sociabilidade como conquista de status social,
que não é sua prioridade. Estabelecem diretrizes
filosóficas para suas vidas, que procuram marcar pela capacidade
de renúncia às facilidades proporcionadas pelas
atividades não éticas. Assim, as pessoas voltadas
para a realização, tornam-se transformadoras da
realidade no sentido de melhorá-la. Na ação
de fazer, vão buscar a sua autorealização
e portanto sua felicidade, posto que esta é conseqüência
daquela.
A autorealização como pressuposto
da felicidade, implica, como o próprio nome diz, em ser
autorealizado, isto é, não instrumento de uma autoridade
transcendente de qualquer tipo, não resignado, porque a
resignação supõe uma instância superior
à razão, não infeliz, não desencorajado,
não culpado.
Para isto, é preciso ouvir a voz do humanismo.
E a condição essencial para alcançar esta
realização é que o homem seja o único
propósito e finalidade e não um meio para nada exceto
para si próprio. Em outras palavras, que assuma, sem rancor,
o que a finitude oferece, sem esquecer como bem sabe o agnóstico,
que as mudanças e as transformações são
condições do finito, pois o mundo, de acordo com
a ética humanista, há que aceitá-lo como
é. A satisfação é, para o agnóstico,
a satisfação do que o mundo é, ou pode ser,
para o homem. Satisfação no mundo significa que
o mundo é bastante ou suficiente, não que seja apenas
prazenteiro. Nada fortalece mais o homem do que a consciência
da proximidade do finito e não do transcendente, e deste
fortalecimento surge um modo especial de aceitar a existência
tal como ela é.
Agnosticismo _ doutrina que nega a faculdade
de conhecer a verdade e prega a ética humanista.
Finitude _ tudo o que concerne ao ser humano, incluindo sua humanidade
e excluindo o que transcende.
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origem do universo
João Laurindo De Souza Netto
A origem do Universo sempre foi uma das grandes
preocupações do homem: de onde viemos e para onde
vamos são as questões importantes da cosmogonia
e escatologia. De acordo com a tradição judaico-cristã,
o Universo teve início num certo tempo definido e não
muito distante do passado. O principal argumento em defesa de
tal origem determinada, foi o de que seria necessário haver
uma “Causa Primeira”, ou seja, Deus, capaz de explicar
a criação, a partir do nada, de tudo o que existe.
E de fato, dentro do Universo qualquer acontecimento pode ser
explicado como causado por algum outro, anterior a ele. Mas a
existência do Universo em si, só poderia ser explicada
por uma “Causa Primeira”, estranha ao Universo, que
o teria criado por um ato de vontade, em um instante determinado
de tempo. O Universo teria pois uma origem determinada, de natureza
transcendente. Essa, a explicação da Bíblia.
Agostinho de Hipona, interpretando o livro do Gênesis, propunha
algo em torno de 5000 anos a.C. para a criação do
Universo. É interessante notar que esta data não
está muito distante do final do último período
glacial ocorrido há cerca de 10000 anos a.C., quando os
historiadores admitem ter realmente começado a nossa civilização.
A questão de saber se o Universo teve um princípio
no tempo e se está limitado no espaço foi posteriormente
examinada pelo filósofo Emanuel Kant em sua famosa obra
“Crítica da Razão Pura”, publicada em
1781. Kant chamou tais indagações de antinomias
da razão pura, isto é, contradições
recíprocas, pois havia argumentos igualmente convincentes
para crer tanto na tese de que o Universo teve um princípio,
como na antítese, de que sempre existiu.
Sua argumentação era de que se
o Universo tivesse tido um princípio, teria havido um período
de tempo infinito anterior a ele e, deste modo, por que haveria
de ter origem em um tempo particular qualquer? De outra parte,
se o Universo não tivesse tido um princípio, teria
havido um período de tempo infinito anterior a qualquer
acontecimento, o que seria absurdo.
Os argumentos de Kant estavam baseados na suposição
de que o tempo era uma grandeza contínua, que se prolongava
para trás indefinidamente, tanto se o Universo tivesse
tido existência desde sempre, como se isso não tivesse
ocorrido. Também Aristóteles, e mais tarde Newton,
acreditavam em um tempo absoluto e contínuo. Segundo eles,
o tempo e o espaço eram grandezas totalmente separadas
e independentes. Somente em 1865, Maxwell estabeleceu sua teoria
de que a luz deveria viajar a uma velocidade fixa determinada
e, por volta de 1915, Einstein propôs a célebre teoria
da relatividade, que acabou com a idéia de um tempo absoluto.
Atualmente, devemos aceitar que o tempo não está
completamente separado e não é independente do espaço,
mas que, pelo contrário, combina-se com ele para formar
um conjunto chamado espaço-tempo. Aliás, em 1912,
Max Planck já havia estabelecido a teoria de que a luz
e o tempo não eram fenômenos contínuos mas
sim divididos em quantidades elementares muito pequenas chamadas
“quantum” (teoria dos quanta), o que revolucionou
o conhecimento dos chamados muito pequenos.
Por não ser contínuo, o conceito de tempo não
tem significado antes da origem do Universo. Aliás, como
se deveria responder à clássica pergunta: “O
que fazia Deus antes de criar o Universo?” No entanto, quando
a maioria dos filósofos acreditava em um Universo essencialmente
estático e imóvel, a afirmação de
que teria tido uma origem bem determinada (Gênesis) era
realmente uma questão de caráter metafísico
ou teológico.
Contudo, em 1929, o astrônomo norte-americano
Edwin Hubble constatou que, de qualquer ponto que se observe,
as galáxias distantes se afastam da Terra. Isso significa
que o Universo se expande e portanto nosso planeta, ao invés
de ser o centro do Universo, como sempre pregou a Igreja, não
passa de um insignificante ponto na imensidão das galáxias
em expansão. Como conseqüência da determinação
de Hubble, deve-se concluir que, em épocas anteriores,
os corpos siderais teriam que ter estado mais próximos
uns dos outros e também da Terra. E através de considerações
matemáticas, chegou-se à conclusão de que
entre 10 e 20 bilhões de anos atrás, provavelmente
15 bilhões, todos os corpos do Universo estavam no mesmo
lugar. Portanto, todo o Universo concentrava-se em um único
ponto, que teria densidade infinita e temperatura extremamente
alta. Foi esse descobrimento que levou a questão da origem
do Universo para o domínio da ciência.
As observações de Hubble determinaram,
pois, que em um determinado tempo o Universo era infinitamente
pequeno e infinitamente denso. Nesse tempo produziu-se uma grande
explosão, que se tornou conhecida como Big Bang. Os cálculos
permitem concluir que um segundo após o Big Bang a temperatura
já havia baixado para cerca de 10 bilhões de graus
e à medida que o Universo se expandia, a temperatura baixava.
Em torno de cem segundos depois do Big Bang, a temperatura já
havia decido a um bilhão de graus, que é a temperatura
no interior das estrelas mais quentes. A essa temperatura, as
partículas sub-atômicas que se formaram com a explosão
começaram a se combinar, formando núcleos de átomos
de Hidrogênio e Helio.
O Universo, em seu conjunto, prosseguiu expandindo-se e resfriando-se
e desse modo nasceram as galáxias. Nosso Sol é uma
estrela de segunda ou terceira geração, formado
há pouco mais de 5 bilhões de anos. A Terra, arrojada
do Sol, era inicialmente incandescente. Com o decurso do tempo
foi se resfriando de fora para dentro e, mediante a emissão
de gases, adquiriu atmosfera.
Algumas formas de vida primitiva poderiam já
prosperar nessas condições. Acredita-se que se desenvolveram
nos oceanos, possivelmente como resultado de combinações
aleatórias de átomos em grandes estruturas chamadas
macromoléculas. E deste modo iniciou-se um processo de
evolução que conduziria ao desenvolvimento de organismos
auto-reprodutores cada vez mais complexos.
O princípio da seleção natural,
de Darwin, baseia-se no fato de que em qualquer população
de organismos auto-reprodutores, haverá variações,
tanto no material genético como na educação
dos diferentes indivíduos. Estas diferenças supõem
que alguns indivíduos sejam mais capazes que outros para
extrair as conclusões corretas sobre o mundo e para atuar
de acordo com essas conclusões. Ditos indivíduos
terão mais possibilidades de sobreviver e reproduzir-se,
de modo que seu esquema mental e de conduta acabará por
se impor.
Assim, a teoria da relatividade eliminou o conceito de tempo absoluto
e a mecânica quântica proporcionou o instrumental
para que, em 1926, Werner Heisenberg formulasse o famoso princípio
da incerteza(1), que, por sua vez, eliminou a doutrina do determinismo(2).
E dessa forma, gradativamente, nos desenvolvemos. Mas o início
de tudo se deu, sem dúvida, não por uma determinação
sobrenatural mas sim pela grande explosão daquele Universo
pontual.
No tempo do Big Bang, todas as leis da ciência,
e portanto toda a capacidade de predição do futuro,
seriam impossíveis, uma vez que os tempos anteriores não
estavam definidos.
(1) princípio da incerteza: é impossível
afirmar, de acordo com as convenções da geometria
convencional de posição e movimento, que uma partícula
atômica (como por exemplo um elétron) está
ao mesmo tempo em um determinado ponto e movendo-se com uma determinada
velocidade. Ou se conhece a posição ou a velocidade,
mas uma condição impossibilita o conhecimento da
outra.
(2) Determinismo: doutrina que afirma que atos de vontade, ocorrências
na natureza ou fenômenos sociais ou psicológicos
são determinados por causas antecedentes. (Entra em conflito
com a possibilidade de liberdade).
Se tivesse havido qualquer acontecimento anterior a esse instante,
não poderia de forma alguma afetar o que ocorreria posteriormente
pois não haveria nenhuma correlação entre
os fatos.
Qualquer situação anterior não
implicaria em nenhuma conseqüência futura e poderia
simplesmente ser ignorada, dado que o estado anterior poderia
ser descrito como o verdadeiro caos. Por esta razão, pode-se
dizer que o tempo e o espaço, e por conseqüência
o Universo, têm sua origem no Big Bang. O tempo anterior
ao Big Bang, se considerado, é equivalente ao tempo anterior
à criação do mundo por Deus, segundo a Bíblia.
Em um Universo imóvel, um princípio de tempo seria
algo a ser imposto externamente, por um poder estranho ao Universo
e capaz de determinar esse princípio; em outras palavras,
por Deus. Seria possível, nesse caso, imaginar que Deus
tenha criado o Universo em qualquer instante de tempo, em decorrência
de um ato de puro arbítrio, como está no Gênesis.
Contudo, se o Universo não é imóvel mas,
ao contrário, está se expandindo, há uma
lei física que determina o seu princípio.
Do ponto de vista teológico, seria ainda
possível imaginar que Deus criou o Universo por uma ato
de vontade no exato instante do Big Bang. Porém não
mais teria sentido admitir que pudesse tê-lo criado antes
do Big Bang. Um Universo em expansão não exclui
a existência de um Criador, mas estabelece limites sobre
quando poderia ter realizado sua missão criadora. E adicionalmente,
haveria necessidade de resolver a complexa questão de determinar
porque, então, teria Deus deixado o Universo evoluir segundo
leis estritamente determinadas, sobre as quais não interfere,
contrariando assim a concepção judaico-cristã
de um Deus onipotente!
A teoria de Aristóteles, de que tudo no
mundo seria proveniente de quatro elementos, fogo, ar, água
e terra, cumpria um dos requisitos de uma boa teoria: ser simples.
Mas falhava quanto ao outro requisito que era o de predizer resultados
futuros. A teoria de Aristóteles não realizava nenhuma
predição concreta. Ao contrário, a teoria
da gravidade de Newton estava
formulada em um modelo ainda mais simples, segundo
o qual os corpos se atraem com uma força proporcional ao
quadrado da distância entre eles, mas era capaz de predizer
o movimento do Sol, da Lua e dos planetas.
Qualquer teoria física, diferentemente de um dogma, deve
ser provisória no sentido de que sempre será uma
hipótese a ser permanentemente comprovada. Muito embora
os resultados observados sejam compatíveis com a hipótese,
nunca se poderá afirmar que ela jamais irá falhar,
por mais difícil que isso possa parecer. E desde que se
encontre uma única observação que contradiga
as previsões feitas, a teoria terá que ser abandonada
ou modificada. Como afirmou o filósofo da ciência
Karl Popper, uma boa teoria está caracterizada pelo fato
de predizer um grande número de resultados que, em princípio,
podem ser refutados pela observação. Cada vez que
se comprovam as predições da teoria, esta sobrevive
e nossa confiança nela aumenta. Porém se, ao contrário,
uma nova observação vier a contradizer a teoria,
ela deixará de ser válida.
O objetivo final da ciência é proporcionar
uma única teoria que descreva corretamente todo o Universo.
Como isso ainda não é possível, o método
seguido pelos cientistas é o de separar o problema em duas
partes. Primeiro estão as leis que determinam como o Universo
muda com o tempo. Estas leis dizem como será o Universo
em qualquer instante dado. Em segundo lugar está a questão
da origem do Universo.
A religião preocupa-se unicamente com
a segunda parte, denominada pela Bíblia “História
da Criação”. A sua argumentação
é a de que Deus, sendo onipotente, poderia ter criado o
Universo quando e da forma que quisesse. Há, contra esta
argumentação, a forte refutação de
que, então, poderia igualmente fazê-lo evoluir como
quisesse, ou seja, de um modo totalmente arbitrário. No
entanto, parece que decidiu diferentemente, fazendo-o evoluir
de maneira estritamente regular, seguindo rigorosamente leis bem
determinadas. Ora, se há leis que governam a evolução
do Universo, resulta razoável supor que há também
leis que determinaram o seu estado inicial, questão determinada
pelo Big Bang, conforme já vimos, e que contraria a versão
bíblica do Gênesis.
Atualmente, os cientistas descrevem o Universo
mediante duas teorias fundamentais: a teoria da relatividade geral,
que estuda os efeitos da força da gravidade e também
a estrutura do Universo em grande escala, e a mecânica quântica,
que se ocupa dos fenômenos a escalas extremamente pequenas,
tais como um bilionésimo de centímetro. Estas duas
teorias são inconsistentes entre si: ambas não podem
ser corretas ao mesmo tempo, mas o são se consideradas
separadamente. Admite-se, pois, que o Universo não é
arbitrário mas que, pelo contrário, está
governado por leis físicas estritas e bem definidas.
Antes de 1915 pensava-se que o espaço
e o tempo fossem marcos fixos, onde os acontecimentos tinha lugar
numa seqüência inexorável. Sabe-se hoje, no
entanto, que espaço e tempo são grandezas dinâmicas:
quando um corpo se move, ou uma força atua, afeta a curvatura
do espaço e do tempo e, em contrapartida a estrutura espaço-tempo
afeta o modo em que os corpos se movem e as forças atuam.
Em relatividade geral, não tem sentido falar do espaço
e tempo fora dos limites do Universo. Por conseqüência,
pode-se dizer que o início do tempo e do espaço
foi fixado pelo Big Bang, não tendo portanto sentido falar
em tempo e espaço anteriores a esse acontecimento. A idéia
bíblica de um Universo essencialmente inalterável,
que poderia ter sido criado por Deus a qualquer tempo, e que poderia
continuar a existir ou ser destruído pelo Criador quando
lhe aprouvesse, foi substituída pelo conceito de um Universo
dinâmico, em expansão, que teve início com
o Big Bang e que, pela sua curvatura, poderá acabar em
um certo tempo finito do futuro (Big Crunch), independentemente
da vontade de um poder sobrenatural, qualquer que seja a sua natureza.
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sobre a teodicéia
João Laurindo De Souza Netto
Teodicéia conjunto de doutrinas que procuram
justificar a bondade divina contra os argumentos do mal no mundo.
A doutrina sobre a demarcação entre
ciência e não ciência foi formulada primeiramente
por Karl Popper em sua obra “The logic of the scientific
Discovery” (Londres 1959), e afirma que uma hipótese
deve ser refutável se existe ou é possível
imaginar algum enunciado observável que seja incompatível
com ela.
Há enunciados refutáveis que não
foram refutados, porém que poderiam em princípio
sê-lo. Há outros que, sendo refutáveis, foram
logo refutados ou satisfatoriamente confirmados. Um exemplo importante
é a hipótese de Urbano Le Verrier sobre a provável
existência de um novo planeta (o futuro Netuno), que era
refutável, mas foi confirmada em 1846 por J. Galle. Esse
fato veio corroborar a afirmação de Popper sobre
uma teoria refutável: as leis newtonianas da gravitação.
A teoria de Newton não só é refutável
como já foi refutada (experiências de Michelson-Morley;
teoria da relatividade; etc). Quando o critério de refutabilidade
se aplica com êxito a uma teoria científica, esta
é eliminada como pretensão de verdade, isto é,
é refutada, porém não necessariamente eliminada.
Uma complexa rede de motivos práticos pode fazer com que
os marcos de referência em que funciona esta teoria conservem
para certos casos sua vigência.
Pelo contrário, a crença no deus
mitológico Netuno jamais pode submeter-se a métodos
de refutabilidade ou de confirmabilidade. Analogamente, a existência
de Deus, ou de alma imaterial e imortal, ou de qualquer ser celestial,
não são enunciados refutáveis, nem intersubjetivamente
pertinentes porque são inindentificáveis. Ser refutável
(o que implica em identicabilidade intersubjetiva) é o
critério decisivo para a pertinência de um enunciado
em termos de cognoscibilidade real. A hipótese de um deus
como primeira causa eficiente, eterna, universal, onipotente,
onisciente, onipresente, suprema em grandeza e bondade, é
um enunciado metafísico-religioso sem nenhuma possibilidade
cognitiva. Se a essa idéia se associa o atributo de providente
(que dirige e intervém no curso da história), sua
inverossimilhança, em termos de coerência conceitual,
se incrementa ainda mais, porque o panorama real da sociedade
humana desmente cotidianamente sua bondosa providência.
O ponto inicial de reflexão poderia dizer-se
que está situado na crassa incoerência do conceito
de um Deus sumamente bom e ao mesmo tempo que tudo pode e tudo
sabe, e do conceito de uma criatura que se define como causa livre
de seus atos porém que nada pode fazer sem o concurso da
causa primeira divina. No marco deste duplo conceito, que responsabilidade
recai sobre cada um dos personagens?
Se alguém afirma algo, um modo inequívoco
de entender o que diz é tentar encontrar o que consideraria
ele como contrário, ou incompatível com sua verdade.
Porque se a expressão é efetivamente uma asserção,
esta incompatibilidade será necessariamente equivalente
a uma negação dessa asserção. É
o mesmo que dizer: afirmar que tal e tal é o caso, é
necessariamente equivalente a negar que tal e tal não é
o caso. Não é possível crer ou não
crer em alguma proposição que aparenta ser verdadeira,
se não se conhece minimamente seu significado, pois se
não é possível mostrar ao menos quais experiências
concebíveis podem apresentar-se a favor ou contra a pretensão
de que Deus criou os céus e a terra, e que ama suas criaturas,
então estes enunciados, que aparentam ser verdadeiros,
estão vazios de significado fático e cosmológico.
São os atributos do ser humano os únicos que, paradoxalmente,
outorgam coerência ou incoerência ao ser divino.
A pretensão do teísmo de que estes
conteúdos pertencem de forma própria à idéia
de Deus, é falsa, pois nenhuma afirmação
baseada na experiência, nem sequer afirmações
que se refiram ao que é logicamente possível para
a experiência, conta a favor ou contra sua verdade. A afirmação
“Deus existe” é compatível com qualquer
estado de coisas, assim como a afirmação de que
qualquer ente celestial existe.
De um modo ou de outro, o conceito de Deus, tanto
para sua compreensão como para sua justificação,
depende sempre de referências empíricas e antropomórficas.
O atributo de ser providente é o caminho real da evasão
teísta: a idéia de uma intenção oculta
de um Deus que só obedece a pautas e planos de justiça,
cuja lógica se postula como necessariamente incompreensível
para os humanos por estar soterrada no mistério da vontade
divina, impede desde sua raiz toda ocasião de refutabilidade
do conceito de Deus. Suceda o que suceder, afirma-se que isso
satisfaz indefectivelmente o curso dos inescrutáveis desígnios
do Criador, e que portanto deve ser bom e benéfico para
tais desígnios, ainda que não pareça para
a ótica dos homens. Deus é o sumo bem, diz a apologética,
e nenhum acontecimento pode demonstrar o contrário. Sua
bondade não é refutável nem pelo mal físico
nem pelo mal moral. Porém o intratável problema
da teodicéia permanece em pé.
O significado científico que possa ter
o enunciado “o universo é eterno”, ou “o
cosmo teve um começo”, ou “existe mais de um
universo”, ou “o tempo é fisicamente reversível”,
ou “o ser humano pode regressar ao passado”, ou “o
tempo não existe, só existe o espaço”,
etc., é tão incerto ou impreciso como o significado
teológico de “Deus não criou o mundo desde
a eternidade”, ou de “Deus é eterno, intemporal”,
etc., porém se diferenciam decisivamente em que os enunciados
científicos são refutáveis pela experiência,
enquanto que os enunciados teológicos são especulações
irrefutáveis, interpretações que só
se submetem a um critério: coonestar (dar aparência
de honestidade a) conceitos convencionais dentro de postulados
(princípios reconhecidos, mas não demonstrados)
de uma linguagem especial, a linguagem teísta da fé,
mediante cláusulas adicionais para um fim determinado.
Que pode significar a onitemporalidade (todo o tempo) no contexto
da imutabilidade (que não muda) divina e da copresencialidade
(presença junto com) de tudo na mente de Deus? A técnica
do “stop gap” (tapa buraco ou substituto) só
acaba abrindo novas brechas.
Sabemos que não existem mundos de fadas,
porém nos é impossível prová-lo, porque
as definições de tais mundos são especulações
que não podem, por princípio, submeter-se a alguma
situação empírica imaginável de refutabilidade.
Deus, fadas e entes celestiais carecem por igual de toda a virtualidade
(possibilidade) cognoscitiva real, porque pertencem a um universo
mental do qual se pode dizer tudo o que se queira, já que
nada se pode refutar. O mundo é tudo o que existe e nada
mais do que existe; e tudo o que se pode explicar tem que se explicar
por referência ao que há no mundo.
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o modernismo
João Laurindo De Souza Netto
Há cem anos atrás, a cultura ocidental
sofria uma mudança religiosa radical, a primeira e única
depois que, no século IV, o imperador Constantino proclamou
ser o cristianismo a religião do Império Romano.
A mudança de que se fala era algo inteiramente novo: a
aceitação da não-crença em Deus como
opção aceitável.
É certo que sempre houve não crentes.
Mas, antes, eram considerados excêntricos e, por certo,
nunca aceitos como constituintes da cultura e da erudição
do ocidente. De fato, a admissão básica anterior
era a de que um poder sobre-humano chamado Deus, com D maiúsculo,
seria, de algum modo, responsável pelo Cosmos e por tudo
que havia nele (e fora dele). As pessoas podiam divergir nas explicações
de como esse extraordinário poder operava, mas não
era aceitável _ nem permitido _ negar a existência
de Deus.
No último quarto do século XIX,
no entanto, a não-crença tornou-se uma opção
plausível na cultura americana e em sua equivalente européia.
Ela não afastou a crença. Aconteceu apenas que uma
continuada ausência de convicção de que existiria
um poder sobre-humano (como Deus) tornou-se então, e continua
hoje, uma atitude perfeitamente aceitável para um segmento
da sociedade, em igualdade de condições com a crença
convencional.
Mas, como salienta James Turner em seu livro
“Without God, without Creed”, essa mudança
não ocorreu subitamente, como se fora uma “vitória”
do pensamento secular sobre a crença religiosa. Segundo
ele, não foi somente a ascensão da ciência,
a secularização da educação e da política,
a industrialização generalizada, nem mesmo a difusão
das idéias comunistas e marxistas o que determinou fosse
a não-crença uma opção aceitável
em nossa cultura. Essa mudança radical do pensamento erudito
foi principalmente devida à reação dos próprios
líderes religiosos contra a chamada modernidade, isto é,
contra as alterações no modo de vida das pessoas,
determinadas pelo progresso. Diante da eficiência da razão
aplicada a tudo: à industrialização; à
pesquisa crítica das origens do homem; ao exame científico
da natureza do mundo; à evolução da medicina,
da produção de alimentos, da ciência social
e do controle das pragas, os pensadores religiosos fixaram-se
no esforço de incluir Deus nesses novos modos de pensar
e de viver, como se todas essas mudanças fossem simplesmente
obra de Deus. Ciência, tecnologia e artes aplicadas foram
aceitas pacificamente como manifestações do zelo
religioso do homem e como se fora a preparação para
um iminente Milênio na Terra. Como afirmava Turner “líderes
religiosos confiavam à religião a tarefa de fazer
com que o mundo ficasse melhor, funcionalmente em termos humanos
e intelectualmente em maneiras de conhecer a Deus”.
E enquanto o mundo corria para adaptar-se à
sua nova cultura, genericamente denominada modernismo, os homens
da igreja agarravam-se a seus próprios dogmas e deixavam
de realizar a única tarefa que realmente importava: dar
um significado espiritual às novas realidades da vida que
fossem compatíveis com as mudanças do mundo visível.
Em vez disso, muitos procuraram uma adaptação impossível,
buscando fórmulas pseudo-modernistas : “Deus é
uma Providência em desenvolvimento” (?) declarou o
bispo de Sarum (E.U.A.), Gilberto Burnet.
Mas para a elite intelectual, ou seja, para os
chamados modernistas, a nova atitude da não-crença
tinha atrativos específicos. Aqueles pensadores não
eram simplesmente modernos para a sua época. Eram a própria
modernidade. Não se tratava de inteligências de segunda
classe. Alguns deles eram os principais determinantes das correntes
de pensamento de seu mundo em suas especialidades, ciência,
arte, filosofia, história e até mesmo conhecimentos
bíblicos.
Esta nova e de certa forma revolucionária categoria de
homens, impunha-se por sua tomada de posição no
mundo de então, proclamando-se não sectária,
libertária em sua não-crença e democrática
em seu espírito de tolerância. Por essa razão
seus adeptos denominavam-se “libertadores”. Nos casos
em que um judeu e um muçulmano estivessem tentando estrangular
um ao outro, o mesmo se dando com católicos e protestantes,
os não-crentes podiam ser amigos de todos sem tomar partido.
Eles não pretendiam decidir sobre as questões religiosas
debatidas pelos fiéis com tanto ardor, pois, como diziam,
estavam acima delas. Sua atitude amena e tratável para
essas questões, para muitos deles, passou a representar
a mais autêntica e a mais nobre das atitudes a serem tomadas.
Ainda assim, o novo estilo mal poderia ter sido
adotado maciçamente entre as pessoas eruditas não
fosse por um obscuro monge hindu, sobre o qual a maioria dos adeptos
da nova doutrina nada sabia. Numa breve ascendência à
fama, o “swami” Vivekananda, no Parlamento Mundial
de Religiões, em 1803, em Chicago, falou sobre a harmonia
de todas as religiões. “O homem não está
viajando do erro para a verdade, mas subindo de verdade em verdade,
da verdade que é inferior para a que é mais alta,
sem nunca poder atingir o topo”.
Ele apresentou a teoria de que o que importava
não era a religião em geral ou qualquer religião
em particular, mas o espírito. Ser espiritual era a chave,
segundo Vivekanada. O mais importante de tudo, porém, foi
que ele consagrou a vida do indivíduo neste mundo como
a única coisa que importa: “até mesmo a mão
que se estende para você terá que ser a sua própria”.
(e não um poder externo a você).
O “swami” deu ao novo culto da não-crença
um estado mental abrangente, unificador e inteiramente aceitável.
O seu atrativo estava em que repisava o privilegiado poder da
razão do homem sobre a sua ação e depositava
inteira confiança na natureza humana, de modo que se cada
pessoa se sentisse livre de toda a intromissão ditada pela
religião organizada, ela poderia, por si mesma, atingir
a própria felicidade. Cada qual estava por sua própria
conta: “a mão que se estende para você terá
que ser a sua própria”.
Esta nova maneira de pensar enfatizava aquilo
que unia as pessoas e não o que as separava (justamente
as doutrinas religiosas). De fato, como cidadãos, estes
novos não-crentes não davam motivo para censura
_ eram trabalhadores e éticos. Incansáveis pensadores.
Não gostavam do termo ateu; as conotações
negativas eram negativas demais e óbvias demais. Preferiam
ser chamados não-crentes. O que pediam como homenagens
póstumas, era que uma pessoa viva fizesse algo por outra
pessoa viva em sua memória. Esse era o seu espírito
pragmático. E fora disso havia o nada. Assim, realizavam
na prática todo o bem moral que as religiões formais
professavam, na maioria dos casos, apenas como doutrina.
Na virada do século XIX para o século
XX, a afirmação da não crença havia
adquirido um "ethos" ou estado de espírito e
um vocabulário próprios. Pelo fato de defender a
natureza humana do homem, esta nova atitude da não-crença
poderia ser descrita como humanismo, embora não se tratasse
do mesmo humanismo que havia surgido na Renascença européia
três séculos antes Enquanto o renascentista afirmava
ter o homem já atingido sua cota máxima de desenvolvimento,
o não-crente entendia que a nossa aventura biológica
ainda se desenrolava e que teríamos que buscar o nosso
lugar de direito no longo drama que se representa no universo.
Este novo humanismo sublinhava a participação do
homem no Cosmos como algo inerente à mutação
cósmica, uma casualidade cuja origem se encontrava na primitiva
combinação de elementos químicos até
chegar à postura ereta do Homo Sapiens.
Contudo, a não-crença, por si só,
não poderia destronar a fé popular e a fidelidade
à religião tradicional entre as massas populares.
A intelectualidade necessária à compreensão
dos fundamentos da não-crença era, e continua sendo,
ininteligível para a mente comum, que necessita amparar-se
em totens, tabus, amuletos, ícones, ídolos, imagens
e num sem número de superstições para garantir
a sua fé e também a sua segurança Só
a crendice popular, sobretudo das massas ignaras, podia (e ainda
pode) aceitar os maçantes e repetitivos ofícios
religiosos, onde a monotonia e mesmice reflete o pensamento dos
oficiantes, que os fiéis repetem de forma mecânica,
a cada sessão.
Acontecimentos históricos como a Revolução
Francesa; as guerras napoleônicas; a ascensão de
grandes potências protestantes como os impérios britânico,
alemão, holandês, na Europa, e a União Americana
na América, reduziram a atividade intelectual católica
da época a reações de revide, refutação
e repetição. O progresso óbvio da ciência
acrescentava um gosto de fel a essa monotonia estéril.
O catolicismo romano, do qual se derivaram as várias seitas
protestantes, foi erigido sobre um dogma e uma fé fixos,
e esteve sempre ligado à tradição de que
o representante pessoal de Deus na Terra vive num pequeno mas
distinto enclave, às margens do Tibre, em Roma, Itália
(Vaticano). Dali ele sustentava (e sustenta ainda), com autoridade,
verdades fixas sobre fé e moralidade. Havia toda uma gama
de ensinamentos tradicionais, tratando de todos os aspectos da
vida humana, desde antes do ventre até o além-túmulo,
na eternidade.
Já na década de 1840, o filósofo
italiano Vicenzo Gioberti declarou categoricamente que “a
Igreja terá que se reconciliar com o espírito da
época e com os tempos modernos”. Caso contrário,
disse ele, a Igreja iria perecer. E dentro de trinta anos após
a morte de Gioberti, em 1852, destacados eruditos católicos
na França e na Itália haviam aderido ao poder e
aos encantos da não-crença. O contínuo progresso
da ciência, um novo modelo para os estudos bíblicos,
a extraordinária moda da evolução darwiniana,
estavam começando a fazer seus efeitos. A Revelação
e o conhecimento sobrenatural, escreveu “monsignor”
d’Hulst, reitor do Institut Catholique de Paris, não
deviam apenas parecer razoáveis; tinham que ser razoáveis.
Em vez disso, porém, a Igreja Católica
Romana atacou o modernismo diretamente e pelo nome, como sendo
uma crença herética, de mesmo nível das importantes
heresias de épocas anteriores, como o arianismo, o pelagianismo
e outras que vigoraram pelos séculos III e IV. Expôs
ao ridículo o princípio essencial do modernismo,
segundo o qual tudo numa religião muda, tem que mudar,
como tudo numa cultura, à medida que os homens progridem
e se tornam melhores em suas qualidades humanas.
Contudo, para o intelectual, para o culturalmente
sofisticado, persistia aquela cativante atração
da não-crença _ bem como a sua modernidade. Mente
modernista era a de centenas de pessoas que ajudavam maciçamente
a melhorar o destino do homem. Ela deu origem a uma legislação
socialmente benéfica. Os modernistas defendiam os oprimidos.
Não demonstravam nem um pouco do ódio que grassava
entre religiões diferentes. Não reivindicavam a
infabilidade. Com certeza, argumentavam teólogos católicos,
devia haver alguma verdade em muitas das coisas que os modernistas
propunham.
E apesar das violentas arremetidas contra os
modernistas e seu modernismo pelo papa Pio X nos primeiros dez
anos do século XX, o trabalho dos modernistas continuou,
embora de forma velada. Um grupo de jovens jesuítas que
se intitulava La Pensée floresceu nos anos vinte. O padre
jesuíta Pierre Teilhard de Chardin ficou fascinado pelo
que os cientistas alegavam provar com relação à
pré-história. Para ele, a hipótese da evolução
proposta por Darwin era um fato comprovado. Passou a adaptar o
catolicismo romano àquela “realidade”. Elaborou
toda uma nova teoria sobre o catolicismo e a cristandade. O estranho
deste caso está no fato de que os jesuítas, tão
rigorosos em questões de fé, adotaram o trabalho
de Chardin como seu vanguardeiro em questões filosóficas
e teológicas que se referissem vitalmente à fé
católica.
Mas o que sempre importou à hierarquia
católica foi alcançar a vitória e conquistar
novas parcelas de poder em nome de seu Deus e de suas presumidas
verdades. Se para isso bastasse influência missionária
convincente, o triunfo pacífico era bem acolhido. Porém,
se surgia qualquer resistência, o recurso à força
era um dever não só lícito como também
necessário.
O processo que conduz até os fins do poder
religioso foi examinado pelo filósofo Bertrand Russel em
1930. Num magnífico resumo que se referia a todas as religiões
institucionalizadas, apontava que, logo que se presume que a verdade
absoluta está contida na doutrina de um Mestre ou de um
determinado Messias, surge imediatamente um grupo de “expertos”
(com x) empenhados em interpretar para o conjunto de seus seguidores
o que este propagou. Tal presumido conhecimento proporciona-lhes
infalivelmente determinadas cotas de poder que convertem o seu
coletivo em uma casta privilegiada, porém com uma vantagem
flagrante com respeito às outras: proclama-se portadora
de certezas inamovíveis, que lhe foram reveladas de uma
vez para sempre e com toda a sua perfeição. Por
este caminho, seus membros se opõem tenazmente a toda evolução
intelectual ou moral, porque nenhuma nova proposição
poderá coincidir com o que já estava estabelecido
no Mais-Além como algo concludente e indiscutível.
O resultado, tanto imediato como a longo prazo,
não será outro que a conquista de cotas de autoridade
cada vez mais altas, graças a manter na mais obediente
passividade o conjunto de fiéis, que só terá
uma alternativa: aceitar o direito de domínio implantado
pelos representantes e intérpretes únicos daquele
que presumidamente falou em nome da Divindade. E isso ainda que
para adaptar dita mensagem a seus fins tenha havido necessidade
de alterá-la ou até mesmo de falseá-la.
Levando esta realidade às suas últimas
conseqüências, aquele intelectual libertário
que foi Russell concluía que as Igrejas _ todas as Igrejas,
não só a católica_ sempre são perniciosas,
tanto em sua vertente intelectual como moral, pois a heterodoxia
(3) é sempre uma atitude criadora, nunca uma postura passiva,
ao passo que a religião sempre procurou impedir o desenvolvimento
de qualquer outra doutrina que não fosse a que proclamava
como a única, verdadeira e lícita.
E de fato, nunca constituiu um obstáculo
que, para conseguir o triunfo de sua verdade e alcançar
um poder absoluto, se tenha recorrido à guerra, à
extorsão, à escravidão, ao tormento, ou à
morte violenta, tudo em nome de Deus.
(3) heterodoxia : qualidade de heterodoxo
heterodoxo:oposto aos princípios de uma religião
ou ortodoxia
ortodoxia: qualidade de ortodoxo
ortodoxo: conforme com a doutrina religiosa tida como verdadeiraheteronômico:
relativo à heteronomia
heteronomia: condição de pessoa ou de grupo de pessoas,
que receba de um elemento que lhe é exterior a lei que
se deve submeter.
Autonomia: faculdade de se governar por si mesmo.
“A moral heteronômica ainda que fosse objetivamente
plausível, não pode assegurar por si mesma a dignidade
moral se antes a própria consciência não tiver
validado a sua veracidade, mediante um juízo autônomo”
(Razão, Religião e Estruturas de Poder pg 143)
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racionalizações
João Laurindo de Souza Netto
Racionalização _ Tem aqui o seguinte sentido: reconstruir
conceitualmente com pretensões de racionalidade, conteúdos
míticos, fabulações religiosas ou especulações
metafísicas.
Racionalidade: que se determina pela razão
Mítico: relativo a mito (relato fabuloso de caráter
religioso)
Um dos fenômenos mais inquietantes dos
nossos dias é a crescente dissociação entre
o âmbito da comunidade científica, representada por
filósofos e intelectuais que exercem função
crítica sobre os dados aportados pelo avanço das
ciências, e a grande massa de pessoas que ainda se alimentam
mentalmente dos pseudo-saberes que impõem as igrejas ou
confissões religiosas, os círculos espíritas,
os profissionais do esoterismo e os pseudo-cientistas da parapsicologia.
As instâncias(1) que impõem ou propõem esses
pseudo-saberes negociam com as promessas de salvação
e com as esperanças de felicidade e consolações
na crença de um mais-além depois da morte.
(1) Instância _ instituição
ou força social com poder e autoridade
Há vinte séculos a Igreja cristã
instaurou a “cultura do milagre” e tem fomentado o
fetichismo (2) e a superstição, fundados no dualismo
cósmico que emerge com a ilusão animista gerada
pela mente do homem pré-histórico ante fenômenos
para ele de difícil explicação (ver “A
hipótese Animista” na Monografia 5)
As modestas exigências de racionalidade
do homem primitivo imaginaram a falsa hipótese animista
e o subseqüente dualismo corpo-alma, matéria-espírito,
transcendência-imanência.(3)
Tudo o que há de estritamente religioso na mente humana
tem sua base no animismo. A religião, o espiritismo, o
esoterismo e a parapsicologia seguem aprisionando o ser humano
na alienação da mente, através do dualismo
inaugurado pela ilusão animista.
A crença em almas imortais ou em espíritos
separados da matéria que revolteiam em um mais-além
imaginário, ou em seres extracorpóreos, invisíveis,
tais como a população de anjos-arcanjos, querubins,
serafins, tronos, dominações, potestades, principados
e virtudes, além de santos e demônios, são
formas
(2) Fetichismo _ culto de objetos materiais,
considerados como a encarnação de um espírito
e possuidores de virtude mágica.
(3) Transcendente _ que transcende os limites da experiência
possível; metafísico; que ultrapassa nossa capacidade
de conhecer.
Imanente _ que está contido em; independente de ação
exterior.
intelectualizadas do animismo. O mundo da milagraria,
das visões religiosas, das taumaturgias esotéricas,
das experiências espíritas, do processo cármico
de transmigração das almas, e de outros fenômenos
sobrenaturais, são hipotecas mentais que mantêm o
ser humano atado a esperanças vãs. O grande inimigo
do ser humano não é a razão, mas o mau uso
da razão. Pelo contrário, a razão como base
de uma ética heterodoxa, individual e coletiva, é
a garantia de uma vida independente e solidária, pois a
heterodoxia é sempre uma atitude criadora, enquanto que
a religião se opõe, por princípio, a qualquer
doutrina que não seja a que proclama como verdadeira.
É uso atual relativamente recente, falar
das “racionalidades” como sendo uma série de
universos mentais que gravitam sobre seus próprios e exclusivos
modos de raciocinar, cada um a partir de seus pressupostos ou
de seus postulados, com a plena autonomia de discursos fechados
sobre si mesmos e auto suficientes nas esferas de suas respectivas
tematizações. Estas “racionalidades”
determinariam que não teriam que dar conta de suas pretensões
de verdade a não ser a si mesmas. Nesta formulação,
no entanto, se esconde um gravíssimo equívoco no
uso do termo razão. O discurso teológico sobre os
“mistérios”, por exemplo, é uma especulação
redundante sobre os mitos nos quais intervém, um discurso
supérfluo, gratuito e sem pertinência objetiva. É
a almejada, mas falida, “racionalização”
de uma irracionalidade.
Tanto o discurso teológico como o discurso metafísico,
oferecem modelos do universo que aspiram erigir-se em verdade
absoluta, ainda que saibamos que no curso da história metabolizam
elementos estranhos à sua versão original. O discurso
científico, por outro lado, propõe-se a explicar
os fenômenos em si mesmos, identificando e verificando suas
relações mediante modelos de explicação
que não aspiram a ser imutáveis e definitivos.
Entre os grandes “milagres” do cristianismo,
pensemos nos inverossímeis “mistérios”
da encarnação de Deus em um homem, do nascimento
virginal de Jesus, engendrado pelo Espírito Santo, de sua
ressurreição e seu deambular durante quarenta dias
por sua terra, aparecendo aqui e desaparecendo acolá, ao
ritmo da fé cristã de mentes exaltadas. E note-se
que a fé cristã envolve em nossos dias, também,
massas crédulas de crentes do espiritismo, do esoterismo
e da parapsicologia.
Os efeitos perversos da dissociação
intelectual e social que sofre a sociedade atual tornam peremptória
e urgente a ação de superar essa barreira, para
construir nos limites do possível e tendo a difusão
do saber como plataforma, uma sociedade mais justa e conseqüentemente
mais feliz. A freqüente deserção ou indiferença
da intelectualidade ante o dever de difundir o seu saber, leva-nos
a concluir sobre a importância do trabalho das várias
confissões religiosas, que, através de seu percuciente
proselitismo, conseguem a fácil aceitação,
pelas massas populares, das “verdades” por elas ditadas.
Efetivamente, aos detentores do saber, no sentido crítico
e analítico e não devocionista, da religião
em geral e do cristianismo em particular, que alcançaram
por isso genuína independência intelectual, caberia
reintegrar a dignidade de pensamento dessas massas populares a
um nível que lhes permita desalojar de suas mentes a selva
de falazes esperanças e enganosas fantasias, formadas por
uma pregação implacável e duradoura. Esvaziar
a mente de crenças ilusórias corresponde sempre
ao seu fortalecimento, pois permite enchê-la com novo repertório
de idéias e percepções, que constituem inegável
riqueza.
O culto a alguma forma de entes espirituais é
universal, a não ser entre as minorias ilustradas que,
mediante o estudo, a observação e o saber absorvido
voluntariamente, superam a idade do mito. O esforço por
introduzir nos mitos as categorias de uma peculiar “racionalidade”,
capaz de fazer passar sua natureza ilusória para certezas
necessárias ao bom uso da razão, exige análise
cuidadosa de tal “racionalidade”. Pode-se afirmar
que as racionalizações usadas pela apologética(4),
obedientes à exigências da fé ou dos dogmas
eclesiásticos, situam-se à margem de toda pretensão
séria de verdade, e só podem encontrar abrigo na
“vontade de crer”, isto é, em uma resolução
subjetiva que está em manifesta contradição
com os resultados da investigação heurística(5)
e científica. O preço desta atitude é, lamentavelmente,
o esvaziamento da razão.
O uso da razão, porém, não
é automático. Deve ser aprendido. E a difusão
de uma crítica séria e bem fundamentada sobre o
fenômeno religioso, com o propósito de lançar
as bases de um pensamento autônomo, deve ser a grande questão
dos nossos dias.
(4) Apologética _ ramo da teologia que
justifica a fé cristã e o dogma
da religião católica.
(5) Heurística _ pesquisa de fontes históricas
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ideologias(1)
João Laurindo de Souza Netto
No decurso da história pode-se apreciar uma progressiva
impregnação ideológica (2) de todos os âmbitos
sociais, destacando-se a peculiar situação dos dias
atuais, quando a racionalidade capitalista forjou a ideologia
da sociedade industrial (3).
O estágio atual representa a culminação do
processo de impregnação ideológica. Não
é de surpreender, portanto, que nos EE.UU., onde desenvolveu-se
a consciência de liderança do mundo capitalista,
haja uma forte exigência de recursos ideológicos
eficazes para justificar a sua hegemonia (4) e para afiançar
seu “status quo”(5) , o que é realizado através
da cisão definitiva entre ética e política.
(1) Ideologia: Pensamento teórico que pretende desenvolver-se
sobre seus próprios princípios abstratos, mas que,
na realidade, é a expressão de fatos sociais, econômicos
ou políticos, que não são levados em conta
ou não são expressamente reconhecidos como determinantes
daquele pensamento.
(2) Impregnação ideológica: infiltração
de uma ideologia num meio social.
(3) Ideologia da sociedade industrial: aspecto eminentemente individualista
do capitalismo, encoberto por um caráter social relativo
à propriedade do capital, o qual, supostamente, é
empregado para o bem comum, mas na verdade se atém à
busca do lucro.
(4) Hegemonia: preponderância de um povo sobre outros povos
(5) Status quo: estado em que se acha uma questão
A esperança de que o fim da mentalidade ideológica
permitiria ver o mundo sem o contraste dos juízos de valor
não é senão a ilusão de uma fuga das
responsabilidades morais, pois não é a consciência
que determina o modo de vida, mas sim este que determina aquela.
De fato, a produção das idéias, das representações
e da consciência está direta e intimamente ligada
à atividade material. São os seres humanos que produzem
suas representações, suas idéias, etc, através
de um condicionamento determinado por suas forças produtivas.
A consciência jamais pode ser senão o ser consciente
e o “ser” dos homens é um processo de vida
real. O modo específico de produzir sua vida caracteriza
o que os homens são. E o que os indivíduos são
depende das condições materiais de sua vida. Desaparece
assim o mito de uma consciência pura e de uma verdade absoluta.
Esta concepção não explica
a prática segundo a idéia, explica a formação
das idéias de conformidade com a prática material,
ao longo da história. Assim, todas as formas e produtos
da consciência podem ser resolvidos não pela crítica
intelectual, mas somente pelo “fazer” das relações
sociais concretas e práticas do mundo finito, conforme
prega o agnosticismo.
Na ideologia medieval, por exemplo, o mundo todo,
céus e terra incluídos, era visto como uma hierarquia,
em que a terra estava necessariamente subordinada ao céu.
Na produção desta ideologia não havia intenção
alguma de considerar a ordem feudal; a intenção
consciente era a de considerar a ordem do mundo, e isto foi elaborado
conscientemente num sistema lógico. Contudo, a ideologia
era ainda, na realidade, um reflexo das relações
sociais feudais existentes, as quais foram reproduzidas assim
nas idéias dos homens por um processo espontâneo,
não intencional, inconsciente. A ideologia medieval, com
sua concepção religiosa de hierarquia cósmica,
que refletia a ordem feudal, significava que a exploração
do servo pelo senhor era disfarçada como uma subordinação
do servo ao governo de Deus.
Em troca da proteção e assistência
econômica que recebiam, os servos ou vassalos, deviam obedecer
ao senhor, servi-lo lealmente e, em geral, compensá-lo
com tributos ou impostos correspondentes aos serviços que
ele “prestava” no interesse dos primeiros, o que foi
posto em prática pela Igreja com o nome de “beneficium”.
Tal concepção, de forma inconsciente, persiste ainda
em grande parte da massa de cristãos.
Ao caráter natural e não voluntário
das relações sociais corresponde uma determinação
também necessária e não livremente consentida
de formas de consciência. Assim, as relações
de produção, que são indispensáveis,
formam os conteúdos mentais, que não podem ser encarados
como “achados” de um pensamento puro.
Numa sociedade de classes, as ideologias constituem
um sistema mental orientado pelo interesse de classe e destinado
a disfarçar as relações sócio-econômicas
a fim de preservar a situação favorável a
uma determinada classe. Assim, o interesse de classe vem a ser
a matriz das ilusões ideológicas e da falsa consciência
em geral. As ideologias, por conseguinte, constituem a mistificação
do conhecimento mediante a substituição dos objetos
e das relações objetivas por correlatos imaginários,
ou da manipulação inconsciente desses conteúdos.
Resulta assim que a estrutura total do pensamento
de cada época histórica, ou de cada grupo social,
é ideológica no sentido da estrita dependência
de uma falsa consciência. A constituição biológica
e histórico-social do indivíduo, a peculiaridade
das condições de vida do pensador e a estrutura
do tratamento dado ao processo de situações vitais,
influem nos resultados do pensamento e no ideal de verdade que
este pensador é capaz de construir a partir dos produtos
do pensamento.
Todas as classes sociais, em uma dada situação
histórica, participam da ideologia dominante, ainda que
a partir de interesses opostos. O que se denomina “horizonte
utópico” (5) da ideologia é compartilhado
tanto pelas classes dominantes como pelas classes dominadas, se
bem que para as primeiras esse horizonte funciona como referência
legitimadora de seus privilégios, enquanto que para as
segundas opera como explicação de sua atual condição
subordinada e, ao mesmo tempo, como garantia da expectativa de
uma satisfação final de aspirações
insatisfeitas no presente.
Se o horizonte utópico de uma ideologia
postula, por exemplo, princípios de concórdia universal,
de justiça distributiva na ordem pública vigente,
de liberdade sem violência, de equidade na fraternidade
humana, de fiel cumprimento do dever de cada um, de benevolência
universal, etc.,e, sobretudo, se fala de ideais e nega a existência
de ideologias, então se está em presença
de uma racionalização(6) ética do “status
quo”, ou seja, de uma retórica que, em fórmula
de filantropia universal, mascara a proteção da
ordem de dominação existente.
(5) Horizonte utópico: situação que não
encontra a menor possibilidade de realizar-se na sociedade correspondente,
mas outorga à ideologia que o afirma uma respeitabilidade
ideal para a existência prática desta.
(6) Racionalização: “Racionalizações”
A função emascaradora das ideologias se manifesta
nos fenômenos de inversão consistentes em uma leitura
da realidade segundo esquemas ideais. Isto significa interpretar
situações conflitivas como situações
harmônicas, etc. Precisamente estes fenômenos de inversão
permitem alojar as asserções ideológicas
da realidade dentro do horizonte utópico.
Para ilustrar a natureza peculiar das ideologias, basta pensar
no contraste entre o lema da Revolução Francesa
_ Liberdade, Igualdade, Fraternidade_ que funcionava como horizonte
utópico, e as relações de exploração
que instaurou efetivamente no plano concreto, como instrumentos
de produção nas mãos dos detentores do poder,
trabalho assalariado mal remunerado, extorsão dos ganhos
da classe trabalhadora através de impostos e tributos,
democracia formal de cidadãos economicamente desiguais,
etc. Não se pode deixar de salientar também a ética
do Cristianismo _ moral do amor fraterno entre os filhos de Deus
iguais e livres _ frente às sucessivas estruturas de exploração
assentadas sobre aquela ética. Sem o respectivo horizonte
utópico, ditos sistemas ideológicos teriam resultado
inviáveis.
Assim é indispensável a toda ideologia
assumir um horizonte utópico no qual se integra o conjunto
de suas formulações, de maneira que as situações
de dominação e de dependência possam inserir-se
num contexto ilusoriamente aceitável para as classes negativamente
discriminadas quanto aos processos de alienação
da consciência.
Um tratamento espiritualista da história
do cristianismo, desde suas origens, por exemplo, limitando o
seu “Sitz im Leben” (situação de vivência
do autor do evangelho) a meros interesses teológicos, isolados
portanto dos interesses econômicos, sociais e políticos
da sociedade em que viveu o evangelista, estará privado
do critério básico que permite estabelecer uma exegese
(7) profissional confiável.
Ficará então manifestado que as
motivações ideológicas prévias influenciam
as motivações teológicas. As formas ideológicas
não só refletem de modo consciente ou inconsciente
as relações que descrevem como, muitas vezes, as
apresentam de modo invertido para propagar uma cosmovisão
que legitime a dominação pretendida.
A ideologia que a Igreja começou a impor
a partir do proselitismo desenvolvido por Paulo de Tarso desempenhou
a típica função conservadora da ordem econômica
e social vigente _ primeiro no Império Romano, depois no
curso da história do Ocidente _ que corresponde às
formas religiosas de alienação: as classes inferiores
se contentariam com as satisfações ilusórias
que lhes oferecia uma cristologia despojada do significado original
pregado pelo Jesus histórico
(ver “Do Jesus da História ao Cristo da Fé”)
e moldadas pela soteriologia(8) sincretista(9) do helenismo(10)
orientalizante de Paulo.
(7) exegese: minuciosa interpretação de um texto,
em especial da Bíblia, através de análise
crítica baseada em critérios científicos.
(8) soteriologia: parte da teologia que trata da salvação
dos homens
(9) sincretismo: sistema filosófico que concilia doutrinas
ou religiões diferentes
(10) helenismo: civilização que se baseava numa
fusão de elementos gregos e orientais
Só uma concepção libertadora,
o agnosticismo, é capaz de livrar o homem das peias das
ideologias e torná-lo um ser autônomo, perfeitamente
situado na finitude, quer no domínio lógico quer
no ético.
O fundamento do agnosticismo consiste em assumir
radicalmente a finitude do ser humano, sem o álibi da transcendência
ou de qualquer ideologia religiosa, esforçando-se por construir
um mundo não tomado pelo fanatismo determinado pela fé,
aceitando os acontecimentos como fatos que se dão sem nenhuma
causação nem direcionamento exterior ao mundo. A
satisfação do mundo do agnóstico é
a satisfação do que o mundo pode oferecer, mesmo
nos casos em que a finitude é dor ou preocupação.
E nisso consiste a serenidade do agnóstico que, através
da auto-realização, procura a felicidade,não
sendo instrumento de nenhuma autoridade transcendente ou ideológica,
não resignado, mas sereno, não desencorajado, mas
capaz de assumir com coragem, aquilo que a finitude lhe oferece.
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linguagem simbólica
João Laurindo de Souza Netto
A apologética (ramo da teologia que justifica a fé
cristã), tem adotado, sobretudo através dos meios
de comunicação, uma nova estratégia com a
finalidade de dotar os mitos bíblicos de verossimilhança
para uma mente moderna. Recorre a conhecidas técnicas de
simbolização, que permitem fazer “compreender”
pela grande massa de fiéis as figuras e os acontecimentos
da história sagrada.
Esta técnica se propõe a recuperar
o sentido supostamente racional dos mitos bíblicos legados
pela tradição, mediante um incessante jogo de vai-e-vem
entre a compreensão que tiveram da Revelação
(“ação divina” que comunica aos homens
os desígnios de Deus e a “verdade” que estes
envolvem, sobretudo através dos livros sagrados: Antigo
Testamento “entregue” aos israelitas, o mistério
da Santíssima Trindade, etc) seus destinatários
originais e a que devem ter ser destinatários atuais.
A tradição, ou seja, o passado,
é dessa forma convertida em uma realidade sempre presente.
Deus, assim, sobrevoando a história, revalida e presencializa
constantemente o conteúdo simbólico dos mitos, e,
além disso, atualiza, de conformidade com a linguagem e
a compreensão de cada tempo, as “verdades”
eternas da mensagem divina de salvação.
A proliferação dos tropos lingüísticos
(emprego de palavras em sentido figurado), como metonímia
(tropo que consiste em designar um objeto por uma palavra designativa
de um outro objeto que tem com o primeiro uma relação
determinada, como, por exemplo, relação de causa
e efeito: trabalho, por obra; continente e conteúdo: copo,
por bebida; matéria e objeto: porcelana, por louça
de porcelana; abstrato e concreto : bandeira, por pátria;
autor e obra: um Camões, por um livro de Camões,
etc), sinédoque (tropo que se funda na relação
de compreensão e consiste no uso do todo pela parte: fitava
o horizonte do leste; do plural pelo singular ou vice-versa: os
Machados, os Nabucos; o gênero pela espécie: cidade
de 500.000 almas, por 500.000 habitantes; os mortais, em lugar
de os homens, etc., metáfora (tropo que consiste em usar
palavras com um sentido distinto do que têm normalmente,
baseando-se numa comparação real ou imaginária:
a primavera da vida; a luz da inteligência; ouvir estrelas,
etc), unida ao pródigo uso da analogia (ponto de semelhança
entre coisas diferentes) e da imaginação alegorizante
(ficção de uma coisa para dar idéia de outra),
têm sido excelentes meios para o exercício de formas
simbólicas do pensamento, usadas com o objetivo de procurar
explicar a natureza da religião e de privilegiar a vertente
simbólica dos fatos religiosos, relegando ao segundo plano
sua vertente epistemológica (que estuda o grau de certeza
do conhecimento científico).
O simbolismo é muito falível, no
sentido que pode induzir ações, sentimentos, emoções
e crenças sobre coisas que são meras noções,
sem exemplificações no mundo que o simbolismo leva
a pressupor. Por símbolo, entende a apologética
toda representação de uma ausência. Trata-se
então de presencializar realidades ausentes, mas este discurso
oculta um equívoco conceitual: a ausência de um simbolizado,
empiricamente possível ou mentalmente representável,
embora não explícito, é uma ausência
totalmente diferente de um simbolizado transcendente e não
representável. As operações simbólicas
de caráter religioso, portanto, eliminam, de fato, toda
representação empírica e identificam-se com
o meramente ritual_ gestos, ritos, comportamentos, sinais, etc.
Há efeitos perversos na ação simbolizadora
quando se perdem as âncoras com os referenciais objetivos
_ nem sempre necessariamente empíricos.
A tarefa da razão é pois entender
e corrigir os símbolos que afetam a humanidade. Todo simbolismo,
por mais superficial que possa parecer, se reduz, em última
análise, a um fio de idéias que liga os elementos
veladamente sugeridos com modos alternativos de reconhecimento
direto. As fissuras na “referência simbólica”
podem produzir desastres, pois, nos processos iniciais da simbolização,
essas fissuras _ ou erros _ são os estimulantes que promovem
a liberdade da imaginação. E quando se dá
asas à imaginação ela dispara atabalhoadamente.
Precisamente, o risco das simbolizações
se deve à “ação de reflexo”,
que consiste em que a ação de resposta ante um símbolo
pode ser tão direta, que é capaz de cortar qualquer
referência à coisa simbolizada. Então, a conduta
se torna literalmente confinada no uso de certos sinais ou palavras,
ou seja, em um simbolismo sem correlatos significativos, isto
é, em uma linguagem recortada _ ou, melhor dito, alienada.
Nestes casos, há uma cadeia de derivações,
de símbolo em símbolo, na qual as relações
entre o símbolo final e o significado último se
perdem inteiramente. No campo religioso, este mecanismo converte
a alienação religiosa em uma alienação
de segundo grau, isto é, uma alienação alienada.
É uso comum glorificar o homem religioso
como o seguidor de mitos e manipulador inconsciente de fábulas,
mas frente ao “animal symbolicum”, a flecha da civilização
aponta para o homem emancipado de toda fabulação,
ao “animal rationale”. A atitude das massas a respeito
do simbolismo, contudo, exibe uma amálgama instável
de atração e repulsão. A inteligência
prática, o desejo teórico de penetrar até
o fato último, e irônicos impulsos críticos,
têm sido os portadores dos principais motivos de repulsão
ao simbolismo. As pessoas sensatas necessitam fatos e não
símbolos. Um intelecto teorético claro, com seu
ansioso entusiasmo pela exatidão, desalojará os
símbolos por considerá-los enganosos, que ocultam
e desfiguram a simples realidade que a razão busca incessantemente
como verdade. Os irônicos críticos dos desatinos
da humanidade têm realizado notáveis serviços
para excluir os velhos hábitos de inúteis cerimônias
que simbolizam, às vezes, apenas fantasias do passado repetido.
A repulsão do simbolismo passivo, destaca-se como um elemento
bem preciso na história cultural dos povos civilizados.
Não cabe dúvida de que esta contínua crítica
tem desempenhado um serviço necessário na promoção
de uma civilização mais desenvolvida, tanto do lado
da eficácia da sociedade organizada como do lado de uma
correta direção do pensamento.
Mas é imprescindível constatar
que, lamentavelmente apesar da sua não-verdade, o simbolismo
religioso continua atraindo multidões acríticas,
cuja existência individual e coletiva é marcada por
condutas e atitudes previamente induzidas, que se conformam em
manter, passivamente, mentes e hábitos alienados.
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o agnosticismo antigo e moderno
João Laurindo de Souza Netto
Quatro correntes filosóficas, que se poderia chamar agnósticas,
influenciaram profundamente o mundo grego antigo.
Modernamente, pode-se destacar o filósofo David Hume.
1. O Epicurismo
Doutrina de Epicuro, filósofo grego nascido
em Samos (342-270 a.C.). Na sua cidade natal ouviu preleções
do platônico Pânfilo, das quase lhe veio aversão,
jamais abandonada, pela filosofia platônica. Estabeleceu-se,
por volta de 311 a.C. como professor da ilha de Lesbos. Mudou-se
depois para Atenas, onde cercou-se de um grupo de homens e mulheres
que se dedicavam à prática de seus princípios.
Sua escola exerceu profunda influência no mundo grego e
no império romano até o século III d.C.,
quando, pela forte ascendência do cristianismo, o epicurismo
começou a declinar.
Tal como a Academia de Platão e o Liceu
de Aristóteles, o Jardim de Epicuro teve o caráter
de associação de estudos, onde o culto religioso
não se rendia a divindades, mas sim ao próprio Epicuro,
mesmo após a sua morte.
O epicurismo foi influenciado pelo atomismo de
Demócrito e pelo hedonismo de Aristipo de Cirene, mas tem
sua estrutura própria, que o torna muito superior a uma
simples combinação de tendências. Sua doutrina
divide-se em Canônica, isto é, teoria da evidência,
em Física e em Ética.
A Canônica, que compreende as investigações
lógicas, retóricas e de conhecimento, ocupa-se principalmente
da indagação sobre as diversas classes de evidências:
• a paixão, que é a evidência do prazer
e da dor;
• a sensação, a prenoção ou
prolepse (figura de retórica pela qual se refutam antecipadamente
as objeções do adversário);
• a visão direta ou intuição, que compreende
não somente as evidências sensíveis, mas também
as inteligíveis, como a “visão” dos
átomos.
A Física abrange a Cosmologia (estudo
da estrutura do Universo) e a Teologia (estudo da divindade),
sendo a Natureza concebida como a totalidade do que existe (finitude).
Segundo Epicuro, existe no mundo uma infinidade de átomos
no espaço que nos envolve (finitude). Os átomos
são os componentes das coisas, as sementes de tudo o que
existe, e são constituídos por partículas
ínfimas que são iguais e não têm forma.
No entanto, os átomos são diferentes entre si, porquanto
as partes ínfimas que os compõem situam-se em diferentes
posições. Epicuro introduz na Física de Demócrito
uma grande modificação, com o conceito de desvio
que sofreriam os átomos em sua queda vertical.
Ao contrário da noção vulgarmente
aceita, que confunde epicurismo com hedonismo, a ética
de Epicuro baseia-se no prazer considerado como serenidade. O
verdadeiro prazer é para Epicuro, o prazer tranqüilo,
o equilíbrio do corpo, que se manifesta pela resistência
à dor ou imperturbabilidade.
Epicuro deu importância fundamental à
necessidade de libertar a humanidade de seus dois maiores temores:
o temor aos deuses e o temor à morte. Sem negar a existência
da divindade ou o valor da religião, afirmou que os deuses
não têm qualquer interesse nas relações
humanas, nem qualquer relação com elas. A morte
é simplesmente o fim da vida, não havendo qualquer
espécie de vida no Além. Para Epicuro as superstições
e crenças da religião, assim como o temor aos deuses
e o que se poderia esperar depois da morte seriam os fatores que
maior influência exerceriam contra a serenidade. A razão
para não temer os deuses é que estes não
se preocupam em proteger os homens de seus males, haja vista a
existência do mal no mundo, tese que já encolerizava
Platão em seu tempo (428-348 a.C.). Segundo Epícuro,
se os deuses fossem afetados pela conduta humana, não desfrutariam
de sua impassibilidade. O atomismo de Epicuro suprime toda a possibilidade
de que os deuses tenham criado o cosmo, dadas as deficiências
e calamidades deste. Por isso, Epicuro não admite nem a
teleologia (estudo dos fins do homem), nem a Divina Providência,
mas somente a casual combinação de átomos
que nada diz sobre as supostas retribuições celestes
dos atos humanos. Admite, no entanto, a liberdade da vontade humana,
pois é graças à sua liberdade de vontade
que o homem tem a capacidade de escolha.
O Epicurismo desenvolveu-se no período
de declínio político grego, que se seguiu à
morte de Alexandre Magno, em que cada um passou a se preocupar
com a vida individual e com o pleno aproveitamento de sua passagem
pela vida. Ao contrário do estoicismo, o epicurismo permaneceu
imutável em suas linhas mestras, durante toda a antiguidade.
Os partidários do epicurismo foram considerados inimigos
por todos aqueles que pretendiam assegurar a obediência
dos homens por meio de uma religião de Estado.
Quanto à Providência do Deus judaico,
Epicuro afirmava: ou Deus quer eliminar os males do mundo e não
pode, ou pode e não quer, ou não quer e não
pode, ou quer e pode. Então:
1. quer e não pode: é fraco,
2. pode e não quer: é mau,
3. não quer e não pode: é mau e fraco,
4. quer e pode: então por que não suprime os males
do mundo?
Assim, procurava Epicuro afirmar que a existência do Deus
onipotente e providente dos judeus seria um paradoxo.
2. O Ceticismo
Doutrina que põe tudo em dúvida, afirmando que a
verdade não existe e que, se existisse, o homem seria incapaz
de conhecê-la. Em sentido amplo, o ceticismo é um
estado de dúvida ou de suspensão do julgamento.
Quando usado em relação com a crença religiosa,
indica dúvida ou descrença das doutrinas consagradas.
Em Filosofia, refere-se ao problema do conhecimento, significando
dúvida sistemática ou descrença completa
na mente humana para alcançar o conhecimento da verdade.
A base fundamental do ceticismo repousa principalmente na afirmação
de que o conhecimento se origina de uma sucessão de sensações
particulares que são as modificações subjetivas
e os estados mentais transitórios e isolados. Como modificações
subjetivas, estas sensações são produto dos
órgãos dos sentidos do indivíduo. A sua natureza
depende da estrutura dos órgãos dos sentidos em
particular, cada um dos quais variando de indivíduo para
indivíduo, e também das condições
físicas de momento do indivíduo considerado, as
quais também variam a cada momento. Como essas sensações
têm relação direta com as estruturas e as
condições individuais, é certo portanto que
elas oferecem apenas um valor subjetivo e não podem apresentar
nenhuma verdade que seja absoluta. Além dessas considerações
teóricas, muitas outras razões práticas têm
sido alegadas em apoio ao ceticismo, tal como as diferenças
de opinião, de formação e de crença,
entre pessoas e povos diferentes, tanto no que diz respeito a
questões da vida cotidiana como à moral. Quem possui
a verdade?
Os primeiros expoentes do ceticismo, na antiguidade,
foram os sofistas da Grécia. A escola dos sofistas caracterizou-se
pela concepção de uma cultura puramente formal e
orientada para a prática, sobretudo em relação
à arte de discutir e de falar. A corrente dos sofistas
caracterizou-se por uma concepção antropocêntrica,
em oposição à tendência exclusivamente
cosmológica das especulações anteriores dos
filósofos jônicos. Apresentaram, pois, uma concepção
que hoje se poderia chamar pragmática e que tornou a aparecer
em diversas épocas.
Protágoras, uma das figuras eminentes
da escola sofista, afirmava que toda a verdade é relativa,
porque todas as sensações são subjetivas.
Protágoras (481-411 a.C.) nascido em Abdera, discípulo
de Demócrito, é considerado o primeiro filósofo
sofista por ter sido o primeiro a tomar como ponto de partida
não o objeto, mas sim o sujeito, isto é, o homem.
Seu relativismo subjetivista se expressa no princípio fundamental
de sua obra “Acerca da Verdade”: “o homem é
a medida de todas as coisas”.
Num período posterior do pensamento grego,
surgiu um ceticismo sistemático, desenvolvido por Pirro
de Elis e elaborado por sua escola.
O ceticismo desempenhou uma importante função
no desenvolvimento do pensamento. Tanto na vida dos indivíduos
como na dos povos, os períodos de ceticismo servem para
pôr em dúvida as crenças tradicionais, que
carecem de fundamento racional, preparando assim o terreno para
conclusões mais bem elaboradas.
3. Os Cínicos
A escola cínica, também chamada escola de Antístenes,
é uma corrente filosófica fundada por Antístenes
no século V a.C., e que teve como continuador Diógenes
de Sinope. Recebeu este nome, segundo alguns autores, da palavra
grega kyon, cão, cujo qualificativo os cínicos consideravam
uma honra, dado o seu significado de fidelidade (aos seus princípios).
O cínico era uma filósofo para
quem as coisas do mundo eram indiferentes. Epícteto, filósofo
estóico da era cristã, afirmava que é muito
difícil ser cínico. Para o cínico, o prazer
era o maior de todos os males; preconizava a renúncia a
toda espécie de alegria, tanto espiritual como material.
A escola cínica se caracterizou pelo total desprezo às
convenções sociais, manifestado tanto em atos como
em palavras. Os cínicos estabeleciam uma oposição
radical entre a lei, ou a convenção de qualquer
tipo, e a Natureza, à qual pretendiam voltar. Em Lógica,
esta escola é nominalista (os nomes que pretendem designar
as idéias são meros sinais); nada se define, tudo
não passa de uma série enumerativa. Em Ética,
a virtude é o bem; o vício, o mal; tudo o mais é
indiferente.
Diógenes, cognominado “o Cínico”,
nasceu em Sinope (412-323 a.C.). Exilado de sua terra natal, passou
a Atenas, onde adotou as doutrinas de Antístenes e em breve
superou o ascetismo de seu mestre, tornando-se famoso pelo rigor
e frugalidade de sua vida. Vivia num tonel do templo de Cibeles.
Vestia-se muito simplesmente, carregando um tipo de mochila rústica
e uma tigela de madeira. Quando, certa vez, viu um menino camponês
tomando água no côncavo da mão, jogou fora
a tigela, por julgá-la supérflua. Zenon de Eléia,
filósofo grego, negava o movimento, dando como exemplo
a flecha que voa, a qual, segundo ele, está imóvel
porque a cada instante se encontra em um ponto definido, o que
equivale ao repouso. Para refutar os argumentos de Zenon, Diógenes
simplesmente punha-se a andar ao redor dele. Quando Platão
definiu o homem como um bípede sem plumas, Diógenes
lançou-lhe um frango depenado, declarando: “Eis o
homem”. Apresentou-se certa vez nas ruas de Atenas com uma
lanterna, em plena luz do dia, declarando:” Estou procurando
um homem virtuoso”.
Diógenes ensinava que a virtude consiste
em repelir todo o prazer físico e, para atingi-la, a dor
e a fome constituem o método mais eficaz. Dizia ainda que
a natureza e a simplicidade eram os pressupostos fundamentais
da moralidade. Alexandre Magno, em sua passagem por Atenas, quis
visitá-lo em seu tonel. Como resposta à pergunta
de Alexandre sobre o que poderia dar-lhe, disse: “Quero
apenas que não me tires o que não me podes dar”,
referindo-se ao sol, pois Alexandre lhe fazia sombra.
Tornou-se, mais tarde, preceptor dos filhos de um governante de
Corinto, onde passou o resto de seus dias.
4. O Estoicismo
Costuma-se denominar estoicismo a escola fundada por Zenon de
Cítio (336-264 a.C.), que se caracterizou pela aceitação
de alguns elementos da escola cínica, principalmente na
esfera moral, e, em parte, na Lógica de Aristóteles.
Zenon, defensor do direito de suicídio, matou-se por espontânea
vontade quando julgou terminada sua carreira. Os seguidores de
Zenon foram os filósofos gregos Cleanto (séc. III
a.C.), Crispo (280-208 a.C.), e os romanos Epícteto (?-
125 d.C), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) e Marco Aurélio
(121-180 d.C.).
O estoicismo é um conjunto de teorias
filosóficas, uma concepção do mundo e um
modo de vida. Escola filosófica originada na Grécia
e transmitida, depois, ao mundo romano, tornou-se ainda uma constante
na história do pensamento ocidental. O mundo é,
para os estóicos, inteiramente material. O eudemonismo
( do grego: eudamon = felicidade; teoria moral que se baseia na
noção de felicidade), segundo o estoicismo, não
consiste no prazer dos sentidos, mas sim no exercício da
própria virtude. O primeiro imperativo ético é
viver de acordo com a Natureza, isto é, conforme a razão,
pois o natural é racional. A felicidade consiste na aceitação
do mundo como ele é, isto é, com todas as suas imperfeições.
Contudo, muitos estóicos exerceram severa crítica
social e política ao mundo de seu tempo. O estoicismo,
como atitude perante a vida, consiste na busca da ataraxia, ou
seja, na imperturbabilidade, como o ideal do sábio. Pregava
a austeridade de caráter, a rigidez moral e a impassibilidade
em face da dor ou do infortúnio, salientando a necessidade
da fortaleza ante a adversidade.
Costuma-se denominar “estoicismo antigo”
a escola fundada por Zenon de Cítio. Os antigos estóicos
preocupavam-se ao extremo com os problemas do mundo físico.
Em relação à teoria do conhecimento, sua
posição foi tipicamente racionalista (a razão
considerada como única autoridade). Denominou-se “estoicismo
médio” uma escola filosófica de orientação
platônico-cética, cujos representantes deram grande
preeminência aos problemas humanos. Já o “estoicismo
novo”, que teve caráter moral e religioso, foi uma
tendência essencialmente romana, sendo seus principais representantes
Sêneca, Epícteto e Marco Aurélio. O estoicismo,
como atitude perante a vida, exerceu grande influência,
mesmo depois do desaparecimento dos maiores filósofos estóicos.
5. David Hume
Filósofo escocês (1711-1776). Em 1739 publicou o
“Tratado da Natureza Humana”, sobre a teoria do conhecimento.
Em 1744, depois de ter escrito várias outras obras importantes,
deixou de receber cátedra em Edimburgo, devido à
fama de antiortodoxo, granjeada com o Tratado.
Tornou-se famoso por haver levado a conseqüências
extremas o empirismo de Bacon e Locke, bem como o idealismo de
Berkeley. Sua filosofia, baseada no ceticismo e na destruição
da unidade dos sistemas antigos, mostrou a necessidade de novas
teorias do Universo.
Locke pouco se preocupou com especulações
metafísicas, sendo sua preocupação os acontecimentos
percebidos pelos sentidos considerados como origem de todo conhecimento,
e que serviram de base ao lançamento do empirismo. (doutrina
segundo a qual todo conhecimento tem sua origem na experiência).
O método preconizado por Bacon é
o indutivo ou experimental. A natureza deve ser interpretada através
da experiência, conduzida cientificamente. A grande vantagem
do método de Bacon foi a crítica do método
escolástico (proposto por Tomás de Aquino) e o estabelecimento
de um novo método aplicado ao estudo das ciências.
Quanto a Berkeley, sustenta o livre-pensamento,
em oposição a sua própria teoria anterior
de que tudo na Natureza é a expressão da linguagem
de Deus. O empirismo científico, denominado por alguns
empirismo lógico, afirma a necessidade de verificabilidade,
para qualquer proposição sintética. Deu origem
ao movimento para a ciência unificada, proposto por Hume.
6. O Agnosticismo
Doutrina proposta por Thomas Huxley, em 1869, na Methaphysical
Society, de Londres. Designa o conjunto de doutrinas filosóficas,
diversas entre si, mas que têm em comum a circunstância
de admitir a existência de realidades incognoscíveis
dentro do mundo não transcendente, negando portanto a possibilidade
do conhecimento da “verdade absoluta”.
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personalidade agnóstica
João Laurindo de Souza Netto
A larguíssima tradição cultural teológica
cristã(1,2) do Ocidente, a prática permanente e
generalizada, sobretudo entre as grandes massas populares, do
culto religioso, e a associação das diferentes igrejas
aos interesses de classe, tornaram sumamente difícil que
aparecessem e se multiplicassem as personalidades agnósticas.
Os ateus cresceram como contradição lógica
e vital do crente, porém o agnóstico(4) que superou
essa contradição tardou muitos séculos a
aparecer e surge agora como expressão do primado da finitude(3)
e começo da recuperação da consciência
do ser humano para o significado de finitude em sua marca distintiva
de inefável.
(1) TEOLÓGICO – relativo ao estudo
das questões referentes ao conhecimento da divindade, de
seus atributos e relações com o mundo.
(2) TRADIÇÃO CULTURAL TEOLÓGICA
CRISTÃ – transmissão dos valores teológicos
cristãos através de gerações. A disposição
mental favorável a comportamentos religiosos é inculcada
desde a infância, mediante os mecanismos mais eficazes para
a edificação de um forte super-ego que condiciona
toda a personalidade. A questão da fé não
se coloca como uma verdadeira questão, porque a assimilação
precoce da fé ancestral desaloja a possibilidade de assumi-la
realmente mediante um ato ponderativo e deliberativo do intelecto
e de uma decisão da vontade. O problema da fé cristã
não é só o problema da fé em Deus.
Porém erram os que pensam que em uma sociedade que durante
séculos se manteve submetida a um regime de cristandade
tais problemas possam ser separados na prática. Um estudo
intelectualmente satisfatório sobre a existência
de Deus não se pode fazer, obviamente, com rigor, a partir
da fé cristã, porque esta influencia os mais recônditos
e íntimos recursos psicológicos do crente e o incapacita
para uma interrogação radical, já que a resposta
está existencialmente antecipada. As respostas a tais questões
têm sido ditadas pelos órgãos disciplinares
da Igreja no dilatado processo histórico de composição,
recomposição, adição, omissão,
adaptação e correção de velhas e novas
“verdades” e neste espaço jamais foi permitido
que emergissem as interrogações decisivas sobre
a dogmática.
(3) FINITUDE – estado de plenitude satisfatória,
isto é que se satisfaz a si mesmo, não concebendo
nada que o transcenda. A finitude, nesta conceituação,
não admite como objeto de conhecimento qualquer divindade
que transcenda o mundo, entendendo por mundo tudo o que pode ser
admissível como real segundo as exigências da razão
e as comprovações da ciência. A finitude inclui
a realidade material e imaterial do que existe, pondo-se em contraposição
ao transcendente, tanto no que chamamos de matéria como
no que chamamos de espírito. A finitude não admite
como existente nada alheio à realidade finita, sendo a
divindade transcendente – Deus – entendida como uma
hipótese que não pode ser demonstrada. A finitude
não é pois existencial e nem tampouco uma substância,
mas a expressão generalizada do finito, que não
significa, aqui, o contrário do infinito. Finito e finitude
devem ser entendidos como o que não é transcendente.
Trata-se de afirmar que finito é a realidade enquanto realidade
relativa ao ser humano e que a condição também
humana da finitude pode converter em nova hipótese. Finito
é tudo o que concerne ao ser humano, incluindo sua humanidade.
(4) AGNÓSTICO – aquele que aceita
e vivencia o agnosticismo(5) como uma doutrina não existencial,
cujo caráter de não ser atributo essencial da existência
permite-lhe integrar-se inteiramente à finitude. O agnóstico
afirma que não é possível conhecer nada que
esteja fora de suas possibilidades de conhecer e que suas possibilidades
de conhecer se esgotam no finito.
(5) AGNOSTICISMO – palavra derivada do
grego pela composição da partícula a que
nega a noção subseqüente e de gnosis que significa
conhecimento. Portanto agnosis, através da palavra grega
agnostos, significa “não conhecido” ou “ignorado”.
Assim, agnosticismo é a doutrina que nega à inteligência
a capacidade de conhecer a verdade absoluta. Admite portanto que
a fé é a submissão a determinada afirmação
de ordem transcendente, aceita como verdadeira, independentemente
de que seja ou não seja e que não procede de Deus,
mas, ao contrário, determina a existência de Deus,
assim como pode determinar a existência de qualquer ser
de natureza divina.
O agnosticismo distingue os conceitos de fé
e de crença. Embora sejam conceitos quase sempre identificados
entre si, há grande distinção entre eles.
A fé pressupõe um objeto transcendente e inquestionável,
portanto uma “verdade absoluta”, naturalmente estabelecida
em suas origens pelo próprio homem, modificada e interpolada
no decurso da história, que não se baseia em fatos
que se possam refutar por não possuir uma base empírica
verificável, como por exemplo a fé em Deus. A fé
se reduz, definitivamente, a uma esperança de imortalidade
num mundo celestial. Além disso a fé é excludente.
A fé professada pelos crentes de cada um dos três
monoteísmos ocidentais, cristianismo, islamismo e judaísmo,
por exemplo, exclui a dos outros dois, reciprocamente. Por não
ser baseada na razão, a fé não reconhece
argumentos. Assim, tendo a fé como base, ou seja, a suposta
“verdade absoluta”, não há como refutar
seus argumentos. Qualquer indivíduo, com refinamento intelectual
ou totalmente desprovido dele, pode ter fé numa entidade
transcendente, que não se pode negar por não existirem,
dessa entidade, elementos objetivos de ordem empírica que
permitam afirmar sua falsidade. Portanto, dessa entidade, tudo
se pode dizer pois ela é um produto da imaginação
de quem afirma a sua existência; na fé se igualam
os cultos e os incultos pois seu objeto é o mesmo: a submissão
a uma entidade transcendente.
De outra parte, a crença exige o saber.
Assim, por exemplo, é preciso ter pelo menos noções
de Cosmologia e de Astronomia para entender a teoria do “Big
Bang”, atualmente aceita para explicar a criação
do Universo até mesmo pela Igreja Católica, naturalmente
com os adendos necessários a sua teologia. É também
necessário ter algum conhecimento de dinâmica relativista
para aceitar a não existência do tempo absoluto,
ou seja que a gravitação, segundo Einstein, surge
de uma curvatura no espaço de quatro dimensões no
qual o tempo constitui a quarta dimensão; ou ainda, para
acreditar em Plank, que afirmou serem grandezas até então
consideradas contínuas, como o tempo e a luz, divididas
em quantidades elementares muito pequenas ou quantum (teoria dos
quanta). Tanto no macrocosmo como no microcosmo a crença
se situa na finitude e portanto questiona constantemente tudo
o que se apresenta, enquanto que a fé transcendente não
reconhece argumentos. A crença deixa de existir se surgirem
dados comprováveis que invalidem a teoria aceita. Já
a fé é cega. Se a fé é o compromisso
do indivíduo com transcendente, a crença é
o compromisso com a finitude. A noção de transcendência
é fundamental para sustentar as idéias cristãs
de criação e de eternidade, mantendo a divindade
fora de qualquer condição antropológica.
Por este caminho a espiritualidade cristã separou-se da
espiritualidade das sabedorias orientais, que admitem a finitude,
e negou a fé a quem não admitisse a divindade transcendente.
Mas o agnóstico não aceita como verdadeiro nada
que contradiga a finitude.
Assim, para o agnóstico, o objeto da fé
cristã – Deus - é uma hipótese indemonstrável
pela impossibilidade de negar qualquer atributo objetivo que se
lhe possa atribuir. Estabelecidas arbitrariamente as premissas,
a razão raciocinante faz maravilhas, levanta edifícios
teológicos colossais, cujos alicerces são petições
de princípio, isto é, a demonstração
se apóia sobre a própria tese.
O agnóstico respeita a hipótese
da existência de Deus, mas não admite que o reconhecimento
da legitimidade lógico-formal da hipótese suponha
qualquer compromisso com suas referências ou significados
existenciais, pois um agnóstico não pode aceitar
como verdadeiro nada que contradiga a finitude. Na concepção
agnóstica, há necessidade de restituir ao ser humano
tudo aquilo que, durante mais de dois mil anos, a cultura religiosa
cristã vem colocando fora do ser humano, ou seja, fora
da finitude. Nos diversos ensaios de restituição
que têm aparecido na cultura moderna, nenhum parece mais
esclarecedor que o de voltar aos clássicos pré-cristãos
como regresso à espontaneidade com relação
ao mundo. No entanto, é inútil pretender esta classe
de regresso. O regresso é uma viagem de volta que não
elimina o que foi aprendido na viagem de ida. Qualquer tentativa
de restituição ao mundo aquilo que é do mundo
(finitude) tem que ser feita a partir do presente, e com intensidade
tal que imponha restituição: identificação
total (não a meias) com a finitude, que é o verdadeiro
lar do ser humano e não um céu de prazerosas consolações
como afirma a Igreja para aplacar o “terror mortis”.
Se o ser humano era considerado dual, na concepção
religiosa cristã, para o agnóstico não há
dualidade, há simplesmente uma união entranhável
matéria-espírito, que constitui a finitude do ser
humano. No mundo ocidental, sobretudo na América Latina,
a Igreja Católica segue inspirando uma religiosidade eminentemente
antiintelectualista, baseada no “terror mortis”, que
lhe proporciona, a cada momento histórico, a versatilidade
operativa e a plasticidade ideológica para acomodar-se
a todos os contextos sociais. O antiintelectualismo da religiosidade
católica sempre teve como centro a manutenção
do “mistério” como horizonte-limite da religiosidade
popular. O antropomorfismo impulsionou a atribuição
de guias humanos de comportamento: orações, súplicas,
tributos, promessas, como se fora para os grandes potentados da
terra. Segundo a Igreja católica, segundo Lutero e, mais
do que ele, segundo Calvino, Deus representa os próprios
poderes do homem, de modo que o homem só está em
contato com seus próprios poderes através da adoração
a Deus. Quanto mais forte e rico for Deus, mais fraco e pobre
se torna o homem.
Encontrar a certeza pela anulação
do “eu” individual, tornando-se um instrumento nas
mãos de um poder esmagadoramente mais forte e alheio ao
ser humano é a tese cristã, sobretudo nas confissões
de caráter reformado (protestantes). O agnóstico,
ao contrário, por estar perfeitamente situado na finitude,
não entende a necessidade de uma realidade transcendente.
Decorrendo imediatamente dessa concepção, ficam
eliminadas, de pronto, por falta de um embasamento racional, todas
as superstições, crendices e medos, que constituem
o crivo pelo qual devem passar todas as afirmações.
Convém reafirmar que o fato de ser agnóstico é
admitir Deus como uma hipótese metafísica cuja verificação
não é possível. Não havendo possibilidade
de verificar a hipótese da existência de Deus, o
agnóstico se despreocupa dela. O agnóstico se impõe,
pois, como o homem sem tragédia teológica. E nessa
convicção se encontra a serenidade do agnóstico
e sua atitude ante a morte. A morte é encarada pelo agnóstico
como a conclusão do processo de vida e nada mais do que
isso. Quem vive está fadado a morrer. Portanto o agnosticismo
derrota o “terror mortis” e nisso está sua
grande vitória, pois vencido o medo da morte, os demais
medos passam a ter menor valor e caem por si próprios.
O agnóstico encontra pois em si mesmo
a força para não ser instrumento de nenhuma autoridade
transcendente de qualquer tipo; não é resignado,
porque a resignação supõe admitir uma instância
superior à razão; não sente-se infeliz, nem
desencorajado, nem culpado, mas capaz de aceitar, com serenidade
vital, os acontecimentos da vida com sua arbitrariedade própria,
porque a contradição é própria da
finitude
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ética agnóstica
João Laurindo de Souza Netto
ÉTICA . Estudo dos juízos de valor
sobre a conduta humana
1.
O agnóstico admite como princípio fundamental que
não é possível conhecer nada que esteja fora
de suas possibilidades de conhecer e que estas se esgotam no finito
e não abrangem, portanto, o transcendente.
2.
Para o agnóstico, o Deus transcendente das religiões
monoteístas é uma arbitrária hipótese
metafísica, indemonstrável por não haver,
de Deus, nenhum atributo objetivo capaz de ser refutado, resultando
daí o lema: “tudo se pode dizer do que não
se pode refutar”. Assim, de Deus pode-se dizer tudo porque
não se conhece nada. Não havendo possibilidade de
verificar a hipótese da existência de Deus, o agnóstico
se despreocupa dela. Não se propõe questões
cuja verificação não é possível.
3.
O agnóstico considera admissível a crença
cujo objeto seja uma hipótese plausível sobre a
origem e o sentido do mundo. Inclui também como hipótese
plausível a que nega sentido às questões
escatológicas, entendendo que o sentido do mundo é
o que lhe dá o homem, pois as coisas não têm
um sentido além de sua mera existência. As coisas
são o que há, sem mais. O sentido de cada ente depende
do próprio sentido que o ser humano lhe dá, decorrente
de seus interesses pessoais, de sua personalidade, de sua maneira
de ver as coisas enfim, sem especulação sobre algum
suposto horizonte religioso como matriz criadora ou definidora
dos fins do mundo.
4.
O agnóstico está perfeitamente instalado na finitude,
ou seja, na realidade material e imaterial que constitui o que
existe, em contraposição ao transcendente, tanto
naquilo que chamamos matéria como no que chamamos espírito,
que não podem existir separadamente um do outro.
5.
Para o agnóstico, o espírito é parte do mundo
e portanto pertence à finitude. Por conseqüência,
a espécie humana se realiza no que chamamos matéria,
sem que se possa omitir no conceito de matéria sua relação
substancial com o espírito, formando com ele um todo indivisível.
6.
O agnóstico não é tomado pela fé transcendente:
fé que não procede de Deus, admitido como hipótese
indemonstrável, mas que determina a existência de
Deus e de todos os seres celestes, e que, além disso, é
excludente. Assim, cada um dos três monoteísmos ocidentais_
judaísmo, cristianismo, islamismo_ nega a “verdade”
propagada pelos outros dois e engendra, por sua própria
natureza, intolerância e fanatismo, contra o que se posiciona
o agnosticismo.
7.
O traço comum dos três monoteísmos _ a fortíssima
impregnação antropomórfica de um Deus pessoal,
que pode estabelecer uma relação com os fiéis
_ nada tem a ver com a relação iogue com o transpessoal.
Daí que as transformações esotéricas
da piedade cristã (respeito às questões religiosas)
em formas de mística oriental não só não
potencializam a fé monoteísta, como tendem a esvaziar
seu sentido. Muitos cristãos são inclinados a aderir
ao Zen Budismo ou à Meditação Transcendental.
Mas o que significa para eles Deus se o seu interlocutor pessoal
é uma energia infinita? Que pode significar sua imortalidade
se já não são mais do que uma nuvem de ondas
ou partículas que se espargem num todo energético
após a cremação? São todas formas
alienatórias de consciência, que o agnosticismo nega
definitivamente, inclusive porque conceber a Igreja Cristã,
ou qualquer religião, como um corpo homogêneo de
crenças do qual os fiéis participam por igual, é
uma ilusão. Há, portanto, para o agnóstico,
que não admite tais concepções, uma tranqüilidade
vital, que provém de estar isento e satisfatoriamente instalado
na finitude.
8.
Mas o “não ser tomado pela fé transcendente”
do agnóstico, não é uma simples negação,
mas, ao contrário, uma posição dialética
de conteúdos definidos, que se verificam no marco de um
processo histórico-cultural que deve ser bem entendido.
Este processo, que exige estudo acurado, remete a um campo semântico
que proporciona um rico tecido de convicções éticas,
sociais, políticas e econômicas, de contornos precisos
e racionalmente analisáveis. O mundo, para o agnóstico,
é assumido como finitude, o que revela todo o conteúdo
positivo da concepção agnóstica.
9.
O agnóstico admite que a fé transcendente pressupõe
uma afirmação inquestionável, portanto, uma
“verdade absoluta”. Mas tal “verdade”
não poderia ter sido estabelecida por Deus, que é
apenas uma hipótese personificada pelos monoteísmos.
Foi portanto estabelecida por homens, ao longo da história,
tendo sido, através de manipulação e adaptações,
modificada em sua formulação original de acordo
com interesses específicos.
10.
O agnóstico admite que a fé se reduz, definitivamente,
a uma esperança de imortalidade num mundo celestial, capaz
de aplacar o “terror mortis”, e que é supostamente
capaz de promover a concessão de “graças”.
Por não ser baseada em fatos que se possam refutar objetivamente
e por não possuir uma base empírica intersubjetiva,
não permite a argumentação. Portanto, para
o agnóstico, ante o fenômeno da fé nada cabe
senão o silêncio.
11.
O agnóstico aceita e vivencia intensamente o agnosticismo,
palavra derivada do grego pela composição da partícula
“a”, que nega a noção subseqüente,
e de “gnosis”, que significa conhecimento. Portanto
“agnosis”, através da transliteração
de “agnostos”, significa “não conhecido”
ou “ignorado”. Assim “agnosticismo” é
a doutrina que nega à inteligência humana a capacidade
de conhecer a “verdade absoluta”. Admite que a fé
é a submissão a determinada afirmação
de ordem transcendente, aceita como verdadeira quer seja ou não.
O agnóstico, porém, respeita a fé professada
pelas pessoas, na convicção de que frente a este
assunto todos os argumentos desmoronam porque a fé não
argumenta, simplesmente crê.
12.
O agnóstico, por estar perfeitamente situado na finitude,
não admite uma realidade transcendente. Como decorrência
desta concepção, ficam eliminadas de pronto, por
falta de um embasamento racional todas as superstições,
crendices e os clichês de natureza religiosa (graças
a Deus, se Deus quiser, etc), que constituem o crivo pelo qual
devem passar todas as afirmações.
13.
O agnóstico se impõe como o ser humano sem tragédia
teológica, isto é, sem viver a contradição
entre a vida neste mundo e a vida além deste mundo, pois
para ele só existe este mundo, isto é, a finitude.
E nessa convicção se encontra a serenidade vital
do agnóstico, para o qual os acontecimentos de sua vida
são fatos que se dão sem nenhuma causação
exterior ao mundo. A ausência do transcendente dá
serenidade sem resignação, pois esta supõe
uma instância superior à razão que determina
as contradições do mundo. O mundo há que
aceitá-lo como é.
14.
O agnóstico tem como meta permanente a auto-realização
e portanto a felicidade, posto que esta é conseqüência
daquela. A auto-realização, como pressuposto da
felicidade, implica, como o nome diz, em ser _ apesar de suas
deficiências _ auto-realizado, isto é, um ser humano
integral, não instrumento de uma autoridade transcendente
de qualquer tipo, não resignado, não infeliz, não
desencorajado pelas vicissitudes da vida, não culpado pelo
pecado de Adão (que exige a “Redenção”),
mas sim consciente de sua capacidade de realizar o seu potencial
e de manter-se imperturbável ante o sofrimento.
15.
A satisfação do agnóstico é a satisfação
do que o mundo pode oferecer, mesmo nos casos em que a finitude
é dor ou preocupação, procurando, na medida
do possível, reverter tais situações, mas
capaz de assumir, com coragem e fortaleza, aquilo que a finitude
lhe apresenta.
16.
O fundamento do agnosticismo consiste em assumir radicalmente
a finitude do ser humano, sem o álibi da transcendência
ou de qualquer ideologia, esforçando-se por construir um
mundo não tomado pelo fanatismo determinado pela fé,
produzindo códigos de valores favoráveis ao respeito
à vida, à liberdade, à justiça e à
lealdade.
17.
O agnóstico admite que a idéia de uma verdade intemporal,
definitiva e absoluta outorgada por uma divindade onisciente e
administrada por uma burocracia clerical, não engrandece
o homem, apenas consagra a credulidade dos que dão as costas
à razão.
18.
O agnóstico aceita a possibilidade da transformação
da consciência, sem o que o o agnosticismo não pode
ser vivido em sua plenitude, pois exige uma alta capacidade de
estabelecer julgamentos morais dos atos realizados, avaliados
pela própria consciência. A idéia subjacente
é a de que o que conta é o que sentimos e fazemos
e não apenas o que dizemos, e que, portanto, somos os únicos
responsáveis pelo sentido que damos às nossas vidas,
posto que não existem poderes misteriosos fora de nós
mesmos, e que, portanto, devemos aprender a superar os bloqueios
que nos impedem de realizar-nos autonomamente alçando-nos
acima das sempre enganosas ideologias.
19.
O agnóstico, liberto de toda classe de dependência,
reconhecendo e desconstruindo, através do estudo, da pesquisa,
e da prática cotidiana, as falsas crenças e bloqueios
que obstruem a mente, torna-se um terapeuta do seu espírito,
capaz, finalmente, graças a uma autodeterminação
total, de chegar ao encontro de sua própria força
interior e de exercê-la.
20.
O agnóstico não admite a existência de almas
nem de espíritos que se movam livre, misteriosa ou sigilosamente
numa realidade transcendente. Admite sim a existência de
seres humanos em que a dualidade matéria espírito
não implica em cisão ontológica, seres humanos
que nascem e morrem no único mundo que existe, o mundo
do aqui, mesmo que a finitude inclua realidades não vizualizadas.
21.
Totalmente liberto, o agnóstico contribui para o processo
evolutivo global. Em outras palavras: o despertar da própria
consciência para um mundo novo promove a elevação
da consciência dos que o cercam e também contribui
para a plenitude do humanismo. Este processo é ao mesmo
tempo popular, porque é acessível a todos os que
tiverem vontade de se integrar, e elitista porque só a
elite intelectual decidida a elevar a consciência e a mudar
a realidade pode fazê-lo.
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concepção de deus. considerações
joão laurindo de souza netto setembro 2004
1. Se não se possui uma definição
prévia coerente de Deus, não cabe tentar nenhuma
consideração sobre a sua existência.
2. Uma definição ontológica (1) de Deus,
segundo as idéias do teísmo, comporta duas características:
ser sobrenatural e ser transcendente.
3. Trata-se do conceito judaico-cristão de Deus, tal como
foi veiculado pelo pensamento do Ocidente.
4. O antropomorfismo expõe-se claramente nesta ontoteologia(2)
clássica.
5. Se no ser humano o poder, o conhecer e a bondade são
atributos limitados por suas contrapartidas de impotência,
ignorância e maldade, na operação concreta
do mundo real jamais podem considerar-se logicamente antinômicos(3),
mas somente como geradores de um mundo imperfeito e contingente(4).
6. Pelo contrário, se adjudicamos a Deus estes atributos,
porém num grau de máxima perfeição,
somente um mundo necessariamente perfeito salvaria de contradição
esta idéia de Deus.
7. Mas como o mundo não é perfeito, mas sim o lugar
onde prosperam os infortúnios,as enfermidades, o sofrimento
e as misérias que assolam a natureza, como pragas, pestes,
cataclismas, etc., o antropomorfismo oculto nesta idéia
aparece a descoberto.
8. Os atributos do ser humano de carne e osso são, como
no clichê de uma fotografia, a figura de Deus em negativo,
que, ao se revelar, mostra toda a realidade antropomórfica.
9. A fuga para novas concepções de Deus só
evitaria as antinomias da ontoteologia recaindo no panteísmo(5),
que é a mais trivial e irrelevante de todas as definições
da divindade.
10. É inútil tentar desviar a atenção
do núcleo básico do conceito ocidental de monoteísmo.
11. A origem histórica deste conceito deixa-o, contudo,
aberto a ambíguas indefinições: Todo-Poderoso
(Onipotente); Onisciente; Onipresente; Providente; Supremo em
Grandeza e Bondade; Misericordioso; Altíssimo; Eterno;
Imortal; Infinito; Inefável, etc
12. É de causar espanto como é
possível alguém declarar a incompreensibilidade
de Deus e ao mesmo tempo enumerar tantos atributos.
13. No entanto, o debate sobre Deus centra-se no monoteísmo
judaico-cristão e em sua sistematização filosófica
ocidental, e inclui todas as identificações que
envolvem os sucessivos conceitos de Deus, desde Abraão
e Isaac até hoje.
14. Mas como se pode resumir, em termos coerentes e reais, o juízo
de existência de algo tão imaginário e, por
oposição, tão antropomórfico, se não
há nenhum procedimento de identificação intersubjetiva?
Impossível, pois tudo se pode dizer do que não é
mais, como entidade, que uma arbitrária hipótese
metafísica.
15. Não se pode definir um conceito de Deus sem uma ontologia
prévia. E os limites da definição teológica
do Deus judaico-cristão, na tradição ocidental,
são suficientemente estritos para circunscrever estreitamente
o círculo de interpretações possíveis.
16. Admitir, por exemplo, como possibilidade, a concepção
de um Deus impessoal e imanente(6) nos colocaria automaticamente
fora da órbita do conceito judaico-cristão de Deus.
Estaríamos então na trivialidade panteísta.
17. As duas características mais relevantes do conceito
de Deus na teologia ocidental _ a sobrenaturalidade como característica
ontológica e a transcendência(7) como característica
epistemológica(8) _ restringem drasticamente as alternativas
que se pode imaginar como concepções de Deus.
18. A essência de Deus, como Ser sobrenatural e transcendente,
gera problemas insolúveis para a ontoteologia quando coloca-a
ante a exigência de inserir no tempo e na história
um ser eterno, ou seja intemporal, que, por definição,
está mais além da natureza, do mundo e do conhecimento
histórico humano.
19. O crente, na sua candidez, ainda não contaminado pela
teologia, descobriu, por intuição, a partir da própria
experiência, as contradições inerentes à
idéia de Deus: quem é o responsável pelo
mal no mundo?
20. Quem deve responder pela dor, pelo sofrimento, pela enfermidade,
pela morte? Para o sentido comum resulta evidente que a maior
poder e saber incumbe maior responsabilidade. E no caso de Deus,
onipotente, a responsabilidade haveria de ser máxima.
21. Este é o chamado “problema do mal no mundo”.
Sua impossibilidade de solução se deve aos mesmos
postulados da teologia. O culpado é Deus ou sua criatura?
22. Toda ontoteologia está construída sobre a idéia
de que Deus onipotente e supremo é a causa primeira e universal
de tudo, ainda que no processo de Criação sua causalidade
atue por uma cadeia de causas segundas que são causadas,
em última análise, pelo próprio Criador.
23. A ontoteologia afirma que as causas segundas(homem) não
podem atuar sem o impulso da causa primeira.
24. Mas a articulação da causalidade primeira (divina)
com a causalidade segunda(humana) produziu uma assombrosa inversão
de energia psíquica para a sua satisfatória formulação
no pensamento ocidental, porque é o homem que transfere
(projeta) as características divinas.
25. Suma bondade, justiça, amor, onipotência, onisciência
e liberdade se entrecruzam numa rede de contradições:
se Deus é bom, não é onipotente porque não
pode livrar o homem do mal; se é onipotente, não
é bom, porque, podendo, não livra a causa segunda
do mal.
26.A interrogação segue de pé: se Deus conhece
o ato mau que a criatura vai cometer, ou se conhece o mal físico
ou moral que vai abater-se sobre a humanidade, por que consente
que isto aconteça? Por que não impede? O teísta
responde:”mysterium ineffabile”. Mas tudo isto implica
no “sacrificium intellectus”.
27. O agnóstico, pois, admite Deus como uma arbitrária
hipótese metafísica, indemonstrável, da qual
tudo se pode dizer, a qual, como “mysterium” fica
protegida de qualquer desmentido dos fatos do mundo. De Deus pode-se
dizer tudo porque não se conhece nada. Por outro lado a
apologética da existência de Deus se associa sempre
a uma noção de transcendência. Deve-se no
entanto considerar que transcendente não significa incriado
porque o transcender pode se cumprir na imanência universal
do que existe. A relação de causalidade ôntica
é o principal fundamento dos apologistas. A sucessão
de causas, segundo eles, exige um princípio incausado,
uma “causa prima” que produz e sustenta todas as outras.
No entanto, a cadeia de causas pode seguir-se indefinidamente
sem vulnerar as regras da lógica; nenhuma regra lógica
nos obriga a admitir uma causa primeira, qualquer que ela possa
ser (Kant).
28. A crise dos costumes em uma sociedade tecnologicamente avançada,
mas dotada de uma organização social e econômica
sumamente injusta, em que os ricos ficam mais ricos e os pobres
mais pobres, desenvolve sempre a anomia (contradição
de normas sociais) e a criminalidade. Isso, por um lado, favorece
a chamada “volta a Deus”, sobretudo dos menos protegidos,
como uma ilusória solução para a consciência
das pessoas das mais diversas motivações.
29. Trata-se de um fenômeno ideológico e não
simplesmente religioso, ao qual a religião procura dar
resposta com o oferecimento de organizações especiais:
organizações religioso-sociais; organizações
religioso-políticas; organizações religioso-psicológicas,
etc.
30. Esta nova apologética procede de líderes vinculados
a igrejas católicas e evangélicas, a universidades
religiosas e a centros de docência religiosa, com uma compulsão
tal que as fraquezas humanas não poderiam resistir.
31. A fé religiosa não é racionalmente aceitável.
Ela deriva sua inegável força da tendência
ao dogmatismo acrítico das pessoas carentes e, geralmente,
pouco ilustradas.
32. Não há um caminho fácil para defender,
racionalmente e não emocionalmente, a religião,
quando se admite que a pretensão de que há um Deus
não pode sustentar-se de fato. Resta então a fuga
para um fideísmo estrito, a fim de assumir a ilusão
e a esperança como um ingente esforço por segurança,
que leva ao naufrágio num subjetivismo radical.
Ao contrário da postura passiva da religião que
sempre procurou impedir o desenvolvimento de qualquer doutrina
que não fosse a que proclamava como única e verdadeira,
só uma atitude heterodoxa como o agnosticismo, proporciona
ao indivíduo a independência moral e a força
interior para lutar e vencer as mazelas da vida e o “terror
mortis”, pois a heterodoxia é sempre uma atitude
criadora e fortalecedora.
(1) Ontológica _ relativa à ontologia:
parte da metafísica que trata do ser em geral e de suas
propriedades transcendentais como tendo um natureza comum, que
é inerente a todos os seres, e também uma natureza
própria a cada um deles.
(2) Ontoteologia _ parte da teologia que estuda Deus como ser
supremo.
(3) Antinômico _ que encerra antinomia: contradição
entre dois princípios.
(4) Contingente _ que pode ou não suceder.
5) Panteísmo _ Doutrina que identifica
Deus com a totalidade do Universo.
(6) Imanente _ que está contido na natureza
das coisas: a dor e a alegria são imanentes ao homem
(7) Transcendente_ que ultrapassa os limites da ciência
experimental. A transcendência é o conjunto dos atributos
de Deus.
(8) Epistemologia _ estudo do grau de certeza do conhecimento
científico em seus diversos ramos
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animismo . considerações
. setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto
NUME: do latim numen _ força divina de deuses ou deusas
que constitui a sua natureza divina ( na mitologia romana).
NUMINOSO: relativo ao nume como manifestação de
poderes da divindade.
ANIMISMO: crença que admite a existência de almas
que animam todas as coisas, animadas e inanimadas.
TOTEM: animal ou qualquer objeto da natureza que se toma como
protetor de um grupo ou de um indivíduo e às vezes
como ascendente ou mesmo progenitor.
TABU: proibição convencional, baseada em preconceitos,
de relacionamento com pessoas, objetos ou lugares ou deles se
aproximar.
AMULETO: pequeno objeto (medalha, figa) que, supostamente, afasta
as desgraças.
FETICHE: objeto material ou animado ao qual é atribuído
poder sobrenatural e ao qual se presta culto; ídolo.
1. Quando o ser humano, favorável, desde os tempos mais
remotos, a detectar numes em objetos e seres animados, atribui
qualidades numinosas a certos animais que lhe causam temor, está
já projetando neles a crença de que existem almas
nesses indivíduos. Esta crença se fundamenta na
hipótese animista.
2. É sempre o ser humano quem animiza ou numiniza (projeta
a noção de alma). Portanto, os numes são
propriedades ilusórias que o ser humano adjudica (transfere)
a algo ou alguém.
3. A hipótese animista é pois prévia, na
ordem genética e causal, à atribuição
de numes aos animais e às coisas. Quando o ser humano numiniza,
e de certa forma antropomorfiza, os seres animados e inanimados,
sua crença em almas ou espíritos já estava
formada em sua mente.
4. As alucinações (privações da razão)
foram importantes para forjar a hipótese animista, que
se desenvolveu no marco de uma série de fenômenos
inquietantes para o homem pré-histórico.
5. Na pré-história havia questões inevitáveis
ao homem primitivo:
1ª) A 1ª. Questão ainda numa fase de nível
muito baixo de cultura, era a de responder a seguinte pergunta:
qual a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto?
A esta pergunta segue-se imediatamente: O que dá origem
ao despertar, ao sonho, à alienação (alucinação),
à enfermidade e à morte?
2ª) A 2ª. Questão não era menos importante:
o que são as formas humanas que aparecem nos sonhos e nas
visões?
3ª) Como resposta, aqueles selvagens admitiram, naturalmente
sem nenhuma elaboração do tipo silogístico(1)
que todo homem possui duas coisas que lhe são próprias:
uma vida e um fantasma. A vida permitindo-lhe sentir, pensar e
atuar, e o fantasma constituindo sua imagem ou segundo eu. Ambos
são percebidos como coisas separáveis do corpo:
a vida porque pode abandoná-lo e deixá-lo morto;
o fantasma porque pode aparecer a outros, que se encontram longe
dele. Posto que ambos pertencem ao mesmo corpo, por que não
haveriam também de pertencer um ao outro e ser manifestações
de uma só alma? Essa alma seria, para os primitivos, uma
alma-aparição ou alma-espectro. A alma-espectro
era pois, para o homem primitivo, a causa da vida, do pensamento
e da ação no indivíduo que anima. As funções
da vida seriam portanto, causadas pela alma-espectro, e essa foi
a base da teoria animista dos primitivos.
6. Entre os povos primitivos, a concepção de alma
é a de uma materialidade vaporosa (volátil) que,
ao aparecer, mantém sua semelhança com o corpo físico
do indivíduo, e é, a princípio, implicitamente
aceito por aqueles povos que se encontra presente nos sonhos e
sobretudo nas visões. Assim se dá por certo, na
filosofia animista, que as almas que aparecem fora do corpo físico
são reconhecidas porque mantêm uma semelhança
com ele. Não são portanto espíritos.
7. A “invenção” da alma-espectro é
uma operação que tem lugar na esfera reflexiva do
ser humano primitivo e recai sobre experiências perceptivas
de referenciais reais ou ilusórios que podem gerar na consciência
situações de angústia, temor, emoção,
inquietude, perplexidade, etc.
8.Sonhos e visões são pois os principais motores
do animismo original, que não é uma concepção
espiritual. Nos níveis mais baixos de cultura, a idéia
de uma alma-espectro, que anima o homem enquanto se acha dentro
do seu corpo e que aparece em sonhos e visões, sobretudo
em situações de angústia ou grande temor,
é perfeitamente justificada.
9. Os selvagens primitivos falam com animais vivos ou mortos tão
seriamente como falariam com outros homens vivos ou mortos, prestam-lhes
homenagens, pedem-lhes perdão quando são obrigados
a caçá-los ou matá-los, porque admitem (ou
projetam) a existência de almas nesses seres.
10. A experiência desoladora da morte para o homem primitivo,
a quem tudo representava motivo de temor, ativou dramaticamente
a hipótese animista primitiva, como suporte da esperança
de uma sobrevivência “post-mortem”, onde os
mortos, sob a forma de alma-espectro, podiam se apresentar e falar
com os vivos.
11.Originariamente, o halo (auréola) de numinosidade que
acompanhava as almas humanas, concebidas pelo homem primitivo,
não outorgava a estas ilusórias entidades os extraordinários
poderes que o ser humano passou a atribuir posteriormente aos
espíritos.
12.É importante ressaltar que a noção metafísica
de imaterialidade, em que se transformou, com o passar do tempo,
a idéia de alma pessoal, não poderia ter nenhum
significado para o selvagem primitivo.
13.É no âmbito das visões onde a crença
animista original adquire conseqüências decisivas para
a fundamentação de um mundo de espíritos
inquietantes, que se movem com autonomia ao apresentar-se ante
a mente primitiva como realidades objetivas.
14.A crença em seres espirituais tem sua origem na crença
que o homem pré-histórico “deduziu”
da hipótese animista.
15.A multilocalização de espíritos, que aparecem
e desaparecem, que se deslocam, etc.não é, para
a mente primitiva, numa segunda fase, uma percepção
ilusória, mas inquestionável, como aliás
seguem crendo ainda milhões de pessoas de nossa época,
que se entregam à fé na aparição de
espíritos, em teofanias (manifestações de
Deus em algum lugar), em hierofanias (manifestações
de coisas sagradas), etc.
16.Examinando a doutrina das aparições entre os
povos civilizados, pode-se constatar três âmbitos
onde esta doutrina é especialmente predominante:
a hagiografia cristã ( história da vida dos santos),
a tradição popular e o espiritismo moderno.
17.A hipótese animista primitiva não era, originariamente,
um fato religioso, mas sim uma inferência a que chegou o
homem pré-histórico na mais antiga fase de reflexão
sobre si mesmo e sobre o mundo que o cercava.
18.Sem a projeção animista original não teriam
sentido formas religiosas de pensar.
19.O animismo é a doutrina da alma humana. Mas esta doutrina
sofreu uma extrema modificação ao longo do curso
da cultura. Parece que foi no marco das escolas de teologia onde
se obteve as transcendentais definições da alma
imaterial, mediante a abstração da concepção
primitiva de alma etéreo-material-vaporosa, para reduzi-la,
de uma entidade física a uma entidade metafísica.
20. As fixações animistas foram então zelosamente
fomentadas pelos credos religiosos.
21.Uma definição mínima de religião
é “a crença em Seres Espirituais”, que,
se diz, influem ou controlam os acontecimentos do mundo.
22. O homem emergiu de uma condição não religiosa
característica dos grupos muito antigos ou dos contemporâneos
imperfeitamente conhecidos.
23.No entanto, a hipótese animista resulta inevitável
para explicar a origem da religião. O temor angustiante
da morte, das enfermidades, da fome, dos animais, das forças
da natureza, etc., oferece as condições para que
essa idéia floresça nas formas religiosas de consciência.
24. O animismo foi pois, o pai legítimo da religião,
desde os homens primitivos até os modernos civilizados.
25. A ilusão animista do homem primitivo é um fenômeno
prévio e genético a respeito da ilusão religiosa
pois não há evidência de que as manifestações
originais do animismo comportem vivências religiosas.
26. O universo animista nada deixa de fora porque, aceitando a
existência de um princípio vital, a natureza toda
se faz animada.
27. Uma vez em marcha, a crença animista haveria de proliferar,
com naturalidade, num enxame de espíritos, libertos dos
corpos físicos, que passam a constituir um mundo etéreo
que circunda o mundo dos homens e dos animais.
28. A doutrina da alma, originária das naturais percepções
do homem primitivo, deu pois origem à doutrina dos espíritos,
que estende e modifica a doutrina original para aplicá-la
a novos objetivos, mais fantásticos e menos espontâneos,
que vão desde o mais sutil elfo (gênio mitológico
do ar) até o Criador Celestial do mundo.
29. A crença e, freqüentemente, o culto, a alguma
forma de entes espirituais é hoje universal, a não
ser nas minorias ilustradas que, mediante o estudo e a pesquisa,
superaram a idade do mito.
(1)argumentação baseada em duas premissas das quais
se tira uma conclusão, como por exemplo: todo homem é
mortal, ora Sócrates é um homem; logo Sócrates
é mortal. O silogismo consagra a concepção
dedutiva do conhecimento.
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pós - animismo . considerações
setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto
1. A radical imersão do ser humano em uma visão
mítico-religiosa do mundo, desde o instante imemorial em
que começou a dar-se conta de uma série de experiências
enigmáticas, associada a práticas mágicas
e condutas supersticiosas de todo tipo, gerou uma espécie
de segunda natureza que o impedia de atingir formas intelectualizadas
e crítico-analíticas de reconsiderar a realidade.
2. A origem dessa visão foi a interpretação
animista de ditas experiências, interpretação
que constituiu o motor de uma concepção do mundo
como uma rede inextricável de entidades animadas movendo-se
num contexto de intencionalidades e de finalidades.
3. O animismo representou o umbral (entrada) de um desenvolvimento
mítico-religioso que levou o ser humano, de uma visão
unitária do mundo, em que a cisão alma-corpo não
estava considerada,a uma visão dualista do mundo, em que
o espaço do sagrado adquiriu forma própria e separado
do profano.
4. De modo crescente, esse espaço sagrado passou a ser
de competência de indivíduos que se reuniam em uma
casta endógama (que só se reproduz dentro do próprio
grupo), a qual mantinha exclusividade na manipulação
ritual desse espaço: feiticeiros, xamãs, sacerdotes,
etc.
5. Somente muitos mil anos mais tarde, a ideologia animista passou
a ser uma especulação documentável e sujeita
à análise.
6. A incalculável pressão social nos agrupamentos
primitivos torna improvável que os códigos de valor
e de conduta fossem modificados pela análise sobre a validade
da concepção mítica do mundo. Mas à
medida em que a evolução da produção
econômica e das relações políticas
se fortaleciam, surgiam reflexões e q uestionamentos sobre
o sistema de crenças herdado.
7. Indubitavelmente, a possibilidade de um questionamento que
incidisse nas representações coletivas e não
somente num indivíduo isolado, mesmo que fosse um grupo
avançado para a sua época, demorou um tempo muito
dilatado, tendo que vencer obstáculos tais como: a inibição
espontânea ante qualquer estímulo que pudesse pôr
em questão as crenças sobre a origem e a natureza
das coisas e do ser humano; o sistema de tabus expressos ou implícitos,
que impedia a transgressão, pelos indivíduos, das
normas que protegiam o domínio das coisas sagradas; as
sanções sociais e psíquicas a que se arriscava
quem penetrasse no universo do numinoso e do misterioso; a estreita
dependência do mundo dos vivos a respeito da morte e de
um suposto “mais além”; o onipresente “terror
mortis”, etc.
8. Tudo isso gerava uma adesão quase indestrutível
aos rituais de veneração dos ancestrais e às
estruturas parentais (dos parentes) em que se fundava e perpetuava
o grupo.
9. A estruturação do espaço do sagrado se
apoiou fortemente no marco da visão mítico-religiosa
do mundo, nas fantásticas e arbitrárias especulações
cosmogônicas (origem do Universo) e antropológicas
(estudo do homem como ente natural e social), estreitamente vinculadas
a impulsos desiderativos (que exprimem desejo), exigências
psíquicas e interesses sociais, dirigidos, em última
análise, a satisfazer interesses de segurança pessoal,
na esfera do indivíduo, e de dominação, na
esfera da coletividade.
10. O crescente peso histórico da visão
mítico-religiosa do mundo, característica da fé
cristã, e sua vigência quase incontestada nas sociedades
ocidentais desde o século IV, criou a miragem, nestas sociedades,
de que a verdadeira civilização estava consubstancialmente
vinculada à visão teísta do mundo e que o
cristianismo representava o nível mais alto de verdade
a que se havia elevado a mente humana.
11. Contudo, não é correta a inveterada (muito antiga)
convicção de que somente as tradições
religiosas acompanharam o processo civilizador da humanidade,
e que seria preciso chegar praticamente à Europa do século
XVIII para que a Ilustração (Iluminismo) permitisse
aos homens consentir com a colocação em foco da
questão sobre a existência de Deus e da visão
mítico-religiosa da realidade. O estudo objetivo da realidade
histórica mostra o apaixonante panorama da antiga inquietude
dos seres humanos mais lúcidos para a indagação,
mais além dos véus dos mitos religiosos, sobre a
verdadeira natureza do Universo, de sua origem, do ser humano
e seus fins, bem como sobre os conflitos das sociedades.
12. Desde que a adesão aos fundamentos sobrenaturais da
organização social começou a se debilitar,
as dúvidas sobre a validade ideológica desses fundamentos
passam a se manifestar publicamente de forma interrogativa.
13. Mas, no geral, o questionamento dos princípios éticos
estabelecidos, e a crítica dos comportamentos morais apareciam
apenas como milícias avançadas (“guerrilheiros”)
de alterações de maior envergadura, que viriam depois.
14. Os processos de transformação ideológica
só muito lentamente foram conseguindo formar rupturas no
sistema de crenças, e necessitavam que as conjunturas históricas
eventuais fossem favoráveis a modificações
perceptíveis na visão mítico-religiosa vigente.
15. Dado que o pensamento é, definitivamente, uma atividade
da mente, toda a transformação ideológica
da sociedade é gerada a partir de formulações
de personalidades capazes de produzir, ou de interpretar, novas
perspectivas sobre a realidade.
16. Um exemplo fascinante da completa simbiose político-religiosa
das estruturas de poder, é a teocracia real-sacerdotal
do Antigo Egito.
17. A evasão da hierocracia (poder do sagrado) de Amon-Ra,
lançada por Akhenaton, quis destruir o opressivo politeísmo
zoolátrico da velha mitologia egípcia. O faraó,
no entanto, teve que enfrentar abertamente os sacerdotes, cujo
nefasto poder ele ignorava. O culto monoteísta do Sol,
instaurado por Akhenaton, provavelmente aprofundando o tradicional
culto supremo a Amon-Ra, foi execrado e olvidado pouco depois
de sua morte.
18. Outro exemplo é encontrado nas composições
babilônicas, que debatem o problema teológico e ético
do sofrimento do inocente, questão crucial para verossimilhança
do teísmo desde então.
19. Os administradores dos mistérios da religião,
contudo, respondiam já desde então com dois argumentos
que, ainda hoje, não passam de evasivas: só os deuses
(Deus no monoteísmo) conhecem as intenções
morais ou imorais dos homens; e só os deuses conhecem o
destino final das almas. A apologética estava, pois, já
presente na Teodicéia (estudo da justificativa do mal no
mundo) Babilônica, como aconteceria, posteriormente, no
Livro de Jó: a ótica humana, supostamente, é
incapaz de perceber a providência e a clarividência
divinas.
20. Os homens seguiram, por essas veredas, jungidos ao jugo das
ilusões mítico-religiosas , porque a esperança
sempre seguiu alimentando-se das ilusões nascidas nas pulsações
psíquicas fáceis de explorar por magos, gurus e
sacerdotes.
21. Só uma doutrina capaz de eliminar todas as superstições,
crendices, medos e ilusões mítico-religiosas, como
o agnosticismo, por estar perfeitamente situada na finitude e
não aceitar a submissão a qualquer entidade transcendente,
é realmente capaz de libertar o homem do atavismo(manutenção
de traços dos antepassados) animista que o rodeia.
22. Se houvesse um eixo da história universal, válido
para todos os homens, tal eixo deveria estar situado pelo ano
500 a.C. no processo intelectual que ocorreu entre os anos 800
e 200 a.C. Neste período emergiram não só
as ideologias religiosas de salvação, como também
os primeiros questionamentos explícitos da visão
mítico-religiosa do mundo em suas formas herdadas.
23. Na China, vivem Confúcio (550-478 a.C.), Lao-Tsé
(604-500 a.C.) e muitos outros. Na Índia surgem os Upanishades
(tratados filosóficos sânscritos, que formam uma
divisão dos Vedas) e vive Buda (563-483 a.C.) Na Pérsia,
Zoroastro (c.500 a.C.) prega a doutrina do combate entre o bem
e o mal. Na Palestina, surgem os profetas. Na Grécia, encontramos
Homero(século VII a.C.) e os filósofos Parmênides
(504-420 a.C.), Heráclito (540-475 a.C.), Platão
(428-348 a.C.). Desenvolvem-se todas as tendências filosóficas,
desde o ceticismo _ Protágoras (481-411 a.C.) _ ao materialismo
_ Demócrito (460-370 a.C.) e ao niilismo. Tudo o que estes
pensadores apresentam tem origem neste período, quase ao
mesmo tempo, na China, na Índia e no Ocidente, sem que
soubessem uns dos outros.
24. O homem se eleva à consciência da totalidade
do ser, de si mesmo e de seus limites. Formula perguntas radicais.
Há um trânsito a um nível superior da mente
humana, que inicia, ainda com muita inércia mítica,
o caminho de sua emancipação intelectual dos deuses,
primeiramente, e de Deus, depois.
25. As grandes religiões nascidas em torno do tempo-eixo
tentam racionalizar o mito, criando no entanto as ambigüidades
que permitem o uso interessado do conceito de razão.
26. As grandes concepções religiosas do mundo, seguem
movendo-se, no entanto, no espaço mítico da crença
animista transformada, e isto acontece também a muitas
correntes especulativas iniciadas no tempo-eixo, tanto no Oriente
como no Ocidente.
27. A noção de um Deus único e transcendente,
ou a idéia de um mundo divino, não curam o ser humano
de sua propensão a cair nas “explicações”
míticas, nem sequer quando estas “explicações”
submetem as crenças a uma depuração alegorizante
das fabulações herdadas. O homem “quer”crer.
28. O mais valioso da eclosão do tempo-eixo é o
começo da crítica radical da visão religiosa
da realidade, crítica sujeita a interrupções
ou eclipses, porém nunca suprimida e progressivamente operante
no intelecto humano. O agnosticismo é o melhor exemplo
que podemos considerar, de uma doutrina válida e capaz
de proporcionar ao ser humano a serenidade, tantas vezes buscada
mas dificilmente alcançada.
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o legado dos hebreus . considerações
setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto
A tradição histórica alternativa,
frente à concepção mítico-religiosa
da realidade, destrói a errônea convicção
de que a religiosidade é conatural (1) e indissociável
da consciência humana. O insuprimível fio da dúvida
corre paralelo à emergência das crenças religiosas,
e vai adquirindo crescente firmeza na direção de
uma radical dessacralização do mundo. A dúvida
analisada, a reflexão serena e sincera das mentes mais
esclarecidas, voa diluindo as falsas conjecturas que levaram os
seres humanos às ilusões do animismo, com sua proliferação
de almas e espíritos, como umbral da aparição
de crenças religiosas no sentido próprio do termo.
O Agnosticismo designa uma atitude que despoja
tais crenças dos fundamentos epistemológicos (2)
de suas pretensões de verdade. Esta atitude crítica
desconsidera a fé religiosa e assume uma prática
que prescinde (3) de toda referência a entes divinos.
A lenta ascensão do homem desde a intempérie
cósmica até um altíssimo domínio tecnológico
da natureza, foi também marcando o caminho_ nas mentes
capazes de libertar-se das hipotecas do animismo herdado _ da
emancipação das formas espiritualistas e sobrenaturalistas
de pensar.
Nas últimas décadas, o avanço
dos conhecimentos científicos desvelou a fragilidade das
religiões, de todas elas, porém de um modo muito
notório das fundadas em supostas revelações
divinas _ diretas ou através de profetas. Em nossa cultura
ocidental da atualidade estamos presenciando o colapso do compacto
sistema de dominação ideológica imposto desde
o século IV pela Grande Igreja (4), ou, pelo menos, sua
manifesta desintegração nas mais variadas seitas
que disputam entre si a afiliação de fiéis
e, ao mesmo tempo, vemos também a extensão das minorias
que, pelo maior acesso à informação, atingiram
a maturidade intelectual.
O imponente aparato burocrático-religioso gerado pela Igreja
Católica não é produto do acaso. Pode, apenas,
ser considerado um fenômeno casual na medida em que, valendo-se
de situações fortuitas, conseguiu inserir-se num
espaço cultural escassamente propício; mas resulta
manifestamente plausível se se estuda a matriz hebréia
que o gerou, da qual eclodiu o seu exclusivismo religioso, a sua
agressividade messiânica e o seu proselitismo congênito,
guiados pela convicção do investimento em uma missão
universal decretada por Deus.
Ainda que no sistema religioso cristão
confluam elementos fundamentais que não procedem da tradição
judia _ e que, aliás, estão em radical oposição
a ela _ resulta evidente que, tanto pelo que é, como pelo
que seus próprios doutores dizem que é, a Grande
Igreja cristã seria incompreensível sem o conhecimento
de suas origens hebraicas.
O antigo judaísmo se apresenta como uma
religião de salvação, revelado por Deus a
profetas, orientada para um estrito monoteísmo e vinculada
a um povo dito eleito e investido de uma mensagem de domínio
universal. Ainda que sua história não tenha sido
retilínea, mas semeada de confusão e dúvidas,
seu pólo magnético foi sempre a fé em um
Deus pessoal, criador, inefável e inominável, porém
que, a seu modo, se havia revelado definitivamente ao “povo
eleito”para manter a sua unidade étnica.
A salvação comportava duas vertentes
_ a individual: quem obedecesse os mandamentos de Deus obteria
o prêmio de um bem-estar terreno; e a coletiva: o povo eleito
não seria dominado por nenhum outro e seria sempre o favorito
de Deus.
O interesse de Israel pela natureza e pelos processos
naturais, diferentemente da antiga Índia, China e de outros
povos orientais, sempre foi mínimo.Sua repulsa à
mitologia helênica e às orientais em geral esteve
baseada sempre em sua concepção mítica. Tal
concepção tendeu, desde as suas origens, a dessacralizar
a Natureza e seus fenômenos. O sobrenaturalismo, englobando
toda a realidade, do qual compartilham ainda judeus e cristãos,
impediu, durante séculos sem conta, o laicismo do pensamento
e instaurou a “Cultura do Milagre”, da qual continuam
sendo tributários imensos setores do mundo atual. O sol,
a lua, as estrelas, a chuva, o raio...são para o hebreu
criações divinas, submetidos à vontade de
Deus, embora não possuam qualidade divina alguma.
Além da dessacralização
da Natureza, o elemento sobressalente da cosmovisão mítico-religiosa
dos hebreus foi a mais forte personalização da transcendência
sobrenatural do Deus único, que havia falado decisivamente
e ditado a sorte de “seu”povo mediante a palavra e
a história. Desde a ordem a Abraão para abandonar
a Suméria e encaminhar-se com seu gado a novos pastos,
o Senhor da História, não só da Criação,
vinha intervindo na vida do “povo eleito”, com um
propósito flutuante mas bem definido: Jeová eleva
e relega os grandes poderes _ Egito, Assíria, Pérsia,
Grécia, Roma _ a fim de castigar ou premiar Israel.
Tal interação entre o divino e
o humano na história e, eventualmente , na natureza, é
um a exacerbação, não um debilitamento, da
mentalidade mítica, e representa um sobrenaturalismo extremo,
no qual iria naufragar todo intento de visão secular da
vida. Esta é a visão da história que Israel,
povo eleito, legou à Igreja Católica, pois o traço
principal do monoteísmo judeu situava o motor da vida coletiva
na sacralidade da história e no destino do povo eleito
por um Deus pessoal, saturado de traços antropomórficos.
A idéia do monoteísmo judeu é
a construção humana mais ominosa (5) de tudo o que
foi inventado pelo homem, devido a suas destrutivas conseqüências
para a sua liberdade de consciência e para a sua dignidade
de ser humano livre. O terrível legado de um teocratismo
fundado em um monoteísmo intolerante e agressivo, cuja
paulatina cristalização na concepção
messiânica da história seria recolhida, com sua peculiar
maneira, pela Igreja Católica para sua instauração
na sociedade romana tardia, teria reflexos em todos os povos assentados
no Ocidente.
O Deus excludente(6) e exclusivo(7) deste feroz
monoteísmo se converteria então no baluarte do fanatismo
e da intolerância, rompendo assim a tradição
de tolerância do helenismo clássico. A mentalidade
hebréia manteve o germe da sacralização dogmática,
cujo legado, assumido pela Igreja Católica, foi imensamente
negativo para a evolução da ciência, mesmo
quando o Ocidente já havia desenvolvido formas laicas de
convivência política.
O método científico repele, por
definição, a idéia de causalidade sobrenatural
no mundo, qualquer que seja a escala considerada. A mente hebréia,
contudo, assim como a mente cristã depois, se move sempre,
em última instância, em termos de mistério
e de milagre, e acaba assim, de um modo ou de outro, ressacralizando
o mundo. A lógica interna dos atuais três monoteísmo
do Livro _ filhos de uma mesma matriz_ e suas fórmulas
doutrinais, somente podem deixar lugar à investigação
científica mediante o expediente de adjudicar-lhe um espaço
hipoteticamente separado de sua matriz divina _ na qual haveria
que encontrar inserção com submissão ao plano
sobrenatural. O cientista vive assim em estado precário,
pois os resultados de seus estudos devem integrar-se na Ordem
Divina criada pela Providência Divina. A ciência tem
crescido no Ocidente, não por causa da concepção
bíblica do mundo, mas apesar dela e, freqüentemente,
contra nela.
A Igreja Católica, ao opor os mais pesados
obstáculos à liberdade de consciência, de
raciocínio e de investigação, exerceu dessa
forma uma função de contenção ao progresso
científico, ainda que muitos fiéis, em que a razão
não ficou totalmente sufocada pela fé, tenham contribuído
para esse progresso; mas sempre pagaram o preço da marginalização
intelectual ou até mesmo social.
(1) Conatural – conforme a natureza do
outro
(2) Epistemológico - relativo à epistemologia: estudo
crítico das ciências, com o objetivo de determinar
o seu alcance objetivo. Também chamada Teoria da Ciência.
(3) Prescinde – não leva em conta
(4) Grande Igreja – a Igreja Catolica
(5) Ominosa _ Detestável
(6) Excludente _ que exclui quem não aceita seus ditames
(7) Exclusivo _ privativo de quem aceita seus ditames
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a contribuição dos gregos
. outubro 2004
João Laurindo De Souza Netto
A tradição alternativa da concepção
mítico-religiosa (1) do mundo alcançou um ponto
culminante no seio da cultura helênica. A ampla brecha que
a crítica racional da religião abriu nas tradições
culturais dos povos chineses e indianos foi possível em
virtude da reflexão de elites intelectuais, porém
sempre em tensão com os poderes dominantes. A ruptura grega
no entanto teve lugar não só no plano do pensamento
como no âmbito da própria vida pública. A
passagem do “mytos” para o “logos”se cumpriu
paralelamente ao passo da autocracia à democracia.
A ruptura grega significou o umbral do acesso
a uma nova idade do ser humano, o trânsito da heteronomia
para a autonomia na reflexão intelectual, na ética
e na política. Uma façanha incomparável que,
apesar de seus avatares(2) históricos, havia de selar irrevogavelmente
o destino da civilização ocidental. O humanismo
helênico instituiu a liberdade de pensar e a liberdade de
optar sobre as pretensões limitadoras de autoridades sobrenaturais.
Só os gregos tiveram a genialidade e a energia indispensáveis
para enquadrar a crítica da religião nas instituições
da sociedade democrática, livre e autônoma.
Esta inestimável herança alcançaria
sua mais alta expressão na Europa moderna, depois de superar
a grande crise dos séculos de obscurantismo. Não
é supérfluo, pois, salientá-la, quando o
estéril esnobismo intelectual pretende encontrar nas chamadas
“sabedorias orientais” a chave da compreensão
da realidade.
Os dois eixos da atitude racionalista dos gregos
foram a observação empírica e o trabalho
especulativo da mente. Esses dois eixos determinaram a marcha
para a ruptura com o congelamento mítico-religioso da cultura
arcaica.
A concepção helênica da Natureza
é da maior importância para a compreensão
da religião e do pensamento dos gregos. Não existe
nessa concepção nenhuma contradição
entre a natureza e o divino_ contradição que existe
no monoteísmo judaico-cristão _ apenas que a natureza
mesma é considerada divina. Não há Criação
do nada, idéia impossível para o grego, nem tampouco
sentimento de “criatura” no homem. O grego não
conhece mais do que uma transição do caos, estado
desordenado dos elementos, para uma ordem universal, o cosmo.
Também os deuses são intramundanos e pertencem a
este mundo, ordenado e dividido em três níveis, o
Hades (3), a Terra e o Céu.
Por isso, apesar da sabedoria superior e do superior poder dos
deuses, da sua imperecibilidade e da sua eterna juventude, não
existe entre eles e os homens nenhum abismo insuperável.
O que une a ambos e os diferencia dos animais é o espírito,
a força do pensamento pelo qual os homens participam do
espiritual. O grego não segue Escrituras, não tem
dogmas nem Igreja e nenhuma classe sacerdotal especial que se
encontre mais próxima da divindade que os demais mortais.
O conhecimento da Natureza impulsiona cada vez
mais interiormente o conhecimento do divino e, jamais, no âmbito
do espírito grego, se poderá admitir que o pensamento
possa ser posto em contradição com uma revelação
divina a que devesse se submeter. A religião se limita
à santificação da realidade objetiva. Seu
conteúdo se encontra nas “leis não escritas”,
universalmente reconhecidas e que determinam a conduta de forma
consuetudinária (4), sem necessidade de nenhuma formulação
rigorosa.
A ausência de Escrituras Sagradas e de
um sacerdócio carismático investido em sua interpretação
dogmática, desobrigou os gregos das gravíssimas
hipotecas intelectuais do monoteísmo judaico-cristão.
Diferentemente da Índia, firmemente comprometida com a
revelação védica, e da China, livre de vassalagens
escriturais, mas tributária de um regime imperial cujo
titular era tido por Filho do Céu, o sacerdócio
pagão (5) da Hélade (6) jamais se situou à
parte da ordem política e nunca desempenhou funções
de definição teológica de crenças
religiosas de salvação.
Xenófanes de Ólofon (570-480 a.C.)
e Heráclito de Éfeso (540-475 a.C.), prosseguindo
a linha crítica da épica (7) de Homero, denunciaram
o antropomorfismo dos deuses míticos, iniciando-se então
um revisionismo teísta. Para Xenófanes, os mitos
religiosos são fenômenos sócio-culturais:
“se os bois pudessem pintar, apresentariam os deuses segundo
sua própria imagem”. A partir daí, divulgou-se
a sentença: “se os bois tivessem deuses, os deuses
dos bois teriam chifres”.
O agnosticismo grego a respeito do panteão
(8) olímpico e de outros deuses, repelia a validade teórica
ou cognitiva dos mitos e de seu modelo para as exigências
da crença dos gregos.
No entanto, a que se conhece como “escola
itálica”cultivou a vertente mística da mente
helênica, que teve um expoente máximo em Platão.
Também as grandes figuras literárias _ Píndaro,
Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes
e outros, iam mais além don que exigia a depuração
moral dos gregos. A inércia dos mitos garantia a sua presença
na vida grega, ainda que seu descrédito moral tenha alcançado
na erística (9), cultivada pelos sofistas, dimensões
até então não pensadas. Protágoras,
por exemplo, praticava um discurso demolidor, cuja divisa (10)
poderia ser a afirmação feita em seu “Tratado
sobre a Verdade”: “o homem é a medida de todas
as coisas, do ser das que são ao do não ser das
que não são”.
Até a implantação do cristianismo
como religião do Estado, as convicções religiosas
eram assunto pessoal e privado. Anteriormente, o culto aos Imperadores
foi estritamente uma cerimônia pública anual de “reconhecimento
civil ao Imperador”, como garantia da “pax romana”(11).
Jamais foi um desafio às crenças religiosas privativas
de cada cidadão. A rigor, as episódicas perseguições
aos cristãos foram conseqüência da atitude de
desafio da única fé religiosa exclusivista no âmbito
de um Império (Romano) que só exigia acatamento
político.
Quanto aos pré-socráticos, é
possível avaliar a mudança profunda que provocaram
no modo de pensar dos gregos, pela sua disposição
de romper, em todo o possível, a mentalidade mítico-religiosa
tradicional. Quiseram saber, entre outras coisas, se há
deuses e se vale a pena ocupar-se deles. Sua tendência humanista
materialista era radicalmente orientada para os assuntos dos homens.
Tales de Mileto, Anaxímenes, Heráclito e outros
se entregam à especulação da ordem natural.
A natureza ainda tinha para eles alguma conotação
divina, derivada da mitologia. Seu tema obsessivo era saber como
da unidade da matéria única emergia a multiplicidade
diversa das coisas, o que mudou mais a atitude do homem para a
natureza, passando de ativa e emocional, para ser intelectual
e especulativa.
Há, sem dúvida, importantes diferenças
entre a mitologia e a filosofia milésia (12). Os milésios
não expõem seus relatos sobre o universo como transmitidos
desde a imemorial antiguidade, mas como suas próprias conclusões.
Seu primeiro princípio existe eternamente. Em lugar da
personalização dos velhos mitos, temos descrições
das várias entidades do processo cósmico, e o processo
mesmo é concebido impessoalmente e em termos de movimentos
naturais.
Trata-se de uma atitude não-religiosa,
ainda que não propriamente irreligiosa. Tales (640-546
a.C.), por exemplo, defendia que a alma penetra tudo, o que representa
os últimos resíduos de um animismo mitológico
primitivo.
O também jônico (13) Anaximandro (611-547 a.C.),
pertencente à geração seguinte, dá
um passo significativo na despersonalização do pensamento,
ao admitir a natureza como, inicialmente, sem forma alguma, mas
da qual emergem céu e terra e, logo, todas as demais coisas,
que depois se destroem em um processo sem fim. Estes novos conceitos
da especulação cosmogônica impulsionam o pensamento
para uma abstração mais abrangente na contemplação
da natureza, admitida como mudança e conflito permanentes,
fechando assim o acesso a qualquer personalização
do processo cósmico.
Esta é a plataforma de uma cosmologia
na qual não há lugar para nenhum deus, a não
ser que se recorra a algum subterfúgio que permita personalizar
a natureza, como segue sucedendo até hoje.
O atomismo seria a culminação do
enfoque materialista de milésios e jônicos, que foi
continuado por Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C.), Anaxágoras
(500-428 a.C.), filósofo jônico, e Empédocles
(490-430 a.C.), afirmou a existência de dois agentes contrários
que atuam sobre as coisas: o amor e o ódio; o primeiro
unindo, o segundo separando.
Leucipo (século V a.C.), de Mileto, leva
a sua plenitude a concepção mecânico-materialista
da realidade que caracteriza a filosofia atomista, aperfeiçoada
depois por Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), Epicuro
(342-270 a.C.) e Lucrécio (96-55 a.C.).
A partir desta base, o Agnosticismo levantou
os pilares de uma doutrina peculiar, que considera o ser humano
como uma unidade espírito-matéria, indissociável,
de tal maneira que o espírito e o que não é
espírito não têm que viver como duas realidades
distintas. Admite também que o espírito não
compartilha o reino dos sentidos e que as duas afirmações
anteriores estão inter-relacionadas com a idéia
de que o “meio”, isto é, o que se considera
que não somos nós próprios, mas nosso condicionamento,
tem que deixar de ser um condicionamento que aumente as diferenças
entre pó indivíduo, o meio e a espécie (humana),
para converter-se em um condicionamento que aumente as coincidências,
até chegar à identificação do indivíduo
e da espécie, de tal modo que a espécie signifique
finitude e seja a única realidade global.
(1) Avatar _ mudanças ou transformações
de coisas que se sucedem.
(2) Tradição alternativa mítico-religiosa
_ tradição que considera a religião como
um mito.
(3) Hades _ Na mitologia grega, rei do mundo inferior. A partir
do século V a.C. Hades transformou-se em substantivo comum,
como sinônimo de um lugar “a casa de Hades”
onde iriam habitar os espíritos débeis dos mortos.
(4) Consuetudinário _ fundado nos costumes
(5) Pagão _ adepto do paganismo, sistema religioso em que
se veneram muitas divindades. Como sistema politeísta,
constitui uma fase da história pela qual passaram todos
os grupos étnicos. No cristianismo é considerado
pagão o indivíduo que não foi batizado.
(6) Hélade _ a Grécia antiga
(7) Épica _ relativo à poesia épica: poema
de longo alcance sobre assunto heróico (Ilíada e
Odisséia são os poemas épicos de Homero;
os Luzíadas , de Camões)
(8) Panteão _ templo que na Roma antiga era dedicado a
todos os deuses. Monumento em memória de heróis.
(9) Erística _ escola socrática
de Mégara. Arte da discussão sutil.
(10) Divisa _ sentença ou frase que simboliza a idéia
ou o sentimento de alguém, ou a norma de um partido.
(11) Pax Romana _ a dominação pacífica de
Roma, após a conquista pelas armas, de todo o Império
Romano.
(12) Milésia_ que se refere à cidade de Mileto,
uma das grandes cidades da Ásia Menor.
(13) Jônico_ relativo à Jônia, região
da costa ocidental da Ásia Menor. A Jônia foi constituída,
por volta de 1000 a.C., por 12 cidades, entre as quais Éfeso
e Mileto.
Ásia Menor _ Península também chamada Anatólia
e que constitui a maior parte do atual território da Turquia.
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