OS CULTOS PRÉ-CRISTÃOS
A INFLUÊNCIA MESOPOTÂMICA
OS HEBREUS
OS CULTOS MISTÉRICOS
OS CULTOS HELENÍSTICOS
NASCER DE MÃE VIRGEM
DO JUDAÍSMO AO CRISTIANISMO

AS ORIGENS DO CRISTIANISMO
DO JESUS DA HISTÓRIA AO CRISTO DA FÉ
O CRISTIANISMO DE PAULO DE TARSO
IGREJA E EUCARISTIA

O CRISTIANISMO
JESUS
PODER HEGEMÔNICO SOBRE CONSCIÊNCIAS
MANDAR SOBRE QUEM MANDA
A HIPÓTESE ANIMISTA
MILAGRES
PARÁBOLAS
CRIACIONISMO E EVOLUCIONISMO
FÉ E PROFECIAS
AS CRUZADAS
O CRISTIANISMO

A NOVA RELIGIOSIDADE
O MOVIMENTO NEW AGE

ANÁLISE DO SER HUMANO
ANÁLISE DO SER HUMANO
SOBRE A SUPERAÇÃO DO MEDO
CREDULIDADE
LEALDADE
PRESTÍGIO

O AGNOSTICISMO
A ORIGEM DO UNIVERSO
SOBRE A TEODICÉIA
O MODERNISMO
RACIONALIZAÇÕES
IDEOLOGIAS
LINGUAGEM SIMBÓLICA
O AGNOSTICISMO ANTIGO E MODERNO
A PERSONALIDADE AGNÓSTICA
ÉTICA AGNÓSTICA

CONCEPÇÃO DE DEUS . Considerações

ANIMISMO . Considerações

PÓS-ANIMISMO . Considerações

O LEGADO DOS HEBREUS . Considerações

A CONTRIBUIÇÃO DOS GREGOS . Estudo básico

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a influência mesopotâmica
João Laurindo De Souza Netto


1. OS SUMÉRIOS 3500 – 2000 a.C.
- A civilização Suméria teve início por volta de 3500 a.C.
- Suas características: vivia no presente e olhava com indiferença seu destino além-túmulo.
- Sua religião: politeísta e antropomórfica;
Monista no sentido de considerar todas as divindades como capazes tanto do bem como do mal.
Os deuses não eram considerados seres superiores, mas criaturas com características humanas, com as fraquezas e paixões do homem mortal.
- Mitos: narrativas épicas da Criação e do Dilúvio, que, posteriormente, serviram de base a muitas histórias hebraicas do Velho Testamento.
O mito da Criação conta o triunfo mágico do deus Marduc sobre os deuses que o criaram, a formação do mundo com os despojos de um de seus rivais mortos e a confecção do homem com barro e sangue de dragão.
Quanto ao Dilúvio, os deuses, com inveja dos homens, resolveram destruí-los, afogando-os. Um deles, no entanto, revelou o segredo a um seu favorito, ensinando-o a construir uma arca para salvação de sua família e de espécies animais. A inundação durou 7 dias. Os deuses decidiram nunca mais tentar destruir o homem.
- Atividades: inventaram a famosa escrita cuneiforme, que consiste em caracteres em forma de cunha, gravados em tabuletas de argila, que foi usada durante milhares de anos.
- Capital: a cidade de Ur.

2. OS BABILÔNIOS 2000 – 1700 a.C.
- Não possuíam uma cultura própria; foram profundamente influenciados pelos Sumérios. Quando chegaram ao vale mesopotâmico apropriaram-se do que os Sumérios já tinham desenvolvido.
- Por volta do ano 2000 a.C., o império sumério foi conquistado pelos babilônios, povo semita que tinha como capital a cidade da Babilônia.
- Seu mais famoso rei foi Hamurabi, que compilando leis sumérias criou o famoso “Código de Hamurabi”, do qual consta a lei de talião: “olho por olho, dente por dente”.
- Quanto à religião, Marduc, primitivamente um deus local da Babilônia foi elevado à mais alta hierarquia Várias lendas foram escritas. Uma espécie de protótipo do Livro de Jó, chamado Jô Babilônio também foi escrito nesse período.
- Posteriormente o império babilônio foi declinando até que por volta de 1700 a.C. foi destroçado por um povo bárbaro, os Cassitas.


3. HITITAS E CASSITAS 2500 – 1200 a.C.
- Os Hititas foram os senhores de um poderoso império que cobria grande parte da Ásia Menor e se estendia até as vizinhanças do Alto Eufrates.
- Quanto à religião, os Hititas formaram um panteão abrangendo quase todos os deuses dos povos que conquistaram.
- Estabeleceram “Códigos de Vassalagem” que os conquistados tinham que cumprir para obter a sua proteção.
- Ajudaram os Cassitas na conquista da Babilônia.

4. OS ASSÍRIOS 1300 – 600 a.C.
- Por volta de 1300 a.C., os Assírios, que tinham um pequeno império no planalto de Assur, começaram a se expandir e logo se fizeram donos de todo o vale mesopotâmico.
- Seu império alcançou o auge por volta de 750 a.C. sob Sargão II. Cem anos depois, Assurbanipal conquistou todo o mundo civilizado da época.
- Sua capital era Nínive.
- Os Assírios eram antes de tudo uma nação guerreira.
- Lançavam mão do terror para subjugar seus inimigos e por isso foram a nação mais odiada da antiguidade.
- As leis assírias definiam sujeição das mulheres a seus maridos; o divórcio era exclusividade do homem; permitia-se a poligamia; as mulheres não podiam aparecer em público sem um véu cobrindo o rosto, advindo daí a segregação oriental das mulheres.
- A demonologia desenvolveu-se nesse período.


5. OS CALDEUS 600 – 500 a.C.
- A civilização mesopotâmica entrou em seu estágio final com a destruição da Assíria e o estabelecimento da supremacia caldaica.
- Esse estágio é comumente chamado neobabilônico, porque Nabucodonosor e seus seguidores restauraram a capital em Babilônia e tentaram reviver a cultura da época de Hamurabi.
- Religião: Marduc foi restaurado na posição de chefe da hierarquia sagrada. Os caldeus desenvolveram uma religião astral. Os deuses foram exaltados como seres transcendentes e onipotentes. Foram identificados com os planetas.
- Conclusões: primeiramente uma atitude de fatalismo; uma vez que os atos dos deuses ficavam além da compreensão humana, tudo o que o homem tinha a fazer era resignar-se à sua sorte. Cumpria, por conseguinte submeter-se de maneira absoluta aos deuses.
Em segundo lugar, surge pela primeira vez na história uma concepção de piedade (respeito às coisas religiosas) como submissão, concepção que foi adotada por diversas outras religiões.
Como decorrência de uma religião astral surge o desenvolvimento de uma consciência espiritual mais forte, embora não se delineie de forma nítida a distinção entre a moral ritual e a moral genuína.
Os seus hinos foram depois usados pelos hebreus com pequenas variações, substituindo-se como é óbvio, o nome do deus Caldeu por Jeová.
Com os deuses promovidos a um plano tão alto, seria inevitável que os homens fossem rebaixados, pois criaturas possuidoras de corpos mortais não poderiam ser comparadas a seres transcendentes, impassíveis e imóveis, que habitavam as estrelas e guiavam os destinos da terra. O homem era uma criatura rasteira, mergulhada na iniquidade, pouco merecedora de se aproximar dos deuses. A consciência do pecado atingia nessa época um grau de intensidade quase patológica.
- Ciência: criaram a semana de 7 dias e a divisão do dia em 12 horas duplas. Fizeram mapas celestes. Procuravam descobrir o futuro que os deuses tinham preparado para os homens através de seus deuses que eram planetas.
Sua astronomia era principalmente astrologia. Criaram os horóscopos. Criaram os signos do Zodíaco.

6. OS PERSAS 600 – 300 a.C.
- Na aurora de sua história os Persas não constituíam uma nação independente; eram vassalos dos Medos, um povo que regia um grande império do norte a leste do Rio Tigre.
- Em 559 a.C., um príncipe chamado Ciro tornou-se rei de uma tribo persa do sul. Aproximadamente cinco anos depois, tornou-se o senhor de todos os persas e então concebeu a ambição de dominar os povos vizinhos. Passou para a história como Ciro o Grande, um dos maiores conquistadores de todos os tempos. Dentro de um período de 20 anos fundou um vastíssimo império, maior do que qualquer outro que já existira. Foi aceito pelos Medos como rei logo depois de se tornar monarca dos persas. Supõe-se que fosse neto ou genro de um rei Medo. Ciro aproveitou-se também da dissensão interna do estado caldeu e do estado de decadência dos impérios do Oriente próximo para conquistá-los.
- Creso, o famoso rei da Lídia, estabeleceu alianças com o Egito e com Esparta para se proteger de Ciro. Feito isso, consultou o oráculo de Delfos sobre a conveniência de um ataque imediato aos Persas. O oráculo respondeu que ele destruiria um grande exército. Mas o exército destruído foi o seu próprio. Suas forças foram completamente derrotadas por Ciro. Sete anos depois, 539 a.C., Ciro submeteu a seu poder a cidade da Babilônia, o que lhe tornou possível anexar a seus domínios todo o Crescente Fértil. Finalmente, a independência da Pérsia foi aniquilada por Alexandre Magno, quando o soberano persa era Dario III, em 330 a.C.
- Religião: o fundador da religião persa foi Zoroastro, que viveu cerca de uma centena de anos antes de Ciro. De seu nome provém o Zoroastrismo, religião que eliminou o politeísmo, o sacrifício de animais, a magia e elevou a adoração a um plano espiritual e ético. Era dualística, admitindo que duas grandes divindades regiam o universo: Ahura-Mazda, infinitamente boa, e Ahriman, traiçoeira e maligna. O deus da luz por fim triunfaria sobre o deus das sombras. Além disso, o Zoroastrismo era uma religião escatológica. Incluía ideais como a vinda de um messias, a ressurreição dos mortos, o julgamento final e a transladação do redimido para um paraíso eterno. Depois de 12 mil anos ocorreria a 2ª. vinda de Zoroastro, que seria seguida pelo nascimento do messias que viria aperfeiçoar os bons como preparação para o fim do mundo. Os mortos então se ergueriam de suas tumbas para ser julgados por Mazda que derrotaria Ahriman. Os justos entrariam no gozo imediato da bem-aventurança, enquanto os maus seriam sentenciados ao fogo do inferno, do qual se salvariam pois o inferno persa não durava para sempre.
O zoroastrismo tem significado especial por ser uma religião revelada, supostamente a primeira na história do mundo. Esse foi sem dúvida um fator que aumentou a sua força, pois pregava a “verdade absoluta”, ditada pela própria divindade, mas favoreceu o seu dogmatismo e intolerância, como aconteceu com o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

7. O MITRAÍSMO
- A religião dos persas, tal como foi pregada por Zoroastro, não permaneceu por muito tempo em seu estado original. Foi corrompida, gradativamente, por superstições primitivas, pela magia, e, sobretudo, pela ambição do clero. Com o passar do tempo, a influência de outras crenças, particularmente a dos caldeus, determinou muitas modificações. O resultado foi o desenvolvimento de uma poderosa síntese na qual o primitivo sacerdotismo, o messianismo e o dualismo do Zoroastrismo combinaram-se com o pessimismo e o fatalismo dos Neobabilônios. Dessa síntese emergiu uma profusão de cultos, semelhantes em seus dogmas básicos, mas concedendo a eles valores diferentes. O mais antigo desses cultos era o Mitraísmo, nome derivado de Mitra, o principal assessor de Mazda na luta contra o mal. Mitra, a princípio uma divindade menor da religião zoroástrica, passou a assumir, na concepção da seita persa que se derivou do Zoroastrismo, a posição de deus merecedor de adoração. Seus adeptos acreditavam que tinha nascido num rochedo, em presença de um pequeno número de pastores, que lhe trouxeram presentes em sinal de reverência. Depois de terminada sua pregação na terra, Mitra teria subido aos céus, de onde deverá voltar para dar a todos os crentes a imortalidade. O mais importante sacramento instituído por Mitra era o batismo do crente, do qual se seguia uma refeição sagrada de pão e vinho. Outros ritos incluíam a queima de incenso, os cânticos sagrados e a guarda dos dias santos. Destes últimos eram exemplos típicos o domingo e o dia 25 de dezembro. Imitando a religião astral dos caldeus, cada dia da semana era dedicado a um corpo celeste. Uma vez que o sol era o mais importante desses corpos, seu dia era o mais sagrado, sendo o dia 25 de dezembro o solstício de inverno no hemisfério norte, considerado o dia do “nascimento do sol”.
- Após o colapso do império de Alexandre, a adoração a Mitra transformou-se num culto definido e sua expansão foi muito rápida. No último século a.C. foi introduzido em Roma, fazendo conversos principalmente nas classes mais baixas constituídas por escravos e soldados estrangeiros. Finalmente o mitraísmo atingiu a situação de uma das mais populares religiões do império, superando mesmo o velho paganismo romano.
- Não é difícil perceber sua semelhança com o cristianismo, que o superou por volta de 300 d.C.. É muito provável que o cristianismo, por ser posterior ao mitraísmo, tenha tomado um bom número de aspectos deste culto.
- Quando o imperador Constantino invocou a autoridade divina como base de seu absolutismo e exigia que os súditos se prostassem em sua presença, estava, em realidade, identificando o estado com a religião, como os Persas tinham feito em seu tempo.


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os hebreus
João Laurindo De Souza Netto


As origens do povo hebreu continuam sendo ainda um problema não resolvido. Certamente não constituem uma raça à parte, nem possuíam qualquer característica física capaz de distingui-los nitidamente dos povos vizinhos. A origem do seu nome é duvidosa. Segundo alguns historiadores ele deriva de “ khabiru “ , apelativo, depreciativo dado pelos seus inimigos significando “ nômade ou bandido”. De acordo com outros, no entanto, ele se relaciona com “ Eber “, designativo dos que procediam do outro lado do Eufrates. De qualquer maneira, o nome era aplicado originalmente aos povos imigrantes de origem desconhecida.

A maioria dos historiadores admite que o berço primitivo dos hebreus foi o deserto da Arábia, advindo daí seu caráter rústico e sua insignificância histórica original. A tradição faz começar a história dos hebreus a partir do momento que o patriarca Abraão abandonou Ur ( Caldéia ) por volta de 1800 a.C, ou mais provavelmente, durante o reinado do rei babilônico Hamurabi ( 1700 a.C) para dirigir-se com seu clã nômade para o sul, até a borda do deserto de Canaã, de onde uma centena de anos mais tarde, forçados pela fome, partiram para o Egito, guiados pelo patriarca Jacó, neto de Abraão, que posteriormente adotou o nome de Israel. Daí, o nome de israelitas dado aos hebreus.

No Egito foram escravizados pelo governo do Faraó. Por volta de 1300 a.C, encontraram um novo líder, Moisés, que os libertou da escravidão e conduziu-os à península do Sinai, convertendo-os ao culto de Jeová. Utilizando como núcleo o culto a Jeová, Moisés uniu várias tribos de seus seguidores numa confederação, a qual desempenhou papel dominante na conquista da Palestina ou Terra de Canaã.

Comparada com os desertos da Arábia, a Palestina representava uma região muito menos rústica. Mas era estéril e inóspita, nunca a “terra onde mana leite e mel” descrita na Bíblia. Grande parte da região já estava ocupada pelos fenícios, também chamados cananeus. No entanto, graças ao contato com babilônios, hititas e egípcios, os hebreus haviam desenvolvido uma certa cultura. Praticavam o comércio, conheciam o uso do ferro, e a arte de escrever e tinham adotado leis do código de Hamurabi às necessidades de sua existência simples. Mais ou menos no ano 1000 a.C. fundaram a monarquia hebraica. Até esse tempo a nação fora governada por “juízes” que possuíam a autoridade religiosa. O primeiro a ser escolhido como rei, foi Saul, pertencente à tribo de Benjamim, mas logo depois, incorreu no desagrado de Samuel, o último dos grandes juízes, que esperava conservar o poder mantendo-se nos bastidores. Foi então que surgiu Davi, que, encorajado por Samuel, executou ardilosas manobras para tomar o poder. Sofrendo reveses contra os filisteus, Saul matou-se com a própria espada, enquanto que Davi, tendo conseguido sangrentos triunfos contra os filisteus, tornou-se rei, tendo governado por 40 anos, uniu as 12 tribos num estado forte e começou a construção de uma magnífica capital em Jerusalém à custa de tributação pesada sobre o povo e conscrição ( alistamento militar ) compulsória.

Em conseqüência, antes que Davi morresse, ouviam-se brados de descontentamento do povo. Davi teve como sucessor seu filho Salomão, o último rei da monarquia unificada. Como resultado das aspirações nacionalistas dos tempos posteriores, Salomão foi descrito pela tradição hebraica como sábio, justo e esclarecido. No entanto, foi um articulador ladino e grande comerciante. Ambicioso, procurava copiar a magnificência dos déspotas orientais tendo posteriormente que ceder vinte cidades e recorrer ao sistema de trabalho obrigatório. As extravagâncias de Salomão produziram agudo descontentamento no povo. Após sua morte em 935 a.C, as dez tribos do norte recusavam-se a submeter-se a seu filho Reoboão, separaram-se, e fundaram o reino de Israel, totalmente à parte das demais. As duas tribos do sul, compostas na maioria de pastores e lavradores, formaram o reino de Judá.Em 722 a.C, o reino de Israel, acostumado a uma vida urbana e ao infiltramento de influências estrangeiras, foi conquistado pelos assírios, tendo seus habitantes sido absorvidos pela população circundante, muito mais numerosa. O reino de Judá conseguiu sobreviver por mais 100 anos, mas em 586 a.C, foi destruído pelos caldeus, sob Nabucodonosor. Estes pilharam e queimaram Jerusalém, que teve seu templo destruído.

Quando Ciro, rei da Pérsia conquistou a Caldéia, permitiu que os judeus regressassem a sua terra natal. De 539 a 332 a.C. a Palestina foi estado vassalo da Pérsia. Em 332 a.C, foi conquistada por Alexandre, e depois da morte deste, ficou sob o governo de Ptolomeu I. Em 63 a.C tornou-se um protetorado romano sob Pompeu. Sua história política acabou-se em 70 d.C, depois de uma revolta desesperada que os romanos puniram destruindo novamente Jerusalém e anexando o país como uma província. Começou então a diáspora e os judeus se dispersaram pelo Império Romano.

RELIGIÃO

A parte da Bíblia que conhecemos como “Antigo Testamento” é um conjunto de 40 livros, sendo o número total diferente entre católicos e judeus; alguns não são admitidos pelos judeus, e em outros existe certa controvérsia entre os católicos. No Antigo Testamento consta a história e as crenças religiosas do povo hebreu, que aglutinado na nação de Israel , apareceu na religião da Palestina durante o século XIII a.C. A análise científica tem demonstrado que boa parte dos livros legislativos, históricos, proféticos ou poéticos da Bíblia é produto de um longo processo de elaboração – não menos de 1000 anos – durante o qual foram atualizados os documentos mais antigos, acrescentando-se dados novos e interpretações diversas, de acordo com a concepção e interesses dos novos autores-revisores.

Neste processo surgiram anacronismos tão manifestos como o do livro de Isaías, profeta do século VIII a.C, onde aparece uma série de oráculos datados certamente do século VI a.C, dado que se menciona o rei persa Ciro (550 a.C.); também é citada a impossível relação de Abraão com os filisteus ( Gênesis, 21.32 ) quando ambos estavam separados por muitos séculos de história; há também o fato de atribuir a Moisés (século XIII a.C ) um texto como o Deuteronômio que só foi composto no século VII a.C; poder-se ia citar ainda a denominação Jeová _ pronúncia dada ao tetragrama YHWH _ relativo ao deus de Abraão, quando o nome Jeová só surgiu com Moisés muito mais tarde; ( Êxodo .6, menciona Adonai ( meu Senhor ) e não Jeová, como está no original ).

A Igreja Católica, assim como seus tradutores da Bíblia, sustenta que todos os textos incluídos nas chamadas “Sagradas Escrituras”, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo, e são portanto, obra divina. Admite Deus como autor principal, ainda que os escritos sejam ao mesmo tempo humanos sendo cada livro de um autor que, inspirado por Deus,o escreveu .

Mas obviamente, a questão de ser uma obra de Deus, não se coaduna com os despropósitos que se afirmam na Bíblia. Basta recordar a descrição da criação do mundo, no Gênesis, para se dar conta de que a “narração divina” não é mais que uma repetição dos mitos cosmogônicos mesopotâmicos e que a descrição da abóbada celeste, por exemplo, não difere nada da que faziam os antigos sacerdotes caldeus.

O clero católico tem sempre afirmado que se Deus tivesse falado da realidade como ela era, o povo de então não o haveria compreendido, mas a evidência universal mostra que qualquer crente, de qualquer religião, está disposto sempre a crer qualquer coisa que tenha sido dita por seu Deus, ainda que não a compreenda em absoluto! Tanto mais crível será quanto mais incompreensível pareça. Não é em vão que se diz que “os caminhos do Senhor são inescrutáveis”.

Assim, sendo uma obra ditada por Deus, como explicar que tenha sido adjudicada a Moisés a mesma narrativa mítica escrita mais de 1000 anos antes, referida ao grande rei sumério Sargão I ( 2500 a.C ), que após nascer, foi depositado numa cesta de juncos e abandonado nas águas do rio Eufrates até ser resgatado por um camponês que o adotou e criou? Este tipo de lenda conhecida sob o modelo de “salvos das águas”, é universal e, além de Sargão e Moisés, fazem parte dele Krisna, Perseu, Ciro, Rômulo e Remo, etc. Estaria Deus plagiando uma história pagã?

Também a narração do Dilúvio pela Bíblia, é plágio de outra lenda sumérica, ainda mais antiga, conhecida como “Ciclo de Ziusudra”, narrada nas tabuletas de argila em escrita cuneiforme; a narrativa bíblica de Noé é inteiramente similar.

Dada sua insignificância histórica original, é compreensível que o povo de Israel necessitasse desesperadamente da proteção de um deus todo poderoso, ao qual estava disposto a submeter-se através de um pacto de exclusividade. Essa tendência megalômana plena de mitomania, foi a chave que possibilitou a sobrevivência dos israelitas e tornou-se o eixo da sua identidade étnica e, posteriormente, por herança direta, deu sustentação à religião cristã.

Mas os pactos de aliança estão documentados arqueologicamente desde épocas anteriores, que datam do III milênio a.C. No que se refere à aliança dos hebreus com seu Deus, trata-se de uma flagrante imitação dos tratados de vassalagem hititas, dos quais foram conservados até hoje diversos exemplares. Tanto em Êxodo, como em Josué, e também no Deuteronômio, encontramos diversos elementos deste mesmo esquema: as obras de YHWH, suas exigências, a ordem de ler o “Livro da Aliança”, a invocação a testemunhas, as maldições, as bendições, etc. Deus fica assim definido frente a Israel como o imperador Hitita frente a seus vassalos. Resulta portanto estranho que Deus todo poderoso não fosse capaz de redigir um texto de pacto diferente dos tratados de vassalagem de uso tão antigo como foram os dos hititas.

Tal como o deus semítico Baal, descrito nos documentos da cultura urbana de Ugarit ( século XIV a.C ) Jeová “aplaca o furor dos mares e o estrépito das ondas...Com grandes rios e abundantes águas prepara o seu trigo...” ( Salmos 64,8-10 ), pelo que é evidente que para os israelitas Jeová é o verdadeiro Baal (termo usado inicialmente para o seu verdadeiro Deus) e,ao mesmo tempo, o verdadeiro deus El, manifestação de poder supremo que criou o universo e os homens e assegura o equilíbrio das forças cósmicas. O deus El havia sido a divindade principal da região na qual se assentou o povo de Israel, sobretudo dos cananeus.
Israel se viu obrigada a afirmar desde logo a existência de um único deus. O principio da unidade divina aparece como tradução ideológica de um sentimento muito forte da unidade da nação. Trata-se na realidade de um monoteísmo puramente prático, mas na verdade de um henoteísmo (crença em vários deuses com um superior aos demais), dado que não punha em questão a existência de outros deuses, senão que o sentimento nacional exigia que YHWH fosse concebido como o mais poderoso dos deuses. A cultura israelita impunha ao povo esta concepção nacionalista da divindade que não poderia admitir o dualismo: Jeová é o princípio tanto do bem como do mal que cai sobre o mundo e sobre a vida, mas está animado pela lealdade à aliança com o povo eleito e que o elegeu.

Desse modo, seguindo fórmulas empregadas pelos escribas mesopotâmicos para referir-se a seus reis, os escritores bíblicos também apresentaram o rei Davi como um protegido de Jeová e filho de Deus, como está em Salmos 2.7-8: “Tu és meu Filho, hoje eu te gerei.Pede-me e dar-te-ei, como herança, as nações, e como domínio, os confins da terra”. Assim, se empregou o nome de Deus como escusa para impor, por golpe, o princípio da monarquia hereditária ( muito alheia à tradição dos hebreus ) e se implantou o regime teocrático para o futuro de Israel.

A forma atual dos livros históricos e legislativos da Bíblia tem pouco ou nada a ver com os documentos originais em que se basearam ou – e aqui se aplica o termo exato – se inspiraram, já que são resultado da amálgama de diferentes coleções documentais e tradições orais que foram postas por escrito e, freqüentemente, reescritas, reinterpretadas, e ampliadas em épocas distintas e por pessoas ou escolas diferentes.

No que concerne à criação do homem, o Antigo Testamento menciona que em virtude de um “sopro vital” Adão foi criado como ser animado vivente. O Antigo Testamento não tem nenhuma doutrina formal relativa ao destino reservado aos mortos. Tudo que se diz sobre este tema pertence ao domínio do saber popular. O homem aparece “conversando” com os animais e a ele se põe uma barreira que é a árvore do conhecimento. Nada se diz sobre a imortalidade da pessoa humana. Logo depois ( Gênesis 3.1-24 ) é relatada a “queda” de Adão, que perde como castigo sua imortalidade e se converte em presa da morte. Crassa contradição! Em Gênesis 2.17 se ameaça pois, ao homem com perder o que não possuía; ele é intimidado com um destino de morte se comer da árvore do bem e do mal, o que implicaria que foi criado imortal. Ora, se era imortal, a escatologia do “ Sheol “ ( inferno, no sentido de residência dos mortos, sem definir, segundo os hebreus, se é lugar de castigo ou não ) cai por terra. Segundo esta teologia, a constituição da natureza humana nada continha no sentido se significar que pudesse sobreviver à dissolução da morte: “porque és pó e ao pó retornarás” (Gênesis 3.19 ). Em conclusão ao mito (Gênesis 3.22-24), no que parece ser uma interpolação, Deus toma a precaução de impedir que Adão coma da árvore da vida e se torne imortal. Como se vê, as inconseqüências se sucedem: o homem não é imortal, mas é ameaçado com a morte se come da árvore do conhecimento; é mortal, mas Deus o castiga com a perda da imortalidade ( ? ) Ainda depois do castigo, o homem poderia recuperar uma imortalidade que nunca possuiu mediante o expediente de comer da árvore da vida! Como, de um mito tão contraditório, pode nascer nada menos que a legitimação da noção de culpa que está na própria base da história bíblica da redenção, da História Sagrada?

Daí emerge o problema do mal, que por caprichosa transmissão, se estende a toda a espécie humana sob a forma de pecado original. Se Adão e Eva desobedeceram a Deus livremente, haveria que supor que já conheciam a essência do bem e do mal, pois não pode haver livre arbítrio sem prévio conhecimento. Se não conheciam – de acordo com a hipótese – a essência do bem e do mal, então não haveria pecado. Se conheciam, a hipótese do tabu, da proibição se desmorona sem remédio, pois nem ante Deus pode haver moralmente castigo sem imputabilidade. Os atos do homem lhe são imputáveis – tanto se obedece ou desobedece a quem quer que seja – só se são fundados em seu livre arbítrio. E o exercício do livre arbítrio implica em prévio conhecimento da natureza moral do objeto. Teria o Deus dos hebreus colocado más inclinações no primeiro casal humano?


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os cultos mistéricos
João Laurindo de Souza Netto


Os estudiosos mais objetivos da história do cristianismo, isto é, aqueles que puderam manter-se alheios às determinações das supostas verdades inquestionáveis, emanadas da cúpula da Igreja Católica, concordam em que a sua doutrina desenvolveu-se, originariamente, não diretamente de Jesus, que não fundou Igreja alguma, mas sim de seus seguidores, particularmente de Paulo de Tarso. Com Jesus, o objetivo era de devolver ao povo judeu a esperança de libertação e de salvação que praticamente havia sido perdida. Naquele tempo, a vida religiosa em Israel estava convertida em um absurdo conjunto de ritos obrigações, contraídas com um Deus que pouco oferecia a troco da devota esperança que Lhe dedicavam seus crentes. Por um lado, o povo era dominado pelos romanos; por outro, pela classe sacerdotal, composta majoritariamente por fariseus e membros da tribo de Levi, que representavam oficialmente Jeová e proclamavam atuar sempre em seu nome.

Jesus representou para seus discípulos o Messias anunciado pelos profetas, aquele que haveria de restaurar o Reino de Israel, libertando-o de seus opressores. Contudo, a morte no Gólgota anulou as idéias de poder, triunfo temporal e aniquilamento dos romanos. Restou, para os seguidores mais próximos, a mensagem de que teria vindo para restabelecer a perdida relação sagrada de Deus com suas criaturas. Mas esse era precisamente o aspecto da doutrina cristã que a classe sacerdotal hebréia nunca haveria de aceitar. Também havia rejeitado, quase cem anos antes da vinda de Jesus, a doutrina similar pregada pelo Mestre de Justiça dos Essênios, que viviam, isolados do mundo, sua experiência coletiva ante a numinosidade, nos penhascos arenosos de Qumram.

Mal conhecidos, ainda que citados por escritores judeus_ Filon de Alexandria e Flávio Josefo _ como também, depois, por exegetas cristãos, os essênios viviam agrupados em pequenas colônias de tipo monástico, em torno das margens desérticas do Mar Morto, longe das tribulações do restante do povo hebreu. Flávio Josefo citou os essênios como “escola filosófica”, porém eram mais conhecidos como “piedosos”. Regidos por regras estritas, viviam intensamente uma existência marcada pela espiritualidade, sem tomar parte ativa nem na política nem na religião oficial, apartados totalmente de sua ditadura. Praticavam uma doutrina salvífica que, discretamente, tratavam de transmitir ao povo através de missionários e predicadores, entre os quais muitos incluíram João Batista. Há, inclusive, a hipótese, levantada não sem muitos argumentos coerentes, de que o próprio Jesus teria passado com eles alguns anos, antes de iniciar sua vida pública.

Também se aponta que a substituição do rito judaico da circuncisão pelo batismo por água foi uma das modalidades de procedência essênia, adotada pelo cristianismo recém- constituído. Os essênios se vestiam de branco, alimentavam-se com o estritamente necessário, renunciaram ao sacrifício de animais e praticavam a pureza como mandamento principal, sendo o matrimônio, que só era permitido a alguns escolhidos, destinado exclusivamente à perpetuação da comunidade. Cumpriam dois mandamentos essenciais: o batismo e a ceia; condenavam a dedicação ao comércio e a maior parte deles dedicava-se exclusivamente à agricultura.
Resulta muito significativa a semelhança entre o Mestre de Justiça dos Essênios _ que foi identificado por muitos como o Messias_ e a figura de Jesus Cristo,a quem chamavam também de Mestre, denominação que sempre lhe foi negada pelos judeus ortodoxos. Coloca-se também uma questão de identidade, só resolvida com a aberta oposição da Igreja Católica, de adjudicar a Jesus uma personalidade fundamentalmente política e revolucionária, ligada ao movimento dos zelotes, que tentaram liberar o povo de Israel do jugo da ocupação romana e restaurar a dinastia da Casa de Davi.

A prisão, julgamento e morte de Jesus por parte dos romanos permite assegurar que estes o atacaram com crueldade, não por suas idéias religiosas, que importavam pouco a um Império saturado de doutrinas forâneas, mas pelas ameaças que elas podiam representar para a segurança do próprio Império. O fato de que o cristianismo tenha convertido os hebreus em causantes diretos daquela morte, eludindo sua ação de incentivadores dela e colaboradores dos romanos, é parte do anti-judaísmo que caracterizou a separação das doutrinas cristã e judaica.

Contudo, a Bíblia continuou sendo, como Antigo Testamento, o livro sagrado do cristianismo. Esta atitude da Igreja, em seus primeiros tempos deveu-se ao fato de que poderia aspirar maiores vantagens materiais da Roma Imperial do que do povo do qual procediam seus líderes, um povo vencido e condenado a uma diáspora que o faria espalhar-se por todo o mundo conhecido. A instauração do cristianismo, como doutrina, constituiu, além de uma magna operação de caráter religioso e espiritual, uma grande manobra de assalto, capaz de proporcionar à Igreja o poder absoluto que tem perseguido, e sem dúvida alcançado, ao longo dos seus dois mil anos de presença ativa no mundo ocidental, num processo permanente, embora às vezes doloroso, de manutenção do poder.

Se analisarmos em profundidade as circunstâncias que envolveram o estabelecimento da doutrina cristã e seus dogmas, nos daremos conta de que o Cristo do evangelho_ ou seja, o Jesus reinterpretado por Paulo de Tarso e seus seguidores_ foi em boa parte inspirado pelos essênios, como se pode constatar através dos rolos do Mar Morto. E Garcia Martinez, em sua obra “Textos de Qumram”, afirma que a doutrina dos essênios, por sua vez, tinha muito a ver com o talante manifestado pelos seguidores de diversos cultos mistéricos , que haviam se expandido, desde a antiguidade, por todo o mundo mediterrâneo.

Esses cultos surgiram e se desenvolveram, em grande medida, como reação à religião olímpica greco-romana, segundo a qual os deuses míticos se limitavam a velar sobre a humanidade, não pela humanidade. Embora oficializada pelo Império Romano, a religião olímpica não concedia aos seus seguidores nenhuma esperança de supervivência, quer fosse de vida perdurável, além da morte, quer de reencarnação em outra vida.

As formas religiosas emergentes dos cultos mistéricos, recuperando rituais simbólicos tradicionais, muito mais acordes com os ciclos vitais da natureza, nunca consideraram o ser humano como dono absoluto do espaço sagrado. Pelo contrário, fazendo surgir suas divindades de uma íntima relação com o ser vivente, tratavam de evidenciar as raízes do numinoso nos fenômenos naturais. Divinizavam, assim, o comportamento das estações, a alternação da vida e da morte em tudo o que palpita no universo e o exemplo que oferece a existência cotidiana, regida pelo mistério da geração, de que é protagonista principal o lado feminino de tudo que existe.

Diferentemente do Deus essencialmente masculino de Israel, que não se lembrou da mulher senão ao dar-se conta _ tarde, por certo _ de que, ao criar o homem, havia esquecido da máquina de parir que garantiria a continuidade da espécie, os fiéis cultos mistéricos adoravam a divindade feminina, tanto como a causa da Criação como a segurança da imortalidade. Efetivamente, todas as representações das Grandes Mães, redentoras da humanidade, Cibeles ou Réia, Ísis ou Deméter, Anaíta ou Ártemis, eram efetivadas através de um personagem divino, fundamentalmente salvador (soter).

A intenção de Paulo de Tarso de evangelizar aqueles coletivos pagãos, cujas bases doutrinais procediam de tradições opostas ao judaísmo, fez com que o trabalho de ordenação da nova crença cristã procurasse pontos de contacto com os cultos pagãos que se propunha a substituir. Dessa forma, a oferta salvífica do Deus único de Israel não deveria romper, de forma demasiadamente violenta, determinados apoios sagrados que o paganismo mais espiritualizado tinha firmemente arraigado em sua consciência.

Assim, o cristianismo, nascente pelas mãos de Paulo, potenciou sua história sagrada fazendo com que tanto o hipotético nascimento de mãe virgem, como a paixão, morte e ressurreição do Salvador, coincidissem como percurso simbólico dos distintos “salvadores” das religiões mistéricas: Osires, Dionísio, Mitra, Adônis e Átis. Todos eles apresentavam conjunturas míticas coincidentes: nascimento prodigioso, morte cruel e sobrenatural ressurreição.

O fato de que no Salvador cristão concorressem idênticas circunstâncias, garantidas ademais pela prova evangélica, apoiava a suposta base sobrenatural da crença pagã e facilitava a conversão para o cristianismo, sem que esta significasse uma ruptura radical com as convicções anteriores. Vejamos alguns traços das divindades pagãs:

Cibeles
“Deusa da Ásia Menor; identificada pelos gregos como Réia, mãe de |Zeus. Era uma personificação das forças naturais, a deusa da Terra, da Agricultura, das Minas e das Florestas. Era representada sendo escoltada por coribantes (sacerdotes frígios que nas festas de Cibeles dançavam emitindo gritos estridentes), por leões e por outras feras. Tinha grande número de santuários por toda a parte da Ásia Menor. A partir do século V a.C. o culto de Cibeles espalhou-se por toda a Grécia Continental, onde ficou conhecida como Réia, mãe dos deuses. Seu culto foi introduzido em Roma por volta de 204 a.C.”

Ísis
“Na mitologia egípcia, deusa da maternidade. Irmã e esposa de Osíris e mãe de Hórus. Os egípcios acreditavam que as inundações dos campos do Nilo eram resultado das lágrimas de Ísis, que chorava o esposo morto, a quem ressuscitou. O centro de seu culto era Buto, onde segundo a tradição, concebeu sozinha e deu à luz seu filho Hórus. Os gregos transformaram-na numa expressão do pensamento helênico, identificando-a com Demeter. Em seu caráter de deusa-mãe, tornou-se uma das grandes divindades do mundo grego. Seu culto, combinado com o de Hórus, tornou-se a religião principal do Império Romano em sua fase final. Era representada por uma mulher com o filho, Hórus, ao colo.”

Anaíta
“Divindade dos cultos politeístas da Caldéia, simbolizava a fecundidade da terra e da vida animal. Entrou nas crenças dos Medas e dos Persas; aparce, principalmente no Avesta, livro sagrado do masdeísmo pregado por Zoroastro. Os gregos identificaram esta divindade com Ártemis."

Quanto ao personagem salvador, o exemplo mais importante é o de Mitra, divindade principal dos arianos. Quando estes partiram de sua região de origem, os ramos dividiram-se em indianos e iranianos, tendo o deus continuado a ser venerado em ambas as regiões. Na Índia, no entanto, foi associado a Varuna e acabou por ser esquecido. Na Pérsia, com a reforma de Zoroastro, passou a ocupar um lugar intermediário entre Ahura-Mazda, divindade do bem e Arimã, deus do mal. Seu seguidores não lhe adjudicaram, então, a categoria de Deus, mas a de “salvador”, encarregado pela Divindade Suprema de cuidar dos humanos e ajudá-los em sua viagem à glória reservada aos justos.

Mitra simbolizou o Sol, sendo considerado o proclamador da verdade. Seu culto, iniciado em grutas, chegou a ser exercido em templos suntuosos. Nos séculos I e II, o mitraísmo foi levado para Roma onde sua difusão coincidiu com a do cristianismo. As duas religiões tinham em comum o dilúvio, a lenda dos pastores com presentes, a confissão e a comunhão, a concepção de céu e inferno e a ressurreição da carne. No entanto, apesar de sucessivas perseguições, o cristianismo, graças à proteção de Constantino, acabou sobrepujando o mitraísmo.

Mitra, no panteão naturalista era ligado à Grande Mãe Anaíta. De sua doutrina emanaram alguns textos, dos quais, um deles, conhecido como “Oráculo de Hystaspe”, merece destaque pela semelhança que viria a ter com ele, posteriormente, um fragmento importante da doutrina cristã:
“Escuta, porque vou revelar o maravilhoso mistério do Grande Rei que deve vir reger o Mundo. Quando os tempos se cumprirem, no instante da dissolução que deve por fim ao tempo, um menino será concebido e formado completamente no seio de uma virgem, sem que varão algum se tenha acercado dela”.

Segundo a pregação de Zoroastro, Mitra se tornara um personagem adotado pela Divindade. Era um intermediário junto aos humanos para propiciar-lhes o acesso a um céu situado mais além no tempo e no espaço. Ainda que carecendo de uma história de sacrifícios como a de Átis, tinha muitos pontos de contato com a doutrina cristológica que seria exaltada posteriormente pela Igreja.

Átis era uma divindade frigia masculina. Morrendo e ressuscitando, simbolizava a morte da vegetação no inverno e sua revivescência na primavera. Era ligado à Grande Mãe Cibeles, desempenhando junto a ela papel análogo ao de Adônis junto a Afrodite, que foi identificada pelos romanos como Vênus.

Os ritos de iniciação ao culto de Mitra eram realizados para poucos, não mais do que uma centena. A ceia era constituída de pão e água e supunha a participação dos eleitos em uma eucaristia sagrada que os identificava com a numinosidade. Muitos dos templos dedicados a Mitra ainda existem, convertidos em criptas de igrejas consagradas ao culto cristão. Os adeptos dos mistérios de Mitra tratavam-se mutuamente de “frates”, e a iniciação era considerada como um autêntico sacramento, que vinculava a todos em uma espécie de compromisso transcendental. Por isso, diferentemente de outras religiões mistéricas, que tendiam à proclamação da liberdade de seus correligionários e abriam suas portas de par em par a quem quisesse integrar-se em sua doutrina, o mitraísmo não foi nunca uma crença acessível a todo aquele que solicitasse. Pelo contrário, era exigido do postulante que assumisse compromissos expressos.

Partindo do conhecimento que hoje se tem do mitraísmo, baseado quase totalmente na iconografia e nos relatos dos historiadores, cabe ver neste culto uma religião que havia estabelecido forte barreira, quase intransponível, entre dois tipos de fiéis: por um lado, uma grande maioria de crentes sujeitos à fé salvífica; por outro, a estrita minoria de adeptos que, pelo fato de haver ascendido aos mistérios, podia exercer sua autoridade sobre a massa de fiéis e, inclusive, erigir-se em intermediários do personagem que representava a figura do salvador. A extrema coincidência com o catolicismo é evidente.

Os mistérios de Mitra despertaram, em seu tempo, admiração pela sua coesão ideológica e pela influência que exerciam entre seus membros, ligados por uma convicção e por um fanatismo que lhes conferia poder e inspirava temor naqueles que se encontravam alheios ao seu círculo de fidelidade. Essa foi a razão que incrementou a importância do culto mitríaco. Foi também o motivo que permitiu à Igreja Católica, ao apropriar-se dessa doutrina, elevar-se a uma altura considerável, até conformar o centro de poder mais importante da Europa e do mundo mediterrâneo naquela época, e, depois, espalhar-se pelo mundo inteiro.

Também de modo paralelo, a tradição das “Trimurti”, tríade hindu que manifesta as funções cósmicas da Grande Mãe como representada por Brahma, Vixenu e Shiva, determinou, na incipiente estrutura teológica cristã, a introdução, logo cuidadosamente dogmatizada, das três pessoas da Santíssima Trindade. Na Trimurti original, Brahma é o equilíbrio entre os princípios opostos de preservação e destruição, simbolizados por Vixenu e Shiva, respectivamente. Como a tradição judia supunha sempre um Jeová essencialmente masculino, a figura feminina foi desconsidera, aparecendo, no entanto, um “espírito” Santo.

Finalmente, havia que resolver a questão reservada em outras religiões por uma autêntica multidão de deuses menores, aos quais adjudicavam-se funções delegadas pelas grandes deiades. Assim, surgiram, na doutrina eclesiástica, as distintas categorias de anjos e demônios, que, na tradição do Antigo testamento, aparecem como enviados de Jeová para comunicar aos humanos os Seus desígnios. Os primeiros são classificados em três hierarquias: serafins e querubins; virtudes e potestades; arcanjos e anjos. Os segundos, tendo Satanás como cabeça, surgem a partir de uma hipotética rebelião Angélica que havia tentado, antes mesmo da Criação, usurpar os infinitos poderes do Altíssimo.

Uma vez estruturada a doutrina cristã, firmemente estabelecidas suas instituições, consolidada sua hierarquia graças à experiência adquirida por seus líderes na relação com a sociedade romana, aquele firme propósito de poder absoluto, que nasceu com Paulo, converteu-se em uma perspectiva que ultrapassou os limites do sonho original. Durante os últimos vinte séculos, através de um autêntico mandato espiritual, a Igreja tem imposto seus dogmas sobre uma enorme massa de fiéis, que vê na autoridade de Roma o único caminho para a salvação da alma e, muitas vezes, para a preservação da vida mesma.

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os cultos helenísticos
João Laurindo de Souza Netto

As conquistas de Alexandre Magno, da Macedônia, que determinaram a formação de um imenso império supranacional partindo do modelo persa, trouxeram conseqüências desestabilizadoras para os povos que habitavam as regiões do Mediterrâneo. A política adotada por Alexandre ante os povos conquistados consistiu em apresentar-se como continuador do soberano vencido. Na Pérsia, adotou os costumes locais, outorgou à monarquia um caráter sagrado e estabeleceu que à pessoa do imperador seriam tributadas honras divinas. No ano 324 a.C., proclamou sua própria divindade e decretou que lhe fosse prestado culto. Pouco depois da campanha persa, no Egito, Alexandre foi declarado filho de Amon (Zeus na interpretação grega). Este fato constituiria a premissa do culto ao rei e da soberania universal.

Após a morte de Alexandre, seu império se viu submetido a fortes tensões, provocadas pelos generais que aspiravam a sucedê-lo. As forças centrífugas geradas pela sucessão deram lugar a que fossem criados três reinos: o da Macedônia, com os descendentes de Antígono; o da Síria, com os de Seleuco; e o do Egito, com os de Ptolomeu. Até à consolidação de Roma, foi o Egito o centro propulsor da vida cultural daquela época. Finalmente, Roma, após ter derrotado Cartago, recomporia a unidade universal ambicionada por Alexandre.

Neste período, a história grega se converte, progressivamente, na história de todos os que falavam e pensavam em grego, independentemente de sua origem. O grego se transformou, assim, na língua vernácula, falada em toda a área do Mediterrâneo, sinal de distinção cultural, de que se apropriariam os povos que tinham contato com os gregos. No Egito, o grego parecia haver substituído a língua local, sobretudo entre as classes cultas.

O mundo cerrado das cidades gregas, microcosmos organizados onde o homem se sentia seguro, protegido, desaparece totalmente ao instaurar-se o império universal. Os novos horizontes, abertos pelas conquistas de Alexandre, trazem uma visão cosmopolita do mundo, mas, ao mesmo tempo, produzem uma sensação de isolamento e de extravio. O homem já não é o artífice de seu próprio destino; está à mercê da Tyche (Sorte), Ananke (Necessidade) ou do Heimarmene (Destino). A sensação de extravio inclina-o para formas de pensamento que, sob a aparência de racionalismo, ocultam fortes tendências dogmáticas. Ao mesmo tempo, as religiões tradicionais experimentam impulsos universalistas, enquanto se reclama uma proximidade maior dos deuses, que garanta aos homens a “salvação”. Um deus deve ser antes de tudo um “Soter”, Salvador.

Seguindo a tendência destes impulsos, no mundo helenístico-romano se difundem os cultos mistéricos, junto com a astrologia e as práticas mágicas.
No Egito, Ptolomeu I e seus descendentes seguem uma política de helenização dos povos submetidos a seu domínio. A famosa tradução da Bíblia a o grego, conhecida como versão dos Setenta, porque, segundo a tradição, foi confiada a setenta sábios a mando de Ptolomeu II, também conhecido como Ptolomeu Filadelfo, em 283 a.C., provavelmente é fruto desse processo de helenização. A tradução da Bíblia formava parte do projeto dos Ptolomeus, um projeto que procuraram realizar de forma mais ou menos sistemática entre os egípcios, cujo uso do grego nas práticas religiosas foi apresentado como uma concessão feita aos gregos que abraçaram os cultos egípcios.

O processo de helenização se produz através de um fenômeno convencionalmente denominado sincretismo, tanto religioso quanto cultural. No Egito ptolomaico este processo dá lugar a um deus como Serápis, que reúne as características de divindades gregas e egípcias como Hades, Zeus, Hélios e Osíris, em uma síntese que aspira a reproduzir em plano divino o papel assumido pelo soberano na terra. Na prática do culto, isto dá como resultado uma helenização dos próprios cultos, que se tornam domésticos, como no caso dos deuses egípcios, antropomorfizados e despojados de seu zoomorfismo, característica que maior resistência encontrava nos gregos. Por outro lado, os cultos gregos experimentam profundas transformações, impensáveis para a religião tradicional.

Do ponto de vista histórico, o sincretismo é um fenômeno de transculturização, que conduz a uma integração das diversas civilizações reunidas primeiro por Alexandre e depois por Roma, do qual nascem produtos culturais completamente renovados, fruto de uma nova interpretação das distintas tradições. O mundo da Antiguidade, de vocação politeísta, foi um mundo de tolerância religiosa, diferentemente do cristianismo que estava por vir.

A época helenística foi dominada por quatro correntes filosóficas principais:
• os epicuristas, que elaboraram uma teoria materialista do universo e adotaram uma postura anti-religiosa, sem negar, no entanto, os deuses;
• os céticos, que rejeitavam toda a divindade do mundo e negavam a Providência;
• os cínicos, contrários a qualquer tipo de especulação, para os quais o ideal da sabedoria coincidia com uma vida em acordo com a natureza, opondo-se aos costumes e à tradição, a ponto de negar os deuses;
• os estóicos, que fizeram uma doutrina para indicar ao homem como alcançar o “bem”. O estoicismo propunha uma concepção monística da divindade, que teria no Logos, Razão, o princípio concreto, ordenador do universo: não negava os deuses do politeísmo, mas reduzia-os a divindades que contribuíam para realizar o ideal da ataraxia ou imperturbabilidade frente à dor ou ao sofrimento.

Nos dois primeiros séculos da era cristã se produz uma recuperação do platonismo, que desembocará, no século II d. C. no neoplatonismo de Plotino. Esta doutrina, limitada sempre a um círculo intelectual de elite e marcada por um notável esoterismo _ que impediu a sua difusão_ contribuiu de forma decisiva para a transformação dos princípios ideológicos e religiosos sobre os quais se havia baseado o mundo antigo. Não obstante, o neoplatonismo foi um baluarte contra o cristianismo, que o combateu acirradamente. Os discípulos de Plotino não renunciaram às práticas mágicas e teúrgicas.

De outra parte, “endeusar-se”, isto é, converte-se também em deus, era o objetivo do hermetismo, um movimento igualmente esotérico, que convidava o homem a livrar-se do corpo e atravessar as esferas celestes para conseguir a salvação. O hermetismo, de tradição egípcia, apresentava influências estóicas, neoplatônicas e gnósticas. Considerado à princípio com admiração por alguns cristãos, foi mais tarde duram,ente combatido por Agostinho, muito embora tenha exercido influência me sua obra. A teologia cristã posterior, durante a Idade Média, seguiu, sobretudo, uma linha de influência aristotélica, mas diversos pensadores da época foram influenciados pelas concepções platônicas e neoplatônicas. Era inevitável o conflito com o cristianismo, pois o hermetismo propunha “instrumentos” de natureza mágica-teúrgica para exercer um controle sobre os deuses, não negados, mas subordinados a uma divindade suprema, o Nous, a razão divina adotada pelo neoplatonismo como a primeira emanação de Deus, do qual procedia o Logos, ordenador do mundo. A teurgia era considerada em dois níveis: a inferior, constituída pelos usos mágicos, adivinhações, sortilégios, etc e a superior cultivada pelos teólgos. Nesta segunda forma, apareceu no oriente e culminou na época da Filosofia greco-oriental. Pode-se dizer que a teurgia constitui a fase pela qual passaram os mais diversos povos, sendo a sua superação uma das formas de desenvolvimento da civilização. Há quem admita certas formas de teurgia mesmo nas condições de vida moderna.

O proselitismo de Paulo de Tarso, ao pregar o cristianismo nas regiões orientais, instaurou, para fazer adeptos, intolerância e coação religiosa, registrada pelo história universal, diferentemente da tolerância politeísta. De certa forma, pode-se dizer que a ação do cristianismo foi subjugar aquelas antigas tradições. Na teologia de Paulo, o substrato básico do mito do pecado original vai se fundir com a antropologia específica na qual o conceito grego “sarx” (carne), intimamente ligado à lenda da queda de Adão, funciona como nos mitos gnósticos. Trata-se de uma categoria antropológica básica da misteriologia cristã-helenística forjada por Paulo, e essencial para compreender a dinâmica sincretista dos sacramentos eclesiásticos.

Segundo Paulo, o Filho de Deus, um ser celeste, pneumático (espiritual), porém encarnado, preexistente, de natureza divina, enviado pelo Pai para operar expiatoriamente a salvação escatológica, não poderia ser um simples ser humano nascido na Galiléia e condenado por sedição. Este mito sincrético, constituído por categorias judaicas e conceitos helênicos, forma o núcleo da dogmática de Paulo. Com anterioridade de um par de décadas à redação dos Sinópticos, Paulo constrói sua teologia em imediata e estreita vinculação coma idéia de um ser que se sacrifica como “soter”, Salvador, para expiar os pecados da humanidade, resgatá-la para Deus e reconciliar com ele toda a criação.

As comunidades cristãs influenciadas pelo helenismo, moviam-se em uma atmosfera intelectual receptiva ao pensamento grego, sobretudo em seus conteúdos favoráveis às formas monoteístas. O termo “soter” aparece no relato evangélico de Lucas (2.11) e no Atos dos Apóstolos (5.31 e 13.23). Em Paulo, aparece em Filipenses (3.20), onde procura adaptar a tradição escatológica do cristianismo primitivo à idéia helenística de uma visão cristã como já vivida no mundo celeste imaterial.

A identificação feita por Paulo _ amplificada e levada em outro contexto à sua expressão clássica no quarto Evangelho _ de Jesus com o Logos-Sabedoria divina, lança suas raízes no simbolismo alegórico do judaísmo helenístico, que no período pós-pascoal havia adquirido já caráter convencional tanto nas escolas rabínicas como em individualidades como Filon de Alexandria. Porém o fato de transferir a Jesus, ser humano, as especulações sobre o Deus inefável dos ambientes judaico-helenísticos é uma façanha que se deve adjudicar às comunidades cristãs mais helenizadas e adeptas do proselitismo de Paulo. No processo de converter Jesus em “soter”, enviado pela divindade e participando dos atributos desta, e , “logos” criador por quem se efetuam e em quem se resumem todas as coisas, transmuta-se um personagem da história hebréia, vítima mortal dos avatares de seu tempo, em um ser divino.

O trecho considerado clássico da literatura paulina, onde se faz o giro neotestamentário, além das referências sinópticas, está em Filipenses 2.5-11, onde se apresenta a estranha idéia de um Jesus consubstancial com o Deus Pai, de natureza idêntica a este:
“E haja entre vós o mesmo sentimento que houve também em Jesus Cristo. O qual tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus: mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens e sendo reconhecido na condição de homem. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte, e morte de cruz. Pelo que Deus também o exaltou, que é sobre todo o nome: para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e nos infernos. E toda a língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai”.

A primeira oração do versículo “tendo a natureza de Deus” procederia de comunidade de orientação helenística, enquanto que a segunda “não julgou que fosse nele usurpação o ser igual a Deus” refletiria a mentalidade judaica da Igreja da Palestina. Paulo, pois, apresentou uma cristologia ambígua, mediante um artifício literário que evitasse a extensão de sua hostilidade com os de Jerusalém sobre a questão da divindade de Jesus.

Ao tratar do Deus encarnado, Bulmann, em Theology of New Testament, diz textualmente:
“A figura de um filho de Deus era familiar para os modos helenísticos de pensar, familiar segundo algumas variações. Uma dentre elas foi uma herança da tradição grega, que aplicava a idéia mitológica de ser engendrado por um deus a homens que pareciam, por seus feitos heróicos, por suas façanhas mentais ou por suas ações benéficas à humanidade, transcender as proporções humanas ordinárias. O período helenístico conhece toda uma série de tais “homens divinos”, que pretendiam ser filhos de um deus ou eram vistos como tais... Outra variação era a concepção da filiação divina que foi comum no helenismo oriental como uma herança da mitologia oriental antiga: os filhos de divindades eram adorados nos cultos mistéricos ou “mistérios”. Seus mitos relatavam que haviam sofrido o destino humano da morte, porém haviam ressuscitado. Mas, de acordo com a crença de seus adoradores, o destino destas divindades estabelece uma salvação que é concedida àqueles que experimentam com a divindade sua morte e ressurreição nos ritos dos mistérios”.

Se a divinização de Jesus foi um processo iniciado no seio das comunidades cristãs helenísticas, a elaboração teológica de Paulo teria imposto o peso de sua densidade doutrinal nessa direção, de tal modo que quando os evangelhos sinópticos forma compostos, a natureza deiforme de Jesus já havia sido afirmada avassaladoramente. A descrição da morte de Cristo, segundo Paulo, é feita em analogia com a morte de uma divindade das religiões mistéricas. Os efeitos expiatórios da morte de Cristo, nesta concepção, conferem aos homens um sentido novo e original que consiste na participação no destino da divindade mistérica, através do batismo e da comunhão sacramental, e outorga ao iniciado a participação no morrer e posterior reviver da divindade. Tal participação ao conduzi-lo à morte, ao mesmo tempo liberta-o da morte. O notável é que Paulo só pode aludir a idéia da culpa solidária e hereditária de todos os homens, ainda que individualmente inocentes, recorrendo ao mito pagão que faz da morte e ressurreição do Nazareno “acontecimentos cósmicos” que tiveram lugar uma vez no tempo pretérito (ICor.4.7-12).

Em termos econômicos, sociais e políticos, a mensagem de Paulo, que perpetua hoje a Igreja, é profundamente alienante. A preocupação principal é sempre a “sarx” (carne), e o âmbito do pecado inclui toda a atração de ordem corporal. Reivindicar, por qualquer meio, pacífico ou violento, direitos e liberdades, fica excluído para Paulo. Clama em ICor.7.20-22, que:
“Cada um na vocação em que foi chamado nela permaneça. Foste chamado sendo servo? Não te dê cuidado: e se ainda podes ser livre aproveite melhor. Porque o servo que foi chamado no Senhor, liberto é do Senhor: assim mesmo o que foi chamado sendo livre, servo é de Cristo”.

Doutrina de total submissão e obediência aos poderosos do mundo, que nenhuma teologia pode desvirtuar, como souberam muito bem, durante séculos, as classes dominantes, incluídos os hierarcas da Igreja. E, em Efésios 6.5:
”Servos, obedecei a vosso senhores temporais com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração como a Cristo”.

As referências aos “rebeldes” ou “ revoltosos”, são sempre desqualificadoras. O lema é sempre o mesmo “irmãos, persevere cada um ante Deus na condição em que foi por Ele chamado” (I Cor7.24).

A projeção destas máximas sobre a vida pública leva Paulo a formular sua estremecedora doutrina de obediência civil, que fez as delícias de todas as potestades opressoras, como estabelece em Rom.13.1-7.


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nascer de mãe virgem
João Laurindo de Souza Netto


Todas as culturas manifestaram sempre um profundo horror à esterilidade, quer fosse da natureza quer das mulheres, já que suas precárias formas de existência _ dominadas pelas guerras e enfermidades que dizimavam homens e rebanhos, pelas calamidades da natureza que destruíam as colheitas e, também, pelas insalubres condições de vida que provocavam elevada mortalidade, sobretudo infantil _ lhes haviam feito associar indelevelmente reprodução com sobrevivência.

Desde os primeiros florescimentos culturais do paleolítico superior, esta crença levou a pensar que a fecundidade era uma prova clara da amizade dos deuses e, por isso, realizavam freqüentes sacrifícios aos deuses geradores, os quais, em sua imaginação, teriam o maior poder celestial. Esta é a razão pela qual só foram achadas representações de divindades femininas_ Grandes Mães e deusas da fertilidade, nos jazimentos arqueológicos pertencentes ao período que oscila entre 30.000 e 10.000 a.C.

Dada a evidente incapacidade dos homens para parir e, portanto, para deter o controle da capacidade geradora, a imagem da divindade foi exclusivamente feminina até cerca de 3.500 a.C.; a partir daí, devido a um conjunto de mudanças sócio-políticas e econômicas, a imagem do Deus varão se apropriou da atribuição geradora da deusa e relegou esta ao papel de mãe, esposa ou amante do deus masculino para, finalmente, em uma última redefinição do papel que representava, reduzi-la ao de deusa virgem. Este processo, básico e complexo, permite entender melhor nossa cultura atual.

O horror à esterilidade lançou as culturas antigas ao processo de gerar mitos, crenças e ritos, carregados com um pretenso poder de exorcizar tão terrível castigo divino. Ao mesmo tempo, porém, foram desenvolvidos costumes sexuais que poderiam ser tomados como excessivos, inclusive para a mentalidade mais liberal da atualidade. Este é o motivo porque no Antigo testamento são abundantes as histórias sexuais truculentas. Assim, Sara, estéril, lançou seu marido Abraão aos braços da escrava egípcia Agar, Gen. 16.1-2:
“ Ora Sara, mulher de Abraão, não tinha filhos: mas como tinha uma escrava egipciana, chamada Agar, disse a seu marido: Bem vês que o Senhor me fez estéril, e que eu não posso ter filhos. Toma pois a minha escrava, a ver se ao menos por ela posso ter filhos”. Nacor, irmão de Abraão, teve muitos filhos com sua concubina Roma, conforme Gen. 22.24:
“ Uma concubina, chamada Roma, deu-lhe (a Nacor) também estes outros quatro filhos: Tebéia, Gãao, Taás e Maaca.”
As duas filhas de Lot embriagaram seu pai para ter filhos com ele, conforme Gen.19.31-32:
“ Então disse a mais velha para a mais moça: Nosso pai está velho, e na terra não ficou homem algum com quem possamos casar, segundo o costume de todos os países. Demos pois a beber vinho a nosso pai, e embebedemo-lo e durmamos com ele para que ele nos dê filhos”.
Jacó se casou ao mesmo tempo com as irmãs Raquel e Lia, que ao se revelarem estéreis, facilitaram a seu marido suas escravas Bala e Zelfa para que gerasse filhos com elas, Gen 30.1:
“ Ora Raquel vendo que era infecunda, teve inveja a sua irmã, e disse a seu marido: Dá-me filhos senão morrerei. Prosseguiu Raquel: Eu tenho minha criada Bala: toma a ela, para que ela me dê filhos... Lia vendo que tinha cessado de ter filhos, deu também a seu marido sua escrava Zelfa, a qual concebeu e deu à luz um filho”.

Tamar se casou sucessivamente com os irmãos Er e Onan, filhos de Judá, porém ao ficar viúva sem ter descendência, temendo ser acusada de esterilidade, disfarçou-se e teve assim dois filhos de seu sogro, Gen 38.14-18:
“ Tendo-se dito a Tamar que Judá seu sogro ia a Tanas fazer tosquiar suas ovelhas: largou ela seus vestidos de viúva, cobriu-se com um grande véu, e em traje disfarçado se assentou numa encruzilhada do caminho que guia para Tanas: porque achando-se Sela, filho de Judá, em idade de casar, Judá não lho tinha dado por marido. Judá tendo-a visto, imaginou que era alguma mulher de má vida... Tendo-se pois ajuntado com Judá uma só vez, concebeu dele a mulher”.
Elcana substituiu Ana, sua esposa, estéril, por Fenena, ISam.1.2:
“ Houve um homem efrateu de Remataim Sofim do monte de Efraim, cujo nome era Elcana, filho de Jeroboão, filho de Eliu, filho de Tou, filho de Suf. E teve duas mulheres, uma por nome de Ana, e outra por nome Fenena. E Fenena tinha filhos: Ana porém não os tinha”.
Posteriormente, por ato divino, Ana deu à luz Samuel, I Sam.1.19-20:
“ E Elcana conheceu a sua mulher Ana: e o Senhor se lembrou dela. E sucedeu que passado o círculo dos dias, concebeu Ana, e pariu um filho, a quem deu o nome de Samuel, porque o tinha pedido ao Senhor”.

Com o desenvolvimentos dos cultos destinados à veneração da fertilidade, surgiram, de maneira natural, as lendas das intervenções divinas reparadoras. Dado que para fazer parir uma mulher estéril seria necessário que houvesse uma intermediação divina direta, não se requereu demasiada imaginação para considerar o primeiro filho de mulher estéril como um eleito de Deus. O chamado “sinal divino” seria dado através da “anunciação”, em que um ser celestial, em sonhos ou diretamente, anunciava a concepção milagrosa. Os relatos de anunciações à mães de grandes personagens aparecem em todas as culturas antigas do mundo.

Na China, são prototípicas as anunciações das nascimentos de Fu-Hsi e de Chin-Nung. Fu-Hsi foi o primeiro dos grandes imperadores lendários, denominado o “Adão da China”. Teria outorgado a seu povo suas leis e os rituais do matrimônio. Chin-Nung, segundo imperador dos tempos mitológicos, foi o continuador da obra civilizadora de seu predecessor; figura no panteão taoísta como patrono da Agricultura e deus da Medicina.

No Japão, é relatada a anunciação à mãe de Sotoktais; na Irlanda, à mãe de Stanta (encarnação do deus Lug); na Índia, à de Vixenu, cultuado como deus supremo, representando a força restauradora e preservadora; no México, à de Quetzalcoatl, um dos principais deuses astecas, considerado o criador de toda a civilização mexicana, identificado como Kukulkã, deus dos maias; na Grécia, à de Apolônio de Tiana, considerado a encarnação do deus Proteu, divindade do mar que tinha o poder de adivinhar o futuro;na Pérsia, à de Zoroastro, reformador religioso do masdeísmo, cujo nascimento e vida foram assinalados por maravilhas; no Egito, às mães dos faraós, sendo que no templo de Luxor pode-se ver a representação de Thot, identificado pelos gregos como Hermes e pelos romanos como Mercúrio, o mensageiro dos deuses, anunciado à rainha Maud sua futura maternidade pela graça do deus supremo Amon.

Como regra geral, nos relatos mais antigos, quando o personagem anunciado era considerado de grandeza elevada, a mãe era sempre fecundada pelo deus mediante algum procedimento milagroso, confirmando assim o mito da concepção virginal.
Este tipo de lendas pagãs de anunciação, que poderia estender-se longamente, está também presente na Bíblia, em vários relatos. Assim em Juízes 13.2-5, é descrito o nascimento milagroso de Sansão; em Lc.1.5-16, o de João Batista; em I Sam.1.19-20, o de Samuel, filho de Ana, já mencionado anteriormente. Culminaram com sua adaptação, bastante tardia, à anunciação, pelo anjo Gabriel, do nascimento de Jesus, Lc.1.26-33.

Como exemplo mais detalhado de uma lenda de anunciação, pode-se citar a concepção do faraó Amenofis III (1402-1364 a.C.), relatado nos hieróglifos tebanos: o deus Thot anuncia à rainha virgem Mutemuia, esposa do faraó Tutmés IV, que dará à luz um filho, que será o futuro faraó Amenofis III; o deus Knef (uma representação do deus Amon atuando como força criadora, que teria sua equivalência posteriormente no Espírito Santo cristão) e a deusa Hator (representação da natureza e figura que presidia os processos de magia) colocam na boca da rainha o sinal da vida, uma cruz, que dará vida ao futuro menino. Este relato mítico egípcio, como todos os seus demais equivalentes pagãos, é mais ornamentado que o cristão, porém todo o essencial é muito semelhante.

O expoente dos relatos escritos antigos que se conhece é a lenda caldéia da concepção do grande rei da Babilônia Gilgamesh (c.2650 a.C.), nascido da filha virgem do rei Sakharos, encerrada por este em uma torre, para evitar o oráculo ameaçador, porém fecundada pelo deus supremo Shamash, que chegou a ela em forma de raios de sol.

A mesma narração descreve o nascimento do herói grego Perseu, nascido de Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos, que a encerrou em uma câmara subterrânea de bronze para impossibilitar que se cumprisse a profecia, então corrente, de que seria vinculada a Zeus. Este deus, porém, tomando a forma de chuva dourada, desceu por uma pequena abertura da prisão e fecundou a virgem.

O famoso fundador do império mongol Gengis Khan foi, segundo a lenda, descendente de um dos três gêmeos havidos pela virgem Alankav, grávida de trigêmeos por um resplendor que percorreu todo o seu corpo. Todos os grandes personagens, quer fossem reis, sábios _ como por exemplo Pitágoras (570-490 a.C.) _ ou aqueles que se tornaram o centro de uma grande religião e que acabaram sendo adorados como “filhos de Deus”, Buda, Krishna, Confúcio, Lao-Tsé, foram mitificados para a posteridade como filhos de uma virgem. Jesus, que nasceu muito depois deles, ainda que desempenhando um papel semelhante, não iria ser menos mitificado. Dessa forma, budismo, hinduísmo, confucionismo, taoísmo, e também o cristianismo, tornaram-se marcados pelo selo indelével de haver sido resultado da obra de um “filho do Céu”, encarnado através do acesso direto e sobrenatural de Deus ao ventre de uma virgem especialmente apropriada e escolhida.

A anunciação do nascimento de Jesus é descrita em Lc.1.26-35:
“E estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando pois o anjo onde ela estava, disse-lhe: Deus te salve, cheia de graça! O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres. Ela quando o ouviu, turbou-se do seu falar, e discorria pensativa que saudação seria esta. Então o anjo lhe disse: Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi: e reinará eternamente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim. E disse Maria ao anjo: Como se fará isso, pois eu não conheço varão? E respondendo, o anjo lhe disse: O espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá da sua sombra”.
Mateus apresenta uma versão algo diferente, mas, contra toda expectativa, Marcos e João não fazem qualquer citação, embora este seja um acontecimento considerado sobrenatural e fundamental para a doutrina católica. Parece óbvio que tanto Mateus como Lucas, que não se conheceram e que escreveram seus evangelhos em terras diferentes, Egito e Roma respectivamente, adornaram seus relatos sobre Jesus inspirando-se em lendas já existentes, mas que gozavam de diferentes prestígios em um lugar e outro; por isso Mateus coloriu de orientalismo popular o nascimento de Jesus, enquanto que Lucas procurou adaptar sua narrativa às tradições míticas mais correntes na capital do império.

Na maioria de relatos sobre nascimentos de deuses ou de heróis, se faz menção ao aparecimento de estrelas ou outros sinais celestes, que anunciam a qualidade sobrenatural do recém-nascido. Assim, na lenda de Buda, fala-se de uma milagrosa luz celeste que anunciou a sua concepção; no Bhagavata-Purana há referência a um meteoro que, por seu trajeto luminoso, anunciou o nascimento de Krishna. No evangelho de Mateus, podemos ler o único relato neotestamentário que fala da “Estrela do Natal”, Mt.2.1-2:
“Tendo nascido Jesus em Belém de Judá, em tempo do rei Heródes, eis que vieram do Oriente uns magos a Jerusalém, dizendo: onde está o rei dos judeus que é nascido? Porque nós vimos no Oriente a sua estrela: e viemos adorá-lo.”
E em Mateus 2.9., temos ainda:
“Eles, tendo ouvido as palavras do rei, partiram; e logo a estrela, que tinham visto no Oriente, apareceu, indo adiante deles, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino.”

No Evangelho citado se aplica uma prática, habitual entre os cristãos dos primeiros séculos, que consiste em dar por verdadeiro qualquer fato procedente da tradição, que pudesse ser relacionado com algum texto bíblico que anunciasse sua realização; esta forma de “autenticação” não só levou a tirar do contexto dezenas de frases supostamente proféticas, mas também forçou a invenção de acontecimentos para validar o que com anterioridade considerava-se serem profecias. Assim, Mateus, com sua narração, dá forma material e carrega de sentido como “profecia messiânica” a uma só dentre as muitas frases inocentes e matafóricas, pronunciadas, ao estilo oracular, por Balaam, filho de Bôer, em Bamot Baal, conforme Num.24.17:
“ Eu o verei, mas não agora: eu o contemplarei, mas não de perto. Nascerá uma estrela de Jacó, e levantar-se-á uma vara de Israel.”

De outra parte, a presença dos “magos” no relato de Mateus _ os quais não aparecem em nenhum outro texto do Novo Testamento_ traz outra pista para ratificar que a origem da “Estrêla do Natal” deve ser buscada no contexto pagão de adoração dos astros, que existia ainda no substrato de muitas lendas dadas como verdadeiras por essa época. Na tradição egípcia, por exemplo, era considerada a aparição da estrela Sotis (Sírius) como anúncio do nascimento anual de Osíris (materializado pela enchente do Nilo); na Pérsia antiga, os magos e sacerdotes já tinham o costume de oferecer a Ahura-Mazda os presentes de ouro, incenso e mirra, citados em MT.2.11.

Resulta curioso que o anjo do senhor, citado em Lc.2.8-14, não orientasse os pastores com referência à estrêla brilhante que, segundo Mateus, estava parada sobre o lugar onde repousava o menino. Também resulta estranho, que os três reis magos não sejam mencionados por Lucas, nem sejam tomados como testemunhas e partícipes do glorioso concerto dado pelas hostes celestiais aos pastores, Lc.2.8-14:
“ Ora, naquela mesma comarca havia uns pastores que vigiavam e revezavam entre si as vigílias da noite para guardarem o seu rebanho. E eis que se apresentou junto deles um anjo do Senhor, e com uma luz divina os cercou de refulgente luz, e tiveram grande temor. Porém o anjo lhes disse: Não temais: porque eis aqui vos venho anunciar um grande gozo, que o será para todo o povo! E é que hoje vos nasceu na cidade de Davi o Salvador, que é o Cristo Senhor. E este é o sinal que vo-lo fará conhecer: Achareis um menino envolto em panos, e posto em uma mangedoura. E subitamente apareceu com o anjo uma multidão numerosa da milícia celestial, que louvavam a Deus”.

A narração de Lucas já tinha antecedentes bem conhecidos em todo o mundo antigo, quando o evangelista incorporou um tipo clássico de mito ao personagem de Jesus. Segundo o texto de Lalitavistara, quando nasceu Buda (565 a.C.) “a terra tremeu, rajadas de chuvas perfumadas e de flores de lótus caíram de um céu sem nuvens, enquanto os “devas” _ divindades resplandescentes, equivalentes aos anjos e arcanjos católicos _ acompanhados de seus instrumentos entoavam cânticos, enchendo o espaço com seus sons:
“Hoje nasceu Bodhisattva sobre a terra para dar paz e alegria aos homens e aos “devas”, para expandir a luz pelos rincões obscuros e para devolver a vista aos cegos.”

No momento do nascimento de Krishna, todos os “devas” deixaram seus carros no céu e, tornando-se invisíveis, foram até a casa de Mathura, na qual estava para nascer o menino divino; unindo suas mãos, puseram-se a recitar os Vedas e a cantar louvores em honra de Krishna e, segundo a lenda, ainda que ninguém os tenha visto, todo mundo pode ouvir seus cantos. Depois do nascimento, todos os pastores da região foram levar-lhe presentes. Durante o nascimento de Confúcio (551 a.C.), apareceram dragões no ar, em cima de sua casa, e cinco veneráveis anciões, que representavam os cinco planetas então conhecidos, entraram na habitação do parto para honrar o recém nascido; uma música harmoniosa encheu os ares e uma voz proveniente do céu exclamou: “Este é o filho do céu, o divino infante, e é por ele que a terra vibra em melodioso acorde”.

A tradição de animais adoradores, tão querida pela Igreja e por seus fiéis, é descrita no evangelho apócrifo denominado Pseudo-Mateus, onde se lê:
“ No terceiro dia depois do nascimento do Senhor, Maria saiu da gruta e entrou num estábulo, ali depositando o menino no presépio (mangedoura) e o boi e o asno o adoravam. E então se cumpriu o que havia anunciado Isaías”.
Esta cena, contudo, não é descrita em nenhum dos Evangelhos canônicos. Com o passar dos séculos, durante o desenvolvimento dos relatos dos “filhos do Céu”, acreditou-se ser oportuno insertar algum episódio de exposição aos animais para rememorar a ancestral tradição agrária e, com isso, poder assinalar que ficava comprovada a paternidade divina do personagem descrito.

Os primeiros cristãos limitaram-se a recolher este tipo de episódio de alguma das muitas tradições que circulavam nessa época, acrescentando-o ao aluvião de traços míticos pagãos que haviam empregado para configurar a personificação divina de Jesus. Porém, como era de seu costume, certificaram a verdade do fato valendo-se dos profetas. Revisaram a Bíblia _ como cristãos helenizados recorreram à tradução grega, “Bíblia dos Setenta” _ e encontraram um versículo fascinante em Habacuc, onde, em Hab.3.2., se diz:
“Senhor, eu ouvi a tua palavra e temi. Senhor, pelo que toca à tua obra, vivifica-a cumprindo-a no meio dos anos. No meio dos anos, tu a farás notória”.

O fato de haver partido de um erro, que confundia manifestar-se em meio dos tempos, com fazê-lo em meio das bestas, para justificar a exposição aos animais, agravou-se até o absurdo quando relacionaram o que jamais disse Habacuc com o que nunca pretendeu dizer Isaías, do qual tomou-se a primeira metade de uma frase, Is.1.3:
“Conheceu o boi a seu possuidor, e o jumento o presépio de seu dono: mas Israel não me conheceu, e o meu povo não entendeu. Ai da nação pecadora...”
O sentido da frase completa, referindo-se a Israel, resulta óbvio, porém para a fé cristã foi a profecia que garantiu a veracidade de suas crenças natalinas.

Também sobrevivem claros traços pagãos na data adotada pela Igreja para comemorar o nascimento de Cristo. A eleição do dia 25 de dezembro não obedeceu, nem sequer, a data em que nasceu o Jesus de Nazaré histórico. O dia de Natal não foi adotado pela Igreja até o século IV (entre os anos 354 e 360). Foi fixado pelo papa Libério com a finalidade de cristianizar o então muito popular culto ao “Sol Invictus”. No Natal, solstício de inverno no hemisfério norte, o sol alcança o seu zênite no ponto mais baixo, ou nadir, e a partir daí o dia começa a aumentar de duração progressivamente, até o solstício do verão, em 21 de Junho (hemisfério norte). Era, pois, para os antigos, o autêntico nascimento do Sol e, com ele, toda a Natureza começava também a despertar. O dia 25 de dezembro era também o natalício de deuses solares jovens como Mitra e Dionísio. O predomínio agrário dentro da esfera de influência do cristianismo se manteve até que o desenvolvimento industrial levou ao olvido os mitos ancestrais. Um olvido que, finalmente, traduziu-se na celebração comercializada que caracteriza o Natal nas sociedades desenvolvidas.

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do judaísmo ao cristianismo
João Laurindo De Souza Netto


Andava Paulo por terras do Mediterrâneo oriental, ocupado na tarefa de atrair adeptos para o cristianismo, nascente entre os judeus da diáspora, quando algo sucedeu que acelerou seus planos de expansão universal. Tal fato é narrado nos “ Atos dos Apóstolos “ 11.19-26 :

“ E na verdade aqueles que tenham sido dispersos pela tribulação, que tinha acontecido por causa de Estevão, chegaram até Fenícia, Chipre, e Antioquia, não pregando a ninguém a palavra, a não ser aos judeus. E entre eles havia alguns de Chipre e Cirene que, no entanto, quando entraram em Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando-lhes o Senhor Jesus. E a mão do Senhor era com eles, e um grande número de crentes se converteu ao Senhor. E chegou a fama destas coisas aos ouvidos da Igreja, que estava em Jerusalém, e então enviaram Barnabé a Antioquia o qual quando lá chegou e viu a graça de Deus, se alegrou: e exortava a todos a perseverar no senhor pelo propósito do seu coração. Porque era um homem bom e cheio do Espírito Santo. E se uniu ao Senhor uma grande multidão. E dali partiu Barnabé para Tarso em busca de Saulo, e tendo-o achado o levou a Antioquia. Estiveram juntos durante um ano inteiro nesta Igreja e doutrinaram uma grande multidão.Em Antioquia foi onde pela primeira vez os discípulos receberam o nome de cristãos.”

Era, pois, ali que estava efetivamente nascendo a Igreja, porque foi ali onde Paulo viveu várias circunstâncias que incidiam em seus propósitos de criação de um grande centro de poder espiritual. Em primeiro lugar, porque a doutrina que estava transmitindo penetrava nas intenções dos gentios pagãos, pelo menos, com o mesmo entusiasmo que entre os judeus e talvez, até mais. Em segundo lugar, porque se o número de conversos entre os gentios não era ainda importante, isso se devia a que as pregações dos que tinham a seu cargo aquela missão estavam profundamente influídas pela tradição litúrgica judia, que nos novos ensinamentos havia sido respeitada em sua totalidade, exigindo-se inclusive dos novos adeptos o estrito cumprimento da lei mosaica.

Os preceitos emanados do judaísmo exigiam o óbolo ( donativo ) ao templo, o rito da circuncisão, a celebração do sábado e o uso estrito das comidas rituais. Tudo isso fazia parte da essência do judaísmo, que os primeiros propagandistas cristãos, como judeus que eram, respeitavam escrupulosamente.

A alternativa que se apresentava para Paulo e que seus seguidores imediatamente deixaram a seu critério, ansiosos como estavam de expandir aqueles novos ensinamentos entre um número crescente de fiéis, respondia a uma confirmação quase matemática: quanto mais se apartasse a doutrina da estrita obediência à lei mosaica, maior seria o número de adeptos que se poderiam recrutar e maior seria também, portanto, o grau de influência que poderiam chegar a exercer no âmbito do Império romano. Assim foi como começou a cair a “ Barreira da Lei “ na doutrina cristã.sob a direta influência de Paulo, inclusive afrontando firmemente a opinião contrária inicial dos apóstolos e da comunidade que havia permanecido em Israel, cujos membros se consideravam a si mesmos como judeus sinceros, ainda que fossem fiéis devotos dos ensinamentos de Jesus. Inclusive o próprio Pedro, quando se decidiu a viajar a Antioquia para comprovar os espetaculares resultados da missão de Paulo e Barnabé, teve que aceitar, se bem que a contragosto, a progressiva aproximação aos pagãos e, por conseguinte, o abandono, imposto por Paulo, ao ritual tradicional judaico.

Para Paulo, a opção era clara, não só pelo número potencial de conversos, mas sobretudo, porque, frente ao coletivo de judeus disseminados por todo o Império Romano, quer cumprissem ou não a liturgia tradicional, o resto daquele extenso mundo se dividia em uma quantidade imensa de crenças distintas, a maior parte das quais, começando pela religião olímpica grega tradicional, considerada como oficial, apenas eram praticadas com autêntica devoção por uma pequena parte dos fiéis tradicionais. Havia que ter em conta também, que boa parte dos pagãos era inclusive constituída por inimigos mais ou menos declarados dos judeus, em virtude da vontade de auto-segregação destes e por sua pertinaz negativa em aceitar e assumir os costumes que os rodeavam. Assim a aceitação da mudança, e a separação radical das raízes judias originárias, era para Paulo e seus seguidores incondicionais uma vantagem a mais a ser explorada, porque podia simplificar um incremento considerável no número de conversos.

Para os potenciais adeptos procedentes do paganismo, uma coisa era abraçar as propostas de Paulo, reconhecendo o caráter salvífico do personagem que, ainda que fosse judeu, dava seu nome à nova Igreja, e outra, muito diferente, ter que aceitar toda uma série de hábitos, obrigações e ritos que não só eram totalmente alheios ao resto do mundo mediterrâneo, mas que , também, em grande medida, exigiam o abandono de suas próprias estruturas vitais. Paulo tinha diante de si todo um império de adeptos latentes, enquanto que, mantendo a tradição judia, seu campo de ação se reduzia a, mais ou menos, sete por cento da população do Império.

Mas a separação da Igreja recém-criada, de suas raízes judias, não se limitou a uma mudança de rumo. Foi uma autêntica ruptura que implicou da noite para dia, uma satanização absoluta e imisericórdia de tudo quanto se referisse a hebreu, e um saque na tradição do Livro, negando que até o dia anterior os judeus haviam sido considerados o Povo Eleito, com toda a bagagem cultural e religiosa da qual o cristianismo se tinha alimentado durante todo seu processo constitutivo. Desde aquele momento, os cristãos passavam a considerar-se a si mesmos como o autêntico “ Povo de Israel “ e, com tal denominação, aludiam explicitamente a toda humanidade. Inclusive, apoderaram-se dos textos bíblicos – dos quais não podiam prescindir por carecer de qualquer outra tradição – proclamando a destra e a sinistra que os judeus jamais haviam chegado sequer a entendê-los nem, é claro, a saber interpretá-los em sua justa dimensão.

Todavia, no século II, Justino, um dos padres das Igreja, considerado o mais antigo teólogo cristão, exclamaria: “ vossas escrituras, ou melhor dito, não vossas mas nossas!”, isso após cem anos de negação aos judeus que eram, inclusive, o pão e o sal de sua própria tradição. Assim a nova Igreja recém instituída começou a saquear o que lhe convinha, recusou o quanto quis – pouco, porque necessitava daquela tradição, sobre a qual havia baseado a divindade de seu Messias - e, inclusive, para justificar a natureza revolucionária de Jesus Cristo, foram adjudicados episódios tais como a suposta cristandade prematura dos Macabeus ( 166 A.C), negando que tivessem lutado e morrido pela liberdade de um povo que, da noite para o dia, havia sido definitivamente satanizado e convertido em culpado e assassino de seu Salvador, quando todo mundo,cristãos incluídos, sabia muito bem que havia sido vítima de justiça romana, a única que incluía em suas execuções a morte por crucificação.

Foi o início do que se chamaria a “ Interpretação Cristã “, que desembocaria na conclusão de que todo o Antigo Testamento não era senão, o anúncio glorioso da doutrina que o cristianismo vinha a implantar em todo o mundo, começando pelas terras do Império Romano. Para ter probabilidade de êxito, os cristãos deviam cooptar a autoridade imperial, e para consegui-lo, Roma devia ser isenta de culpa no episódio da morte do Salvador. O modo de conseguir isso não era outro senão transferir aos judeus a responsabilidade daquele martírio e declarar abertamente anátema toda a tradição judia. Deste modo, a nova Igreja, fundada e impulsionada por judeus, que renegavam sua primitiva disposição de ânimo, suprimiu de suas festividades o sábado, substituindo-o pela festa dominical, consagrada ao Sol, e aboliu o rito da circuncisão, substituindo-o-pelo batismo, menos doloroso e, por essa mesma circunstância, mais próprio para ser aceito pelos eventuais adeptos. Assim, através da transformação da mensagem de Jesus em religião universal, disposta a assentar-se “ urbi et orbi “ inaugurou-se o antijudaísmo mais fanático e político concebível, que haveria de converter-se, envolto em uma lógica cruel e imisericórdia, em um dos paradigmas da história do cristianismo.

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do jesus da história ao cristo da fé
João Laurindo de Souza Netto

Quando Paulo, depois da morte de Jesus, constrói uma mensagem cristã, que é essencialmente sua criação pessoal, produz-se um corte brusco entre o Jesus “antecrucem” e o Jesus “postcrucem”. Os Evangelhos, já indiretamente influenciados pela ideologia paulina, ignoram a fronteira que a crucificação haveria de operar, até o ponto de alterar essencialmente a figura histórica de Jesus.

Os temas da messianidade e da ressurreição de Jesus se tornam, neste contexto, em chaves da construção teológica da fé cristã. Somente a confirmação de Jesus como Messias, porque triunfou sobre a morte, poderia desalojar da desoladora cena do martírio na cruz a lancinante impressão de fracasso e frustração. Ao desmoronar-se a esperança messiânica em primeira fase, por assim dizer, segundo a primeira crença dos discípulos, forjaram-se os instrumentos teológicos para restaurá-la numa segunda fase: pelo expediente da imediata “parousia” (2a. vinda) de Cristo, já não como Messiais sofredor e humilhado, mas como Messias triunfante, que vem em poder e glória para presidir o juízo e inaugurar o Reino sem mais tardar.

A questão da messianidade de Jesus, central para o fundamento da fé cristã, não pôde alcançar uma solução unânime porque os relatos neotestamentários teceram uma inextricável rede de ambigüidades e contradições. Contudo, existem abundantes elementos nas narrações sinópticas para alcançar algumas conclusões suficientes na gênese da nova fé postpascoal sobre o magistério e ação de Jesus. Parece evidente que a convicção de que Jesus era já em vida o Messias designado para instaurar o Reino, estava firmemente arraigada no coração de seus próprios discípulos e que havia alcançado considerável difusão entre os seus contemporâneos.

Se se analisa sem preconceitos, resulta estritamente inconcebível que o que se apresentará depois como o elemento distintivo da pregação de Jesus, sua suposta condição de Messias sofredor e humilhado, tivesse passado inadvertida e tivesse escapado à percepção daqueles que o seguiam e participavam de seu ministério carismático. Conclui-se pois, sobre a inexistência de uma predição por parte de Jesus quanto à sua paixão e morte. A firme crença de Jesus em que o Reino irromperia pela ação milagrosa de Deus é evidente que jamais o abandonou até o último instante. Como Profeta, o martírio seria possível e inclusive paradigmático. Como Messias, o martírio representava uma contradição à pretensão de messianidade. Estamos pois, em presença de um artifício teológico, do gênero dos “vacticínia ex eventu”, sobre o qual se edifica todo o Evangelho de Marcos, que será o modelo de seus continuadores Mateus e Lucas. O famoso segredo messiânico, designação clássica com que se conhece o artifício de Marcos em Mc. 8.27 é a coluna vertebral da cristologia da Igreja:

“E saiu Jesus com seus discípulos pelas aldeias de Casaréia de Felipe; e perguntava pelo caminho a seus discípulos, dizendo-lhes: Quem dizem os homens que sou eu? Eles lhe responderam dizendo: uns dizem que João Batista, outros Elias, e outros como um dos profetas. Então lhes disse Jesus: E vós outros quem dizeis que sou eu? Respondendo-lhe Pedro lhe disse: Tu és o Cristo (Messias). E Jesus lhes proibiu com ameaças que a ninguém dissessem isto dele”.

Para captar o sentido real e a verdadeira função teológica do segredo messiânico no relato de Marcos é necessário sublinhar que o artifício está indissoluvelmente articulado com o propósito de introduzir o elemento diferencial de uma nova messianidade, isto é, a condição sofredora e humilhada de Jesus como Messias, e sua função expiatória e propiciatória, que constituem a essência do segredo como “vaticinium ex eventu”. O assombro e a incredulidade dos discípulos ante as supostas predições de paixão e morte são prova concludente da inverossimilhança do recurso apologético dos redatores sinópticos, porque a marca de autenticidade de um Messias era o triunfo de seu poder, sua capacidade, através da ação do Altíssimo, de estabelecer o Reino prometido. Um Messias humilhado e escarnecido não era o Messias mas um pretendente não efetivo. De fato, em Mc.16: “não acreditaram”; “repreendeu-os por sua incredulidade e dureza de coração, pois não haviam acreditado que o haviam visto ressuscitado dos mortos”...Realmente, a paixão, a cruz e a ressurreição não estavam no programa messiânico de Jesus e dos membros do seu séqüito.

Depois do martírio do Gólgota, o único que mudou foi a teologia, porque a especulação dogmática pode fazer concordar tudo pela técnica da ambigüidade.

A fé na ressurreição, decisiva para o destino do cristianismo, teria que ter nascido em lugar diferente de Jerusalém, em data relativamente tardia, impulsionada pelas comunidades helenizadas da diáspora siríaca Antioquia, Damasco_ já pelos tempos de Paulo converso, pois a comunidade originária de Jerusalém nem experimentou nem conheceu a ressurreição de Jesus, nem a correspondente fé na mesma.

Jesus jamais poderia considerar-se Filho de Deus no sentido metafísico de coessencialidade e coeternidade divinas. Jamais admitiu um “mais além” onde o aguilhão material da fome e da sede_ a questão fundamental de justiça no mundo_ se diluísse retoricamente em um evanescente reino celestial de glórias e harmonia no estilo eclesiástico. Foi fiel até à morte à natureza radicalmente unitária do existente, estranho a todo corte entre o “acima” e o “abaixo”. Sua mirada, como judeu que era, se moveu sempre na direção do “antes” e “depois”, isto é, no sentido da história. A Igreja cristã, em seu trânsito pelas comunidades helenísticas foi cancelando a linha do horizonte hebreu do magistério e do ministério de Jesus, que opera agora a serviço da nova teologia das narrações sinópticas, até sua total desnaturalização.

Com Paulo e seus seguidores, sobretudo os sinópticos, a mensagem revolucionária, de alcance político-religioso de Jesus, começa a transmutar-se lentamente em uma doutrina de espera de um “reino celeste”, que cada cristão alcança mediante seu renascimento individual, na fé em um Jesus Cristo preexistente e ressuscitado, que já se havia manifestado como Messias humilhado, porém que retornaria em poder e glória em sua “parousia”. No ínterim, que para a geração apostólica deveria ser brevíssimo, os fiéis se consagrariam à adoração ritual de um fato passado, em si mesmo salvífico: a morte e ressurreição de Jesus, Filho de Deus.

Com anterioridade de quase duas décadas à redação dos sinópticos, Paulo constrói sua “teologia crucis” em imediata vinculação com a idéia de um ser divino preexistente, que se encarna e se sacrifica em uma função mítica de salvação universal para expiar os pecados da humanidade, resgatá-la para Deus e reconciliar com ele toda a criação.

Este mito grandioso, e ingenuamente inverossímil, pertence ao gênero das fabulações que sustentam os códigos de tabus que se supõe podem proteger contra a morte, matriz do sentimento religioso e das especulações intermináveis, nascidas ao calor do “terror mortis”.

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o cristianismo de paulo de tarso
João Laurindo de Souza Netto


Do relato de Adão e Eva comendo o fruto proibido surgiu, no judaísmo tardio, e passou depois ao cristianismo, a doutrina de que este pecado segue atuando em toda a humanidade, embora tal doutrina tenha sido desconhecida por Jesus de Nazaré. A verdade é que o judaísmo não assumiu a doutrina da culpa coletiva hereditária e, neste sentido, Jesus como judeu que era, jamais acolheu as implicações do mito da “queda” de Adão. O pecado original, na realidade, não desempenha papel algum no Antigo Testamento, salvo na narração do Gênesis e na Aliança com Israel no Sinai, onde Jeová se revela “como um Deus forte e zeloso, que castiga os filhos da culpa dos pais até a 3° e 4° gerações (Êxodo 20.5)”.

O trânsito de uma sociedade nômade, fechada, para uma sociedade de caráter urbano, no entanto, conduz a uma profunda evolução da consciência moral, que vai determinar a individualização da culpa: cada um é responsável só por seus próprios atos. Assim, em Deuteronômio 24.16 e em Jeremias 31.30 se estabelece que “cada um não morrerá a não ser pelos seus próprios pecados”. Com isso, “o filho não sofrerá sua parte da culpa do pai e nem o pai da parte do filho” ( Ezequiel 18.1-2 ).

Os Evangelhos ignoram a noção de pecado original. Jesus declara que “é segundo tuas palavras que serás justificado e é segundo tuas palavras que serás condenado” ( Mt. 12.37 ).

No entanto, de acordo com a doutrina estabelecida por Paulo de Tarso, o pecado e, consequentemente, a morte, são conseqüência da desobediência de Adão. Então, para reconciliar Deus com a criatura era preciso um ato compensatório de obediência, que não só reintegrasse os direitos de Deus, mas que apagasse a mancha mortal do pecado original herdado. Em Coríntios 15.21, Paulo estabelece: “tendo vindo a morte por um homem, é também por um homem que deve vir a ressurreição dos mortos “.

Trata-se de uma noção de justiça tão absurda que todo aquele que reflita, mesmo que superficialmente sobre ela, haverá de perguntar-se: como se pode conceber que Deus necessite a morte em sacrifício de Jesus para perdoar os pecados? Como pode exigir este rigor selvagem para uma suposta culpa contraída por herança, sem que os acusados nem sequer a conheçam? Nenhuma mente sã pode dar resposta satisfatória a esta soteriologia mítica e cruel.

Fica então para explicar como e por quê Paulo regressou ao mito do pecado original narrado no Gênesis, quando suas conseqüências éticas já haviam sido superadas pelo pensamento hebreu. O retrocesso, ao assumir esta lenda, condicionou toda a antropologia cristã, pois o dogma eclesiástico da culpa coletiva constitui o pressuposto teológico da encarnação e, também, o eixo da soteriologia dogmática, marcando uma das fronteiras decisivas entre a fé pessoal do Jesus histórico e a fé cristã nascida, sob a inspiração de Paulo, nas comunidades cristãs-helenísticas.

Paulo exerceu o magistério da nova fé, como missionário, durante vários anos _ de catorze a dezessete _ antes de escrever suas “Epístolas” pelos anos 50 d.c. A que parece ser a primeira delas, I Tessalonicenses, pode ter sido redatada no ano 51, o que permite situar sua conversão no ano 36. Após sua visão no caminho de Damasco, diz que iria para a Arábia, de onde, retornaria seguidamente a Damasco. (Gálatas 1.17) e, passados três anos, vai pela primeira vez a Jerusalém para conhecer Pedro. Só depois de quatorze anos volta a Jerusalém “em virtude de uma revelação”, acompanhado de Barnabé e Tito. Resulta assim que transcorreram dezessete anos durante os quais pregou “verdades que lhe foram reveladas” ; “o evangelho pregado por mim não é dos homens, pois eu não o recebi ou aprendi dos homens, mas por revelação de Jesus Cristo” ( Gal. 1.11-12 ).

O que interessa deste breve itinerário cronológico é assinalar que, apesar do esforço de muitos apologistas cristãos para retardar a data da conversão de Paulo e, portanto, fazer depender sua doutrina de elaborações teológicas anteriores, o “apóstolo dos gentios”, iniciou suas especulações religiosas poucos anos depois da morte de Jesus. Aos guardiões da ortodoxia lhes inquieta que um personagem, apesar de genial e criativo, tivesse sido o gerador das linhas da proclamação cristã-helenística, que haveria de alimentar a dogmática eclesiástica, porque este reconhecimento poderia pôr em perigo o desenvolvimento da continuidade do cristianismo.

É, no entanto, razoável concluir que o processo mental criativo de Paulo se inicia a partir do instante de sua conversão, que esteve sem dúvida precedida de uma profunda reflexão teológica baseada na posse de importantes instrumentos de formação bíblica e de informação sobre o panorama religioso das sociedades de sua época e anteriores.

A soteriologia cristã-helenística pregada por Paulo apóia-se na idéia de uma redenção do pecado original, representada como um drama cósmico, ainda que lendariamente situado na história, no qual um personagem de filiação divina restaura para toda a humanidade, a possibilidade de salvação mediante a compensação oferecida ao Pai por seu sacrifício expiatório. Passa-se assim de um Messias judeu a um Salvador ( Soter ) e Senhor ( Kyrios ).

A idéia de que Jesus morreu “a fim de dar sua vida como resgate de muitos” (Mc. 10.45), é uma idéia paulina, em concordância com o que declara Paulo em I Cor. 15.3-4. A parousia ( 2 ° vinda ), depois de sua ressurreição e exaltação aos céus, abriria o Juízo Final como início do Reino escatológico-messiânico. A fé na ressurreição é o sustentáculo desta exegese.

A cristologia judaico-cristã não podia satisfazer a convicção de Paulo, que atuava no contexto helenístico. É de fato significativo que Paulo, no conjunto de seus escritos, não faça referência ao conceito de Servo Sofredor, mencionado por Isaías ( Is. 53 ) que constitui o pilar de sustentação da Igreja judaico-cristã. Assim, diz Paulo em I Coríntios 15.22: “e assim como todos morremos em Adão, assim também todos reviveremos em Cristo”. Paulo iria, pois, transformar o judaico-cristianismo em um “mistério”, conforme as religiões de salvação dos cultos pré-cristãos. Este “mistério” é o da redenção do gênero humano graças ao sacrifício, por substituição, oferecido por Jesus a Deus, a fim de livrar-nos das conseqüências do pecado original.

A pregação de Paulo encontrou receptividade e afinidades entre os conversos dos meios de maior influência helenística. Catalisados pelo gênio criativo de Paulo, surgiram, nesses meios, seguidores que cristalizaram o cristianismo paulino, surgindo daí, uma nítida linha divisória das águas entre a fé judaico-cristã original e a fé judaico-helenística gentia. A nova religião se apóia em uma cristologia totalmente contrária aos antigos costumes. O título Senhor ( Kyrios ), reservado a Deus no judaísmo, agora vem a significar a divindade de Cristo, sua natureza sagrada segundo o sentido que se dá como óbvio no helenismo. Tanto o batismo como a ceia ( eucaristia ), no cristianismo consolidado por Paulo, lançam suas raízes neste “ mistério “ do Deus encarnado, Cristo, por cuja morte e renascimento também os crentes morrem e renascem, como nos cultos mistéricos.

Não é casualidade – nem se deve a sua forma de conversão – que não interessa a Paulo o Jesus histórico, a ponto de que o messianismo do Nazareno tenha ficado totalmente esvaziado do seu significado histórico. Só lhe interessa a redenção universal “ por amor e obediência a Deus “, operada no “ reino dos corações “. A novidade e o êxito da nova religião funda-se na transcendentalização e na transformação ao plano cósmico de fatos ocorridos na Palestina no início do século I. Para Paulo, Cristo teria que ser um personagem histórico que desempenhara a salvação universal pelo desígnio de Deus de encarnar seu Filho em um homem.

Quem se fixar em uma hermenêutica (interpretação) fideísta (de fé) e casuística (conveniente) do Novo Testamento, está condenado a situar-se às margens dos fenômenos históricos, que jamais será capaz de compreender, apesar de toda a sua competência profissional, se a tem. Identificar historicamente os processos ideológicos é totalmente o contrário de ideologizar a investigação histórica: é exatamente desideologizar – e desmitificar se falamos de religiões – a leitura da história.

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igreja e eucaristia
João Laurindo de Souza Netto

Do ponto de vista histórico, o conceito de “igreja” como lugar físico, destinado ao culto divino – equivalente portanto aos templos pagãos – é bastante tardio. No final do século III, como resultado dos intentos anteriores de alcançar uma organização eficaz para o cristianismo, que se expandia em função da tolerância do Império Romano para com a nova religião, começaram a surgir, nas grandes cidades, lugares de reunião destinados à formação religiosa dos fiéis. Tais pontos de encontro eram separados por bairros e orientados por um presbítero – função que até então só podia ser exercida por um bispo. Em Roma, foram denominados “tituli” e em outros lugares “paroikiai”. Deste modo, o culto cristão começou a conceber-se cada vez mais como uma cerimônia pública, diferente dos encontros fechados que caracterizavam o cristianismo inicial.

A partir dos dias de Constantino, começou a produzir-se a metonímia da palavra “igreja”, que passou a designar tanto a comunidade dos crentes – ekklesia – como o local de reunião destes (antes denominado “templum”). Constantino, o maior impulsor do cristianismo e também, por seus interesses de dominação, o maior promotor do distanciamento da doutrina de Jesus, fez erigir igrejas por todo o Império e, como escreveu a Eusébio: “todas elas devem ser dignas do nosso amor ao fausto”. O imperador desviou recursos públicos, ainda que o povo fosse miserável, para que as igrejas fossem construídas com materiais nobres, emitindo ordens aos governadores para que as doações “fossem abundantes, e até mesmo superabundantes”, mandando aumentar “a altura das casas de oração e, também, a planta... sem regatear gastos, recorrendo ao erário imperial quando fosse preciso para cobrir o custo da obra”... A modéstia que caracterizou a atuação de Jesus acabou sendo convertida na ostentação faustosa que chegou até nossos dias.
Segundo a interpretação do teólogo católico Antônio Carmona:
“durante o primeiro milênio a igreja (local) era chamada “verdadeiro corpo de Cristo” e a eucaristia que nela se realizava “corpo místico de Cristo”. A relação do executante era primeiro com o “verdadeiro corpo” e, por meio dele, com o místico. Contudo, ao adquirir o sacerdócio a condição “sagrada”, sua relação com o corpo de Cristo se inverteu: relacionou-se diretamente com a eucaristia, que passou a chamar-se “verdadeiro corpo de Cristo”, ficando para a igreja a denominação de “corpo místico”. Nesta inversão de termos influiu em grande medida a obsessão medieval pelo “milagre eucarístico”, ou seja, pela chamada presença real de Cristo na eucaristia. A “potestade quase mágica” ou “poder” de que se arrogam os sacerdotes para invocar à vontade a suposta presença de Cristo na igreja, não deixa de ser uma presunção carente de qualquer fundamento evangélico”.

Realmente, com relação ao rito da eucaristia, que justifica a existência desses grandiosos espaços físicos conhecidos hoje como igrejas, cabe perguntar: foi Jesus quem instituiu o rito principal da missa? A Igreja Católica assim o mantém, mas a simples leitura dos textos neotestamentários mostra quão distante está a doutrina católica daquilo que se diz nestes textos.

A passagem conhecida como a última ceia de Jesus, na qual ele se reuniu com seus apóstolos, anunciou a traição de Judas e, segundo a Igreja Católica, instituiu a eucaristia, figura nos evangelhos canônicos. No entanto é preciso analisar os textos com cuidado. No evangelho de João, por exemplo, não é mencionada a instituição da eucaristia e os detalhes acerca da ceia são totalmente discordantes com os demais.

O rito eucarístico, em suas diversas formas, é um dos mais velhos atos de culto da antiguidade. Podemos encontrar antecedentes claros deste sacramento da Igreja em diversos cultos egípcios, persas, hindus e gregos.

Entre os hierofantes – sacerdotes possuidores dos segredos da ciência sagrada dos Iniciados nos Mistérios de Elêusis – a eucaristia tinha um significado parecido ao que, séculos depois, viria a ter para os cristãos. Ceres, umas das grandes divindades romanas, identificada com a deusa grega Demeter, representava a fertilidade da terra e a regeneração da vida que brota da semente. Era simbolizada pelo pão, que os fiéis comiam em seus cultos. Dionísio, também conhecido por Baco ou Líber, possuía templos em toda a Grécia; contribuiu para introduzir na religião o sentido do mistério e, em sua honra, eram celebradas as festas chamadas dionísias. Era simbolizado pelo vinho. Dionísio era um deus da categoria dos deuses solares que, em algumas culturas, carregavam a culpa da humanidade, eram mortos por isso, mas ressuscitavam posteriormente.

No culto a Isis, os sacerdotes egípcios repartiam entre os fiéis tortas de trigo sem levedura, que tinham um significado parecido ao da hóstia católica. O “soma”, bebida sagrada que os brâmanes preparavam com o sumo fermentado da planta rara “Asclepias ácida”, correspondia à ambrosia ou néctar dos deuses gregos e, em última análise, ao vinho da eucaristia católica, posto que, em virtude de certas fórmulas sagradas (mantras), a bebida se transubstanciava no próprio deus Brahma.

A custódia, receptáculo de ouro ou prata em que se expõe a hóstia consagrada e que tem, gravado, um sol radiante do qual emanam raios dourados em todas as direções, já existia, com igual forma e função, no culto de Mitra, originário da Pérsia. Nesses ritos, a custódia representava o deus jovem Mitra como força imanente do Sol, concebido como regulador do tempo, iluminador do mundo e agente da vida. Tão igual era o ritual pagão de Mitra e o cristão, que Justino, filósofo e apologista cristão (100-165), em sua I Apologia, quando defende a liturgia cristã, frente à pagã, se vê forçado a inverter a realidade e encobrir o plágio cristão afirmando que “a imitação da qual (eucaristia cristã), o diabo fez o mesmo com os Mistérios de Mitra, pois, como sabeis, eles tomam também um copo de vinho e comem o pão nos sacrifícios iniciados e pronunciam certas palavras sobre isso”. Não deixa de ser inusitado que o diabo instaurasse a eucaristia cristã num culto pagão séculos antes do aparecimento do cristianismo! Segundo a tradição, Mitra nasceu de uma virgem, num 25 de dezembro, em uma gruta, foi adorado por pastores, foi perseguido, fez milagres, foi morto e ressuscitou ao terceiro dia ...

A passagem relativa à ultima ceia de Jesus é descrita em Mt.26.17-29:
“E nos primeiros dias em que se comiam os pães ázimos, vieram ter com Jesus seus discípulos, dizendo: Onde queres tu que preparemos o que se há de comer na Páscoa? E disse Jesus: Ide à cidade de um tal e dizei-lhe: O Mestre diz: O meu tempo está próximo, em tua casa quero celebrar a Páscoa com meus discípulos. E fizeram os discípulos como Jesus lhes havia ordenado, e prepararam a Páscoa. Chegada pois a tarde, pôs-se Jesus à mesa com seus doze discípulos... Estando eles ceando, tomou Jesus o pão e benzeu-o e partiu-o e deu-o a seus discípulos, e disse: Tomai e comei, este é o meu corpo. E tomando o cálice, deu graças: e deu-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue do novo testamento, que será derramado por muitos para remissão dos pecados. Mas digo-vos: que desta hora em diante não beberei mais deste fruto da vide até aquele dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu Pai”.

O texto de Lucas, contudo, é substancialmente diferente, conforme lemos em Lc.22.19-20:
“Também depois de tomar o pão deu graças, e partiu-o, e deu-lho, dizendo: Este é o meu corpo, que se dá por vós: fazei isto em memória de mim. Tomou também da mesma sorte o cálice, depois de cear, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento em meu sangue, que será derramado por vós”.

Em Lucas não aparece a referência pagã à equivalência do pão e do vinho como o corpo e o sangue de Jesus e, ponto fundamental, ele pediu que se recordassem dele – não que se invocasse-o a comparecer fisicamente – fazendo o mesmo ato, levantando seguidamente o cálice – isto é o copo que usou durante a ceia, cheio de “fruto da vide”, Lc.22.18, em sinal de uma nova aliança “em meu sangue”, não “com meu sangue”-; o fato pode ser interpretado como um brinde, similar ao que todos temos feito nas ocasiões solenes, com o qual selou o acordo e a promessa que fez ante seus discípulos, situando seu aval “em meu sangue que é (será) derramado”, não “com meu sangue que estás bebendo no cálice”.

Quanto ao relato de Mateus, cabe ter presente que Jesus e seus apóstolos, como judeus, cumpridores da Lei que eram, estavam celebrando a Páscoa hebréia, uma refeição ritual anual que comemorava a liberação do povo hebreu da escravidão egípcia e, também, a proteção que lhes concedeu Jeová ante a décima e última praga, que supôs a matança de todos os primogênitos do Egito, como se pode ler em Ex.12.21-23:

“Depois chamou Moisés todos os anciões dos filhos de Israel, e disse-lhes: Ide tomar um cordeiro para cada família, e imolai-o. Ensopai um molho de hissopo (planta medicinal) no sangue, que estiver posto no limiar da porta, e borrifai com ele a verga da porta, e das umbreiras. Nenhum de vós saia da porta de sua casa até pela manhã. Porque Jeová passará, ferindo os egípcios: e quando ele vir este sangue sobre a verga das vossas portas, e sobre as suas umbreiras, passará a porta da vossa casa, e não deixará entrar nela o anjo exterminador a ferir-vos”.

Além de outras considerações possíveis, supostamente Jeová não era capaz de conhecer todos os seus, tal como diz a Igreja, e precisava de uma vulgar marca para estar em condições de poder distinguir os seus dos egípcios.

A ceia, de cumprimento obrigatório, é descrita em Êxodo 12.5-11:
“...Um cordeiro sem mancha, macho, e de um ano...Será imolado pela tarde...E esta mesma noite comerão a carne do cordeiro assada no fogo, e pães asmos com leitugas (alfaces) silvestres... Vós o celebrareis de geração em geração com um culto perpétuo, como uma festa solene à honra do Senhor... Guardai este mandamento, como uma lei, que deve ser inviolável para sempre, tanto para vós como para vossos filhos”.
Cada elemento desta ceia pascal tinha um simbolismo concreto para o povo de Israel: o cordeiro sacrificado rememorava o fato de haver-se salvo do terrível juízo de Deus graças à exposição do seu sangue (do cordeiro); o pão ázimo recordava a pressa com que tiveram que fugir do Egito; o sabor amargo das hervas silvestres representava o desagradável período de escravidão passado no Egito. Ante esta mesa e dentro deste ritual judeu esteve Jesus com seus discípulos, e isso obriga a analisar o sentido de suas palavras dentro deste contexto histórico-religiosos tão concreto. Ademais, não existia então outro contexto histórico-religioso. O catolicismo ainda tardaria vários séculos para consolidar-se.

Quando Jesus, segundo o texto de Mateus _ e o de Marcos, que lhe serviu de base _ ofereceu pão e vinho como se fossem seu corpo e seu sangue derramado, não se pode, sensatamente, pensar que os apóstolos tomaram essas palavras literalmente, como fazem os católicos na eucaristia. Evidentemente não aceitaram que esses alimentos ritualizados fossem de verdade o corpo eo sangue de Jesus. Em primeiro lugar porque Jesus estava ali, vivo, junto a eles em corpo inteiro. Em segundo lugar, porque os judeus _ e todos eles eram judeus_ não podiam ingerir qualquer alimento que contivesse sangue. De fato, em At.28-29, temos:

“Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargos do que os necessários, que são estes: a saber: que vos abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos, e do sangue, e da impureza, e das carnes sufocadas ( de afogados), das quais coisas fareis bem de vos guardar”.

Em terceiro lugar porque o próprio Jesus acabou seu discurso dizendo que “não beberei mais deste fruto da vide até o dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu Pai”, isto é, deixou de falar de “meu sangue da aliança” (Novo Testamento) e mencionou expressamente o vinho, o que era em realidade, fixando o brinde seguinte para depois do advento do “reino” _ que Jesus acreditava ser imediato. Por último, porque Jesus, segundo o texto de Lucas _ fazei isto em memória de mim _ apresentou todo o ritual como um ato de comemoração, ou de recordação de sua morte iminente. Do texto evangélico, portanto, não cabe extrair mais sentido do que o de um convite a uma comemoração equivalente à da Páscoa judia que estavam rememorando juntos, ainda que, obviamente, destinada a recordar o momento em que o povo de Israel foi “liberado da escravidão do pecado” por obra de Jesus.

Não é menos certo, porém, que em João 6.53-57 se faz menção a outras palavras de Jesus. Este texto, porém, resulta terrivelmente suspeito, uma vez que contradiz gravemente _ até o absurdo _ o que se mostra de Jesus nos outros documentos neotestamentários.

O Evangelho de João foi escrito tardiamente, e teve grande influência da cultura pagã oriental, na qual era muito comum o cerimonial eucarístico de comer simbolicamente corpo e sangue do deus regenerador. Resulta óbvio, portanto, que esta surpreendente passagem não pode ser mais do que uma criação literária, absolutamente alheia ao espírito de Jesus, ainda que tenha sido muito bem pensada para incitar a adesão ao novo culto de Jesus, divinizado pelas massas gentias, habituadas a esse tipo de crença pagã.
A doutrina atualmente vigente sobre este assunto foi fixada pelo Concílio de Trento (1545-1564) e proclama que a eucaristia não só é um ato comemorativo da crucificação de Jesus ou uma ação de graças _ “eucharistian” significa “dar graças” _ por sua redenção, mas que é, antes de tudo, um sacrifício propiciatório, isto é, que Cristo se converte, por um “milagre”, em uma vítima real oferecida a Deus.

O Papa Pio XI, em sua encíclica “Ad Catholici Sacerdotti (1935)”, reforçou o dogma que a missa era um “sacrifício real” e afirmou que “o sacerdote tem poder sobre o próprio corpo de Jesus Cristo”. Poucos anos depois, em 1947, o Papa Pio XII, em sua encíclica “Mediator Dei”, afirmou que o sacrifício da crucificação é “renovado” pelo sacrifício eucarístico e que “nos altares de nossas igrejas ele (Cristo) se oferece a Si mesmo diariamente para nossa redenção”.

Na Epístola aos Hebreus, Heb.7.26-27, afirma-se com rotundidade:

“ Porque tal pontífice (Cristo) convinha que nos tivéssemos, santo, inocente, imaculado, segregado dos pecadores, e mais elevado que os céus: que não tem necessidade, como os outros sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiramente pelos pecados, depois pelo do povo: porque isto o fez uma só vez oferecendo-se a si mesmo”.

É evidente que bastou oferecer-se a si mesmo “uma só vez”, não todos os dias, tal como proclama necessário a Igreja Católica. Encadear Cristo e a uma função que as próprias escrituras declaram inútil, só pode ter sentido sob duas considerações: coerência mítica e rentabilidade dos rituais de poder e controle.

Coerência mítica implica em que, seguindo o modelo pagão do deus solar jovem, que proporcionou os elementos legendários que transformaram o Jesus histórico no Cristo proclamado, este deve sacrificar-se diariamente para, com seu corpo e sangue, renovar a vida do mundo. Os rituais de muitos cultos a deuses pagãos anteriores a Cristo tinham a mesma função e estrutura, pelo que resulta coerente que os gentios cristanizados, após séculos de práticas pagãs, acabaram por acrescentar também a esta dinâmica ao ritual cristão. De fato, parecia muito natural superpor este ritual a outros do cristianismo primitivo, como a “ceia do Senhor”, que tanto postulou e defendou Paulo.

A busca da máxima rentabilidade dos mecanismos rituais de poder e controle social, primordial em qualquer estrutura religiosa, encontrou sem dúvida um eficaz instrumento quando a Igreja Católica medieval elaborou a doutrina da transubstanciação, que tendo surgido no século IX por proposição de Alamario de Metz, foi devidamente regulamentada pelo Concílio de Trento (1545-1564). Em síntese, afirma que durante a consagração eucarística a substância do pão e a do vinho se transformam respectivamente no corpo e no sangue de Cristo, sem que mude em nada seu aspecto externo.

Na análise mais profunda dos dogmas religiosos fundamentais da Igreja Católica, demasiadas coisas carecem de sentido. Assim, em Mc.16.17, temos:

“E estes sinais seguirão aos que crerem: Expulsarão os demônios em meu nome, falarão novas línguas. Manusearão as serpentes: e se beberem alguma postagem (caldo) mortífera, não lhes fará mal: porão as mãos sobre os enfermos, e sararão”.

Existirá algum crente que possa falar línguas que não estudou, beber veneno ou manusear cobras?...

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jesus
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003

Em um país de fé católica multisecular como o nosso, a questão da existência de Deus não chega a formular-se em sua plenitude, se antes não se dedicar muita atenção à falta de credibilidade histórico-teológica dos fundamentos da fé cristã. A análise crítica desta tradição é de suma importância, na prática, a respeito do debate sobre a existência de Deus.

O Jesus histórico foi seguramente o pregador do movimento messianista que anunciou veementemente a chegada iminente do reino de Deus na terra. Este movimento, imerso na esperança de Israel_ reiterada literária e oralmente por uma dilatada tradição profética vaga e variada_ acreditou cegamente no vaticínio escatológico-messianico como ponto de partida de uma reconversão interior, nas mentes e nos corações, que permitisse a realização plena da lei mosaica nos termos extremos de uma ética de urgência escatológica para as vésperas da iminente instauração do reino. Anunciou a vinda do Messias, e provavelmente chegou a crer ser ele mesmo esse Messias judeu nas últimas semanas de seu magistério público, exigindo de seus seguidores uma confiança sem limites e uma entrega absoluta aos imperativos daquela ética. Acreditou firmemente na imediata instauração desse reino pela mão de Jeová e na conseqüente mobilização de seus fiéis. Contudo, suas expectativas acabaram na sua trágica e inesperada execução pela autoridade romana, em Jerusalém, como sedicioso. Jamais fundou Igreja alguma, nem instituiu sacramentos. Teria considerado sacrílega qualquer atribuição de qualidades de natureza divina a sua condição de homem.

Este é o perfil básico que cabe esboçar com alta probabilidade de certeza, mediante a aplicação de critérios heurísticos adequados ao tratamento científico das epístolas paulinas e dos Evangelhos canônicos, documentos que nos oferecem o fascinante espetáculo da fabricação histórica de um grande mito: o mito do Cristo da fé. O Cristo da fé transmuta o Jesus Nazareno em um ser divino, consubstancial (que tem uma só substância) e coeterno (que existe com o outro desde sempre) com o Pai, engendrado (gerado) sobrenaturalmente pelo Espírito Santo no seio de uma virgem, para pagar, com seu martírio na cruz, uma imaginária e absurda dívida que a humanidade haveria contraído com Deus por causa de um pecado hereditário de desobediência.

Só a paixão e morte de um ser ao mesmo tempo Deus e homem podia, não se sabe porque, saldar essa dívida ante uma divindade implacável e rancorosa. Este mítico Deus e homem, que havia fracassado em tudo o que anunciara enquanto transitou por esta terra, haveria demonstrado sua divindade essencial em virtude de uma Ressurreição milagrosa, supostamente avalizada por visões_ todas confusas e não coincidentes _ sem mais valor intrínsico que as que se aduzem cada dia na sociedade secularizada de nosso tempo. A ascensão aos céus, mais a promessa de seu imediato retorno para que se pudesse cumprir a profética instauração iminente do reino messiânico, constituem o epílogo de uma soteriologia equivocada, sobre a qual o cristianismo construiu o imponente edifício de sua teologia e de seu poder.

Depois de ácidas polêmicas, desde a imposição imperial do Concílio de Nicéia (325), caracterizado por intimidações morais e violências físicas, o Concílio de Calcedônia (451) determinou definitivamente que houve “um só Cristo em duas naturezas”, “dotado de uma alma justa e semelhante em tudo aos demais homens exceto o pecado”. Mas seguia pendente o espinhoso problema de conciliar de modo convincente o Jesus evangélico, que sentia fome e sede, comia, bebia, se irritava colericamente e padecia, com o Cristo celeste, perfeito, imperturbável e insensível como deus, isento de toda mudança ou movimento.

Paulo de Tarso, em Filipenses 2.7, apresentou uma idéia que viria a ser posteriormente adotada pelos Padres da Igreja:” mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido na condição como homem”. Essa doutrina ficou conhecida como a doutrina do esvaziamento. Contudo, Calcedônia_ como sempre_ não cancelava a insuprimível contradição ontológica entre um Deus que, por definição, não pode sofrer, porque toda paixão comporta mudança ou movimento_ inconcebível em um Deus de suma perfeição_ e um Homem-Deus que se altera, muda de humor, sofre e se alegra. Mas havia ainda outra dificuldade: podia uma só pessoa ter duas vontades? O Concílio de Constantinopla (680) proclamou definitivamente a existência em Jesus de duas vontades, uma divina e outra humana. Assim são estabelecidos os mistérios da fé cristã. Porque a contradição segue em pé, porém desta vez a questão se situava não em um nível metafísico que o fervor de uma fé podia mais ou menos passar por alto, mas em um nível operativo, psicológico, histórico. Pois se há duas vontades plenas, autônomas, poderiam, ao menos em princípio, divergir. Deus, por definição, não pode ter a vontade de padecer. Jesus, se é Deus, tampouco, salvo que se trate de vontades excludentes respectivamente. Em todo o caso o Homem _ Deus não poderia querer e não querer ao mesmo tempo. Quando se nega a lógica, o sentido comum procura vingar-se, salvo se a mente ficar paralisada. E este é o drama do crente que luta por manter a honestidade intelectual. Sofrer é mudança, contingência, imperfeição. Se Jesus quis sofrer, e sofreu, como poderia ser Deus? E se era Deus, como poderia sofrer e querer sofrer?

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poder hegemônico sobre consciências
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003

Foi no âmbito das consciências que a Igreja avassalou a sociedade cristã, erigindo-se em árbitro dos critérios do bem e do mal. Sua dilatada caminhada no mundo medieval, como cabeça da cristandade, colocou em suas mãos todas as ferramentas necessárias para a manipulação psicológica e coação moral dos povos sob o seu domínio. E mesmo quando interrompida, pelo avanço de outras instituições, sua dominação temporal, o poder hierocrático, inclusive nas sociedades não submetidas à doutrina cristã, segue sendo o fator principal nos pactos com outros poderes ideológicos.

O passo fundamental deste processo de dominação espiritual crescente foi a transformação dos carismas (dons), aí incluídos os sacramentos, de um ato do operador (carismático) em um ato da instituição (Igreja), representada por seus sacerdotes. Na concepção inicial, era essencial o estado de graça, ou seja, a pureza moral de quem difundia o carisma, ficando invalidado o ato ritual na situação de pecado do sacerdote. Posteriormente, por obra da Igreja, os dons ou carismas deixaram de ser possuídos pelo carismático, que o comunicava a título pessoal, para pertencer exclusivamente à Igreja, que se intitulou depositária de toda a graça, alegando ser-lhe a mesma concedida por Deus. Dessa forma, deixava de ser invalidante a situação de pecado do oficiante que na verdade, se convertia em um mero funcionário institucional anônimo, sem atributos carismáticos próprios.

À medida que diminuía o peso e a presença dos carismáticos propriamente ditos, adquiria crescente importância a designação de membros das igrejas locais para desempenhar funções comunitárias, de assistência e de administração. Consolidando-se a “sacramentalização da ordem” (ordenação de sacerdotes) e distanciando-se o papel predominante da “assembléia de fiéis” na designação dos cargos, o ritual judaico da imposição de mãos vai adquirindo relevo preponderante; primeiramente é a hierarquia apostólica, e, a seguir, os bispos, que aparecem como transmissores da matéria do mistério. O papel da assembléia dos fiéis, antes o mais importante, foi gradativamente perdendo terreno no consentimento e na aclamação, inclusive, ante os bispos forâneos. Por esta via, tanto a transmissão de carismas quanto a sucessão apostólica (ordenação) sofreram um processo de burocratização sistemática.

Nas últimas décadas do século III, a burocratização do sacramento da ordem é plena e irreversível, chegando a interpretação, mágica e mecanicista, dos símbolos sacramentais, ao cúmulo de outorgar plena legitimidade às ordenações de membros de reputação sacrílega ou herética. Reassumindo o poder pleno na linha de seus interesses, o episcopado monárquico converteu a Igreja em um organismo oligárquico-autoritário, que culminaria na monarquia absoluta da Sé Romana.

O passo decisivo se deu quando a sucessão episcopal começou a ser concedida, não como sucessão de cargo, conferida pela eleição da comunidade, mas como transmissão do carisma conferido pelo rito da consagração ou ordenação. A Igreja já havia decretado, por meio de seus bispos, que a santidade celestial não residia no eventual estado de graça de seus membros, mas sim, em sua própria qualidade de depositária institucional dos carismas transmitidos por Cristo. Tal questão é de importância superlativa.

Inicialmente, a Igreja assumiu a noção escatológica-messiânica de “comunidade dos justos”. Como a parousia era dada como iminente, essa comunidade não necessitava de organização alguma. Porém, o tempo passava e Cristo não vinha. Não houve, pois, parousia. Houve, no entanto, uma recaída em pecado, após o batismo, tanto para ovelhas como para os pastores. Os efeitos da purificação pelo batismo, supostamente definitivos, acabaram sendo desmentidos pelos fatos. O que era inicialmente a “comunidade dos eleitos”, foi se transformando em uma estrutura organizada para durar. Mas como legitimar teologicamente esta contraditória novidade? Este foi realmente um grande problema doutrinal da Igreja. E, juntamente com este, havia que considerar a rotinização do carisma e a institucionalização da graça.

A dilação “sine die” da vinda de Cristo, obrigou a Igreja a abandonar a visão paulina do renascimento no Divino salvador que chegaria. Houve então, a metamorfose da “comunidade sobrenatural dos santos”, criada pela esperança messiânica nunca chegada, em uma Igreja empírica, regida pelos meios naturais da sociedade vigente. Apesar da oposição acerba dos cristãos mais rigorosos, marcionistas, montanistas, donatistas, e outros, a já então denominada Igreja Católica considerou vãs as suas pretensões. Houve então a necessidade de improvisar uma eclesiologia que explicasse teologicamente o fato generalizado do pecado e habilitasse os meios de perdão.

A idéia paulina da Igreja, no sentido estrito do conjunto dos eleitos coparticipantes da Ressurreição_ como corpo de Cristo, baseava-se na concepção pessoal que teve Paulo da redenção como um atual morrer e ressuscitar em Cristo, através do batismo. Tal noção foi abandonada pela Igreja. A redenção passou a ser interpretada como a união do corpo físico do batizado com o Logos-Filho de Deus, ficando desta forma, assegurada a imortalidade.

Tal imortalização seria consumada com a futura ressurreição, ao final dos tempos.Assim, a redenção passa a ser concebida em termos totalmente helenísticos, como uma divinização mediante o renascimento, no estilo dos cultos mistéricos. O corpo de Cristo, neste conceito de redenção, passa a significar a Igreja institucional, com sua capacidade soteriológica, como um organismo sócio-sobrenatural, no qual o Logos- Filho de Deus (Cristo) alcança a redenção através dos sacramentos.
No dizer de Ireneo de Lyon, onde está a Igreja, também está o espírito de Deus, e onde está o espírito de Deus, está também a Igreja. Em lugar de participar do Reino iminente, como havia anunciado Jesus, participava-se agora, da Igreja, num mundo em que nada, na verdade, mudou. A técnica sacramental constituiu-se na ferramenta essencial de toda a eclesiologia.

Subsistia, contudo, a magna questão da remissão dos pecados. Tanto para o pecado das “ovelhas”, como para o dos “pastores”, a solução encontrada foi o desenvolvimento do monarquismo episcopal. Inicia-se com a I Epístola de Clemente e sua incipiente doutrina da sucessão apostólica; consolida-se com Ignácio de Antioquia, em princípios do século II, por sua teoria do ofício episcopal (afirmação dos bispos); finalmente, aperfeiçoa-se com a tese da representação da igreja como um todo pelo colégio episcopal. Ignácio já havia dado por assentado que o bispo era, com respeito à comunidade, o representante de Deus e de Cristo e, como tal, designado como mandatário para fazer a mediação da graça sacramental à “eclésia” (Igreja), assim como para dirigi-la e decidir sobre tudo o que os fiéis necessitassem para sua salvação. A estrutura política do Império Romano passa a ser o principal modelo do novo governo religioso.

No dicionário prático da Bíblia, edição Barsa, 1966, encontramos a seguinte definição de sucessão apostólica: “a sucessão contínua de bispos legitimamente sagrados desde o tempo dos apóstolos até o presente. Através desta sucessão, a autoridade de reger e ensinar, bem como os poderes de ordenar sacerdotes (bispos) e de sagrar bispos (Papa), conferidos por Cristo a Pedro e aos outros apóstolos, passaram, por sucessão, ao Papa e bispos da Igreja Católica”. E assim, a história da Igreja foi feita e conseguiu atravessar os séculos até nossos dias.

Nas comunidades de raízes paulinas, havia “episkopoi”, os chamados vigilantes, porém, nunca no sentido de hierarquização monárquica dos bispos atuais. A eficácia dos sacramentos cristão-paulino-primitivos não dependia de uma consagração especial, nem no caso do batismo nem ceia do Senhor. Por conseguinte, ainda não existia necessidade alguma de uma ordem hieráquica de mediadores sacerdotais da salvação. Daí que esta novíssima estrutura eclesial requeresse uma sanção teológica.

Ignácio havia recorrido ao uso dos privilégios dos mártires, como especialmente qualificados (tais privilégios), para referendar a difusão dos carismas. Neste uso se concentrava o chamado poder das chaves _ o poder de governar fiéis _ com o qual se fortalecia a sucessão apostólica, já destacada por Clemente. A doutrina de Ignácio, porém, poderia pôr em concorrência mártires, confessores (os que se dispunham a dar a vida pela fé) e bispos, o que realmente ocorreu. Por todos os modos, era buscado o monopólio hierárquico. A descontinuidade da existência de mártires ou confessores, porém, inclinou a balança a favor dos funcionários permanentes, ou seja, dos bispos. Estes obtiveram então, o título de sucessores dos apóstolos na doutrina oficial da Igreja. Com Cipriano de Cartago foi definitivamente estabelecido o dogma da autoridade plena dos bispos, e com este dogma, se resolveu a questão de “santidade” ainda que não sem muitas disputas e resistências. A Igreja pós-apostólica decidiu as controvérsias mediante um decreto formal de seus bispos, segundo o qual, a santidade da Igreja não depende da pureza de seus membros. Ora, se a santidade da Igreja não depende da santidade particular de seus membros, nem sequer a do episcopado, (bispos), tampouco pode depender a validade dos sacramentos da moralidade de seus sacerdotes. Então o batismo, que é o sacramento do rito de passagem à condição de cristão, também comportava a eliminação não só da adesão consciente do batizado, mas também do requisito de seu uso pela razão, o que foi feito.

Muitos exegetas modernos negam que o batismo tenha sido instituído por Jesus. Na verdade, nem Jesus, nem os apóstolos, nem a Igreja Cristã dos primeiros séculos, tiveram a mínima idéia que Deus fosse trino. O credo trinário só foi aprovado pelo Concílio de Nicéia, em 325, por imposição do Imperador Constantino. A doutrina vigente mantém que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas (hipóstases) que compartilham da mesma substância (ousia) e da mesma energia (energeia), mas até chegar a esta tese, seus defensores tiveram que lutar violentamente contra os que mantinham posições teológicas contrárias. A análise posterior, feita por especialistas independentes, sustenta que o evangelho de Mateus, original, termina em Mt 28.15, sendo os cinco versículos finais uma interpolação tardia. Assim, como poderia Jesus dizer como em Mt 28.19: “Ide pois e ensinai a todas as gentes: batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”, se a doutrina trinitária só seria estabelecida três séculos mais tarde?

É muito provável que tenha sido João Batista quem elevou o batismo, de simples ato de purificação a símbolo de arrependimento, isto é, querido e assumido. Porém, foi Paulo quem iniciou a doutrina mística do batismo como ritual de renascimento efetivo do batizado na vida espiritual do Cristo Ressuscitado (renascido em Cristo), exigindo que fosse um ato único e irrepetível, dramaticamente assumido com todas as potências anímicas (conhecimento, desejo, vontade).

O salto a uma concepção de sacramento operado pela instituição significa pois um regresso a uma visão mágica do simbolismo sacramental. Permite medir a distância que existe entre a doutrina de Paulo e a Igreja posterior, ainda que Paulo tivesse se afastado grandemente da primeira comunidade cristã e do culto judaico-cristão.

A religião cristã, além disso, reintroduziu a politeísmo prático, através do culto à imagens e aos santos, além de introduzir a doutrina trinitária, de forte tonalidade antropomórfica. Também restaurou conceitos essencialmente mágicos, apesar de sutis reelaborações teológicas. A orientação mágica, das religiões mistéricas antigas, veio impregnar de modo sensível, o repertório das práticas sacramentais do cristianismo.

Nas religiões mistéricas, baseadas na existência de um Salvador – geralmente um ser mais ou menos divino e encarnado, que se submete a si mesmo ao sacrifício – o sacerdócio administrador desenvolve como ética religiosa uma pretensa revelação. Doutrina e sacerdócio reforçam-se reciprocamente e projetam uma simbiose na distribuição da graça que o Salvador acumulou. Há sempre uma dupla face: mágica e ritual. No princípio a doutrina sacramental se apóia na posse “pessoal” detida pelos profetas, dos dons e graças. À medida em que a profecia passa a ser rotina, o funcionário sacerdotal vai substituindo definitivamente o profeta, porém o estado de graça dele é exigido. Deve haver pureza ritual e moral. Ao final deste processo, no entanto, é a organização que detém o monopólio da gestão carismática, e são os seus funcionários sacerdotais que, através um ritual essencialmente mágico, na prática, distribuem os carismas. O ato é independente da pureza do executante.

Seguindo este modelo, a Igreja erigiu sua doutrina, adquirindo todo o seu significado o lema “extra ecclesium nulla salus” _ fora da Igreja não há salvação_ pois somente um delegado da instituição pode ministrar os dons santificantes, garantindo assim, a base permanente do proselitismo eclesiástico. Este axioma costuma passar por um simples postulado soteriológico, no sentido de que só a fé cristã salva o indivíduo. Mas seu significado inocente não é o que corresponde ao axioma, pois não se trata de um mero postulado de fé, e sim de um postulado de poder: sem os sacramentos, não há salvação, e sem Igreja, não há sacramentos. E assim se exerce um poder total e hegemônico sobre as consciências.

O arquétipo histórico da intolerância no mundo antigo foi representado pelo judaísmo;porém tratava-se de um intolerância por exclusão. Era motivada pela extremada consciência intragrupo, na convicção de um singularidade única, orientada por um obsessivo sentimento etnocêntrico de ser um povo diferente, beneficiário de um Deus superior. O cristianismo seguiria nessa mesma esteira, porém desembocando em uma intolerância por inclusão. Praticando um proselitismo pugnaz e avassalador, procurava ocupar todos os espaços possíveis, a fim de forjar uma estrutura universal de fé e de obediência.

A ascensão ética da humanidade foi sempre carregada, em maior ou menor medida, de concepções míticas, geradoras de credos religiosos. No entanto, estes nunca se apresentaram como cruzadas do proselitismo, sob o signo da intolerância religiosa. Esta vocação foi sempre característica da herança judaico-cristã, que dificilmente poderá pagar sua dívida de sangue e de sofrimento moral, que contraiu no curso de sua implantação nos povos que avassalou. Emancipar a humanidade dos mitos sancionados pelas religiões vigentes _ em particular pelas revelações proféticas ou religiões do Livro_ é uma das tarefas urgentes de nossa hora.

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mandar sobre quem manda
João Laurindo de Souza Netto
Setembro 2003

Se há algo que se deve reconhecer no cristianismo e, sobretudo, na Igreja Católica, é a sua capacidade de supervivência, apesar do tempo e de dificuldades, mostrada através das vissicitudes da história. Os fiéis costumam reafirmar seu caráter divino, que lhes teria permitido superar embates do tempo, enquanto outras instituições, impérios, potências, crenças ou regimes caíam ao seu redor. No entanto, ao fim e ao cabo, é o mesmo o que pensam, em outros âmbitos, os fiéis do judaísmo, do islamismo e das grandes religiões do Oriente, que não só resistiram aos ataques históricos mais diversos, como também, em alguns casos, persistiram em seus princípios e renasceram das próprias cinzas.

Contudo, para aqueles que abordam este assunto sob uma perspectiva agnóstica, isto é, estranha à eventual componente sagrada, tais modificações deslocam-se do espaço emocional para se tornar um questão íntima da consciência individual de cada um. O cristianismo, e sobretudo a Igreja que o sustém, sempre foi o suporte de pessoas humanas, que, em seu trânsito de ascensão, valem-se da pseudo numinosidade transmitida pelo seu projeto para fabricar um núcleo de poder transcendente, a partir do qual exercem influência e estendem sua autoridade com uma amplitude cada vez maior.

Com base nesse paradigma, a história eclesiástica tem transcorrido e se desenvolvido, com intolerância, sobre o setor da humanidade que pode tomar a seu cargo, usando para isso procedimentos de todo tipo, inclusive despóticos. Paralelamente, adaptando-se às circunstâncias de momento e olvidando, quando necessário, os mesmos princípios de que se vangloriava, a Igreja conseguiu sobreviver aos acontecimentos adversos e emergir das ruínas, criadas, muitas vezes, por ela própria. Para isso, sempre soube valer-se de suas origens teoricamente divinas. Venceu dificuldades ideológicas, conspirou de forma encoberta e retorcida contra regimes que manifestavam hostilidade aos seus esquemas, ainda que tolerassem sua presença, e colaborou em todos os distúrbios cuja vitória pudesse beneficiá-la de alguma forma, por cruéis e brutais que pudessem ser. E sempre, em defesa de seus interesses, vangloriou-se de seus particulares sofrimentos, tolerando, mas provocando em contrapartida, sem a menor compaixão, as dores e angústias dos que se mostravam reacionários a deixar-se dominar por suas intenções absolutistas em prol do domínio universal.

Quando repassamos a história da Igreja, ao menos desde os tempos de Constantino, o Grande, e ao longo dos 400 anos seguintes, causa-nos surpresa descobrir que a maior parte de seus problemas e a base de todos os conflitos em que esteve envolvida, foram condicionadas por questões teológicas que se poderia qualificar como pueris. As mais diversas famílias eclesiásticas se degladiavam, e se condenavam mutuamente como heréticas, por suas diferenças de critério sobre a personalidade de Cristo. Até mesmo as relações da Igreja com o Império ora se deterioravam ora se reconciliavam, segundo os soberanos e os que os cercavam se inclinassem caprichosamente para uma ou outra solução doutrinal. E eram várias as que se sucediam a respeito da pessoas, origem, natureza, substância, vontade ou das energias do Salvador e de sua presumida relação com o destino final dos homens, o qual teria que ser a meta de todo sentimento transcendente.

Tais discussões bizantinas encerravam outros motivos, não revelados. Estes, necessitavam expressar-se mediante conceitos de complicada doutrina para não desvelar as razões mundanas que na realidade continham. Razões que não eram senão um empenho continuado e intolerante para fazer-se respeitar pela comunidade de fiéis. Não envolviam idéias convincentes, mas sim o propósito de conduzir à obediência passiva, mediante a mansa adesão dos fiéis à vontade dos supostos representantes de uma divindade inalcançável, só intelegível para os poucos eleitos

No fundo, tanto as proclamadas verdades teológicas como os dogmas inamovíveis de aceitação obrigatória, assim como boa parte da doutrina que foi sendo desenvolvida pelo cristianismo, não chegavam a constituir sequer uma filosofia de transcendência. Não eram, em sua maior parte, senão palavras ou atitudes etiquetadas, ocas e ritualizadas. Desconcertadamente concebidas em suas origens, dissimulavam, em geral, sob a capa de uma doutrina estruturada, a necessidade de obter o mais alto grau de submissão por parte dos crentes. Assim, a Igreja justificava a relação de dependência absoluta que sempre manteve com seus fiéis e que segue caracterizando, até hoje, sua ânsia de dominação e de poder.

Nesse contexto, a cabeça visível da instituição, isto é, o Sumo Pontífice, perde imediatamente seus atributos distintivos como ser humano, para converter-se em uma figura representativa do poder que simbolizava. Sua categoria humana passa a constituir um traço complementar de sua pessoa, porém de nenhuma maneira uma qualidade essencial capaz de condicionar o rumo estabelecido pela Igreja que preside, a qual será sempre guiada pelo propósito que a caracterizou desde que foi criada.

A Igreja Cristã, em realidade fundada por Paulo de Tarso, desenvolveu-se como uma iniciativa decidida de poder universal e como uma opção suscetível de converter-se em um autêntico governo teocrático do mundo. A necessidade de um pontífice que a representasse formava parte de sua própria estrutura, do mesmo modo que uma “holding” necessita de uma representatividade concreta, porque, em última análise, não é mais do que uma abstração.

A Igreja, pois, tentou materializar os princípios de autoridade, já praticamente perdidos com o poder bizantino, em todos os estados em que estava presente depois da queda do Império Romano, ou seja, todos aqueles em que se dividiu a Europa ocidental após a invasão dos povos bárbaros. O reino franco, que se estendia por territórios que na atualidade abarcam amplas zonas da França e da Alemanha, contava com uma numerosa população católica. Em tempos do papa Gregório, sentava no trono franco Clóvis I, ainda pagão, membro da dinastia dos merovíngios.

Esta dinastia havia sido fundada por Meroveu, membro de uma tribo germânica pagã, adoradora de uma Deusa-Mãe que nos tempos romanos havia sido identificada como Diana. As origens desse rei mítico estavam ligadas à misteriosa magia de seu nascimento, que lhe havia atribuído poderes sobrenaturais, capazes de fazer com que, entre sua gente, fosse considerado uma espécie de semi-deus. Entre seus descendentes estava seu bisneto Clóvis,
que reinou entre os anos 481 e 511.

Profundamente venerado por seus súditos e surpreendentemente ativo e empreendedor, Clóvis lançou-se à conquista da Gália já cristianizada, anexando boa parte dos territórios que na atualidade constituem o solo francês e os chamados Países-Baixos. Casou com uma cristã borgonhesa chamada Clotilde, posteriormente canonizada pelo Vaticano. Graças ao trabalho de proselitismo de Clotilde, que exercia considerável influência sobre o marido, Clóvis converteu-se ao catolicismo e, juntamente com ele milhares de francos de ambos os sexos.

Mediante um pacto prévio com o papa, fez-se a unificação de todos os povos conquistados por Clóvis, constituindo-se assim um novo império católico, adotado pela autoridade pontifícia e capaz de enfrentar os heréticos, adeptos do arianismo. Com isso foram cortadas as amarras que ainda prendiam Roma ao Império Bizantino, com sede em Constantinopla.

Em 496, com seu batismo na catedral de Reims, juntamente com 3000 guerreiros merovíngios, Clóvis escutava de Saint Remy, bispo da cidade, as palavras que o convertiam em súdito tácito da Igreja:

“Mitis depone colla, sicamber, adora quod incendisti, incendi quod adorasti” . Inclina humildemente a cabeça, sicambro (da Germânia), adora quanto incendiaste, incendeia quanto adoraste”.

Naquele momento recebia das mais altas instâncias da Igreja o apelativo de “Novus Constantinus” e aceitava o destino que se lhe determinava: converter-se em um autêntico imperador do Ocidente europeu, o embrião do que viria a chamar-se Sacro Império Romano Germânico. Desde aquele instante, até sua morte em 511, Clóvis ampliou as fronteiras e formou uma unidade política que permitiu sua vitória sobre os visigodos e sobre os próprios aliados borgonheses.

Contudo, aquela unidade era absolutamente fictícia, pois, apesar da recém- adotada catolicidade, o antigo costume dos merovíngios de dividir o reino entre filhos e parentes, desatou, a partir da morte de Clóvis, uma longa série de episódios sangrentos, só resolvidos mediante extorsões e assassinatos. A realização daquele idéia imperial, que a Igreja havia concebido como solução para seus problemas, e como partida definitiva para o domínio da Europa ocidental, tornou-se praticamente inviabilizada.

Seguindo, pois, a prática usual dos merovíngios, os sucessores de Clóvis consideraram o território de seu reino como propriedade particular. Seus filhos lançaram-se uns contra os outros até que Clotário, desfazendo-se de seus irmãos, conseguiu deter o poder total . Neste jogo de morte, a Igreja se convertia, enquanto lhe convinha, em aliada de todos, ainda que, para conseguir a vitória final, tivesse que praticar crimes e traições. Isso provocava, não raro, represálias contra o clero e, sobretudo, contra aqueles prelados que haviam se colocado do lado vencido. Contudo, uma ajuda, um conselho ou um pronunciamento terminavam quase sempre em concessões, até que os grandes bispos permitissem qualquer excesso e perdoassem, e até fomentassem qualquer tipo de crime em troca de melhora de seu status.

Quando se conhecem os luxos realmente principescos dos prelados francos, os palácios e os templos que mandaram edificar e os territórios que possuíam comprova-se que constituíram sempre um constante atentado à teórica humildade proclamada pela Igreja. E enquanto incrementava seu patrimônio e fazia crescer seu poder político e econômico, diminuía a fé e caía ao solo aquele princípio de cultura na qual o clero chegou a ser representante destacado. De outra parte, o culto às relíquias incrementou-se até se converter em um negócio rentável para o erário eclesiástico, o qual, aproveitando-se das superstições pagãs que o povo ainda mantinha pelos amuletos mágicos, utilizou-as, como seguiu utilizando-as durante muitos séculos, para seu próprio proveito.

O último descendente de Clóvis por linha direta, Dagoberto II, foi assassinado durante uma caçada. Alguém cravou uma lança em seu olho, ao tempo em que a sua família era exterminada no palácio onde residia. É conservada uma carta de um bispo franco a Winfried de York, depois conhecido como São Bonifácio, onde se justifica e até se enaltece o regicídio. Apesar disso, Dagoberto foi enterrado na Capela Real e dois séculos mais tarde, canonizado. Nestas circunstâncias, pode-se pensar que a Igreja, depois de haver depositado confiança em Clóvis, com vistas à criação de um Império que a libertasse dos velhos compromissos com Constantinopla, considerou conveniente dar um giro total no rumo político daquele propósito.

O cristianismo institucionalizado necessitava ter a sua disposição um braço armado para implantar e fazer respeitar “urbi et orbi” sua incessante vontade de domínio. Do Império Romano não havia obtido mais do que o reconhecimento oficial, ou o recurso à ação direta em casos pontuais, como quando entregou Prisciliano aos soldados imperiais para que o decapitassem, quando foi condenado por heresia. Com o avanço muçulmano por um lado e a conquista lombarda da península itálica por outro, urgia dispor de uma força militar a seu serviço.

Foi então que, como do nada, surgiu um documento apócrifo que vinha resolver qualquer dúvida sobre o direito do papado de contar com uma força de choque que atuasse como braço armado a seu serviço. Foi a chamada “Doação de Constantino” , que simulava ter sido redigida 400 anos antes (312). Por este documento, a Igreja seria detentora da autoridade imperial total, podendo dispor tanto da coroa como de seus atributos, cujo poder poderia delegar a quem lhe aprouvesse. Por este meio, puramente capcioso e falso, o papado se arrogava o direito inalienável de nomear e depor imperadores e reis a seu critério, sem que precisasse para nada do referendo de Constantinopla. Além disso, o papa recebia em propriedade não só a cidade de Roma “mas todas as províncias, distritos e cidades da Itália e das regiões ocidentais”.

A falsidade deste documento somente se evidenciou no século XV. Na realidade, tudo indica que o falso documento foi inventado entre 714 e 750. A ambiciosa engrenagem de poder da Igreja se pôs, a partir de então, definitivamente em marcha. Ninguém parecia discutir seu direito de intervir na vida secular do mundo cristão. Podia contar com o apoio da sociedade civil, porque a Igreja já não reconhecia reis: nomeava-os, atribuindo a si mesma a transmissão da “Graça de Deus”, mediante o ritual da unção. Então, todos os monarcas passavam, em essência, a ser subordinados do pontífice.

O papa Estevão II se apressou a conceder a Pepino, o Breve, o título pontifício de patrício romano, em troca do que este comprometeu-se a proteger a cidade e o papado. Com isso, a Igreja conseguiu obter um soldo de ouro por habitante da Cidade Eterna, tributo que o duque lombardo Astolfo havia imposto aos romanos.

Desde então, e ao longo dos seguintes 1200 anos de história da Igreja até os nossos dias, qualquer acontecimento supostamente sobrenatural seria admitido e propagado aos quatro ventos, enquanto contribuísse para aumentar o prestígio da Igreja, mas, ao contrário, seria condenado se, por alguma razão, viesse a prejudicar seus interesses. A Igreja, enquanto pode, manipulou como quis a existência dos cristãos, do rei ao último escravo; controlou a vida pública e a particular de cada um através do sacramento da confissão ou da obrigatoriedade de delação ante qualquer ofensa institucional, determinou condutas e estabeleceu níveis universais de comportamentos, leituras, justiça, sentimentos e vontade.

Afirmava estar em posse exclusiva da “Verdade Absoluta” estabelecida por Deus e tudo o que dizia e determinava era considerado como Vontade de Deus, ainda que se tratasse do maior desatino ideado por um papa ou pelo mais indigno dos membros de sua estrutura hierárquica. O único obstáculo ao exercício de uma autoridade absoluta era ainda a falta de um exército poderoso. Procurou então obter a ajuda do exército mais poderoso de todos: o de Carlos Magno, a quem a Igreja havia ungido. Em resposta ao pedido de Leão III, Carlos Magno deixou assentadas suas intenções a favor do pontífice:

“Minha tarefa, assistido pela piedade divina, consiste em defender em todas as partes a Igreja de Cristo...”

No entanto, os conflitos internos subseqüentes, puramente políticos, e certamente muito pouco piedosos, fizeram com que as palavras de Carlos Magno não passassem de algo mais do que uma formulação de intenções e que os projetos imperialistas da Igreja tivessem de contentar-se em aceitar o respeito, porém não a submissão, daquele Império Ocidental que sempre teve a intenção de submeter ativamente.

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a hipótese animista
João Laurindo de Souza Netto

Em sua obra mestra “Primitive Culture”, publicada em 1871, Edward Tylor, considerado o primeiro grande nome da antropologia, talvez o mais renomado até o presente, soube associar harmonicamente a indagação fenomenológica com o esforço interpretativo. O material fenomenológico é o suporte dado pelos fatos, sem o qual não é possível identificar as crenças e os conteúdos mentais do homem primitivo _ quer se trate do pré-histórico, quer do atual. Na esfera da religião, a investigação antropológica tem como meta conhecer as crenças religiosas dos povos pré-históricos, com base na análise e na interpretação do material fenomenológico disponível, com o especial propósito de conhecer como e quando os seres humanos começaram a manifestar sentimentos que, muito mais tarde, puderam ser identificados como religiosos.

O animismo é uma concepção básica do mundo. Constitui um alicerce, compacto como rocha, da visão dualista corpo-alma, sobre a qual vieram a se assentar todas as filosofias espiritualistas que alimentam as inumeráveis formas de fé religiosa. A apologética, contudo, isolou o termo animismo para designar as crenças e práticas religiosas de certas etnias africanas. Isso lhe permitiu realizar estrategicamente a exclusão das grandes religiões do gênero animismo, termo que, no entanto, as define a todas por igual quanto à essência, ainda que vistas com roupagens bastante diferentes.

Em sua obra, Tylor interpreta a gênesis, ou seja, a origem, da crença animista de forma muito detalhada:

“Pode-se explicar o que é a doutrina da alma entre os homens primitivos, estabelecendo-se a teoria animista e seu desenvolvimento. Parece que os seres pensantes, ainda num nível muito baixo de cultura, estivessem profundamente impressionados por dois grupos de problemas: em primeiro lugar, qual é a diferença entre um corpo vivo, durante o sono, e um corpo morto? Que é o que dá origem ao despertar, ao sonho, à alienação, à enfermidade, à morte? Em segundo lugar, o que são as formas humanas que aparecem nos sonhos e nas visões?”

Tais questões referem-se a experiências que se apresentam ao homem desde o início da pré história, para as quais, desde então, este tem buscado respostas capazes de apontar para as raízes dos fatos. A análise de Tylor leva à conclusão de que as alegações de irracionalidade, quando não de suposta estupidez do homem pré-histórico, obedecem a preconceitos deliberados, que nada têm de científicos.

Prossegue Tylor em sua análise:

“Atendendo pois a estes dois grupos de problemas, os “pensadores” pré-históricos deram, provavelmente, seu primeiro passo. Sua dedução óbvia era a de que todo homem teria duas coisas próprias de si mesmo, a saber, uma vida e um fantasma. Ambos estariam, evidentemente, em estreita relação com o corpo; a vida permitindo-lhe sentir, pensar e atuar, e o fantasma constituindo sua imagem ou segundo eu. Ambos seriam percebidos como coisas separáveis do corpo: a vida por poder abandoná-lo e deixá-lo insensível, ou seja, morto; o fantasma por poder aparecer a outros, longe dele, em sonhos ou visões. O segundo passo parecia também muito fácil de ser dado por aqueles primitivos, sobretudo se comparado com a dificuldade encontrada pelos civilizados para desandá-lo, ou seja, invalidá-lo. Trata-se simplesmente de combinar a vida e o fantasma. Dado que ambos pertencem ao corpo, por que não haveriam de pertencer também um ao outro e ser manifestações de uma só e mesma alma? Que sejam considerados, pois, como unidos, sendo o resultado essa bem conhecida concepção, tão própria dos antigos, descrita como um alma-aparição ou alma-espectro.”

É necessário evitar a interpretação desta hipótese de Tylor como se o homem pré-histórico tivesse elaborado mentalmente um arrazoado formal, do tipo dedutivo, ou uma exposição de caráter silogístico. Ao contrário, deve-se supor que a vaga interpretação de que dispunham os primitivos era apenas a de uma inferência de que existiria um elemento anímico, o que evidentemente, não equivaleria a pensar em termos de um conceito preciso e bem definido do que, muitos milênios depois, veio a ser designado como alma, ou, em latim, anima, donde o termo animismo. Na verdade, a forma concisa adotada por Tylor pode levar a uma tergiversação, principalmente nos casos de interesse ideológico ou de caráter religioso. Apesar disso, constata-se, ainda hoje, entre as massas ignaras, e até mesmo em meios cultos, a crença em aparições, fantasmas, espectros, etc., de que se valem aqueles que exercem o poder para influenciar, de alguma forma, esses grupos.

Continua Tylor:

“Em todo caso, isto corresponde à autêntica concepção da alma para o homem primitivo, a qual poderia ser definida como segue: uma imagem humana, sutil e imaterial, constituindo, por sua natureza uma espécie de vapor, de película ou de sombra; seria a causa da vida e do pensamento no indivíduo ao qual animaria; possuiria independentemente a consciência e a vontade pessoais de seu dono corpóreo; seria capaz de desprender-se do corpo para transladar-se, fulgurantemente, como um relâmpago, de um lugar para outro; fundamentalmente impalpável e invisível, também mostraria um poder físico e poderia aparecer aos homens, acordados ou adormecidos, como um fantasma separado do corpo, cujo aspecto conservaria; continuaria existindo e aparecendo aos homens depois da morte desse corpo; seria capaz de introduzir-se, de possuir e de atuar nos corpos de outros homens, de animais e inclusive de coisas.” Ainda que esta definição não seja, em absoluto de caráter universal, tem o suficiente caráter generalizador para ser tomada como uma norma, modificada por maior ou menor divergência dentro de cada povo determinado.

E acrescenta ainda Tylor:

“É uma doutrina que responde, do modo mais concludente possível à evidência dos sentidos dos homens, interpretados por uma filosofia primitiva mas totalmente consistente e racional. Na realidade, o animismo primitivo explica tão bem os fatos naturais, que conservou o seu lugar nos níveis superiores de ilustração”.

Há um trânsito teórico e prático entre almas e espíritos. Originariamente, parece provável que o homem pré-histórico “projetou”, a partir de experiências e reflexões, a noção de um ente anímico ou alma, como contraparte de seu corpo, conforme foi bem detalhado por Tylor. A noção de espírito, porém, dá, paulatinamente, um passo adiante, desde que, na concepção primitiva, as almas alcançam uma autonomia total frente aos corpos respectivos. A partir de então, espíritos de toda classe passam a constituir um mundo etéreo, que circunda o mundo real.
Esta passagem vai desde o fenômeno animista original, que define o desdobramento do indivíduo humano em um elemento corporal e outro anímico, separável e distinto, até um universo animado ou vitalista, povoado por espíritos. É assim que a importância dos sonhos cede sua primazia à experiência das visões, aparições ou presenças desses entes chamados espíritos, algumas vezes dotados de poderes sobre-humanos, outras vezes sem poder, mas aos quais há que temer, propiciar ou exorcizar.

A crença em espíritos, ou numes, com os apropriados matizes, foi o ponto de partida para os antigos cultos religiosos, como cristalização das projeções animistas originais. Cultos, ritos e mitos iriam então modelar um mundo de emoções que conformaria o que historicamente foi denominado espaço do sagrado.

Na análise de Tylor:

“O animismo caracteriza as tribos mais primitivas da humanidade, e, a partir delas, vai ascendendo, profundamente modificado, porém conservando, desde o princípio até o fim, uma continuidade ininterrupta, mesmo em meio à cultura moderna. A crença animista haveria de proliferar com naturalidade nesse enxame de outros espíritos, que, se diz...influem ou controlam os acontecimentos do mundo material, e também a vida terrena e ultraterrena do homem; e ao admitir que mantêm comunicação com os homens e que as ações humanas lhes causam prazer ou desgosto, a crença em sua existência conduz, de um modo natural, quase poder-se-ia dizer inevitável, antes ou depois, a uma reverência e a uma propiciação ativas”.

Trata-se, pois, de um animismo ampliado e desenvolvido, quase inevitável em comportamentos de caráter religioso. Quando se formaliza a crença em espíritos autônomos, os paralelismos com o corpo, do animismo originário, vão-se debilitando e transformando em animismo religioso e vão-se limitando ao papel de simples sucedâneos de seres espirituais que já não necessitam do suporte corporal.

Sobre a questão do sentimento religioso diz Tylor:

“Devemos admitir que a crença em seres espirituais aparece em todos os povos primitivos. Ao longo dos tempos, o uso da palavra animismo ultrapassa sua estreita significação de doutrina das almas. Ao usá-la para expressar a doutrina dos espíritos em geral,afirma-se praticamente que as idéias de almas, demônios, divindades e de qualquer outra classe de seres espirituais, são concepções de natureza similar”.

O passo do animismo original ao animismo extensivo se deu em um contexto intensamente emotivo. Originalmente, o halo de numinosidade que acompanhava o descobrimento das almas humanas, pelos primitivos, ainda não outorgava a essas ilusórias entidades os extraordinários poderes que o ser humano das culturas posteriores veio a atribuir aos espíritos, de tal modo que uma explicação “racional” veio a se transformar num “sentimento religioso”. Só a partir desta transformação, o animismo vai se converter em “religião”, com todas as conseqüências estreitamente ligadas à angústia, à dor e à morte, determinantes da “alienação religiosa”, em cuja virtude o ser humano espera encontrar a garantia de uma supervivência num “mais além”.

Tylor descreve esta passagem com bastante propriedade:

“Certamente, o animismo parece estar avançando para concentrar-se em sua principal posição, que é a “doutrina da alma humana”. Esta doutrina experimentou uma extremada modificação no longo curso da cultura. Sobreviveu à perda quase total de um grande argumento inerente a ela: a realidade objetiva da alma-aparição ou alma-fantasma, que aparece em sonhos e visões. A alma então abandonou sua concepção de uma substância etérea e se converteu, com o passar do tempo, em uma entidade imaterial, na “sombra da sombra”. Sua teoria afastou-se das investigações da ciência psicológica, que agora discute os fenômenos da vida, do pensamento, dos sentidos, da inteligência, das emoções e da vontade, sobre uma base de pura experiência. O lugar da alma no pensamento moderno está na metafísica da religião, e sua missão especial consiste em proporcionar uma vertente intelectual à doutrina religiosa de Vida Futura. Contudo, apesar desta profunda mudança, a concepção de alma humana continua desde a “filosofia” do “pensador” selvagem até a do moderno professor de teologia. Sua definição continua sendo, desde o princípio, a de uma entidade animadora, separável e supervivente, o veículo da existência pessoal individual. A teoria da alma tornou-se uma parte do sistema de filosofia religiosa que une, em uma ininterrupta linha de conexão mental, o selvagem adorador de fetiches e o cristão civilizado.”

Todas as grandes doutrinas religiosas do mundo admitem a crença na continuidade da existência em uma Vida Futura. Esta crença apresenta duas divisões principais: uma é a teoria da Transmigração das Almas, instalada sobretudo nas comunidades da Ásia, grande em sua história, mas detida, em sua grande parte, no seu progresso, como consequência da pobreza de sua enorme população. A outra doutrina é a existência independente da alma pessoal depois da morte do corpo, em uma Vida Futura. Esta instalou-se no coração da religiosidade moderna, na qual a fé em uma existência futura constitui um movimento para a divindade, uma confortadora esperança em meio aos sofrimentos desta vida e ao terror da morte, e uma resposta ao confuso problema da distribuição da felicidade e da miséria neste mundo, mediante a expectativa de outro em que tudo se ponha na devida ordem.

A crença em espíritos, almas ou numes, com todos os matizes, é o ponto de partida para a fabulação religiosa como cristalização das projeções animistas originais. Cultos, ritos e projeções iriam modelando esse mundo de emoções que conformam o que, historicamente, foi denominado “sentimento religioso”, que supostamente, influi, ou até mesmo controla, os acontecimentos do mundo real.

Ainda que não tenha sido tema do livro de Tylor, aqui analisado em seus pontos essenciais, poder-se-ia acrescentar que, de maneira bastante surpreendente, o mundo civilizado vem sofrendo uma nova invasão de “espíritos” de toda natureza, que nos são impostos pela confusão do que se poderia chamar “fase anárquica do animismo”, onde igrejas e seitas competem ferozmente no “marketing do irracional”, fortalecendo as velhas culturas do milagre para impor as suas “verdades” através de sacerdotes, pastores e gurus. Todos pregando a doutrina da alma à sua própria maneira. E, é preciso dizer, são aceitos pelas massas não pensantes, ou pseudo-pensantes, que os seguem fielmente como ovelhas ao caminho do aprisco.

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milagres
João Laurindo de Souza Netto


Segundo parece, os “administradores dos mistérios de Deus” _expressão de Paulo em 1 Cor 4.1. _ apontam desdenhosamente àqueles que, como mentes de curto alcance, são incapazes de elevar-se à sublime contemplação dos mistérios, para o que se exige o sacrifício do intelecto. Isso leva a crer que eles decidiram não ser a razão o nível mais alto da inteligência humana, que é considerada como instância diretora dos critérios que devem governar a faculdade de julgar os acontecimentos registrados em documentos suspeitos de falsidade e, também, as doutrinas reveladas em escrituras supostamente inspiradas por entes invisíveis. Envoltos nas brumas do mistério, esses “administradores” despojam o ser humano do atributo de sua dignidade racional e exigem dele aceitação total.
R.H. Ibarreta, em 1883, cita os que são, a seu ver, os três milagres principais relativos a Jesus: o nascimento, a ressurreição e a ascensão.
Quanto à narrativa de Jesus ter nascido de uma virgem, depois de cotejar com esmero as contradições e inconseqüências dos textos de Mateus e Lucas, conclui: “naturalmente, se desejará saber o que de particular dizem os outros dois evangelistas, Marcos e João. Porém, nem um nem outro, dizem uma só palavra sobre onde nascer Jesus, nem sobre quem o concebeu nem sobre quem o engendrou, nem sobre estrela, nem sobre Herodes, nem sobre fuga para o Egito, nem de nada enfim referente ao seu nascimento”.Contra toda a expectativa, Marcos e João não fazem qualquer citação, embora este seja um acontecimento sobrenatural considerado fundamental pela doutrina católica.

A respeito da ressurreição, diz Ibarreta: “O primeiro que salta à vista é uma surpreendente resistência por parte dos apóstolos em crer que Jesus pudesse ter ressuscitado, o que demonstra que todas as passagens dos Evangelhos que atribuem a Jesus sua ressurreição ao terceiro dia, não são originais, mas sim, interpolações tardias. Do contrário, como poderiam os apóstolos negar a ressurreição?”

De fato, em Mc.16.11, temos:
“Mas eles, ouvindo dizer que Jesus estava vivo e que fora visto por ela (Madalena), não o creram”.
Em Lc.21.10-11, encontramos:
“E as que referiam aos apóstolos estas coisas eram Maria Madalena e Joana, e Maria, mãe de Tiago, e as demais que estavam com elas. Mas o que as mulheres lhes diziam, pareceu-lhes como um desvario, e não lhes deram crédito.”
Em Lc. 24.41:
” Mas não crendo eles ainda...”
Em Jo.20.9:
“Porque ainda não entendiam a Escritura, que importava que ele ressuscitasse dentre os mortos”, referência naturalmente ao Antigo Testamento, pois os Evangelhos ainda não haviam sido escritos.
Em Jo 20.25:
“E se não vir nas suas mãos a abertura dos cravos, e se não meter a minha mão no seu lado, não hei de crer”.

Mas, além disso, os discípulos ignoravam a tal ponto a expectativa da morte e ressurreição de Jesus que nem sequer lhes era possível imaginá-la, como prova o sentimento de surpresa e frustração que expressam as palavras de dois deles, que se encaminhavam a Emáus, ante a súbita aparição do Nazareno, a quem não foram capazes de reconhecer:

Lc. 24.13-21: “E eis que no mesmo dia caminhavam dois deles para uma aldeia, chamada Emaús... E eles iam falando um com o outro... E sucedeu que chegou-se a eles Jesus. E ele lhes disse: Que é isso que ides praticando e por que estais tristes? E respondendo um deles chamado Cléofas, lhe disse: Tu só és forasteiro em Jerusalém e não sabes o que ali se tem passado estes dias? Ele lhes disse: Quê? E responderam: Sobre Jesus Nazareno, que foi um varão profeta, poderoso em obras, e em palavras diante de Deus, e de todo o povo; e de que maneira os sumos sacerdotes e os nossos magistrados o entregaram a ser condenado à morte e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que ele fosse o que resgatasse Israel: e agora sobre tudo isso, é já hoje o terceiro dia depois que sucederam essas coisas”.

Para dissipar este sentimento de decepção, o compositor evangélico faz Jesus replicar:
Lc.24.25: “Ó estultos, e tardos de coração para reconhecer o que anunciaram os profetas! Porventura não importava que o Cristo (Messias) sofresse estas coisas, e que assim entrasse na sua glória?”

Note-se que o Nazareno nem sequer disse _ como seria natural e procedente_ “o que eu vos anunciei”. Mas, iniciando-se assim a grande manipulação exegética, mediante os “vacitinia ex eventu” fabricados com materiais veterotestamentários, não se refere em nada a si mesmo, senão que aduz, com genérica vaguidade: “ o que anunciaram os profetas”, começando por Moisés... Esta resistência em crer o que nunca foi imaginado é a prova diáfana e concludente do caráter fraudulento da proléptica (antecipada no tempo) ficção.

Esta falsidade e outras similares, é o que “os administradores dos mistérios” qualificam desdenhosamente de “crítica racionalista”. Conclui então Ibarreta: resulta pois que no único em que os quatro evangelhos estão conformes é que ninguém, absolutamente ninguém, viu Jesus ressuscitar nem sair do sepulcro”.
Não menos perspicaz é o exame que faz Ibarreta da suposta ascensão de Jesus aos céus. A ela aludem Marcos e Lucas:
Mc.16.19: “ E na realidade o Senhor Jesus, depois de assim lhes haver falado, foi assunto ao céu, onde está assentado à mão direita de Deus”.
Lc. 24.51: “E aconteceu que enquanto os abençoava, se ausentou deles, e era elevado ao céu”.

As passagens de Marcos e Lucas não coincidem entre si nem em tempo nem em lugar. Mateus e João omitem simplesmente esta embaraçosa questão por motivos derivados de suas respectivas teologias.

A busca da verdade, ainda que nunca a alcancemos, nos faz livres. Para quem assim pensa, a idéia de uma verdade intemporal e definitiva, outorgada por um criador onisciente, consagra a arrogância dos administradores de mistérios e a credulidade dos crentes, que dão as costas à razão.

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parábolas
João Laurindo de Souza Netto


O testemunho das Parábolas do Reino é o argumento mais apreciado pela exegese idealizante do “reino nos corações”. Os biblistas apologetas afirmam que “Jesus usou as parábolas para impor e ilustrar a idéia de que o Reino de Deus havia chegado aos homens ali e então”.

A introdução “O Reino de Deus é como...” apresenta uma certa rotinização da fórmula que assim se torna vaga:

Em Mc.4.11: “ E lhes disse: A vós outros é concedido saber o mistério do reino de Deus: mas aos que são de fora tudo se lhes propõe em parábolas”.
Em Mt.13.10-13: “ E chegando-se a ele os discípulos lhe disseram: Por que razão lhes fala tu por parábolas? Ele respondendo lhes disse: Porque a vós outros vos é dado saber os mistérios do reino dos céus; mas a eles não lhes é concedido. Porque ao que tem, se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso é que eu lhes falo em parábolas: porque eles vendo não vêem, e ouvindo não ouvem nem entendem”.

Tem-se a impressão _ e este é certamente o sentido dos evangelistas _ que as parábolas que não são compreendidas pelo povo apresentam supostamente os “ segredos do Reino de Deus”.

O que se quer significar é uma descrição das circunstâncias do Reino de Deus, o qual é visto, de um modo ou de outro, como coincidente com o interesse do Evangelho ou com a comunidade dos discípulos. O dito em Marcos inspirou os outros evangelistas para que acrescentassem esta fórmula a uma ampla variedade de outras parábolas. Porém deve-se notar que:

1. Uma grande quantidade de parábolas são introduzidas desta maneira e não têm nada em absoluto a ver com o Reino de Deus, ou só se podem relacionar com ele com dificuldade.

2. Por isso, e pelo estilo da introdução, somos obrigados a descartar completamente o sentido dos evangelistas e explicar estas parábolas, antes de tudo, sem relação com o Reino de Deus e, como corolário, a idéia do Reino de Deus sem relação com as parábolas.

A manifesta tendência eclesiástica que seguem os Sinópticos de interiorizar e espiritualizar a noção do Reino de Deus, despojando-o de seu significado histórico concreto, constitui com toda a probabilidade, a principal motivação teológica para estabelecer a vinculação dessas parábolas com a chegada do Reino.

O Reino aparece como uma irrupção milagrosa e visível em um momento preciso do tempo, como término do processo histórico do cumprimento das promessas a Israel. Se as parábolas estão formuladas para dar coragem e estimular a fé dos discípulos, então haveria de mostrar-lhes que, “apesar das aparências, seus trabalhos dariam fruto, o milagre ocorreria: Deus estabeleceria o reino da terra”. O Reino é futuro e iminente por sua própria natureza de Reino visível sobre uma terra transformada (edênica).

Jesus não pregou um reino nos corações, mas um reino real na terra renovada, isto é, a descida sobre a terra do reino dos céus. O Reino não só é temporalmente iminente mas também espacialmente próximo.
O projeto messiânico-apocalíptico que assume Jesus como herança da fé hebréia _ as promessas de Deus a Israel _ não pode desalojar-se de sua mensagem sem destruir seu sentido _ que se impõe nos Sinópticos no curso de narrações que, apesar de manipuladas, truncadas ou obscurecidas, têm subsistido como testemunho de um Jesus que anuncia a iminência do reino messiânico final.

Os exegetas tidos por respeitáveis têm mostrado uma incurável alergia ao Jesus histórico, ao ponto de afirmar que A. Schweitzer teria apresentado um Jesus fanático, psiquicamente desequilibrado, o que o obrigou a responder-lhes através de sua conhecida obra. Esses exegetas estão em seu direito em apresentar um Jesus espiritual e idílico, que nada tem a ver com o áspero hebreu da Galiléia, porém não deveriam esquecer que para o povo do tempo de Jesus, este defendia sua combativa mensagem em uma fé sem limites, capaz de assumir sem titubear mesmo utopias inverossímeis, como em Mc. 11.22-24: “E respondendo-lhe, Jesus lhe disse: Em verdade vos afirmo, que todo o que disser a este monte: Tira-te e lança-te no mar, e isto sem hesitar no teu coração, mas tendo fé, ele o verá cumprir assim”. Em sua mente se esfumavam as fronteiras entre a experiência externa e a fantasia, fronteiras que só o acontecer cotidiano se encarregava de restabelecer com toda a crueza e às vezes tragicamente.

O que resulta manifesto é que Jesus Nazareno acreditou firmemente na concepção teológica revelada tanto por suas palavras como por seus atos. São portanto inadmissíveis as interpretações puramente alegorizantes ou simbólicas como intencionais do próprio Jesus. Nem à teologia liberal dos reformados, nem à teologia dogmática dos católicos lhes interessa fazer justiça ao Jesus da história. Nenhuma delas aceita que a “redenção” que contemplava Jesus era a vinda do reino escatológico de Deus na terra e não a sacramental salvação de almas para uma vida eterna, espiritual, em um outro mundo.

Pode haver-se pensado a si mesmo como Messias, mas se equivocou em sua esperança de que o Reino chegaria logo. Ainda não chegou...

O 4º. Evangelho marca a linha do abandono do Jesus histórico. A vida eterna, iniciada na terra para ser completada no céu, começa a substituir a ânsia pela chegada do reino de Deus à terra. Jesus não necessitará vir como Messias (mesmo que ainda se anuncie sua chegada para a redenção final na parousia) porque já veio como tal, segundo o 4º. Evangelho.

Porém, justamente na questão chave iminente mas futura, produz-se um hiato entre a fé eclesiástica e as convicções de Jesus. Compreensivelmente, as passagens do Novo Testamento que traziam uma promessa à esperança de comer e beber no Reino de Deus, foram progressivamente passadas em silêncio, ou, quando não, sujeitas a uma reinterpretação “espiritual” ou “alegórica”.

Já desde Paulo, podemos ver o começo de deslocamento para o futuro na doutrina cristã, desde a antecipação da comensalidade no reino de Deus para a esperança de uma vida celestial em um corpo espiritual. Mais tarde, com a emergência da imortalidade da alma, pouco espaço ficava para a perspectiva de comer e beber no reino de Deus.

A crença cristã de que Jesus havia ressuscitado dentre os mortos mostra que a Igreja primitiva buscava igualmente uma nova vida na transformação, não no abandono, da existência física.
O domínio sobre as almas havia sido bem afirmado com a utilização da teologia do 4º. Evangelho. Paulo inicialmente, e depois os escritos do Novo Testamento forneceram os materiais para que as gerações seguintes elaborassem a teologia, não do reino que assoma, mas do ritual de repetição cotidiana do mistério soteriológico passado, segundo o qual um Jesus divinizado e convertido na 2ª. Pessoa do Deus trinitário havia instaurado sua Igreja como detentora da fé e dispensadora da Graça.
Uma nova religião que o Jesus da história, monoteísta, jamais houvera podido imaginar!

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criacionismo e evolucionismo
João Laurindo de Souza Netto


Desde a publicação, em 1859, do ensaio de Charles Darwin "On the origin of species", a idéia de um Deus criador de todas as espécies de seres vivos, sobre os quais, como obra perfeita e insuperável, se colocava o homem, começou a ser discutida e questionada. Contudo, ainda se estava longe de um conhecimento satisfatório dos mecanismos biogenéticos que explicavam o evolucionismo.

Ainda que combatida inicialmente com ferocidade pelos vários credos religiosos e, particularmente, pela Igreja Católica, a teoria evolucionista foi gradativamente, sendo reconhecida pela comunidade científica. E com o passar do tempo, as igrejas fundadas sobre credos teístas foram admitindo a necessidade da aceitação do evolucionismo, ou, pelo menos, de uma conciliação que não as alijasse completamente do avanço científico.

A Igreja Católica, como exemplo maior de uma religião dogmática, resistiu durante quase um século e meio a aceitar a evidência do avanço científico. Sua tenaz resistência se deveu ao fato de que não se tratava, desta vez, de impugnar cláusulas de sua dogmática, ao seu tempo fundamentais mas agora menos importantes _ como o geocentrismo, a autoria e cronologia dos escritos da Bíblia, etc._ mas sim a cláusula básica da fé cristã: a de que Deus criou sobrenaturalmente o primeiro homem, de modo direto e imediato, e logo também a sua alma e a de cada novo indivíduo. Alterar substancialmente este dogma fundador apresentava-se como um desafio inassuntível. Nenhuma concordância parecia viável, nem mesmo como leitura alegórica ou simbólica do Gênesis.

No entanto, apesar de sua inicial condenação radical à hipótese evolucionista, a Igreja Católica, numa mudança impensável cinquenta anos atrás, declarou, em dezembro de 1996, sua aceitação parcial dessa teoria. Vejamos como isso se deu. A Pontifícia Comissão Bíblica _ PCB, instituída em 1902 por Leão XIII para proteger as Sagradas Escrituras da crítica exegética dos Modernistas, emitiu, em 1909, um parecer sobre o caráter histórico dos primeiros capítulos do Gênesis, pelo qual
"afirma-se o sentido literal histórico de fatos narrados, que não se pode pôr em questão, como são, entre outros, a criação de todas as coisas feitas por Deus no princípio do tempo; a peculiar criação do homem; a formação da primeira mulher a a partir do primeiro homem; a unidade do gênero humano".

E acrescentava ainda Leão XIII de modo indiscutível:
"é obrigação de todo crente submeter-se às sentenças do Pontifícia Comissão Bíblica..., do mesmo modo que nos Decretos das Sagradas Congregações referentes a questões doutrinais, sob pena de excomunhão”.

Pouco mais de trinta anos depois, entretanto, a alocução de Pio XII, de 30 de novembro de 1941, dava uma nova e surpreendente interpretação ao distinguir entre Gênesis do corpo e da alma:
"o homem, dotado de alma, foi colocado por Deus no alto da escala dos seres vivos como príncipe e soberano do mundo animal".

A forma dessa declaração parece intencionalmente vaga quanto a determinar se essa colocação ocorreu subitamente, de uma só vez, ou se foi um fenômeno evolutivo. Já não se dizia mais, como em 1909, que se tratava de uma "criação". A alocução de Pio XII agrega um ponto importante:

"não resta senão deixar em suspenso a resposta à pergunta de que se um dia a ciência, iluminada e guiada pela Revelação, poderá oferecer resultados seguros e definitivos sobre tão importante assunto".

O passo inaugural do giro doutrinário estava portanto dado: o texto do Gênesis não é normativo em sua literalidade, uma vez que a ciência pode evoluir.Todavia, é um passo inédito e impensável antes de Darwin.

Na Encíclica Humani Generis, de 12 de agosto de 1950, a preocupação de Pio XII com o evolucionismo se apresenta de forma manifesta, quando afirma:


"o Magistério da Igreja não proibe que, segundo o estado atual das ciências humanas e da sagrada teologia, se trate, nas investigações dos entendidos em um e outro campo, como busca da origem do corpo humano em uma matéria viva preexistente_ pois as almas nos manda a fé católica sustentar que são criadas imediatamente por Deus...”

Já não se fala mais na totalidade _ corpo e alma _ e sim apenas da alma, o que significa um abandono à primitiva interpretação do Gênesis. Em sua "Mensagem à Pontifícia Academia de Ciências", em 22 de outubro de 1996, João Paulo II focalizou os problemas estabelecidos pelas
"origens da vida e evolução, um assunto essencial, que interessa profundamente à Igreja, pois a Revelação, por sua parte, contém ensinamentos concernentes à natureza e às origens do homem.Como as conclusões alcançadas pelas várias disciplinas científicas coincidem com as contidas na mensagem da Revelação? E se à primeira vista há contradições manifestas, em que direção buscaremos sua solução? Sabemos que a verdade não pode contradizer a verdade".

A mensagem rejeita acertadamente a tese de que o discurso da fé não pode entrar em conflito com o discurso científico, e assume o fato de que os referenciais reais de certos enunciados de um e de outro discurso são comuns, tais como a natureza e a origem e estrutura do Universo:
"No domínio da natureza animada e inanimada, a evolução da ciência e suas aplicações suscita novas questões. O Magistério da Igreja tem feito pronunciamentos sobre estas matérias dentro do marco de sua competência".

João Paulo II interpreta a Encíclica Humani Generis, de 1950, como uma declaração de que "não há oposição entre a evolução e a doutrina da fé sobre o homem e sua vocação, com a condição de que não se percam de vista vários pontos indisputáveis".

Estima, ademais, que dita Encíclica considerou a teoria da evolução como "uma hipótese séria, digna de investigação e estudo em profundidade, o mesmo que as hipóteses que se opõem a ela. Hoje, meio século depois da publicação daquela Encíclica, novos conhecimentos levaram ao reconhecimento, na teoria da evolução, de algo mais que uma hipótese É realmente notável que esta teoria tenha sido progressivamente aceita pelos investigadores seguindo uma série de descobrimentos em vários campos do conhecimento A convergência, nem buscada nem fabricada, dos resultados de uma obra que foi conduzida independentemente é, em si mesma, um argumento significativo em favor desta teoria".

Estamos portanto a uma enorme distância da rejeição expressa terminantemente pela declaração do Concílio local de Colônia, de 1860, e também da doutrina da Pontifícia Comissão Bíblica de 1909. A mensagem de João Paulo II, reconhece ainda que: "o Magistério da Igreja é diretamente afetado pela questão da evolução, porque implica na concepção do homem: a Revelação nos ensina que foi criado à imagem e semelhança de Deus".

E citando a Constituição Conciliar Gaudium et Spes, o Papa afirma que: "assim, o homem é a única criatura sobre a Terra que Deus quis por si mesma".

Após todo esse preâmbulo, a Mensagem, de João Paulo II, declara que por todas essas razões "Pio XII acentuara este ponto essencial: se o corpo humano toma sua origem da matéria viva pré existente, a alma espiritual é criada imediatamente por Deus”. Ou seja, a grande inovação contrária ao Gênesis e a Tradição eclesiástica havia sido dada por Pio XII. A Mensagem de João Paulo II não faz mais do que confirmá-la solenemente: evolução biológica imemorial do corpo humano e criação imediata por Deus da alma humana.

A Igreja crê haver posto então uma barreira intransponível contra novas incursões da ciência no domínio sacro. Porém, mais uma vez, está a ponto de equivocar-se, pois o prodigioso avanço das neurociências nas últimas décadas gerou uma situação conflitante para a noção da mente como não sendo manifestação do evolucionismo.

O que acontece agora é que a Mensagem, de João Paulo II, ao mesmo tempo que admite a evolução material, e portanto abre mão da criação direta do homem, como mencionado no Gênesis, exacerbou o dogma da alma imaterial, separável do corpo e imortal Convém então assinalar que o ardor com que se esforça atualmente por concordar, ainda que parcialmente, a ciência com a fé, outorga à Igreja Católica um certo grau de credibilidade por parte da ciência. No entanto, a solução antropológica, radicalmente dualista, que propõe_ cedendo à ciência o corpo e salvaguardando a alma_ acaba por aprofundar a fissura sobre a concepção do ser humano.

A Mensagem, de João Paulo II, penetra fundo nos campos da metafísica: “as ciências da observação descrevem e medem as manifestações múltiplas da vida com precisão crescente e as correlacionam com a linha do tempo. O momento da transição ao espiritual não pode ser objeto desta classe de observação, que, contudo, pode descobrir, no nível experimental uma série de sinais muito valiosos, que indicam o que é específico do ser humano. Porém a experiência do conhecimento metafísico, da consciência e autoreflexão, da consciência moral, da liberdade, ou, de novo, da experiência religiosa e estética, cai dentro da competência da análise e reflexão filosóficas, enquanto que a teologia extrai seu sentido último de acordo com os planos do Criador".

Vê-se, por este trecho, o subjetivismo do pensamento desiderativo e a especulação gerada pelos estímulos da emoção religiosa. O verbalismo da nova solução não é uma rota de progresso na árdua empresa de conhecer, mas uma rota de regresso à reiteração da mentalidade mítico-religiosa, que tenta dar pseudo-soluções aos que não são mais do que pseudo problemas Um verbalismo que não reconcilia nada com nada, pois os polos da antinomia pertencem a âmbitos opostos: corpo e alma.

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fé e profecias

João Laurindo de Souza Netto

Um analista, crítico e objetivo da história das religiões, poderia perguntar-se sobre os mecanismos psicológicos e sociológicos que permitem ao homem de fé seguir crendo nas predições proféticas, mesmo que as mesmas não sejam confirmadas pelos fatos. As três grandes religiões monoteístas do ocidente nasceram de revelações proféticas e se desenvolveram _ cada uma a seu modo e medida _ através de predições e previsões intimamente vinculadas a seu acervo doutrinal e dogmático. Seu contorno histórico é configurado por um processo de promessas de salvação e esperanças de confirmação, que se desenvolve entre um presente _ ou passado_ e um futuro, cujo elo final culminaria com o final dos tempos ou escatologia. Este trânsito, entre o anúncio da mensagem e seu cumprimento, constitui a estrutura da religião de salvação, que é particularmente intensa no judaísmo antigo e no cristianismo.


Do anúncio da iminência do Reino, na terra de Israel, à total desesperança, ocorrida com a morte de Jesus, passou-se, mediante processos mentais peculiaríssimos, ao anúncio de uma parousia _ segunda vinda_ também iminente, e também frustrada pelo inexorável passar do tempo. Dupla predição e dupla decepção. Contudo, a fé dos crentes não só se manteve como se incrementou, e dessa dupla frustração emergiram formas variadas de milenarismos e de adventismos, tanto no seio da Igreja como em seitas diversas.


No tocante às profecias, quando as predições se formulam em uma perspectiva de curto prazo e estão referidas a acontecimentos concretos, seu descumprimento pode determinar o que se chama “paradoxos do eventual descumprimento”. Em um contexto sem indicação precisa de tempo, uma predição profética reduz-se a puro verbalismo e funciona como mera cláusula de um credo. De fato, em Deuteronômio 18.21,22, encontramos:
“ E se tu disseres lá no teu coração: como poderei eu discernir qual é a palavra que o Senhor não disse? Terás este sinal: se o que aquele profeta predisse em nome do Senhor não sucedeu assim: isto não o disse o Senhor, mas o profeta por soberba do seu ânimo o fingiu; e por isso não o temerás”.


Robert P. Carroll, em sua obra “When prophecy fails” – Londres, 1979, ressalta o seguinte fato:
“Um traço importante das declarações proféticas é o fato de que sempre foram feitas a curto prazo. Foram dirigidas a comunidades específicas, e, por conseguinte, as expectativas criadas por elas podiam ou não ser confirmadas pelo transcurso do tempo”.

Afirma ainda Carroll em outro trecho:
“Quando, à generalidade da linguagem e a uma frequente ambigüidade, se acrescenta uma profecia centrada em um desastre ou grande calamidade, só pode existir uma vaga aproximação entre linguagem e acontecimento. Tal vaguidade protegerá muitos oráculos de um fracasso evidente”.


Isto sucede também em vaticínios venturosos, pois a qualificação de um fato depende de critérios subjetivos. No Antigo Testamento, no entanto, predominam os profetas de catástrofes. Os vaticínio de desastre são geralmente inverificáveis em termos concretos, dado que os infortúnios são o preço da história da vida cotidiana. Assim, no Israel antigo, resultava mais difícil corroborar fatos de ventura ou salvação, porque o ser humano está,por sua própria natureza, mais propenso ao lamento que à exaltação.


Em 1956, uma equipe de psicólogos e sociólogos da Universidade de Chicago, dirigida por A. Riecken e S. Schachter, deu a conhecer o resultado de um estudo de campo _ realizado com os melhores instrumentos de observação_ destinado a identificar os mecanismos pelos quais o fracasso das predições pode tender, paradoxalmente, a incrementar a fé e estender sua difusão (A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World _ Minneapolis, 1956).


O objeto do estudo recaiu em uma pequena seita, que nunca excedeu trinta adeptos, dirigida pelo médico Thomas Armstrong e por Maria Keech. Armstrong, interessado em misticismo, ciências ocultas e discos voadores, reconhecia a liderança de Keech, que funcionava como núcleo da atenção e da atividade. Seres espirituais, chamados por Keech os “guardiões”, haviam-lhe enviado “mensagens” procedentes de outros planetas, as quais ela transcrevia por um suposto mecanismo de “ escrita automática” e que constituíam o sistema de crenças religiosas da seita _ semelhantes ao pensamento cristão tradicional, de caráter apocalíptico e adventista.


As mensagens começaram a predizer a iminência de um grande desastre: o dilúvio que alagaria o mundo, mas do qual seriam salvos os que cressem nas lições ministradas por Keech. Antes do desastre, extraterrestres se transladariam em discos voadores para conduzir os fiéis a um lugar seguro _ presumivelmente num outro planeta.


Festinger, Rieckem e Schachter, que observavam os preparativos semanas antes da data do dilúvio, observaram quatro aspectos significativos do comportamento dos adeptos: 1) alto grau de compromisso com o sistema de crenças da seita; 2) certeza de estar em posse da verdade; 3) indiferença em fazer prosélitos; 4) secretismo e inibição ante os meios de comunicação.


O dia fixado para a catástrofe era 21 de dezembro de 1950. À medida que se acercava o dia, os adeptos se fixaram em um silêncio expectante, enquanto faziam os últimos preparativos. Quando faltavam quatro minutos para a meia noite, a tensão e a ansiedade alcançaram seu grau máximo. E quando se ouviu as 12 badaladas, os Buscadores (Seekers), como se chamavam a si mesmos, permaneceram rigidamente imóveis. Contudo, não apareceu nenhum guia para resgatá-los. Ante essa falha, caberia esperar que o grupo se desintegrasse, porém, ao contrário, pareciam estar satisfeitos com as novas mensagens de Keech, segundo as quais, Deus teria ficado tão impressionado pela luz difundida pela seita que havia resolvido salvar o mundo da destruição, dilatando o prazo. Entretanto, a expectativa adicional de que os fiéis seriam recolhidos no dia 24 de dezembro também falhou.


Essa segunda falha gerou um estado de ânimo de dolorosa desesperação e confusão, ainda que Armstrong e Keech reiterassem a sua fé. Falava-se então abertamente em fracasso. Quando a seita parecia estar prestes a se dissolver, teve lugar um incidente notável, assim descrito por Festinger e seus colegas:
“A atmosfera do grupo mudou bruscamente. Poucos minutos depois de haver lido a mensagem Keech recebeu outra, na qual lhe indicava que deveria dar publicidade à explicação. Todo o grupo se sentiu identificado com ela e os adeptos passaram a revelar aos meios de comunicação assuntos até então considerados secretos. Todos buscavam avidamente a publicidade.”


Foi, pois, um giro radical do segredo para a divulgação. E, de repente, decidiu-se fazer proselitismo. Armstrong e Keech pareciam não vacilar em sua fé e Keech procurava intensamente receber as mensagens do espaço exterior. No entanto, muitos membros se sentiram decepcionados e separaram-se do grupo. Isso exigia a busca de novos conversos para preencher suas vagas. Armstrong chegou a declarar: “Tive que percorrer um grande caminho. Abandonei a maior parte do que tinha. Queimei quase todas as pontes atrás de mim. Não posso permitir-me duvidar. Não há outra verdade.”


O cientista social R.B. Cialdini, analisando o trabalho do grupo de Festinger, assim se expressou:
“Ao grupo só restava um saída. Tinha que estabelecer outro tipo de demonstração para dar validade a suas crenças: a sanção social e, portanto, o proselitismo, era a única esperança que lhes restava. De acordo com o princípio da sanção social, quanto maior o número de pessoas que aderem a uma idéia, maior a possibilidade de que esta idéia seja correta. A missão do grupo era clara: posto que não podia mudar a realidade, haveria de conseguir a sanção social”.


Repete-se a história das mensagens apocalípticas de salvação. Como indica ainda Cialdini:
“Arriscando-se a serem ridicularizados, lançam-se às ruas afirmando publicamente o seu dogma e buscando com um fervor que se intensifica em lugar de diminuir. O proselitismo é um imperativo de sobrevivência para uma fé falida, uma necessidade psicológica de preencher um vazio subjetivamente insuportável”.

Segundo Festinger, as condições para que se incremente a ação proselitista e a fé, após o descumprimento das profecias, são as seguintes:
1. firme convicção na crença
2. compromisso com a fé
3. crença suficientemente específica em sua conexão com o mundo real, de modo que os acontecimentos possam desmentir a fé, resultando a necessidade do proselitismo
4. apoio social desfrutado pelo crente
5. fracasso ou descumprimento reconhecidos pelo crente.
As condições 1 e 2 precisam as circunstâncias que fazem uma crença refratária à mudança. As condições 3 e 4 indicam fatores que exercerão pressão social sobre o crente para que abandone sua crença (caso em que o proselitismo torna-se vital). A condição 5 assinala as circunstâncias nas quais o crente pode ser capaz de manter a sua crença.


Os elementos que configuram uma resposta possível ao descumprimento das profecias, de acordo com Festinger, são de três ordens:
1. técnicas que evitem a dissonância: exclusão do grupo dos indivíduos ou coletivos que mantenham opiniões divergentes
2. esquemas explicativos: racionalizações de cognições que apresentem desconformidades com as crenças ou predições
3. apoio social e proselitismo. Hábeis métodos de polêmica são a base do proselitismo.

R.P.Carroll, em sua análise, acrescenta que “se mais e mais pessoas vêm compartilhar das crenças cognitivas do grupo, então, admite-se, deve haver algo correto ou influente nessas crenças”.


O proselitismo alcança seus máximos níveis de urgência nos momentos iniciais de tomada de consciência do fracasso profético, porém jamais se interrompe, pois a sombra do fracasso profético espreita, com intermitência, qualquer debilidade no esforço de persuasão. Em conseqüência, o esforço apologético deve ser constante.


Como ilustração complementar ao caso dos Seekers, pode-se citar, entre outros, dois casos interessantes de obsessão na defesa de uma fé impossível ante a evidência dos fatos. A seita das Testemunhas de Jeová é um vasto grupo adventista e fundamentalista bem conhecido, cuja doutrina prega a existência de um “escravo” fiel, que vive na Terra e a quem “estão confiados todos os interesses terrestres de Jesus”. Este notabilíssimo escravo está representado em formas visíveis pelo Colégio Central das Testemunhas de Jeová, citando MT.24.45-47:
“Quem crês que é o servo fiel e prudente, a quem seu Senhor pôs sobre a sua família, para que lhes dê de comer a tempo? Bem-aventurado aquele servo, a quem o Senhor tarda em vir. Na verdade vos digo, que ele o constituirá administrador de todos os seus bens”.

Para os adeptos da seita, em 1914 havia terminado o tempo da religião dos gentios, o Reino de Deus havia sido já estabelecido nos céus e a parousia anunciada, da segunda vinda de Cristo havia também começado, conforme Lc.21.7-24 e Apoc.1.15-2.10. A grande batalha final, Armagedon, está próxima, citando Apoc.16.14, 19.11-21, e será seguida pelo reino milenário de Cristo, que instaurará o Paraíso sobre a Terra nesta geração. Enquanto isso acontece, os 144.000 “ungidos”, tranformados em entes sobrenaturais, subirão finalmente aos céus; e os fiéis de outras religiões, ou carentes de religião, serão aniquilados na “segunda morte”, pois a alma não é imortal.


A datação para esta policrômica escatologia teve que ser sucessivamente retificada, assim como vários pontos da doutrina. Do ano de 1914 passaram à pregação de 1918 e, posteriormente a 1925,1930,1975 e 1986. As dissonâncias cognitivas deixam, contudo, incompreensivelmente incólume a fé destas surpreendentes testemunhas.


J. Vernette, em seu livro “Les Sectes”, Paris, 1991, conta as causas da manutenção desta crença:

“O fracasso da predição é interpretado como fator de credibilidade incrementada, segundo um processo de cinco tempos:
1. curto período de decepção geral
2. reexame dos textos e descobrimento de que algo se produziu, porém de forma invisível
3. reassunção de fragmentos de predições frustradas, para formação de novo esquema profético
4. insistência nas catástrofes, comoções e problemas do mundo moderno, para mostrar que a seita sempre teve razão em anunciar o fim do mundo para logo
5. modificação dos textos para fazê-los corresponder à realidade (mudanças de datas previstas para o acontecimento). Num segundo passo, o erro se converte em uma razão suplementar para crer, sendo o sinal de que Jeová acaba de conceder um complemento de verdade”.


Haverá nos Seekers ou nas Testemunhas de Jeová insânia moral? Podemos pensar, com benevolência, que na inverossímil resposta ao desfio que o descumprimento das profecias apresenta, há, em qualquer caso, um elevado grau de desordem na sindérese dos crentes, que altera o bom funcionamento dos seus mecanismos perceptivos e intelectivos.


Vejamos um outro caso. Também aqui manifesta-se o fenômeno paradoxal de que quando as pessoas se entregam a uma fé, provas claras em contrário podem simplesmente levar a uma convicção mais firme e a um maior proselitismo. A obra que narra o caso de Sabbatai Zevi foi escrita por G. Scholem sob o título “The Mystical Messiah 1626-1676”, Londres (1973), no contexto histórico de uma crença que surgiu entre os judeus da Turquia. Segundo essa crença, o Messias deveria manifestar-se na Judéia, em 1648, para inaugurar o Reino Messiânico. Em 1648, Sabbatai Zevi proclamou-se o Messias para um pequeno grupo de seguidores. O descumprimento da predição naquele ano não o desalentou. Continuou fazendo proselitismo e, em 1665, renovou sua proclamação messiânica, provocando a acolhida entusiasmada de muitos judeus residentes na Europa, que venderam suas propriedades e se prepararam para retornar a Jerusalém. Em 1666, Sabbatai Zevi e seus seguidores dirigiram-se a Constantinopla, coma intenção de depor o Sultão como ato preliminar dos judeus à Terra Santa. Foi, no entanto, detido e encarcerado.

Esse fracasso, porém, não conduziu ao colapso do movimento, mas, ao contrário, o incrementou. Sabbatai converteu-se ao islamismo, sendo seguido por alguns de seu grupo, enquanto outros continuaram, em seu nome, a tarefa de fazer prosélitos para a causa. Finalmente, o movimento foi perdendo adeptos, restando contudo um núcleo de relativa importância que subsiste até hoje no Oriente Médio.

R.P. Carroll comenta este assunto da seguinte maneira:
“A dissonância causada pelo descumprimento das expectativas pode modificar-se pela busca de explicações razoáveis; o fato de que Sabbatai Zevi estivesse ainda vivo na prisão, era prova de sua condição de Messias. Para que tais racionalizações sejam efetivas, requerem forte apoio social. Se o apoio social for ganho através do aumento de novos prosélitos, então a dissonância tende a reduzir-se”.
Scholem resume a essência da convicção dos crentes em uma frase: “É inconcebível que a totalidade do povo de Deus erre intimamente, portanto, se sua experiência é contestada pelos fatos, então são os fatos que devem ser explicados”. Em realidade os seguidores de Sabbatai decidiram que o descumprimento foi parte de um plano divino. E nisto estavam (conscientemente ou não) seguindo o precedente estabelecido por anteriores transmissores bíblicos a respeito de profetas que enganavam a seus ouvintes, como em Jeremias 4.10:
“ E eu disse: ai,ai,ai, Senhor Deus. É possível que enganaste a este povo e a Jerusalém, dizendo-lhes: Vós tereis paz. E eis agora lhes chega a espada a te a alma.”
Em Ezequiel, 14.9, temos:
“E quando algum profeta errar, e falar qualquer palavra: eu, o Senhor, sou o que enganei este profeta: mas eu estenderei a minha mão sobre ele, e o exterminarei do meu povo de Israel”.
Um plano divino é o artifício que explica tudo, que pode outorgar coerência a um desenlace imanejável. Isto é familiar a quem recorda Romanos 3,21-26:
“Mas agora sem a lei se tem manifestado a justiça de Deus: testificada pela lei, e pelos profetas. E a justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo em todos, e sobre todos os que crêem nele: porque não há nisto distinção alguma. Porque todos pecaram, e ficaram privados da glória de Deus tendo sido justificados gratuitamente por sua graça, pela redenção que têm em Jesus Cristo. Ao qual propôs Deus para ser vítima da propiciação pela fé no seu sangue, a fim de manifestar a sua justiça pela remissão dos delitos passados, na paciência de Deus, para demonstração de sua justiça neste tempo: a fim de que ele seja achado justo, e justificador daquele que tem a fé em Jesus Cristo”.

O mais inverossímil é legitimado desde que, supostamente, Deus onipotente o tenha preordenado. Os fenômenos de profecia descumprida e fortalecimento subseqüente da fé são todos da mesma natureza, quer sejam os Seekers, Testemunhas de Jeová, Sabbataianos ou Cristãos, embora estes recusem admitir qualquer semelhança com os demais. Apenas variam as circunstâncias de tempo e lugar, assim como as motivações pessoais de seus protagonistas e adeptos. Evidentemente, a fé dos cristãos de hoje não se originou mediante os mesmos mecanismos que a fé dos cristãos primitivos. Esta se forjou em processos de solidariedade social, enquanto que a nova fé é baseada em modelos de racionalização e reinterpretação num clima de elevado ardor proselitista. A fé dos cristãos de hoje é uma fé herdada mediante uma tradição que experimentou numerosas manipulações – interpolações, adições, supressões e modificações dos textos mais antigos, muito embora sem alterar seu núcleo e fontes originais. É baseada no sentimento de segurança e poder que outorga o saber-se membro de uma potência temível e universal.

A fé religiosa adquire-se mediante os conhecidos mecanismos de reprodução ideológica que funcionam em toda a sociedade.É pois, o resultado das primeiras fases do aprendizado social, cujas agências básicas são o lar e a escola. A fé é adquirida na infância, quando o indivíduo está sob a pressão _ e ao mesmo tempo sob a proteção e o cuidado_ de um superego potentíssimo que molda e permite simultaneamente a maturação do ego. A fé é geralmente abandonada através de experiências pessoais e variadas, no bojo de processos vitais complexos, normalmente intensos e extensos, que exigem uma considerável inversão de energia psíquica, tanto no plano emotivo quanto no intelectivo.

Na crise da fé se põe à prova a força e o equilíbrio do ego como núcleo da personalidade. Ainda que os fatores afetivos ou emocionais desempenhem um papel relevante, um elevado nível de formalização intelectual é indispensável _ e pode ser determinante_ para o abandono da fé. Sensibilidade, inteligência e informação _ só fornecidos por um certo nível de cultura _ mais uma vontade de discernimento verdadeiro, por cima dos preconceitos herdados, são o motor capaz de liberar das ataduras da fé. As igrejas sabem isto muito bem, e por isso obstaculizam por todos os meios ao seu alcance as pretensões epistemológicas e o debate intelectual sobre a origem de seus credos. Uma fé religiosa sem um refinamento intelectual que lhe forneça a munição necessária para compreender, é uma causa perdida.

No caso da religião católica, nada do anunciado _ Reino Iminente na Terra, ação proselitista para converter todas as criaturas durante a vida de Jesus, fundação de uma igreja por Jesus (evangelhos) _ se cumpriu, porém houve uma crucificação inesperada. Os evangelistas, várias décadas mais tarde, montariam seus relatos a serviço da Igreja cristã, seguindo o modelo de Marcos, desenhado para exonerar os romanos do martírio de Jesus e atribuir toda a culpa aos judeus, apresentados como povo deicida. Desde então todos os apologistas concordariam com toda a sorte de contradições dos textos neotestamentários a fim de mascarar as antinomias e incongruências do discurso cristão.

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as cruzadas
João Laurindo de Souza Netto


Ao aproximar-se o tempo do término do primeiro milênio(ano 1000), os papas se encontravam quase sob a absoluta dependência da nobreza romana. Esta, havia se apoderado, na pratica, da instituição pontifícia, e havia conseguido que o chamado “trono de São Pedro” fosse ocupado por seus próprios representantes, nenhum deles com mérito doutrinal algum, porém todos ansiosos por gozar as prerrogativas materiais que tal cargo comportava. Esta situação, curiosamente silenciada por uma Igreja que parecia simplesmente deixar passar, foi no entanto enfrentada com vigor pela Ordem de Cluny, que decidiu impor, secretamente, esperando por um momento melhor para recuperação do antigo prestigio eclesiástico, seus projetos de independência de reis, nobres e imperadores.

Cluny era uma instituição monástica, reformada do beneditismo primitivo, que pretendia implantar um projeto imperialista de teocracia universal, de tal modo que a Igreja fosse capaz de impor sua vontade de domínio absoluto sobre aquela sociedade, então submissa às autoridades temporais. Para Cluny, a Igreja não deveria depender da nobreza da antiga Cidade Imperial (Roma), mas sim esta daquela. Assim, seus membros deveriam, gradativamente, perder sua condição de conjunto de indivíduos unidos por um propósito religioso, para converter-se em um sistema de poder no qual todos os seus componentes responderiam às necessidades de um paradigma que teria que cumprir-se a qualquer custo: o Império Cristão.
Nesse panorama, o papa passava a ser apenas uma figura representativa, que cumpriria o paradigma. Nem sequer importava que, nos últimos tempos, tal figura estivesse representada até mesmo, para atender os interesses da nobreza, por menores de idade, por assassinos, por degenerados, por incapazes, por ambiciosos, por homossexuais ou, inclusive, por indivíduos com idéias heréticas. Tampouco importava que se deixassem dominar por imperadores ambiciosos e por reis que queriam adquirir as máximas cotas de poder. O que contava realmente era assumir o poder como instituição superior, a cujo serviço haveria de se por toda a cristandade, para conformar um mundo unificado, comandado, supostamente, pelo poder teocrático, mas na verdade tutelado pela nobreza.

O papa Gregório V viveu, dentro desse panorama, ate 999. Após sua morte, o abade Odilon, Geral da Ordem de Cluny, conseguiu o apoio do imperador Otón para a indicação de Gerbert d’Aurillac, um monge de 45 anos, que havia sido preparado pela Ordem de Cluny para ser a cabeça da cristandade, naquela grande operação eclesiástica que Cluny havia iniciado secretamente para fazer explodir sua bomba imperialista de domínio universal.

Gerbert d’Aurillac é, possivelmente, a personalidade mais importante da Idade Media cristã. Ingressou na Ordem de Cluny quando já era professor da escola universitária de Reims e arcebispo de Ravena. Em Toledo e em Córdoba aprofundou seus conhecimentos das ciências puras muçulmanas – matemática e física – e introduziu no mundo cristão os números arábicos, do matemático Al Kwarismi. Era também versado em ciências ocultas como alquimia e astrologia, o que lhe permitiu adquirir um prestigio hipertrofiado, que lhe proporcionou muita fama, alem de rodeá-lo de lendas. Assumiu a tiara pontifícia (papado) com o nome de Silvestre II.

Graças à força disciplinada e unitária que desenvolveu como papa, e também às mudanças radicais que implantou em uma Igreja à beira da desintegração total, o trabalho de Silvestre II nos anos seguintes preparou a implantação de um imperialismo pujante e impetuoso, capaz de conduzir o cristianismo aos caminhos sonhados por Paulo. Contudo, Silvestre II morreu em 1003, mas não antes de conseguir que todos os paises da Europa Medieval passassem a depender de uma Roma pontifícia, que ditaria o comportamento dos governantes com a força moral que lhe dava a pregação da posse da verdade absoluta.

Na verdade, Otón III, que morreu em 1002, e Silvestre II, realizaram, em conjunto, um intento de criação de um Império cósmico que converteria Roma na Cidade Eterna: seria a “Universitas Christiana”, uma comunidade de sábios unidos pelo acatamento à fé crista.

Assim, no começo do 2o milênio do cristianismo estavam já estabelecidas as bases do Império Universal da Igreja, ainda que os resultados tardassem algum tempo para concretizar-se, tendo em vista que os sucessores de Silvestre II não apresentaram as qualidades necessárias para aquele intento.

Entretanto, apesar de todos os altibaixos que atravessou na seqüência, a Igreja, graças ao legado disciplinador de Silvestre II, pôde retomar seu poder e influência no mundo de então. Porém, se este poder foi aceito pelos Estados da Europa Ocidental, cujas Igrejas estavam dominadas pela influencia de Cluny, não o foi pelo patriarcado do Oriente bizantino. O patriarca de Constantinopla rechaçava de plano qualquer dependência ao papado romano e qualquer perda de autoridade sobre as Igrejas, chamadas ortodoxas, que tinha sob sua jurisdição e que diferiam da Igreja romana na aceitação de certos dogmas considerados fundamentais por esta. E as duas Igrejas, que formavam a cabeça da cristandade, excomungaram-se mutuamente, o que constituiu o primeiro grande cisma do cristianismo.

Pouco a pouco as duas Igrejas católicas, a de Roma (catolicismo romano), e a de Constantinopla (catolicismo ortodoxo), foram se distanciando até traçar entre ambas um abismo que haveria logo de cobrir-se de sangue e destruição. Metade da cristandade havia deixado de sê-lo aos olhos da outra metade. À perda territorial e humana que havia sofrido a Igreja de Roma, determinada pela expansão islâmica, se unia agora o desgarre, ainda mais visceral, ocasionado pela separação do mundo bizantino, saído dos mesmos princípios fundamentais do cristianismo.

A Igreja romana, genericamente – a Igreja – tinha a necessidade de encontrar um motivo que fosse capaz de unir “sua” cristandade em um esquema unitário, capaz de aglutinar todos os crentes sob um mesmo e único credo. Deveria ser um projeto como aquele que já dava seus frutos na península Ibérica, onde a penetração da fortíssima e influente Ordem de Cluny tinha conseguido despertar em distintos reinos cristãos o espírito de cruzada que, sob o comando de Cid El Campeador, conduziria à Reconquista total, que terminaria com a presença islâmica no território espanhol e daria origem ao Estado mais fervorosamente católico daquela época.

As relações da Igreja romana com o Império giraram para a submissão deste à vontade pontifícia, numa luta de poder em que destacou-se o monge Hildebrando, da Ordem de Cluny, depois convertido, com o nome de Gregório VII (1073), no mais firme defensor da primazia papal, cuja meta era impor uma ditadura espiritual para estabelecer definitivamente o domínio eclesiástico como desejo divino, que todos deveriam acatar. Gregório VII, porém, morreu sem alcançar seus propósitos, mas não sem abrir os caminhos para o inicio do Império Pontifício, que deveria submeter à vontade da Igreja de Roma, em nome do Criador, aquela outra metade da cristandade que havia ficado fora do seu âmbito de poder, a Igreja Ortodoxa.

Em 1088, outro monge de Cluny, Eudes, ascendeu ao pontificado com o nome de Urbano II. Em 1095, Urbano II convocou o Concilio de Clermont-Ferrand, no qual a Igreja iria impor sua vontade a toda a cristandade, sem contar para nada com a aquiescência de qualquer autoridade civil: em uma alocução “urbi et orbe” (para a cidade e para o mundo), exortou a todos para que, como soldados de Cristo, atendessem `a convocação de participar das “Santas Cruzadas”, contra os infiéis (muçulmanos). Segundo ele: “é Cristo quem ordena que expulsemos estes entes desprezíveis das terras habitadas por nossos irmãos. Aos que forem e perderem a vida durante a viagem, por terra ou por mar, ou na batalha, ser-lhe-ão perdoados todos os pecados. Aqueles que até agora foram bandidos, façam-se soldados de Cristo e ganhem dupla recompensa.”

A idéia, por trás da convocação, era obter a adesão dos bizantinos, formando uma frente única contra os muçulmanos sob a proteção da Igreja de Roma que, então poderia reclamar a união das duas Igrejas sob um único poder, o da Igreja de Roma. Como isto não se concretizou, a Igreja de Roma, através de seu pontífice, acabava de ordenar, com toda a autoridade que Deus supostamente lhe havia concedido, aquilo que se transformaria numa das mais horrorosas matanças que a historia registrou: os duzentos anos seguintes foram de morte e destruição, durante os quais não só foram enfrentados infiéis e hereges, mas também foram enfrentados a sangue e fogo outros cristãos pela única razão de dissentirem de alguns dogmas e praticarem a liturgia com variantes que a ortodoxia romana não aceitava.

A chamada da Igreja foi acolhida com inusitado entusiasmo por uma Europa à beira do colapso. Os desastres ecológicos e econômicos que haviam seguido o início do 2o milênio – migrações violentas dos povos do Norte, caindo sobre os do Sul, fome generalizada, pressões feudais sobre os camponeses, e “sinais”, que supostamente anunciavam mais calamidades se o “povo de Deus” não reagisse contra a intervenção do “Maligno” e libertasse os Lugares Santos de Jerusalém, fizeram que a mensagem papal fosse aceita unanimemente. A idéia foi admitida por todos, mas com tanto mais entusiasmo quanto mais penosa era a situação que atravessavam.

Por isso os mais pobres foram os primeiros a se lançar naquela aventura e também os primeiros a sofrer as conseqüências. Pois se aos grandes lhes impulsionava o perdão dos pecados, aos abandonados da fortuna lhes atraia a esperança de enriquecer. A eles se dirigiam os sermões entusiastas de Pedro, o Eremita, e Walter Sans-Avoir, entre outros.

A chegada das primeiras levas deu-se antes do previsto, e os bizantinos ortodoxos, que haviam aceitado a “desinteressada” ajuda dos católicos romanos, encontraram-se com uma nuvem de esfarrapados e famintos, ávidos por saciar sua fome e sem saber sequer onde se encontravam. Enquanto os bizantinos das fronteiras pediam instruções a Constantinopla para decidir o que fazer com eles, aquela massa famélica entrava em suas casas e saqueava tudo. Foi então que a resistência eclodiu com toda a força. As tropas bizantinas lançaram-se contra os invasores e após vários choques, cento e quarenta seguidores de Walter Sans-Avoir foram encerrados numa Igreja e queimados vivos. Os demais foram retidos às portas de Constantinopla sem a mínima ajuda que lhes permitisse sobreviver. Os seguidores de Pedro, o Eremita, em iguais condições de penúria, assaltaram povoados e cidades da Hungria e mataram, em um só dia, quatro mil pessoas daquele pai’s, incendiaram os celeiros e profanaram os lares, arrebatando esposas de seus maridos. Todos se mantinham entre assassinatos e saques e ainda se vangloriavam proclamando que fariam o mesmo na terra dos turcos.
Contudo, a campanha não foi um caminho de rosas; antes, uma vereda marcada pela morte e pelo sofrimento. Antes de transcorrido um ano da convocação de Urbano II, as mortes dos chamados cruzados – porque costuravam uma cruz de tela em suas roupas – já superavam dez mil. Outros contingentes no entanto, conseguiram atravessar o território bizantino e chegaram à Anatólia (atual Turquia), onde foram totalmente destruídos, sendo os mortos avaliados em mais de vinte mil. Consta que os esqueletos formavam uma pilha gigantesca, onde os sobreviventes se escondiam, como se fora um mausoléu.

Em inícios de 1099, um exército medianamente organizado foi enviado para a conquista da Terra Santa, além de sucessivas milícias de improvisados cruzados, que partiam umas após as outras. Naarat, na Síria, era uma pequena cidade de menos de 10.000 habitantes. Os cruzados cercaram essa cidade, que propôs uma rendição com garantias. No entanto, a tomada do lugar resultou numa carnificina. Ao longo de três dias os cruzados passaram a fio de espada toda a população. Essas eram as tropas de Deus, que a Igreja havia mandado com o piedoso fim de recuperar os Lugares Santos.

Em 15 de julho de 1099 foi concluída a retomada de Jerusalém, quando incontáveis sarracenos foram decapitados e outros queimados vivos. Após vencer a resistência das muralhas, os vencedores se lançaram sobre os que corriam para refugiar-se nas ruínas do Templo de Salomão, sem distinguir entre guerreiros, velhos, mulheres e crianças, matando-as a todos. Isto sucedia enquanto os cruzados vitoriosos, cheios de fé, corriam a dar Graças no Santo Sepulcro, que, na verdade, nunca havia sido profanado por aqueles sarracenos que jaziam mortos nas ruas de Jerusalém. O saldo dessa luta foi avaliado em 137.000 mortos: 76.000 cristãos e 61.000 muçulmanos.

Durante esse tempo, o papa e sua corte, uma vez instaurada a monarquia eclesiástica que Cluny havia estruturado, tratavam de impor aos cristãos do Oriente as verdades dos dogmas em litígio, procurando mostrar-lhes que toda aquela prática guerreira iria afetar-lhes ainda mais diretamente que aos muçulmanos. Mas os cristãos ortodoxos rebatiam dizendo que também eles agiam em nome de Deus. E as duas Igrejas católicas continuaram separadas.

As Cruzadas, através de oito convocações sucessivas, constituíram um recurso ao qual os papas recorriam cada vez que necessitavam demonstrar sua autoridade e impô-la ante qualquer inicio de demonstração de poder laico. A perda de Jerusalém, menos de cem anos depois de haver sido conquistada, não significou nada para Roma. Ao contrario constituiu um motivo para lançar mão sempre que as circunstâncias assim o reclamassem. Foram dois séculos de sangria ininterrupta. A Igreja, como instituição e como fonte de poder, só cuidou de se fazer cada vez mais influente na sociedade daqueles tempos e de frear, quanto possível, qualquer intento, dessa sociedade, de proporcionar crescentes graus de liberdade a seus indivíduos. Por isso, aprofundar no saber islâmico, assim como penetrar na autentica espiritualidade ou lutar pelo respeito às convicções do individuo era tido como coisa de hereges. E tudo o que não fosse acatar de olhos fechados a doutrina propalada pela Igreja a seus seguidores – independentemente dos largos limites que se concedia a si mesma e a sua corte – era objeto de ameaça, de castigo ou de excomunhão.
Que correlação se pode fazer com o poder e a ação dos Estados Unidos no mundo de hoje?

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o cristianismo
João Laurindo de Souza Netto

O fenômeno cristão é um fato único e irrepetível, não no sentido teológico de um credo superior a todos os outros e revelado definitivamente por Deus como “a verdade”, nem no sentido de máximo desenvolvimento e síntese da religião em seus conteúdos e funções, mas porque é o único caso no qual se pode observar como um mito, o “mito cristão”, vai crescendo, de forma gradativa, confusa, mas visível, como resultado de uma fratura incurável, primeiro, e de uma flagrante antítese, depois, entre o Jesus da história e o Cristo da fé.

Este credo, tão contraditório e paradoxal, não tem paralelo em nenhuma outra religião monoteísta, nem no Antigo Testamento, nem no Corão, nem na floresta de mitologias orientalistas e nem tampouco nas sabedorias de fundo religioso como o budismo, o confucionismo ou o xintoísmo, e, por isso mesmo, não pode ser um fenômeno generalizável. Assim, pois, o fenômeno cristão deve ser analisado em sua concreta origem histórica e se faz, posteriormente,ininteligível como religião que, surgida num “onde” e num “quando” identificáveis, se transforma num verdadeiro cataclisma teológico e ideológico, em si mesmo irrepetível. Assim, o fenômeno cristão há que ser analisado como fenômeno religioso que adquire seu genuíno sentido em um marco documental referido a um tempo e a um lugar geográfico precisos, sem se poder deixar de lembrar sempre que Jesus não foi um cristão, foi um judeu transformado, depois de sua morte, no “Filho de Deus feito Homem”.

O cristianismo é pois um fenômeno constitutivamente híbrido e ambíguo. Híbrido porque seus fundamentos são judaicos e helenísticos. Ambíguo porque, de um lado, apresenta a doutrina de Paulo, de total submissão e obediência aos poderosos do mundo, a chamada obediência civil pregada em Romanos 13.1-7 e em Efésios 6.5; de outro, a relegação das realidades terrenas com vistas à obediência exclusiva à Igreja para a salvação da alma num mundo do Além, conforme Filipenses 3.20-21.

Na Gênese do cristianismo situa-se um hiato entre a figura do Jesus histórico, que assumiu com exemplar e trágica seriedade o oráculo messiânico da esperança de libertação de Israel do jugo romano, e aquele que seus seguidores acreditaram ver como um ser sobrenatural, ressuscitado, Messias, que ascendeu aos céus, mas que deveria retornar em brevíssimo tempo para instaurar, na Nova Jerusalém, o Reino que ele acreditou, antes de sua paixão, estar já ao alcance da mão. Não estava.

Não é possível saber com certeza se algumas das parábolas do Reino de Deus procedem diretamente de Jesus. Porém, mesmo neste caso,sua interpretação adequada haveria de situar o Reino na perspectiva de um acontecimento súbito e iminente, que alcançaria o seu pleno e efetivo cumprimento conclusivo por aqueles mesmos dias, no solo da Palestina. Mas o que verdadeiramente ocorreu foi que, embora Jesus esperasse que esse grande acontecimento escatológico irrompesse antes de concluir seu próprio ministério, os escritores sinópticos dilataram os prazos e transformaram as perspectivas com sua idéia de uma segunda parousia gloriosa. Isso quer dizer que os autores sinópticos, por não viverem a mesma experiência de Jesus, aquela experiência de alta temperatura messiânica, reinterpretaram essa intensa e angustiosa experiência em termos de uma teologia de novíssima orientação e diverso significado. A urgência de inserir a experiência de Jesus nessa nova perspectiva _ crucificação e ressurreição como ponto de partida da era da Igreja_ impulsionou os sinópticos para a tarefa de construir o acontecimento escatológico com categorias apocalípticas, como o “Filho do Homem”, a “Parousia” (2ª. Vinda), etc, que se inscreviam já em um marco doutrinal que tendia a interpretar aquele acontecimento em um contexto de passado, transformando essencialmente o sentido da escatologia; isto significou arrancá-la de sua matriz judia para inseri-la na concepção das soteriologias helenísticas.

O acontecimento, interpretado desta forma, implicava no entanto na instauração de um reino presente-futuro, como uma realidade espiritual que se prolonga no tempo histórico; um “já” da salvação que chegaria ao seu ápice somente no término da segunda vinda, no final dos tempos. O vocábulo “christós” vai se esvaziando de sua conotação adjetiva messiânica e convertendo-se na função denotativa de um nome próprio. Da dupla dimensão presente-futura, contrariamente à expectativa, o primeiro termo vai crescendo em importância e o segundo debilitando-se na sua vivência de cada dia.

Esta é a radical novidade que introduzem os autores do Novo Testamento na esperança messiânica, arruinando assim a significação original da idéia escatológica, pois o Jesus histórico aparece sempre, não definindo ou interpretando o significado do Reino de Deus, mas, simplesmente, anunciando-o como algo iminente e de significação objetiva: Jesus falava do reino de Deus nesta terra.

Contudo, para Paulo, que veio depois, a vida do Jesus histórico era só uma breve manifestação incidental, no espaço e no tempo, de um plano divino para a salvação da humanidade. O essencial, para ele, era que, mediante a identificação mística com o Cristo crucificado e ressuscitado, o cristão se transformava em um novo ser que morre e renasce com o Salvador, sendo o “já” do renascimento um acontecimento a ter lugar no final dos tempos, após a parousia. E assim o cristianismo se transformou em uma soteriologia universalista, que chegou aos nossos dias, através da Igreja, como uma instituição espiritual e temporal que tende a invadir todas as esferas da vida humana.

A tarefa do Agnosticismo é pois não perder de vista o caráter híbrido e ambíguo do cristianismo,buscando sempre afirmar-se como uma “doutrina libertadora”.

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a nova religiosidade: o movimento new age
João Laurindo de Souza Netto


1ª Fase:


A história dos novos movimentos religiosos deve ser considerada em duas fases. A primeira surgiu nos Estados Unidos pelo final da década de sessenta, a partir da chamada “Revolução das Flores” e do movimento de contracultura juvenil que lhe estava vinculado. Muito embora essa revolução tivesse inicialmente um caráter político, foi logo envolvida por movimentos de inspiração cristã e, também, oriental, que abrangiam desde o Jesus People até a meditação transcendental. Tais movimentos constituíam a expressão de dois aspectos fundamentais da mudança religiosa que então se produzia: por um lado, o aparecimento de movimentos cristãos de tipo fundamentalista, que iriam extravasar suas doutrinas pelos decênios seguintes; por outro lado o crescimento do orientalismo em um país como os Estados Unidos, que dirigia sua mirada cada vez mais para o Oriente por razões geopolíticas e, em parte, como conseqüência do aumento da imigração procedente daquele lado do mundo.

Dentro desse contexto, surgiram ou se afirmaram nos Estados Unidos, ao longo dois anos setenta, movimentos religiosos como o Hare Krishna ou a Igreja da Unificação do reverendo Moon. Esses movimentos, apesar de terem origem e objetivos diferentes, apresentavam características comuns que merecem ser destacadas. Tratava-se de movimentos laicos que não delegavam a uma casta sacerdotal o monopólio do sagrado. Dominava nesses movimentos uma visão apocalíptica, isto é, a idéia da iminência do fim da ordem presente, que logo seria destruída para ceder o passo ao triunfo da nova ordem anunciada. Ainda que de origem localizada, como a Igreja da Unificação, nascida na Coréia, ou como algumas das novas religiões japonesas exportadas ao Ocidente, de que é exemplo a Soka Gakkai, esses movimentos caracterizavam-se pela prática de exacerbado proselitismo universal, sobretudo entre os jovens, o que explica o seu êxito relativo apesar das diferenças de doutrina e objetivos.

No final dos anos setenta produziu-se uma crise progressiva nesses movimentos, que determinou, em muitos casos, o seu total desaparecimento nos EE.UU. ou um lento processo de extinção. Isso se explica pelo fato de que tais movimentos se apoiavam em uma base social de tipo sectário, isto é, propensa a encontrar nas novas formações religiosas relações de tipo “afetivo”, próprias das comunidades emocionais, que as novas igrejas aparentemente não eram capazes de oferecer. Não respondendo adequadamente a esse tipo de relação, os movimentos perdiam força de atração. No entanto, as mudanças estruturais produzidas criaram um tecido sociológico (cultic milieu) mais inclinado a uma religiosidade fluida e magmática, não propriamente afetuosa. Este tipo de religiosidade, que começou a vigorar a partir dos anos oitenta, coincide basicamente com a religiosidade do movimento New Age, que constitui a segunda fase dos novos movimentos religiosos.


2ª. Fase

De certo modo, o New Age designa apenas um título para abranger conteúdos heterogêneos: o “channeling”, ou a comunicação com espíritos e mestres superiores, uma reinterpretação, mais acorde com os novos tempos, do espiritismo clássico do século XIX; as distintas artes de cura, vinculadas entre si pela idéia tradicional de que a enfermidade tem uma origem espiritual, e até certo ponto psicológica, devido a que o ser humano não conhece o autêntico alcance do poder de sua mente; uma espécie de Naturphilosophie (na terminologia alemã) que, contrariamente ao mecanismo da ciência tradicional e baseando-se em determinadas concepções de astrofísica e do saber convencional, propõe uma visão do Cosmos reinterpretada, a partir de uma perspectiva holística; finalmente, um neo-paganismo multiforme, que vai em busca do mistério impregnado de magia.

As características estruturais desta concepção, que se encontram em quase todos os textos representativos das distintas correntes mencionadas, podem reduzir-se a quatro elementos fundamentais: um fundo panteísta, uma interpretação holística, uma perspectiva evolucionista e, por último, uma psicologização da religião que coincide com uma socialização da psicologia. Estes quatro elementos se inserem, como lembra o próprio nome do movimento, em uma perspectiva claramente milenarista e apocalíptica: a crença no advento de uma nova era, a de Aquário, que sucederá a era de Peixes, na qual temos vivido até agora, marcada pelo predomínio de uma fé cristã do tipo monoteísta. New Age anuncia a chegada de uma nova época pós-cristã, caracterizada por uma fé que já não gira em torno ao Deus pessoal e exclusivo da tradição judaico-cristã.

O primeiro elemento constitutivo dos movimentos New Age é um certo fundo panteísta, que se traduz na rejeição, mais ou menos explícita, da fé em um Deus criador, pessoal, que transcende o Cosmos, em favor de uma Realidade última que, embora receba diferentes denominações, configura-se sempre como Mente, Energia ou Vida; uma Realidade impessoal, que pode, inclusive, assumir os traços pessoais da fé em Deus, ainda que somente de forma temporal e instrumental. Disso deriva uma postura não dualista, que tende a uma visão otimista deste mundo, no qual não há lugar para a existência do Mal. Como é próprio dos panteísmos genuínos. Isso coincide basicamente com a ignorância de nossa mente a respeito de nossa própria natureza que, segundo a concepção New Age, é de origem divina. Mente que, ao reunir-se com a Energia e a Vida de que procede, é capaz de superar todos os obstáculos que a rodeiam.

O segundo elemento fundamental que aparece no movimento New Age é o holismo. Este se opõe ao dualismo e ao reducionismo, considerados os traços do modelo cultural dominante, e é próprio de todos os ramos do movimento, desde as distintas formas de arte de cura, unidas precisamente por uma concepção holística de saúde e de cura, até a busca de uma consciê4ncia global, unitiva, que abarque a realidade, desde a consciência ecológica até a idéia mesma de que o New Age é uma rede, um network global. Este holismo tem algumas implicações que podem manifestar-se de diferentes formas: desde a possibilidade, implícita na perspectiva panteísta antes mencionada, de reduzir a complexidade do real e de suas manifestações a uma “fonte última”, até a idéia de que existe uma “simpatia”, uma rede de relações entre todos os elementos, animados e inanimados, que compõem o Cosmos. No fundo aparece a crença de que o Cosmos é um organismo vivo, tendência que se opõe à concepção mecanicista do Cosmos como universo das quantidades isoladas.

O terceiro elemento é a evolução, que poderia considerar-se criadora no sentido de que a realidade do Cosmos, que coincide com o fundamento último, não é cega e irracional, mas que tem uma orientação teleológica e ao indivíduo lhe corresponde precisamente entrar em sintonia com este Infinito, elevando-se através de uma tomada de consciência progressiva. Os mitos cosmogônicos, que aparecem de forma ocasional, se baseiam em uma idéia comum expressada de diferentes formas. Esses mitos contam como a partir de uma unidade originária, o fundamento do Cosmos, surge, em consequência de uma espécie de big-bang inicial, a dualidade, uma ruptura que põe em movimento, como uma reação em cadeia, a multiplicidade do que existe. Este típico processo de emanação e diversificação do Uno ao múltiplo deixa intacta, por outra parte, a integridade essencial do universo: isto é, existem polaridades mas nunca um autêntico dualismo, como nos antigos mitos gnósticos, dualismo que se considera uma ilusão da mente humana; em outras palavras, a “queda”, mencionada pela doutrina gnóstica, é de natureza psicológica, não cosmológica.

O quarto e último elemento pode resumir-se no tema da transformação da consciência, porém também na fórmula de uma psicologização da religião e uma socialização da psicologia. Por um lado, o mundo religioso se interioriza radicalmente: deste ponto de vista o New Age representa à perfeição a religiosidade da era do individualismo. Convida-se o indivíduo a realizar, em tempo pessoal de seu próprio eu, o processo decisivo de transformação da própria consciência, que coincide com o típico processo de gnosis: descobrir o próprio Si mesmo, que equivale à possibilidade de “criar a própria realidade”. A idéia subjacente é que todas as coisas são significativas, que portanto o que conta é o que fazemos quando reagimos ante um tipo de vida carente de sentido e totalmente atomizada, tornando-nos completamente responsáveis pela própria vida, posto que não existem poderes misteriosos fora de nós mesmos, e aprendendo portanto a superar todos estes bloqueios, originados sobretudo pela ignorância, que nos impedem de realizar-nos autonomamente. Daí que o processo salvador seja necessariamente um processo psicológico, uma viagem interior pelos meandros da própria psique. Porém, por outro lado, assistimos a um processo de socialização da psicologia. Trata-se de um processo que aspira a uma gnosis perfeita, capaz de liberar-nos definitivamente do véu de ilusão e do olvido da ignorância. Cada indivíduo é convidado a converter-se em terapeuta de si mesmo, libertando-se de toda classe de dependência, reconhecendo e desconstruindo em primeiro lugar as falsas crenças e bloqueios que obstruem a mente, para poder depois, graças a estas novas experiências em uma espécie de autodeterminação total, chegar a alcançar a iluminação. Só assim será possível contribuir ao processo evolutivo geral: em outras palavras, criar a própria realidade e despertar a própria consciência coincidem com o processo geral de crescimento de Consciência Cósmica e contribuem ao processo geral de reunificação da Realidade.

Trata-se, em definitivo,de um tipo de religiosidade perfeitamente de acordo com as transformações que se produzem em nossa sociedade, que tende a proporcionar a cada indivíduo um sistema de crenças baseado na consciência de sua natureza originária, coincidente com o Si mesmo, que lhe permita “navegar” pelo mundo virtual no qual estamos cada vez mais imersos. O que penetra no New Age penetra em um “network” capaz de pô-lo em contato imediatamente, em tempo real, com os outros usuários desta especial “rede”. É um fenômeno ao mesmo tempo popular, no sentido de que é acessível a todo mundo, e elitista, porque somente a elite intelectual decidida a aprofundar o vínculo, a compreender, por exemplo, o que se oculta em realidade por trás da bela música que escuta, poderá aceder aos lugares realmente importantes, evidentemente do ponto de vista de sua própria viagem espiritual. Desse modo é possível juntar práticas e crenças que a primeira vista parecem incompatíveis (é a chamada religião “à la carte”).

De acordo com esta concepção, aquele que é capaz de navegar realmente pelo New Age pode criar por si mesmo a própria realidade, sem necessidade de nenhuma mediação institucional. Sendo sempre inspirao por alguma voz interior. Esta espécie de neo-idealismo de inspiração panteísta surpreende por sua radicalidade, que simplifica complexos problemas filosóficos, retomando antigas receitas religiosas tradicionais, como viagens interiores e visualização criadora, readaptadas às necessidades de uma nova religiosidade.

O FUTURO DA RELIGIÃO

O enfrentamento com a modernidade mudou de maneira radical o cenário religioso contemporâneo, tanto no terreno religioso institucional como nas diferentes áreas que formam a chamada nova religiosidade. Em consequência, sobretudo, da afirmação do princípio moderno do individualismo frente aos dados coletivos, impõe-se hoje em dia a dimensão particular e subjetiva, juntamente com as dimensões racionais. Por causa desta primazia do interior, do individual, as crenças tradicionais e, em particular, os sistemas teológicos, entraram em crise, com um conseqüente debilitamento do terreno institucional. Hoje, admite-se que não é necessário afiliar-se, no sentido de que a afiliação religiosa configura-se, em geral, em formas débeis de crenças, formadas e reformadas segundo lógicas que se apartam das religiões institucionais. Neste cenário, as religiões e, em geral, o religioso e o sagrado, aparecem como destinados a desempenhar um papel menos importante, pois a imaginação e a criatividade são refratárias aos intentos de homogeneização e catequese.

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análise do ser humano
João Laurindo de Souza Netto


1. INTELECTO – Faculdade que tem o ser humano de:

1.1. APRENDER

1.1.1. Reter na memória, ou saber procurar em fontes adequadas, mediante o estudo, a observação ou a experiência.
memória – faculdade mental de reter idéias, impressões e conhecimentos adquiridos.

1.1.2. Tornar-se apto ou capaz de alguma coisa em
conseqüência de estudo, observação, experiência, advertência, etc.


1.2. APREENDER – assimilar mentalmente

1.2.1. Assimilar – apropriar-se ou compenetrar-se de alguma coisa, como idéia, sentimento, estilo, etc.


1.3. COMPREENDER – Perceber ou alcançar o sentido de alguma coisa.
sentido – significação, objetivo

2. INTELIGÊNCIA – Faculdade que tem o ser humano de usar os recursos do intelecto, sobretudo para resolver situações problemáticas novas com eficiência e rapidez. A inteligência pode ser racional ou talentosa, envolvendo esta as habilidades.

3. INTELECTUALISMO – Tendência a considerar a inteligência como o fator mais importante do conhecimento. Segundo a concepção intelectualista, a origem do conhecimento é deduzida da experiência, submetida a uma elaboração conceitual.

4. MENTE – Complexo de elementos do ser humano, que determinam:

4.1. O SENTIR (com origem nos sentidos);

4.1.1. Sentidos – meios de que dispõe o organismo para conhecer os objetos exteriores e a própria posição e estado do corpo e suas partes. Anteriormente, consideravam-se 5 sentidos: olfato, paladar, vista, audição e tato. Posteriormente, o sentido cutâneo, dentro do qual se englobava o tato, passou a compreender o contato e a pressão, a dor e as relações de calor e frio. Além disso, passou a admitir a existência de um sentido do equilíbrio, tendo como órgão receptor o labirinto do ouvido interno. Para que se forme uma sensação, é necessário, além do órgão de recepção do estímulo, um nervo transmissor da impressão e uma região do sistema nervoso central onde o estímulo se transforma em sensação.


4.2. O PERCEBER (com origem nos sentidos e na inteligência);

4.3. O CONSCIENTIZAR (com origem na consciência);

4.3.1. Consciência – conhecimento imediato do indivíduo de sua própria capacidade psíquica e da capacidade de julgar a virtude ou a culpa moral da própria conduta.
Psíquico – relativo ao psiquismo.
Psiquismo – conjunto dos processos mentais conscientes e inconscientes de um indivíduo, relativos ao Id e ao Superego.
Inconsciente – conjunto de processos e fatos psíquicos que atuam sobre a conduta do indivíduo, mas escapam ao âmbito da consciência e não podem a esta ser trazidos por nenhum esforço da vontade ou da memória, aflorando, no entanto, nos sonhos, nos atos falhos, nos estados neuróticos ou psicóticos, isto é, quando a consciência não está vigilante.
Neurose _ designação comum a vários distúrbios emocionais, em especial fenômenos de histeria.
Histeria _ neurose que se caracteriza pela transformação de conflitos psicológicos em sintomas orgânicos.
Psicose _ idéia fixa, obsessão.
Id – a parte mais profunda da psique, receptáculo dos impulsos instintivos, dominados pelo princípio do prazer e pelo desejo impulsivo.
Superego – conjunto dos processos psíquicos
pelos quais um indíviduo exerce censura sobre os seus próprios
atos; também chamado consciência moral.


4.4. O PENSAR (com origem na combinação de idéias);

4.4.1. Idéia – representação mental de uma coisa concreta ou abstrata.

4.5. O QUERER (com origem na vontade);

4.5.1. VONTADE – faculdade de representar
mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão. A vontade está ligada à inteligência racional.

4.6. O SENTIR (com origem nos sentimentos);

4.6.1. SENTIMENTOS – conjunto dos estados afetivos determinados por impressões de naturezas variadas.

4.7. O RACIOCINAR (com origem na razão);

4.8. O IMAGINAR (com origem na representação mental de imagens);


5. O PROCESSO MENTAL – Sucessão de estados mentais decorrentes da interação entre os vários elementos da mente.

5.1. Sentir – experimentar sensação física ou emocional;

5.1.1. Sensação – processo relativo aos centros nervosos, correlacionado com um processo fisiológico, que proporciona o conhecimento do mundo externo;
sensação física – a provocada através dos sentidos;
sensação emocional – a provocada através das emoções;
emoção – reação intensa e breve do organismo a um lance inesperado, que se acompanha de um estado afetivo agradável ou penoso. As emoções báscicas são o medo, a cólera e o amor. O medo determina a atitude de defesa; a cólera, a de ataque; e a de amor, a criatividade. As demais emoções são combinações das básicas.
estado afetivo – situação de afetividade num determinado período.
Afetividade _ conjunto das impressões que se manifestam sob a forma de sentimento.
Impressão – influência que um ser, um acontecimento ou uma emoção exerce sobre um indivíduo, repercutindo-lhe no ânimo, no moral, no humor, etc.
Sentimento – manifestação da afetividade que se expressa como alegria, tristeza, mágoa, despeito, inveja, ciúme, esperança, prazer, desprazer, dor (não física), etc.,e que determina uma regra de ação em relação ao objeto que a provoca.
5.2. PERCEBER – adquirir conhecimento de algo por meio dos sentidos ou da inteligência;

5.2.1. Conhecimento – capacidade de apreciar, julgar, avaliar, discernir coisas; apropriação do objeto pelo pensamento através de análise detalhada.
apreciar – dar apreço ou merecimento a alguma coisa ou
pessoa;
julgar – formar opinião sobre alguma coisa ou pessoa;
avaliar – determinar o valor de alguma coisa;
discernir – distinguir ou diferençar uma coisa de outra.

5.2.2. Conhecimento Imediato - aquele que supera os mecanismos discursivos normais do raciocínio lógico e intelectual, como a consciência, a percepção extra-sensorial, etc.

5.2.3. Níveis de Percepção – aqueles que procedem da análise
introspectiva e podem extrapolar ao nível objetivo.
nível sensorial – relativo à sensação.
nível racional – relativo à razão.
nível inefável – relativo à expressão.
expressão – ato de exprimir alguma coisa.
exprimir – manifestar sem palavras nem texto, como por exemplo na arte em geral: pintura, escultura, música, dança, etc. Quanto mais vinculante é uma obra de arte, menos diz e mais expressa.
inefáveL – o que não se pode exprimir por palavras.
“O que não se pode dizer expressa”. Muitas coisas não se pode dizer por palavras, como por exemplo a beleza de um pôr do sol, expressam algo que está além da linguagem, constituindo o chamado êxtase por arrebatamento.


5.3. RAZÃO – Faculdade de estabelecer relações lógicas e ponderar idéias.

5.3.1. Relação – uma das categorias fundamentais do pensamento.

5.3.2. Lógica – estudo das formas (conceitos, juízos e raciocínios) e leis de pensamento.

5.3.3. Ponderar – considerar os vários aspectos de alguma coisa, examinando com atenção e minúcia.


5.4. RACIOCINAR – usar a razão para conhecer, julgar a relação das coisas, fazer cálculos e para, a partir de proposições conhecidas, chegar a outras proposições às quais se atribuem graus variados de verdade.


5.5. IMAGINAR – Construir ou conceber na imaginação; fantasiar.

5.5.1. Imaginação – Faculdade de representar imagens mentais de objetos já percebidos (reprodução) ou não percebidos (criação).
5.5.2. Imagem – representação mental de um objeto, de uma impressão, de uma pessoa, etc.


6. PENSAMENTO – Processo mental específico que abarca os
fenômenos cognitivos, distinguindo-se do sentimento e da vontade.

6.1. COGNITIVO – relativo à cognição ou conhecimento;

6.2. CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO PENSAMENTO – qualidade, quantidade e relação;

6.2.1. Qualidade – maneira de ser que se afirma ou se nega de uma coisa;

6.2.2. Quantidade – caráter do que pode ser medido;

6.2.3. Relação – caráter de dois ou mais objetos de pensamento que não são concebidos como sendo ou podendo ser compreendidos num único ato intelectual de natureza determinada, como identidade, coexistência, sucessão, correspondência, etc.;

6.3. NOÉTICA – estudo das leis gerais do pensamento;

6.4. NOESE – o aspecto subjetivo da vivência, constituído por todos os atos que tendem a apreender o objeto: o pensamento, a percepção, a imaginação, etc.;


Noético – relativo à noese;

6.5. NOEMA – o aspecto objetivo da vivência, considerado pela reflexão em seus diferentes modos de ser dado: o percebido, o pensado, o imaginado, etc.;

Noemático – relativo à noema;

6.6. LINGUAGEM – o uso da palavra articulada ou escrita como meio de comunicação;
Supõe-se que uma linguagem religiosa só pode fundamentar-se em experiências que pertencem essencialmente à esfera do inefável. No tocante a estas experiências religiosas, é pretensão da apologética que ao não crente não é dado o conhecimento imediato do inefável. No entanto, para o sujeito da experiência religiosa postulada como inefável, pela apologética, a tomada de consciência dos conteúdos que constituem sua experiência cancela a suposta inefabilidade. Não há experiência sem consciência da mesma, e a consciência trabalha sempre com representações mentais. Em termos cognoscitivos, o que não se conscientiza não existe. O inefável, defendido pela apologética seria o não-conscientizável. Mas então não haveria, em rigor, o inefável. Por conseguinte, a religião não pode legitimar-se adequadamente pelas experiências supostamente inefáveis, nem tampouco por sua pretensão de verdade absoluta, através dos enunciados que a constituem em geral. Todo ser humano, crente ou não crente, pode conhecer muito mais do que proporcionam suas próprias experiências pessoais, porque é faculdade dos instrumentos noéticos (subjetivos) do ser humano ultrapassar o limitado círculo de suas próprias experiências, e assumir os conteúdos noemáticos (objetivos) das experiências de outros seres humanos que estejam no seu campo de observação, quer direta – contatos de convivência – quer indireta, através de contatos informativos de caráter testemunhal. A razão é capaz de tematizar qualquer objeto de experiência, tanto de ordem intelectiva, como emocional ou desiderativa; as técnicas noéticas da psicanálise e da sociologia compreensiva são exemplos. Também ao não crente é dado o inefável imediato, como por exemplo, na arte ou numa intensa emoção. Isso não significa, no entanto, que as fantasias da imaginação religiosa constituam, em sua atividade incontrolável, objetos que pertençam ao campo da realidade objetiva.

6.6.1. Apologética – parte da teologia que explica e defende os dogmas católicos.

7. ESPÍRITO – Disposição da mente que determina as ações do indivíduo, através do pensamento, do sentimento e da vontade.

7.1. DISPOSIÇÃO DA MENTE – o poder-potência do ser humano;

7.1.2. Poder – capacidade de influir ou de determinar comportamentos;

7.1.3. Potência – qualidade daquele que pode originar ação;

7.1.4. Poder-Potência – Faculdade do espírito de originar ações que determinem comportamentos adequados para responder a cada desafio da vida: atos de coragem, para superar os medos; resolução de agir para superar os estados de apatia e de abulia; sindérese para evitar a insensatez; energia para superar as fraquezas; disposição para concretizar aquilo que a pessoa é potencialmente, etc.
7.2. INFLUÊNCIA DO ESPÍRITO - o espírito influi no e é influenciado pelo corpo físico do indivíduo, com o qual forma um todo inseparável constituindo o que se chama “soma-psique”. Se o ser humano sentir-se dominado por uma força superior, - para os religiosos, uma força transcendente, Deus - sentir-se-á indefeso e amedrontado e será afetado de alguma forma. Como ser físico, está sujeito às forças da Natureza e à força do Homem e sua possibilidade de resistir a essas forças depende de fatores da sua própria força física. Mas o espírito, pelo contrário, não está subordinado ao poder externo. A disposição da mente, o espírito enfim, não pode ser invalidado por uma força externa ao indivíduo, mas somente por ele próprio. O verdadeiro poder-potência do ser humano é a disposição determinada de sua mente para a ação. E quando esta é orientada para evitar a “queda” do ser humano, ou superá-la, ele será capaz de vencer todos os obstáculos que a vida apresentar. O seu poder-potência é capaz de livrá-lo das superstições, do fundamentalismo religioso e do “terror mortis” na linha de uma emancipação intelectual, e de dar-lhe os recursos para preservar a sua integridade mental e conquistar a sua liberdade conforme as leis da vida.

7.2.1. TIPOS DE ESPÍRITO – (exemplos)

FORTE - indivíduo de inteligência superior às opiniões e
crenças comuns;
FIRME – indivíduo de caráter reto, bem formado, incapaz de ser abalado ou corrompido;
BRILHANTE – indivíduo de imaginação inventiva e fecunda;
EMPREENDEDOR – indivíduo ativo, arrojado;
LÚCIDO – indivíduo de grande penetração agudeza de inteligência;
PRÁTICO – que não se deixa levar pelas aparências; procura sempre agir praticamente;
DO MUNDO – que segue ou mantém os hábitos da sociedade;
DE ROTINA – que tem a tendência de praticar as mesmas coisas, sempre do mesmo modo;
CRÉDULO – indivíduo de ânimo supersticioso;
FRACO – tímido, indeciso, ignorante, improdutivo;

8. TEMPERAMENTO – característica constitucional e imutável do
indivíduo;

8.1. MODO DE SER EMOTIVO DO INDIVÍDUO;

8.2. MANEIRA COMO O INDIVÍDUO REAGE AO ESTÍMULO DE
UMA EMOÇÃO;

8.2.1. Constitucional _ inerente à organização física ou psíquica do indivíduo;


9. CARÁTER – conjunto dos traços psicológicos do indivíduo;

9.1. TRAÇOS PSICOLÓGICOS – traços psíquicos essencialmente formados pelas experiências vividas na primeira infância e modificáveis até certo ponto pelas novas experiências, sobretudo as da segunda infância;

9.2. TRAÇOS DE CARÁTER – hábitos e opiniões mais profundamente arraigados no indivíduo, que lhe são característicos, resistem a modificações na idade adulta e constituem os modos de ser, de sentir e de reagir predominantes do indivíduo.


10. PERSONALIDADE – o complexo biológico e psíquico do indivíduo, compreendendo:

10.1. CONSTITUIÇÃO FÍSICA – conjunto dos caracteres morfológicos, físicos e patológicos, hereditários e adquiridos do indivíduo;

10.2. TEMPERAMENTO

10.3. CARÁTER

10.4. INTELIGÊNCIA

10.5. “EU”- a individualidade metafísica do indivíduo;
10.5.1. METAFÍSICA – corpo de conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que se procura determinar as regras fundamentais do pensamento (aquelas de que devem decorrer o conjunto de princípios de qualquer outra ciência, e a certeza e evidência que neles se reconhece) e que nos dá a chave do conhecimento do real (em oposição a aparências).

10.6. EDUCAÇÀO – processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral do indivíduo, visando à sua melhor integração individual e social ao mundo;

10.7. CULTURA - o complexo dos padrões de comportamento, das crenças e de outros valores espirituais e materiais característicos de um indivíduo ou de uma sociedade.

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sobre a superação do medo
João Laurindo de Souza Netto

ESPÍRITO:
Disposição da mente que determina as ações do indivíduo através do pensamento, do sentimento e da vontade.

Disposição:
Decisão, determinação, propósito, desígnio.
Pensamento:
Processo mental específico que abarca os fenômenos cognitivos, distinguindo-se do sentimento e da vontade.
Vontade:
Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado, em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão.
Faculdade: Aptidão inata, tendência, dom, talento.
Impulso: Estímulo, encitamento.
Razão: Faculdade de estabelecer relações lógicas e ponderar idéias.
Ponderar: Considerar os vários aspectos de alguma coisa com atenção.
Sentimento:
Manifestação da afetividade que se expressa por pares de elementos antagônicos: alegria ou tristeza; satisfação ou insatisfação; agrado ou desagrado; prazer ou dor (não física); aflição ou tranqüilidade; pesar ou contentamento; mágoa ou estima; despeito ou satisfação; inveja ou indiferença; ciúme ou frieza; esperança ou desesperança; melancolia ou euforia, etc.

DISPOSIÇÃO DA MENTE:
É o “poder-potência” do ser humano.

Poder:
Capacidade de influir ou de determinar comportamentos em outrem ou em si mesmo.
Potência:
Qualidade daquele ou daquilo que pode originar ação.

PODER POTÊNCIA:
Faculdade do espírito de originar ações que determinem comportamentos adequados para responder a cada desafio da vida. Como exemplo: atos de coragem para superar os medos; disposição para a pessoa concretizar aquilo que ela é potencialmente, etc.

Superar:
Vencer, dominar, livrar-se de, afastar.
Medo:
Emoção determinada pela idéia de um perigo real ou imaginário; pela presença de alguma coisa estranha ou perigosa; por algo ou alguém que represente uma ameaça; ou por uma promessa de castigo ou malefício.


1ª. CONCLUSÃO

Para superar um medo é necessário realizar um ato de coragem, de intensidade superior ao medo, que a ele se oponha. A emoção oposta ao medo é a cólera, mas sempre há, no processo de superação, sentimentos envolvidos que podem dar sustentação ao medo e precisam, portanto, ser reconhecidos.

2ª. CONCLUSÃO

Para realizar um ato de coragem que se oponha a um medo, é necessário que o espírito, através da vontade e por motivos ditados pela razão, decida-se a realizá-lo, procurando desenvolver sentimentos opostos àqueles que sustentam o medo.

Realizar:
Por em prática, executar.


EMOÇÃO:
Reação intensa e breve do organismo a um lance inesperado, que se acompanha de um estado afetivo agradável ou penoso.

As emoções básicas são:
o medo, que determina a atitude de defesa;
a cólera, que determina a atitude de ataque;
o amor, que determina a atitude de criatividade;
e o ódio que origina a atitude de destrutividade.

Estado Afetivo:
Situação de afetividade num determinado período.

AFETIVIDADE:
Conjunto dos fenômenos psíquicos que, por influência de uma impressão, desencadeiam sentimentos.

Impressão:
Estímulo causado por um ser, por um acontecimento ou por uma emoção, que repercute no ânimo, no moral ou no humor do indivíduo e influencia a sua afetividade.

SENTIMENTO:
Manifestação da afetividade que se expressa por pares de elementos antagônicos: alegria ou tristeza; satisfação ou insatisfação; agrado ou desagrado; prazer ou dor (não física); aflição ou tranqüilidade; pesar ou contentamento; mágoa ou estima; despeito ou satisfação; inveja ou indiferença; ciúme ou frieza; esperança ou desesperança, etc.


3ª. CONCLUSÃO
Para dominar um sentimento não desejado, que pode sustentar o medo, a razão, impulsionada pela vontade,deve desencadear o sentimento que lhe é oposto; o sentimento oposto ao medo é a frieza.

FRIEZA:
É, neste contexto, entendida como: serenidade, imperturbabilidade, tranqüilidade pela análise racional dos fatos e decisão de agir.

INFLUÊNCIA DO ESPÍRITO

O espírito e o corpo físico do indivíduo formam um complexo psicossomático inseparável. Não existem, como pregam as religiões, espíritos que se movam livre, misteriosa ou sigilosamente em uma realidade transcendente. Só há seres humanos em que o complexo matéria-espírito não implica em cisão ontológica, que nascem e morrem no único mundo que existe, o mundo da finitude.

Cisão
Separação, divisão
Ontológica
Relativo à ontologia: parte da metafísica que estuda o ser.
Finitude
Tudo o que concerne ao ser humano, incluindo a sua humanidade, e excluindo o que é transcendente.
Transcendente
O que ultrapassa os limites da experiência. Por exemplo: a idéia de Deus.

Como ser físico, o homem está sujeito às forças da natureza e à superioridade da força de outros homens, e isso, por gerar medo, exige que o espírito venha em sua ajuda. O espírito não está subordinado a nenhum poder externo, somente ao próprio indivíduo. Uma vez que a disposição da mente não pode ser invalidada por nenhuma força externa, basta, para superar o medo, acionar, pela vontade, o poder-potência do espírito. Dessa forma, o indivíduo poderá não só superar o medo como também vencer todos os obstáculos que a vida lhe apresentar.
O poder-potência, apesar de ser uma faculdade do espírito, não é, como o instinto, posto em prática automaticamente. Algumas condições são necessárias para isso. Vejamos:

1ª. CONDIÇÃO:
Ainda que a carência de uma base de conhecimentos científicos possa causar dificuldades para a compreensão dos fenômenos, é possível abandonar definitivamente as superstições e crendices, que moldaram nossa educação tradicional. A razão é a instância capaz de corrigir a si mesma e indicar novos comportamentos, totalmente isentos das superstições e crendices da nossa infância e mesmo de nossa vida adulta anterior.
A primeira condição é pois: eliminar as superstições e crendices, não apenas no modo de falar (às vezes em tom de brincadeira para iludir a si mesmo), como na verdadeira e sincera convicção. As superstições e crendices são geradoras de medo.

2ª. CONDIÇÃO
Não existe fronteira precisa entre superstição e religião, porque ambos os fenômenos procedem de uma só raiz, que é a busca de proteção contra as inseguranças da vida. A religião, com a promessa de uma vida futura, após o julgamento dos atos na terra, promove, sub-repticiamente, pelo temor do julgamento, o “terror-mortis”.

Sub-reptício
Obtido por omissão ou alteração de fatos que iriam influir em medidas de ordem moral, legal ou de consciência.

A superstição é um sentimento essencialmente religioso, que associa, irracionalmente, efeitos desejados a causas imaginárias.
A segunda condição é, pois: admitir que as “verdades” da Igreja sobrevivem pela simples inércia histórica, que os chamados “administradores dos mistérios de Deus” afirmam ser o conhecimento último da realidade. Mas essa é a penas a linguagem do sobrenatural, que deve ser suprimida porque inspira medo.

3ª. CONDIÇÃO:
O antropomorfismo impulsionou a atribuição de guias humanos de comportamento: orações, súplicas, tributos, promessas, como se fora para os grandes potentados da terra.
Antropomorfismo
Crença que atribui a Deus formas ou atributos humanos.

Segundo a Igreja, Deus representa os próprios poderes do homem, de modo que o homem só está em contato com seus próprios poderes através da adoração a Deus. Quanto mais forte e rico for Deus, mais fraco e pobre se torna o homem. Encontrar a certeza pela anulação do “eu” individual, tornando-se um instrumento sob um poder esmagadoramente mais forte e alheio ao ser humano é a tese cristã. E isso gera medo e insegurança.
A terceira condição é, pois: situar-se firmemente na finitude, não admitindo a necessidade de uma divindade transcendente. Para isso o agnosticismo se impõe como uma doutrina que encontra na serenidade (frieza) a vitória sobre o “terror mortis” e, vencido este, os demais medos passam a ter menor valor.


AGNOSTICISMO

Doutrina que nega a faculdade de conhecer a verdade absoluta. Admite que a fé é a submissão a determinada afirmação de ordem transcendente, aceita como verdadeira, quer seja ou não, que não procede de Deus, mas ao contrário, determina a existência de Deus, assim como pode determinar a existência de qualquer ser de natureza divina.


CONCLUSÃO

O Agnóstico encontra em si mesmo a força para não ser instrumento de nenhuma autoridade transcendente de qualquer tipo;

Não é resignado, porque a resignação supõe admitir uma instância superior à razão;

Não sente-se infeliz, nem desencorajado, nem culpado, porque entende que o mundo, com arbitrariedade própria (doenças, sofrimento, dores físicas e morais), é resultado de sua imperfeição. E, paradoxalmente, segundo a Igreja, ele foi criado por um Ser perfeito.

Não admitindo esta última tese, o Agnóstico supera os medos e vive uma tranqüilidade vital, que provém de estar satisfatoriamente instalado na finitude, mesmo nos casos em que o finito é dor ou preocupação, na crença de que é o espírito quem outorga sentido aos acontecimentos da vida porque as coisas, por si mesmas, apenas desempenham funções, nunca determinam sentido.

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credulidade
João Laurindo de Souza Netto


O gênero humano tem uma capacidade inesgotável para a credulidade supersticiosa. Não obstante, o homem é capaz de formular perguntas, pelas quais se estabelece o dilema, em toda crença religiosa, de ignorar e crer, ou de saber e não crer. Credulidade supersticiosa. Expressão chave para definir a mente cativa, porque se alimenta a credulidade quando se tem o hábito de evitar o risco de discernir por conta própria e, também, quando se busca segurança enganosa que ninguém pode outorgar: ante a aventura do conhecimento da realidade, ante o imprevisível da vida, ante o fato indefectível da morte.

Inventando garantias e consolações ingênuas, a Igreja e seus sub-rogados: sacerdotes, curas, párocos _ sem falar nos bispos, cardeais e o Papa _ têm sempre explorado as debilidades humanas através de um proselitismo sinuoso, mas eficaz, que põe ao seu dispor os instrumentos psicológicos e sociais de dominação das consciências. Para isso, não se furta a anular, ou pelo menos obstaculizar, o livre exercício da inteligência, reprimindo, com vigor, a coragem moral daqueles que são potencialmente capazes de substituir a falsa segurança das crenças supersticiosas pela lucidez da razão.

As etapas de um itinerário crítico bem estruturado devem ter seu início pela reflexão sobre a possibilidade de ser Deus cognoscível e sobre sua incompatibilidade com a injustiça do mundo e das misérias que o assolam: pragas, pestes, fome, doenças, cataclismos, etc.; segue-se o estudo da origem das religiões com suas escrituras e tradições, partindo-se depois para as questões centrais da Bíblia: a criação do mundo, a origem da vida e do ser humano, a existência do mal e da dor, o monoteísmo. Estas questões cedem logo lugar aos grandes “mistérios” da fé cristã: a Virgem Maria, Cristo, a Trindade, a Ressurreição, a Ascensão, o Juízo Final e a Escatologia, a Igreja e os Sacramentos, seguindo-se o Matrimônio e o papel da mulher, a consciência moral, a autoridade religiosa e a liberdade da pessoa, os cultos aos santos e anjos, as devoções íntimas, o clero, sem esquecer a degradação humana a que conduzem o fundamentalismo e o fanatismo.

Verifica-se, nesta andadura, que não é fácil refutar o que não existe, e as religiões, entre elas o cristianismo, só têm existido nas mentes de seus fundadores e de seus seguidores. Haja vista as falsificações, manipulações, adições, omissões e tergiversações que denunciam a falta de autenticidade dos textos supostamente sagrados.

Não existe fronteira precisa entre religião e superstição, porque ambos os fenômenos procedem de uma só raiz, desde os mais remotos tempos, quando o homem começou a buscar ansiosamente instâncias protetoras contra os riscos e inseguranças de cada dia. O horizonte totalizador se manifestava em um “terror mortis” onipresente, ante a aniquilação pela fome, pelas enfermidades, pela violência das forças cósmicas de todo tipo, o que gerou fantasias mentais nas quais se assentavam, e ainda se assentam, todas as religiões como vínculos imaginários com seus protetores.

É notável que em nosso mundo secularizado atual tenham voltado a florescer com vigor as condutas supersticiosas, enquanto que as confissões religiosas tendem a perder vigência. Em todas as sociedades de tradição cristã, as pessoas se persignam, associando o sinal da cruz a situações ou objetos materiais num culto fetichista que, na maioria dos casos, não passa do gesto. É claro o sintoma de insegurança, que denota uma atmosfera de medo, angústia e superstição.

A superstição, no vasto repertório de suas modalidades é um sentimento essencialmente religioso, que associa irracionalmente efeitos desejados a causas imaginárias. Ignorância, compulsão psíquica e alienação estão na base da superstição, a qual alimenta um tipo de comportamento que nada tem a ver com o êxito ou com o efeito buscado. O comportamento se repete, qualquer que seja o resultado do ato supersticioso, porém a mescla aleatória de êxitos e fracassos não autoriza a inferir a menor relação de causalidade entre o ritual supersticioso e o resultado esperado. Mesmo que nessa mescla predominem os fracassos, a conduta supersticiosa prosseguirá, dominando a vida das pessoas que encontram nesta conduta um estado anímico gratificador, mediante sensações tranqüilizantes ou estimulantes.
Não são certamente as Igrejas nem os promotores de religiões, mas sim a comunidade científica, a instituição competente para controlar e promover os dados empíricos e as hipóteses explicativas que permitam aperfeiçoar a representação da realidade. Ainda que a carência de uma base de conhecimentos científicos possa causar dificuldades para a compreensão dos fenômenos, é possível, sem dúvida, abandonar definitivamente as velhas e caducas crenças que, conformaram nossa educação tradicional. É a razão a instância que corrige a si mesma, fazendo com que o método científico seja, sem exceção, insubstituível e soberano.

Hoje sabemos que a retórica do conhecimento último da realidade, que segundo os administradores dos mistérios de Deus pertence à religião, não é senão a linguagem do sobrenatural, a saber a teologia. As “verdades” da Igreja sobrevivem pela simples inércia histórica, uma abrumadora hegemonia ideológica que sua exemplar organização hierárquica torna pouco menos que inexpugnável.

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lealdade
João Laurindo de Souza Netto

A lealdade _ entendida como o procedimento de quem age de forma perseverante, numa linha de ação retributiva a algo recebido, prometido ou comprometido _ pode ser analisada sob vários aspectos:
• como fidelidade, quer a um compromisso assumido, quer a uma causa a ser defendida;
• como constância nas afeições;
• como retribuição, devida pelos filhos a seus pais, pela formação recebida desde a primeira infância até o início da vida profissional, a qual inclui o desvelo, e vai possibilitar o acesso a uma posição desejável no mundo social, compatível com suas possibilidades, mesmo que este acesso tenha sido obtido, posteriormente, pelo esforço próprio;
• e, de uma forma genérica, como reconhecimento a qualquer estímulo ou apoio recebido num momento de carência, como demonstração de franqueza e de confiança.

Perseverante significa de forma não transitória, isto é, a lealdade não se resume a um simples ato mas sim a uma maneira constante de ser, que inspira confiança.
Em todos os casos em que a lealdade é praticada, a frase que melhor a define é “pode contar comigo”, ou, se tiver que optar, “estou do teu lado”. Quem quer que tenha alguma vez recebido demonstração desse tipo, saberá apreciar o valor da lealdade, enquanto que o contrário, também verdadeiro, não deixará de produzir marca indelével.

A fidelidade a um compromisso pode ser exemplificada, de uma forma muito compreensível, pela relação entre os que vivem maritalmente, quer numa relação formal, quer na informalidade, sendo a condição “sine qua non” para a manutenção do relacionamento.
Tratando-se de uma causa, é devida a um grupo organizado quer esteja dentro ou fora da lei. Nestes casos, a infidelidade, ou a não lealdade, é punida severamente, muitas vezes, sobretudo nos grupos secretos fora da lei, com a própria morte.
Mas é no grupo familiar que a lealdade adquire um caráter excepcionalmente importante. Mesmo em nosso mundo ocidental moderno, supostamente liberto dos atavismos característicos dos povos orientais e do patriarcalismo de antanho, os pais, quanto mais forte forem os seus valores, esperam lealdade dos filhos aos seus usos e costumes, apesar de eventuais adaptações ou concessões impostas pelo transcurso dos tempos. Geralmente, quanto mais a idade dos pais avança, mais sólidas se tornam suas convicções e, apesar de procurarem acompanhar as mudanças, o núcleo essencial dos valores, se bem estruturado, permanece, e a lealdade, assim como a sua falta, é sentida com grande intensidade.


Não é difícil concluir que quanto mais forte tiver sido o impulso dado aos filhos no passado, maior será a expectativa de reconhecimento no presente, por mais que essa realidade tenda a ser despercebida ou não valorizada pelos filhos, às vezes até mesmo em decorrência de expressões de racionalização dos próprios pais do tipo “ não espero nada” ou “ não fiz mais do que a minha obrigação”, etc. Mas é evidente que, mesmo encoberta _ e não deveria sê-lo, a expectativa existe.


Olhando-se a questão do ponto de vista dos filhos, a verdade nua e crua é que nunca iriam atingir, por meios honestos, uma posição privilegiada no mundo social se não tivessem recebido, na fase de formação e muitas vezes além dessa fase, um impulso dos pais, tão forte quanto possível a estes, independentemente de seu próprio esforço posterior e de apoios fortuitos ou intencionais que venham a receber no decorrer de suas vidas. Haja vista a vida dos favelados e marginalizados pela fortuna, cujos pais não puderam dar-lhes o impulso necessário. Dificilmente conseguirão emergir da situação de pobreza e alcançar posições de destaque no mundo social, a menos que se tornem presas fáceis dos traficantes e adentrem o mundo do crime.
Voltando à definição inicial, como pode haver ação retributiva perseverante sem disponibilidade e sem proximidade? A lealdade como dever de consciência deve ser manifestada através de ações concretas, que exigem disponibilidade e proximidade. Acaso palavras substituem a ação?

Olhando-se agora a questão do ponto de vista dos pais, estes, se puderam dar aos filhos a formação almejada, receberam algo de alguém: do governo, se servidores públicos; de empresa ou firma, se profissionais liberais; do público em geral, se prestadores de serviços, etc. Generalizando, pode-se dizer que, afora meios ilícitos, a provedora de recursos é a sociedade, uma vez que há uma rede nas transações, em que uns recebem e outros pagam, formando-se o chamado mercado, em sentido lato, onde se manifestam a oferta e a procura de produtos, serviços e valores.

Se se quiser estender o conceito de sociedade à sua maior abrangência, não se pode deixar de falar do conceito de nação, que é a comunidade de cidadãos sob o mesmo regime de governo, que partilham a mesma história e possuem uma cultura comum. Assim, o sentimento de brasilidade nunca poderá confundir-se com o americanismo, que é o apreço exagerado à cultura dos Estados Unidos. Enquanto a brasilidade é o caráter distintivo do povo brasileiro e, por extensão, o sentimento de apego ao Brasil em relação a qualquer outra nação, o americanismo é o culto ao que é próprio dos Estados Unidos, disseminado maciçamente pela mídia em todo o mundo.

Assim, o indivíduo de que se trata, a família, a sociedade e, por extensão a nação, formam uma rede inextricável, que não permite considerar cada elemento isoladamente. Daí porque a lealdade à família, desde que esteja bem estruturada e tenha oferecido o impulso de que se fala, e a lealdade à nação, encarada como a sociedade estendida, que provê os recursos para a família, são absolutamente indiscutíveis e implicam em constância e firmeza no sentimento de retribuição, ou seja , em perseverança.

Falou-se em mundo social sem que dele se desse uma definição, o que não torna claro o seu conceito neste contexto. Mundo social é aqui entendido como o conjunto de unidades em que se divide a sociedade e que compreendem:
• um determinado indivíduo, que pode representar uma coletividade ou a si mesmo: um imperador, um rei, um líder, um chefe, um pai, um parceiro e seus respectivos femininos;
• grupos de indivíduos como por exemplo os ligados por laços de sangue_ a família;
• ou os ligados por fortes raízes comuns_ a nação;
• além desses, a quem a lealdade é considerada obviamente devida, há os grupos ligados por interesses comuns, como o social, o religioso, o profissional, o econômico, o político, o militar, etc. aos quais se espera lealdade pelo menos enquanto o indivíduo considerado a eles pertencer e. em certos casos, por uma questão moral, como por exemplo no caso dos grupos econômicos e militares, mesmo depois.

A força de coesão que estimula a lealdade de um indivíduo para com outro ou daquele para com um grupo, é constituída pelos laços de sangue no caso da família, pelas raízes comuns no caso da nação, pela defesa de uma causa ou pelo ideário comuns, como em guerras religiosas, de independência, separatistas, doutrinárias e outras, ou por códigos de honra, às vezes muito fortes, decorrentes da tradição ou da formação individual.

Afora grupos organizados fora da lei, como a Máfia, terroristas, traficantes, etc, para os quais a lealdade é exigida como condição de sobrevivência, as relações do mundo social supõem lealdade com disponibilidade, isto é, com um estado de espírito ditado pela consciência que predisponha o indivíduo a aceitar os deveres impostos pela qualidade de ser leal. É evidente que sem que a consciência atinja o estado de disponibilidade, o indivíduo pouco ou nada se preocupa com a lealdade que, neste caso, é um conceito estranho para ele. Até mesmo as relações com a família, envolvendo laços de sangue, tendem a se esfumar com o tempo, se não houver disponibilidade, e a nação pode se tornar uma entidade distante, que será definitivamente desarraigada, desaparecendo assim aquela citada rede inextricável.
A lealdade é pois uma dívida, despertada pela disponibilidade da consciência para com as unidades do mundo social que mais impulsionaram o indivíduo, da qual ninguém é imune. O conceito de “self-made-man”, entendido como a pessoa que se elevou da obscuridade ao sucesso unicamente por seus próprios esforços, com honestidade e honradez, não passa de uma ilusão. Tal conceito só é verdadeiro se entendido em termos de desenvolvimento, por si mesmo, de seu próprio potencial, através do processo, árduo, de questionar afirmações impostas dogmaticamente e de definir, pela sua própria razão, uma filosofia de vida capaz de torná-lo útil a si mesmo e à sociedade e invulnerável ao “lançamento das flechas da fortuna”. Ninguém pode prescindir, na infância ou além dela, do impulso de alguém. E a esse alguém deverá ser leal.

O pagamento dessa dívida é avaliado pela sensação de íntima aprovação da consciência ao questionamento íntimo sobre a necessidade do reconhecimento. E essa dívida implica em uma ação constante, perseverante e firme no sentido de retribuição ao agente promotor do impulso. Só assim será remida. Palavras apenas não bastam. É preciso ação e presença!

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prestígio
João Laurindo de Souza Netto

Prestígio de uma pessoa é o tipo de deferência que outras pessoas demonstram na sua presença ou com relação a ela, ou negam-lhe se acharem que cometeu um ato não digno; manifesta-se pelo grau de respeito, de admiração, de formalidade, de reserva, ou de um modo geral, pelo tratamento diferenciado.

Deferência
Atenção, importância, acatamento

O prestígio é algo intangível que a sociedade atribui à pessoa de que se trata. Na realidade, ao nascer, uma criança herda o status de seus pais. Em alguns casos, isso é suficiente para levá-la durante toda a vida numa “onda de prestígio”. Assim, por exemplo, um Ford, um Rockfeller, um Rothschild, ou os membros das casas reais em geral, herdam prestígio através de seus nomes. Como vão utilizar esse prestígio em suas vidas depende naturalmente de cada um.

Intangível
Impalpável, que não se pode tocar
Status
Característica do nível sócio-econômico-cultural de uma pessoa em suas relações com a sociedade.
Durante suas vidas, as pessoas procuram obter prestígio porque este, além de proporcionar-lhes satisfação pessoal, facilita a obtenção e manutenção de seus objetivos e ajuda na realização de seus interesses. Muitos tendem a procurar prestígio através dos símbolos materiais de status: riqueza, notoriedade social, etc., e a ostentação desses símbolos passa a ser a sua meta principal. Outros, diferentemente, procuram a realização pessoal, pela qual se impõem e adquirem prestígio sem que este se torne um fim em si mesmo; ele vem como decorrência da força interior da pessoa.

Independentemente de sua forma de expressão, parece haver uma necessidade subjacente em cada pessoa de que tenha sua importância reconhecida e concretamente estabelecida num nível que sente ser aquele que merece. E mesmo as pessoas de mais baixo status social sentem-se ofendidas se não forem tratadas adequadamente, advindo daí a chamada “luta de classes”.

Subjacente
Que não se manifesta, mas está oculto.


Quer para ser mantido, se for herdado pelo nome, quer para ser conquistado, o prestígio representado pelos símbolos materiais de status requer poder. O poder é entendido como a capacidade de induzir comportamentos ou neles influir.
O indivíduo capaz de influir no comportamento de outros pelo exercício de sua função , qualquer que ela seja, tem o chamado poder de posição, pois deixa de ter prestígio ou a intensidade deste é grandemente afetada se perder dita posição.

Já aquele que obtém prestígio com origem na própria personalidade , independentemente de posição, tem poder pessoal. Este exige talento: um grande orador, um grande escritor, um grande pintor, um grande caráter, um indivíduo de grande coragem, alguém que demonstra ter fortaleza nas adversidades, etc.

A necessidade de prestígio, no entanto, é mais ou menos limitadora. As pessoas tendem a procurar prestígio apenas até um nível pré-determinado. Quando sentem que atingiram tal nível, a força dessa necessidade tende a diminuir e o prestígio se torna uma questão de manutenção e não de progresso. A motivação de conquista de prestígio aparece mais destacadamente em pessoas mais jovens, que julgam não terem ainda atingido o status que almejam na vida, mas têm grande desejo de obtê-lo. Já para os mais velhos, que entendem que já atingiram o nível de prestígio que os satisfaz, ou para os que admitem que pouco ou nada podem fazer no sentido de melhorar o status que já alcançaram, a motivação de conquista de prestígio perde força e os seus esforços se dirigem apenas para a não perda, ou para a manutenção do status que alcançaram. A não compreensão desse processo pode levar a situações lamentáveis ou ridículas, conforme se trate de um jovem que não luta para conquistar prestígio, ou de um velho que se esforça por consegui-lo artificialmente adotando atitudes não compatíveis com a sua idade, mais próprias para um jovem.

Algumas pessoas têm poder de posição e poder pessoal; outras, apenas um deles; e outras ainda, por falta de motivação, nenhum dos dois. O poder de posição começa numa idade muito tenra, quando o bebê compreende que chorar pode influir no comportamento dos pais, sobretudo no da mãe.
Esse poder de posição tende ou não a diminuir com a idade, dependendo da educação recebida. Como adolescente, ou até mesmo como adulto, o indivíduo pode procurar manter ou aumentar esse poder, surgindo daí os “conflitos de gerações”. Na verdade, a personalidade de uma pessoa se desenvolve muito cedo na vida e é grandemente influenciada pelo tipo de experiências que, como criança, teve com os adultos do seu mundo.

De outra parte, para as pessoas que buscam a realização pessoal, da qual o prestígio surge como corolário, há necessidade do desenvolvimento de pelo menos duas características: competência e realização. Delas deriva o poder pessoal. A competência é o controle sobre os fatores ambientais físicos (competência técnica) e sociais (competência interpessoal). A competência se revela como um desejo de domínio sobra a tarefa a ser executada, seja ela qual for. O trabalho de um indivíduo competente é como uma arena em que deve pôr à prova sua capacidade, suas aptidões e toda a sua tenacidade, numa luta que representa um desafio permanente mas não intangível. A competência deve ser buscada a partir da infância, mas não é necessariamente permanente, embora possa ser cumulativa. Assim, uma pessoa pode partir de um mau começo e desenvolver, após tentativas fracassadas, um intenso sentimento de competência que se acumulará com os triunfos que vier a alcançar. Contudo, parece haver um momento em que o sentimento de sentir-se competente tende a se estabilizar. Depois de certa idade, raramente a pessoa atinge mais do que aquilo que foi capaz de acumular em termos de competência. Isso acontece porque, geralmente, não tem motivação para tentar coisas acima de seu domínio habitual. Daí porque é importante que, ao seu tempo, o seu potencial de competência seja desenvolvido ao máximo possível, com decisão, bons propósitos e honestidade. Não são poucos, lamentavelmente, os casos em que a competência é desbaratada em detrimento de interesse espúrios.

Quanto à outra característica _ a realização _ é própria das pessoas que não esperam passivamente que as coisas aconteçam: desejam fazer com que as coisas aconteçam. As pessoas com esta característica procuram estabelecer objetivos relativamente difíceis, mas realizáveis, e lançam-se com vigor na tarefa de atingi-los. Contudo, algumas pessoas com esta característica tendem ao extremo, lançando-se num “jogo amalucado” pela reduzida possibilidade de ganho por meios éticos. O “jogador” parece escolher um grande risco porque sabe que o resultado está fora de seu alcance e, portanto, pode facilmente, através da racionalização, justificar sua escolha no caso de perda.

Racionalizar
Elaborar o raciocínio sobre falsas razões

Por outro lado, o indivíduo excessivamente conservador escolhe objetivos com risco mínimos, talvez pelo fato de assim minimizar o perigo de ocorrer algo errado, pelo que poderia ser acusado, até mesmo por si próprio. O indivíduo com alta motivação pela realização, no entanto, escolhe o ponto médio, preferindo um grau moderado de risco porque sabe que assim seus esforços e suas capacidades determinarão o resultado almejado.

A pessoa com motivação para a realização tem maior satisfação com os resultados obtidos do que propriamente com o dinheiro ganho. O dinheiro sem dúvida é valioso, não só como base de sustentação das necessidades básicas da pessoa, e isto é fundamental, mas também como medida da realização pessoal. No entanto, é necessário frisar, a pessoa realizadora não procura o dinheiro para a realização de status material e sim para o desenvolvimento de uma atividade produtiva. Tal pessoa não está interessada nos comentários daquelas com motivação de status social, mas deseja obter respostas ligadas à significação de sua tarefa, porque seu objetivo é fazer de forma melhor aquilo que fazem. Estão orientadas para a realização como um todo, envolvendo os aspectos técnicos e psicossociais, mas não para a sociabilidade como conquista de status social, que não é sua prioridade. Estabelecem diretrizes filosóficas para suas vidas, que procuram marcar pela capacidade de renúncia às facilidades proporcionadas pelas atividades não éticas. Assim, as pessoas voltadas para a realização, tornam-se transformadoras da realidade no sentido de melhorá-la. Na ação de fazer, vão buscar a sua autorealização e portanto sua felicidade, posto que esta é conseqüência daquela.

A autorealização como pressuposto da felicidade, implica, como o próprio nome diz, em ser autorealizado, isto é, não instrumento de uma autoridade transcendente de qualquer tipo, não resignado, porque a resignação supõe uma instância superior à razão, não infeliz, não desencorajado, não culpado.

Para isto, é preciso ouvir a voz do humanismo. E a condição essencial para alcançar esta realização é que o homem seja o único propósito e finalidade e não um meio para nada exceto para si próprio. Em outras palavras, que assuma, sem rancor, o que a finitude oferece, sem esquecer como bem sabe o agnóstico, que as mudanças e as transformações são condições do finito, pois o mundo, de acordo com a ética humanista, há que aceitá-lo como é. A satisfação é, para o agnóstico, a satisfação do que o mundo é, ou pode ser, para o homem. Satisfação no mundo significa que o mundo é bastante ou suficiente, não que seja apenas prazenteiro. Nada fortalece mais o homem do que a consciência da proximidade do finito e não do transcendente, e deste fortalecimento surge um modo especial de aceitar a existência tal como ela é.

Agnosticismo _ doutrina que nega a faculdade de conhecer a verdade e prega a ética humanista.
Finitude _ tudo o que concerne ao ser humano, incluindo sua humanidade e excluindo o que transcende.

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origem do universo
João Laurindo De Souza Netto

A origem do Universo sempre foi uma das grandes preocupações do homem: de onde viemos e para onde vamos são as questões importantes da cosmogonia e escatologia. De acordo com a tradição judaico-cristã, o Universo teve início num certo tempo definido e não muito distante do passado. O principal argumento em defesa de tal origem determinada, foi o de que seria necessário haver uma “Causa Primeira”, ou seja, Deus, capaz de explicar a criação, a partir do nada, de tudo o que existe. E de fato, dentro do Universo qualquer acontecimento pode ser explicado como causado por algum outro, anterior a ele. Mas a existência do Universo em si, só poderia ser explicada por uma “Causa Primeira”, estranha ao Universo, que o teria criado por um ato de vontade, em um instante determinado de tempo. O Universo teria pois uma origem determinada, de natureza transcendente. Essa, a explicação da Bíblia.
Agostinho de Hipona, interpretando o livro do Gênesis, propunha algo em torno de 5000 anos a.C. para a criação do Universo. É interessante notar que esta data não está muito distante do final do último período glacial ocorrido há cerca de 10000 anos a.C., quando os historiadores admitem ter realmente começado a nossa civilização.
A questão de saber se o Universo teve um princípio no tempo e se está limitado no espaço foi posteriormente examinada pelo filósofo Emanuel Kant em sua famosa obra “Crítica da Razão Pura”, publicada em 1781. Kant chamou tais indagações de antinomias da razão pura, isto é, contradições recíprocas, pois havia argumentos igualmente convincentes para crer tanto na tese de que o Universo teve um princípio, como na antítese, de que sempre existiu.

Sua argumentação era de que se o Universo tivesse tido um princípio, teria havido um período de tempo infinito anterior a ele e, deste modo, por que haveria de ter origem em um tempo particular qualquer? De outra parte, se o Universo não tivesse tido um princípio, teria havido um período de tempo infinito anterior a qualquer acontecimento, o que seria absurdo.

Os argumentos de Kant estavam baseados na suposição de que o tempo era uma grandeza contínua, que se prolongava para trás indefinidamente, tanto se o Universo tivesse tido existência desde sempre, como se isso não tivesse ocorrido. Também Aristóteles, e mais tarde Newton, acreditavam em um tempo absoluto e contínuo. Segundo eles, o tempo e o espaço eram grandezas totalmente separadas e independentes. Somente em 1865, Maxwell estabeleceu sua teoria de que a luz deveria viajar a uma velocidade fixa determinada e, por volta de 1915, Einstein propôs a célebre teoria da relatividade, que acabou com a idéia de um tempo absoluto.
Atualmente, devemos aceitar que o tempo não está completamente separado e não é independente do espaço, mas que, pelo contrário, combina-se com ele para formar um conjunto chamado espaço-tempo. Aliás, em 1912, Max Planck já havia estabelecido a teoria de que a luz e o tempo não eram fenômenos contínuos mas sim divididos em quantidades elementares muito pequenas chamadas “quantum” (teoria dos quanta), o que revolucionou o conhecimento dos chamados muito pequenos.
Por não ser contínuo, o conceito de tempo não tem significado antes da origem do Universo. Aliás, como se deveria responder à clássica pergunta: “O que fazia Deus antes de criar o Universo?” No entanto, quando a maioria dos filósofos acreditava em um Universo essencialmente estático e imóvel, a afirmação de que teria tido uma origem bem determinada (Gênesis) era realmente uma questão de caráter metafísico ou teológico.

Contudo, em 1929, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble constatou que, de qualquer ponto que se observe, as galáxias distantes se afastam da Terra. Isso significa que o Universo se expande e portanto nosso planeta, ao invés de ser o centro do Universo, como sempre pregou a Igreja, não passa de um insignificante ponto na imensidão das galáxias em expansão. Como conseqüência da determinação de Hubble, deve-se concluir que, em épocas anteriores, os corpos siderais teriam que ter estado mais próximos uns dos outros e também da Terra. E através de considerações matemáticas, chegou-se à conclusão de que entre 10 e 20 bilhões de anos atrás, provavelmente 15 bilhões, todos os corpos do Universo estavam no mesmo lugar. Portanto, todo o Universo concentrava-se em um único ponto, que teria densidade infinita e temperatura extremamente alta. Foi esse descobrimento que levou a questão da origem do Universo para o domínio da ciência.

As observações de Hubble determinaram, pois, que em um determinado tempo o Universo era infinitamente pequeno e infinitamente denso. Nesse tempo produziu-se uma grande explosão, que se tornou conhecida como Big Bang. Os cálculos permitem concluir que um segundo após o Big Bang a temperatura já havia baixado para cerca de 10 bilhões de graus e à medida que o Universo se expandia, a temperatura baixava. Em torno de cem segundos depois do Big Bang, a temperatura já havia decido a um bilhão de graus, que é a temperatura no interior das estrelas mais quentes. A essa temperatura, as partículas sub-atômicas que se formaram com a explosão começaram a se combinar, formando núcleos de átomos de Hidrogênio e Helio.
O Universo, em seu conjunto, prosseguiu expandindo-se e resfriando-se e desse modo nasceram as galáxias. Nosso Sol é uma estrela de segunda ou terceira geração, formado há pouco mais de 5 bilhões de anos. A Terra, arrojada do Sol, era inicialmente incandescente. Com o decurso do tempo foi se resfriando de fora para dentro e, mediante a emissão de gases, adquiriu atmosfera.

Algumas formas de vida primitiva poderiam já prosperar nessas condições. Acredita-se que se desenvolveram nos oceanos, possivelmente como resultado de combinações aleatórias de átomos em grandes estruturas chamadas macromoléculas. E deste modo iniciou-se um processo de evolução que conduziria ao desenvolvimento de organismos auto-reprodutores cada vez mais complexos.

O princípio da seleção natural, de Darwin, baseia-se no fato de que em qualquer população de organismos auto-reprodutores, haverá variações, tanto no material genético como na educação dos diferentes indivíduos. Estas diferenças supõem que alguns indivíduos sejam mais capazes que outros para extrair as conclusões corretas sobre o mundo e para atuar de acordo com essas conclusões. Ditos indivíduos terão mais possibilidades de sobreviver e reproduzir-se, de modo que seu esquema mental e de conduta acabará por se impor.


Assim, a teoria da relatividade eliminou o conceito de tempo absoluto e a mecânica quântica proporcionou o instrumental para que, em 1926, Werner Heisenberg formulasse o famoso princípio da incerteza(1), que, por sua vez, eliminou a doutrina do determinismo(2). E dessa forma, gradativamente, nos desenvolvemos. Mas o início de tudo se deu, sem dúvida, não por uma determinação sobrenatural mas sim pela grande explosão daquele Universo pontual.

No tempo do Big Bang, todas as leis da ciência, e portanto toda a capacidade de predição do futuro, seriam impossíveis, uma vez que os tempos anteriores não estavam definidos.
(1) princípio da incerteza: é impossível afirmar, de acordo com as convenções da geometria convencional de posição e movimento, que uma partícula atômica (como por exemplo um elétron) está ao mesmo tempo em um determinado ponto e movendo-se com uma determinada velocidade. Ou se conhece a posição ou a velocidade, mas uma condição impossibilita o conhecimento da outra.
(2) Determinismo: doutrina que afirma que atos de vontade, ocorrências na natureza ou fenômenos sociais ou psicológicos são determinados por causas antecedentes. (Entra em conflito com a possibilidade de liberdade).
Se tivesse havido qualquer acontecimento anterior a esse instante, não poderia de forma alguma afetar o que ocorreria posteriormente pois não haveria nenhuma correlação entre os fatos.

Qualquer situação anterior não implicaria em nenhuma conseqüência futura e poderia simplesmente ser ignorada, dado que o estado anterior poderia ser descrito como o verdadeiro caos. Por esta razão, pode-se dizer que o tempo e o espaço, e por conseqüência o Universo, têm sua origem no Big Bang. O tempo anterior ao Big Bang, se considerado, é equivalente ao tempo anterior à criação do mundo por Deus, segundo a Bíblia.
Em um Universo imóvel, um princípio de tempo seria algo a ser imposto externamente, por um poder estranho ao Universo e capaz de determinar esse princípio; em outras palavras, por Deus. Seria possível, nesse caso, imaginar que Deus tenha criado o Universo em qualquer instante de tempo, em decorrência de um ato de puro arbítrio, como está no Gênesis. Contudo, se o Universo não é imóvel mas, ao contrário, está se expandindo, há uma lei física que determina o seu princípio.

Do ponto de vista teológico, seria ainda possível imaginar que Deus criou o Universo por uma ato de vontade no exato instante do Big Bang. Porém não mais teria sentido admitir que pudesse tê-lo criado antes do Big Bang. Um Universo em expansão não exclui a existência de um Criador, mas estabelece limites sobre quando poderia ter realizado sua missão criadora. E adicionalmente, haveria necessidade de resolver a complexa questão de determinar porque, então, teria Deus deixado o Universo evoluir segundo leis estritamente determinadas, sobre as quais não interfere, contrariando assim a concepção judaico-cristã de um Deus onipotente!

A teoria de Aristóteles, de que tudo no mundo seria proveniente de quatro elementos, fogo, ar, água e terra, cumpria um dos requisitos de uma boa teoria: ser simples. Mas falhava quanto ao outro requisito que era o de predizer resultados futuros. A teoria de Aristóteles não realizava nenhuma predição concreta. Ao contrário, a teoria da gravidade de Newton estava

formulada em um modelo ainda mais simples, segundo o qual os corpos se atraem com uma força proporcional ao quadrado da distância entre eles, mas era capaz de predizer o movimento do Sol, da Lua e dos planetas.
Qualquer teoria física, diferentemente de um dogma, deve ser provisória no sentido de que sempre será uma hipótese a ser permanentemente comprovada. Muito embora os resultados observados sejam compatíveis com a hipótese, nunca se poderá afirmar que ela jamais irá falhar, por mais difícil que isso possa parecer. E desde que se encontre uma única observação que contradiga as previsões feitas, a teoria terá que ser abandonada ou modificada. Como afirmou o filósofo da ciência Karl Popper, uma boa teoria está caracterizada pelo fato de predizer um grande número de resultados que, em princípio, podem ser refutados pela observação. Cada vez que se comprovam as predições da teoria, esta sobrevive e nossa confiança nela aumenta. Porém se, ao contrário, uma nova observação vier a contradizer a teoria, ela deixará de ser válida.

O objetivo final da ciência é proporcionar uma única teoria que descreva corretamente todo o Universo. Como isso ainda não é possível, o método seguido pelos cientistas é o de separar o problema em duas partes. Primeiro estão as leis que determinam como o Universo muda com o tempo. Estas leis dizem como será o Universo em qualquer instante dado. Em segundo lugar está a questão da origem do Universo.

A religião preocupa-se unicamente com a segunda parte, denominada pela Bíblia “História da Criação”. A sua argumentação é a de que Deus, sendo onipotente, poderia ter criado o Universo quando e da forma que quisesse. Há, contra esta argumentação, a forte refutação de que, então, poderia igualmente fazê-lo evoluir como quisesse, ou seja, de um modo totalmente arbitrário. No entanto, parece que decidiu diferentemente, fazendo-o evoluir de maneira estritamente regular, seguindo rigorosamente leis bem determinadas. Ora, se há leis que governam a evolução do Universo, resulta razoável supor que há também leis que determinaram o seu estado inicial, questão determinada pelo Big Bang, conforme já vimos, e que contraria a versão bíblica do Gênesis.

Atualmente, os cientistas descrevem o Universo mediante duas teorias fundamentais: a teoria da relatividade geral, que estuda os efeitos da força da gravidade e também a estrutura do Universo em grande escala, e a mecânica quântica, que se ocupa dos fenômenos a escalas extremamente pequenas, tais como um bilionésimo de centímetro. Estas duas teorias são inconsistentes entre si: ambas não podem ser corretas ao mesmo tempo, mas o são se consideradas separadamente. Admite-se, pois, que o Universo não é arbitrário mas que, pelo contrário, está governado por leis físicas estritas e bem definidas.

Antes de 1915 pensava-se que o espaço e o tempo fossem marcos fixos, onde os acontecimentos tinha lugar numa seqüência inexorável. Sabe-se hoje, no entanto, que espaço e tempo são grandezas dinâmicas: quando um corpo se move, ou uma força atua, afeta a curvatura do espaço e do tempo e, em contrapartida a estrutura espaço-tempo afeta o modo em que os corpos se movem e as forças atuam. Em relatividade geral, não tem sentido falar do espaço e tempo fora dos limites do Universo. Por conseqüência, pode-se dizer que o início do tempo e do espaço foi fixado pelo Big Bang, não tendo portanto sentido falar em tempo e espaço anteriores a esse acontecimento. A idéia bíblica de um Universo essencialmente inalterável, que poderia ter sido criado por Deus a qualquer tempo, e que poderia continuar a existir ou ser destruído pelo Criador quando lhe aprouvesse, foi substituída pelo conceito de um Universo dinâmico, em expansão, que teve início com o Big Bang e que, pela sua curvatura, poderá acabar em um certo tempo finito do futuro (Big Crunch), independentemente da vontade de um poder sobrenatural, qualquer que seja a sua natureza.

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sobre a teodicéia
João Laurindo De Souza Netto

Teodicéia conjunto de doutrinas que procuram justificar a bondade divina contra os argumentos do mal no mundo.

A doutrina sobre a demarcação entre ciência e não ciência foi formulada primeiramente por Karl Popper em sua obra “The logic of the scientific Discovery” (Londres 1959), e afirma que uma hipótese deve ser refutável se existe ou é possível imaginar algum enunciado observável que seja incompatível com ela.

Há enunciados refutáveis que não foram refutados, porém que poderiam em princípio sê-lo. Há outros que, sendo refutáveis, foram logo refutados ou satisfatoriamente confirmados. Um exemplo importante é a hipótese de Urbano Le Verrier sobre a provável existência de um novo planeta (o futuro Netuno), que era refutável, mas foi confirmada em 1846 por J. Galle. Esse fato veio corroborar a afirmação de Popper sobre uma teoria refutável: as leis newtonianas da gravitação. A teoria de Newton não só é refutável como já foi refutada (experiências de Michelson-Morley; teoria da relatividade; etc). Quando o critério de refutabilidade se aplica com êxito a uma teoria científica, esta é eliminada como pretensão de verdade, isto é, é refutada, porém não necessariamente eliminada. Uma complexa rede de motivos práticos pode fazer com que os marcos de referência em que funciona esta teoria conservem para certos casos sua vigência.

Pelo contrário, a crença no deus mitológico Netuno jamais pode submeter-se a métodos de refutabilidade ou de confirmabilidade. Analogamente, a existência de Deus, ou de alma imaterial e imortal, ou de qualquer ser celestial, não são enunciados refutáveis, nem intersubjetivamente pertinentes porque são inindentificáveis. Ser refutável (o que implica em identicabilidade intersubjetiva) é o critério decisivo para a pertinência de um enunciado em termos de cognoscibilidade real. A hipótese de um deus como primeira causa eficiente, eterna, universal, onipotente, onisciente, onipresente, suprema em grandeza e bondade, é um enunciado metafísico-religioso sem nenhuma possibilidade cognitiva. Se a essa idéia se associa o atributo de providente (que dirige e intervém no curso da história), sua inverossimilhança, em termos de coerência conceitual, se incrementa ainda mais, porque o panorama real da sociedade humana desmente cotidianamente sua bondosa providência.

O ponto inicial de reflexão poderia dizer-se que está situado na crassa incoerência do conceito de um Deus sumamente bom e ao mesmo tempo que tudo pode e tudo sabe, e do conceito de uma criatura que se define como causa livre de seus atos porém que nada pode fazer sem o concurso da causa primeira divina. No marco deste duplo conceito, que responsabilidade recai sobre cada um dos personagens?

Se alguém afirma algo, um modo inequívoco de entender o que diz é tentar encontrar o que consideraria ele como contrário, ou incompatível com sua verdade. Porque se a expressão é efetivamente uma asserção, esta incompatibilidade será necessariamente equivalente a uma negação dessa asserção. É o mesmo que dizer: afirmar que tal e tal é o caso, é necessariamente equivalente a negar que tal e tal não é o caso. Não é possível crer ou não crer em alguma proposição que aparenta ser verdadeira, se não se conhece minimamente seu significado, pois se não é possível mostrar ao menos quais experiências concebíveis podem apresentar-se a favor ou contra a pretensão de que Deus criou os céus e a terra, e que ama suas criaturas, então estes enunciados, que aparentam ser verdadeiros, estão vazios de significado fático e cosmológico. São os atributos do ser humano os únicos que, paradoxalmente, outorgam coerência ou incoerência ao ser divino.

A pretensão do teísmo de que estes conteúdos pertencem de forma própria à idéia de Deus, é falsa, pois nenhuma afirmação baseada na experiência, nem sequer afirmações que se refiram ao que é logicamente possível para a experiência, conta a favor ou contra sua verdade. A afirmação “Deus existe” é compatível com qualquer estado de coisas, assim como a afirmação de que qualquer ente celestial existe.

De um modo ou de outro, o conceito de Deus, tanto para sua compreensão como para sua justificação, depende sempre de referências empíricas e antropomórficas. O atributo de ser providente é o caminho real da evasão teísta: a idéia de uma intenção oculta de um Deus que só obedece a pautas e planos de justiça, cuja lógica se postula como necessariamente incompreensível para os humanos por estar soterrada no mistério da vontade divina, impede desde sua raiz toda ocasião de refutabilidade do conceito de Deus. Suceda o que suceder, afirma-se que isso satisfaz indefectivelmente o curso dos inescrutáveis desígnios do Criador, e que portanto deve ser bom e benéfico para tais desígnios, ainda que não pareça para a ótica dos homens. Deus é o sumo bem, diz a apologética, e nenhum acontecimento pode demonstrar o contrário. Sua bondade não é refutável nem pelo mal físico nem pelo mal moral. Porém o intratável problema da teodicéia permanece em pé.

O significado científico que possa ter o enunciado “o universo é eterno”, ou “o cosmo teve um começo”, ou “existe mais de um universo”, ou “o tempo é fisicamente reversível”, ou “o ser humano pode regressar ao passado”, ou “o tempo não existe, só existe o espaço”, etc., é tão incerto ou impreciso como o significado teológico de “Deus não criou o mundo desde a eternidade”, ou de “Deus é eterno, intemporal”, etc., porém se diferenciam decisivamente em que os enunciados científicos são refutáveis pela experiência, enquanto que os enunciados teológicos são especulações irrefutáveis, interpretações que só se submetem a um critério: coonestar (dar aparência de honestidade a) conceitos convencionais dentro de postulados (princípios reconhecidos, mas não demonstrados) de uma linguagem especial, a linguagem teísta da fé, mediante cláusulas adicionais para um fim determinado. Que pode significar a onitemporalidade (todo o tempo) no contexto da imutabilidade (que não muda) divina e da copresencialidade (presença junto com) de tudo na mente de Deus? A técnica do “stop gap” (tapa buraco ou substituto) só acaba abrindo novas brechas.

Sabemos que não existem mundos de fadas, porém nos é impossível prová-lo, porque as definições de tais mundos são especulações que não podem, por princípio, submeter-se a alguma situação empírica imaginável de refutabilidade. Deus, fadas e entes celestiais carecem por igual de toda a virtualidade (possibilidade) cognoscitiva real, porque pertencem a um universo mental do qual se pode dizer tudo o que se queira, já que nada se pode refutar. O mundo é tudo o que existe e nada mais do que existe; e tudo o que se pode explicar tem que se explicar por referência ao que há no mundo.

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o modernismo
João Laurindo De Souza Netto

Há cem anos atrás, a cultura ocidental sofria uma mudança religiosa radical, a primeira e única depois que, no século IV, o imperador Constantino proclamou ser o cristianismo a religião do Império Romano. A mudança de que se fala era algo inteiramente novo: a aceitação da não-crença em Deus como opção aceitável.

É certo que sempre houve não crentes. Mas, antes, eram considerados excêntricos e, por certo, nunca aceitos como constituintes da cultura e da erudição do ocidente. De fato, a admissão básica anterior era a de que um poder sobre-humano chamado Deus, com D maiúsculo, seria, de algum modo, responsável pelo Cosmos e por tudo que havia nele (e fora dele). As pessoas podiam divergir nas explicações de como esse extraordinário poder operava, mas não era aceitável _ nem permitido _ negar a existência de Deus.

No último quarto do século XIX, no entanto, a não-crença tornou-se uma opção plausível na cultura americana e em sua equivalente européia. Ela não afastou a crença. Aconteceu apenas que uma continuada ausência de convicção de que existiria um poder sobre-humano (como Deus) tornou-se então, e continua hoje, uma atitude perfeitamente aceitável para um segmento da sociedade, em igualdade de condições com a crença convencional.

Mas, como salienta James Turner em seu livro “Without God, without Creed”, essa mudança não ocorreu subitamente, como se fora uma “vitória” do pensamento secular sobre a crença religiosa. Segundo ele, não foi somente a ascensão da ciência, a secularização da educação e da política, a industrialização generalizada, nem mesmo a difusão das idéias comunistas e marxistas o que determinou fosse a não-crença uma opção aceitável em nossa cultura. Essa mudança radical do pensamento erudito foi principalmente devida à reação dos próprios líderes religiosos contra a chamada modernidade, isto é, contra as alterações no modo de vida das pessoas, determinadas pelo progresso. Diante da eficiência da razão aplicada a tudo: à industrialização; à pesquisa crítica das origens do homem; ao exame científico da natureza do mundo; à evolução da medicina, da produção de alimentos, da ciência social e do controle das pragas, os pensadores religiosos fixaram-se no esforço de incluir Deus nesses novos modos de pensar e de viver, como se todas essas mudanças fossem simplesmente obra de Deus. Ciência, tecnologia e artes aplicadas foram aceitas pacificamente como manifestações do zelo religioso do homem e como se fora a preparação para um iminente Milênio na Terra. Como afirmava Turner “líderes religiosos confiavam à religião a tarefa de fazer com que o mundo ficasse melhor, funcionalmente em termos humanos e intelectualmente em maneiras de conhecer a Deus”.

E enquanto o mundo corria para adaptar-se à sua nova cultura, genericamente denominada modernismo, os homens da igreja agarravam-se a seus próprios dogmas e deixavam de realizar a única tarefa que realmente importava: dar um significado espiritual às novas realidades da vida que fossem compatíveis com as mudanças do mundo visível. Em vez disso, muitos procuraram uma adaptação impossível, buscando fórmulas pseudo-modernistas : “Deus é uma Providência em desenvolvimento” (?) declarou o bispo de Sarum (E.U.A.), Gilberto Burnet.

Mas para a elite intelectual, ou seja, para os chamados modernistas, a nova atitude da não-crença tinha atrativos específicos. Aqueles pensadores não eram simplesmente modernos para a sua época. Eram a própria modernidade. Não se tratava de inteligências de segunda classe. Alguns deles eram os principais determinantes das correntes de pensamento de seu mundo em suas especialidades, ciência, arte, filosofia, história e até mesmo conhecimentos bíblicos.


Esta nova e de certa forma revolucionária categoria de homens, impunha-se por sua tomada de posição no mundo de então, proclamando-se não sectária, libertária em sua não-crença e democrática em seu espírito de tolerância. Por essa razão seus adeptos denominavam-se “libertadores”. Nos casos em que um judeu e um muçulmano estivessem tentando estrangular um ao outro, o mesmo se dando com católicos e protestantes, os não-crentes podiam ser amigos de todos sem tomar partido. Eles não pretendiam decidir sobre as questões religiosas debatidas pelos fiéis com tanto ardor, pois, como diziam, estavam acima delas. Sua atitude amena e tratável para essas questões, para muitos deles, passou a representar a mais autêntica e a mais nobre das atitudes a serem tomadas.

Ainda assim, o novo estilo mal poderia ter sido adotado maciçamente entre as pessoas eruditas não fosse por um obscuro monge hindu, sobre o qual a maioria dos adeptos da nova doutrina nada sabia. Numa breve ascendência à fama, o “swami” Vivekananda, no Parlamento Mundial de Religiões, em 1803, em Chicago, falou sobre a harmonia de todas as religiões. “O homem não está viajando do erro para a verdade, mas subindo de verdade em verdade, da verdade que é inferior para a que é mais alta, sem nunca poder atingir o topo”.

Ele apresentou a teoria de que o que importava não era a religião em geral ou qualquer religião em particular, mas o espírito. Ser espiritual era a chave, segundo Vivekanada. O mais importante de tudo, porém, foi que ele consagrou a vida do indivíduo neste mundo como a única coisa que importa: “até mesmo a mão que se estende para você terá que ser a sua própria”. (e não um poder externo a você).

O “swami” deu ao novo culto da não-crença um estado mental abrangente, unificador e inteiramente aceitável. O seu atrativo estava em que repisava o privilegiado poder da razão do homem sobre a sua ação e depositava inteira confiança na natureza humana, de modo que se cada pessoa se sentisse livre de toda a intromissão ditada pela religião organizada, ela poderia, por si mesma, atingir a própria felicidade. Cada qual estava por sua própria conta: “a mão que se estende para você terá que ser a sua própria”.

Esta nova maneira de pensar enfatizava aquilo que unia as pessoas e não o que as separava (justamente as doutrinas religiosas). De fato, como cidadãos, estes novos não-crentes não davam motivo para censura _ eram trabalhadores e éticos. Incansáveis pensadores. Não gostavam do termo ateu; as conotações negativas eram negativas demais e óbvias demais. Preferiam ser chamados não-crentes. O que pediam como homenagens póstumas, era que uma pessoa viva fizesse algo por outra pessoa viva em sua memória. Esse era o seu espírito pragmático. E fora disso havia o nada. Assim, realizavam na prática todo o bem moral que as religiões formais professavam, na maioria dos casos, apenas como doutrina.

Na virada do século XIX para o século XX, a afirmação da não crença havia adquirido um "ethos" ou estado de espírito e um vocabulário próprios. Pelo fato de defender a natureza humana do homem, esta nova atitude da não-crença poderia ser descrita como humanismo, embora não se tratasse do mesmo humanismo que havia surgido na Renascença européia três séculos antes Enquanto o renascentista afirmava ter o homem já atingido sua cota máxima de desenvolvimento, o não-crente entendia que a nossa aventura biológica ainda se desenrolava e que teríamos que buscar o nosso lugar de direito no longo drama que se representa no universo. Este novo humanismo sublinhava a participação do homem no Cosmos como algo inerente à mutação cósmica, uma casualidade cuja origem se encontrava na primitiva combinação de elementos químicos até chegar à postura ereta do Homo Sapiens.

Contudo, a não-crença, por si só, não poderia destronar a fé popular e a fidelidade à religião tradicional entre as massas populares. A intelectualidade necessária à compreensão dos fundamentos da não-crença era, e continua sendo, ininteligível para a mente comum, que necessita amparar-se em totens, tabus, amuletos, ícones, ídolos, imagens e num sem número de superstições para garantir a sua fé e também a sua segurança Só a crendice popular, sobretudo das massas ignaras, podia (e ainda pode) aceitar os maçantes e repetitivos ofícios religiosos, onde a monotonia e mesmice reflete o pensamento dos oficiantes, que os fiéis repetem de forma mecânica, a cada sessão.

Acontecimentos históricos como a Revolução Francesa; as guerras napoleônicas; a ascensão de grandes potências protestantes como os impérios britânico, alemão, holandês, na Europa, e a União Americana na América, reduziram a atividade intelectual católica da época a reações de revide, refutação e repetição. O progresso óbvio da ciência acrescentava um gosto de fel a essa monotonia estéril. O catolicismo romano, do qual se derivaram as várias seitas protestantes, foi erigido sobre um dogma e uma fé fixos, e esteve sempre ligado à tradição de que o representante pessoal de Deus na Terra vive num pequeno mas distinto enclave, às margens do Tibre, em Roma, Itália (Vaticano). Dali ele sustentava (e sustenta ainda), com autoridade, verdades fixas sobre fé e moralidade. Havia toda uma gama de ensinamentos tradicionais, tratando de todos os aspectos da vida humana, desde antes do ventre até o além-túmulo, na eternidade.

Já na década de 1840, o filósofo italiano Vicenzo Gioberti declarou categoricamente que “a Igreja terá que se reconciliar com o espírito da época e com os tempos modernos”. Caso contrário, disse ele, a Igreja iria perecer. E dentro de trinta anos após a morte de Gioberti, em 1852, destacados eruditos católicos na França e na Itália haviam aderido ao poder e aos encantos da não-crença. O contínuo progresso da ciência, um novo modelo para os estudos bíblicos, a extraordinária moda da evolução darwiniana, estavam começando a fazer seus efeitos. A Revelação e o conhecimento sobrenatural, escreveu “monsignor” d’Hulst, reitor do Institut Catholique de Paris, não deviam apenas parecer razoáveis; tinham que ser razoáveis.

Em vez disso, porém, a Igreja Católica Romana atacou o modernismo diretamente e pelo nome, como sendo uma crença herética, de mesmo nível das importantes heresias de épocas anteriores, como o arianismo, o pelagianismo e outras que vigoraram pelos séculos III e IV. Expôs ao ridículo o princípio essencial do modernismo, segundo o qual tudo numa religião muda, tem que mudar, como tudo numa cultura, à medida que os homens progridem e se tornam melhores em suas qualidades humanas.

Contudo, para o intelectual, para o culturalmente sofisticado, persistia aquela cativante atração da não-crença _ bem como a sua modernidade. Mente modernista era a de centenas de pessoas que ajudavam maciçamente a melhorar o destino do homem. Ela deu origem a uma legislação socialmente benéfica. Os modernistas defendiam os oprimidos. Não demonstravam nem um pouco do ódio que grassava entre religiões diferentes. Não reivindicavam a infabilidade. Com certeza, argumentavam teólogos católicos, devia haver alguma verdade em muitas das coisas que os modernistas propunham.

E apesar das violentas arremetidas contra os modernistas e seu modernismo pelo papa Pio X nos primeiros dez anos do século XX, o trabalho dos modernistas continuou, embora de forma velada. Um grupo de jovens jesuítas que se intitulava La Pensée floresceu nos anos vinte. O padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin ficou fascinado pelo que os cientistas alegavam provar com relação à pré-história. Para ele, a hipótese da evolução proposta por Darwin era um fato comprovado. Passou a adaptar o catolicismo romano àquela “realidade”. Elaborou toda uma nova teoria sobre o catolicismo e a cristandade. O estranho deste caso está no fato de que os jesuítas, tão rigorosos em questões de fé, adotaram o trabalho de Chardin como seu vanguardeiro em questões filosóficas e teológicas que se referissem vitalmente à fé católica.

Mas o que sempre importou à hierarquia católica foi alcançar a vitória e conquistar novas parcelas de poder em nome de seu Deus e de suas presumidas verdades. Se para isso bastasse influência missionária convincente, o triunfo pacífico era bem acolhido. Porém, se surgia qualquer resistência, o recurso à força era um dever não só lícito como também necessário.

O processo que conduz até os fins do poder religioso foi examinado pelo filósofo Bertrand Russel em 1930. Num magnífico resumo que se referia a todas as religiões institucionalizadas, apontava que, logo que se presume que a verdade absoluta está contida na doutrina de um Mestre ou de um determinado Messias, surge imediatamente um grupo de “expertos” (com x) empenhados em interpretar para o conjunto de seus seguidores o que este propagou. Tal presumido conhecimento proporciona-lhes infalivelmente determinadas cotas de poder que convertem o seu coletivo em uma casta privilegiada, porém com uma vantagem flagrante com respeito às outras: proclama-se portadora de certezas inamovíveis, que lhe foram reveladas de uma vez para sempre e com toda a sua perfeição. Por este caminho, seus membros se opõem tenazmente a toda evolução intelectual ou moral, porque nenhuma nova proposição poderá coincidir com o que já estava estabelecido no Mais-Além como algo concludente e indiscutível.

O resultado, tanto imediato como a longo prazo, não será outro que a conquista de cotas de autoridade cada vez mais altas, graças a manter na mais obediente passividade o conjunto de fiéis, que só terá uma alternativa: aceitar o direito de domínio implantado pelos representantes e intérpretes únicos daquele que presumidamente falou em nome da Divindade. E isso ainda que para adaptar dita mensagem a seus fins tenha havido necessidade de alterá-la ou até mesmo de falseá-la.

Levando esta realidade às suas últimas conseqüências, aquele intelectual libertário que foi Russell concluía que as Igrejas _ todas as Igrejas, não só a católica_ sempre são perniciosas, tanto em sua vertente intelectual como moral, pois a heterodoxia (3) é sempre uma atitude criadora, nunca uma postura passiva, ao passo que a religião sempre procurou impedir o desenvolvimento de qualquer outra doutrina que não fosse a que proclamava como a única, verdadeira e lícita.

E de fato, nunca constituiu um obstáculo que, para conseguir o triunfo de sua verdade e alcançar um poder absoluto, se tenha recorrido à guerra, à extorsão, à escravidão, ao tormento, ou à morte violenta, tudo em nome de Deus.

(3) heterodoxia : qualidade de heterodoxo
heterodoxo:oposto aos princípios de uma religião ou ortodoxia
ortodoxia: qualidade de ortodoxo
ortodoxo: conforme com a doutrina religiosa tida como verdadeiraheteronômico: relativo à heteronomia
heteronomia: condição de pessoa ou de grupo de pessoas, que receba de um elemento que lhe é exterior a lei que se deve submeter.
Autonomia: faculdade de se governar por si mesmo.
“A moral heteronômica ainda que fosse objetivamente plausível, não pode assegurar por si mesma a dignidade moral se antes a própria consciência não tiver validado a sua veracidade, mediante um juízo autônomo” (Razão, Religião e Estruturas de Poder pg 143)

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racionalizações
João Laurindo de Souza Netto


Racionalização _ Tem aqui o seguinte sentido: reconstruir conceitualmente com pretensões de racionalidade, conteúdos míticos, fabulações religiosas ou especulações metafísicas.
Racionalidade: que se determina pela razão
Mítico: relativo a mito (relato fabuloso de caráter religioso)

Um dos fenômenos mais inquietantes dos nossos dias é a crescente dissociação entre o âmbito da comunidade científica, representada por filósofos e intelectuais que exercem função crítica sobre os dados aportados pelo avanço das ciências, e a grande massa de pessoas que ainda se alimentam mentalmente dos pseudo-saberes que impõem as igrejas ou confissões religiosas, os círculos espíritas, os profissionais do esoterismo e os pseudo-cientistas da parapsicologia. As instâncias(1) que impõem ou propõem esses pseudo-saberes negociam com as promessas de salvação e com as esperanças de felicidade e consolações na crença de um mais-além depois da morte.

(1) Instância _ instituição ou força social com poder e autoridade

Há vinte séculos a Igreja cristã instaurou a “cultura do milagre” e tem fomentado o fetichismo (2) e a superstição, fundados no dualismo cósmico que emerge com a ilusão animista gerada pela mente do homem pré-histórico ante fenômenos para ele de difícil explicação (ver “A hipótese Animista” na Monografia 5)

As modestas exigências de racionalidade do homem primitivo imaginaram a falsa hipótese animista e o subseqüente dualismo corpo-alma, matéria-espírito, transcendência-imanência.(3)

Tudo o que há de estritamente religioso na mente humana tem sua base no animismo. A religião, o espiritismo, o esoterismo e a parapsicologia seguem aprisionando o ser humano na alienação da mente, através do dualismo inaugurado pela ilusão animista.

A crença em almas imortais ou em espíritos separados da matéria que revolteiam em um mais-além imaginário, ou em seres extracorpóreos, invisíveis, tais como a população de anjos-arcanjos, querubins, serafins, tronos, dominações, potestades, principados e virtudes, além de santos e demônios, são formas

(2) Fetichismo _ culto de objetos materiais, considerados como a encarnação de um espírito e possuidores de virtude mágica.
(3) Transcendente _ que transcende os limites da experiência possível; metafísico; que ultrapassa nossa capacidade de conhecer.
Imanente _ que está contido em; independente de ação exterior.

intelectualizadas do animismo. O mundo da milagraria, das visões religiosas, das taumaturgias esotéricas, das experiências espíritas, do processo cármico de transmigração das almas, e de outros fenômenos sobrenaturais, são hipotecas mentais que mantêm o ser humano atado a esperanças vãs. O grande inimigo do ser humano não é a razão, mas o mau uso da razão. Pelo contrário, a razão como base de uma ética heterodoxa, individual e coletiva, é a garantia de uma vida independente e solidária, pois a heterodoxia é sempre uma atitude criadora, enquanto que a religião se opõe, por princípio, a qualquer doutrina que não seja a que proclama como verdadeira.

É uso atual relativamente recente, falar das “racionalidades” como sendo uma série de universos mentais que gravitam sobre seus próprios e exclusivos modos de raciocinar, cada um a partir de seus pressupostos ou de seus postulados, com a plena autonomia de discursos fechados sobre si mesmos e auto suficientes nas esferas de suas respectivas tematizações. Estas “racionalidades” determinariam que não teriam que dar conta de suas pretensões de verdade a não ser a si mesmas. Nesta formulação, no entanto, se esconde um gravíssimo equívoco no uso do termo razão. O discurso teológico sobre os “mistérios”, por exemplo, é uma especulação redundante sobre os mitos nos quais intervém, um discurso supérfluo, gratuito e sem pertinência objetiva. É a almejada, mas falida, “racionalização” de uma irracionalidade.


Tanto o discurso teológico como o discurso metafísico, oferecem modelos do universo que aspiram erigir-se em verdade absoluta, ainda que saibamos que no curso da história metabolizam elementos estranhos à sua versão original. O discurso científico, por outro lado, propõe-se a explicar os fenômenos em si mesmos, identificando e verificando suas relações mediante modelos de explicação que não aspiram a ser imutáveis e definitivos.

Entre os grandes “milagres” do cristianismo, pensemos nos inverossímeis “mistérios” da encarnação de Deus em um homem, do nascimento virginal de Jesus, engendrado pelo Espírito Santo, de sua ressurreição e seu deambular durante quarenta dias por sua terra, aparecendo aqui e desaparecendo acolá, ao ritmo da fé cristã de mentes exaltadas. E note-se que a fé cristã envolve em nossos dias, também, massas crédulas de crentes do espiritismo, do esoterismo e da parapsicologia.

Os efeitos perversos da dissociação intelectual e social que sofre a sociedade atual tornam peremptória e urgente a ação de superar essa barreira, para construir nos limites do possível e tendo a difusão do saber como plataforma, uma sociedade mais justa e conseqüentemente mais feliz. A freqüente deserção ou indiferença da intelectualidade ante o dever de difundir o seu saber, leva-nos a concluir sobre a importância do trabalho das várias confissões religiosas, que, através de seu percuciente proselitismo, conseguem a fácil aceitação, pelas massas populares, das “verdades” por elas ditadas. Efetivamente, aos detentores do saber, no sentido crítico e analítico e não devocionista, da religião em geral e do cristianismo em particular, que alcançaram por isso genuína independência intelectual, caberia reintegrar a dignidade de pensamento dessas massas populares a um nível que lhes permita desalojar de suas mentes a selva de falazes esperanças e enganosas fantasias, formadas por uma pregação implacável e duradoura. Esvaziar a mente de crenças ilusórias corresponde sempre ao seu fortalecimento, pois permite enchê-la com novo repertório de idéias e percepções, que constituem inegável riqueza.

O culto a alguma forma de entes espirituais é universal, a não ser entre as minorias ilustradas que, mediante o estudo, a observação e o saber absorvido voluntariamente, superam a idade do mito. O esforço por introduzir nos mitos as categorias de uma peculiar “racionalidade”, capaz de fazer passar sua natureza ilusória para certezas necessárias ao bom uso da razão, exige análise cuidadosa de tal “racionalidade”. Pode-se afirmar que as racionalizações usadas pela apologética(4), obedientes à exigências da fé ou dos dogmas eclesiásticos, situam-se à margem de toda pretensão séria de verdade, e só podem encontrar abrigo na “vontade de crer”, isto é, em uma resolução subjetiva que está em manifesta contradição com os resultados da investigação heurística(5) e científica. O preço desta atitude é, lamentavelmente, o esvaziamento da razão.

O uso da razão, porém, não é automático. Deve ser aprendido. E a difusão de uma crítica séria e bem fundamentada sobre o fenômeno religioso, com o propósito de lançar as bases de um pensamento autônomo, deve ser a grande questão dos nossos dias.

(4) Apologética _ ramo da teologia que justifica a fé cristã e o dogma
da religião católica.
(5) Heurística _ pesquisa de fontes históricas

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ideologias(1)
João Laurindo de Souza Netto



No decurso da história pode-se apreciar uma progressiva impregnação ideológica (2) de todos os âmbitos sociais, destacando-se a peculiar situação dos dias atuais, quando a racionalidade capitalista forjou a ideologia da sociedade industrial (3).
O estágio atual representa a culminação do processo de impregnação ideológica. Não é de surpreender, portanto, que nos EE.UU., onde desenvolveu-se a consciência de liderança do mundo capitalista, haja uma forte exigência de recursos ideológicos eficazes para justificar a sua hegemonia (4) e para afiançar seu “status quo”(5) , o que é realizado através da cisão definitiva entre ética e política.
(1) Ideologia: Pensamento teórico que pretende desenvolver-se sobre seus próprios princípios abstratos, mas que, na realidade, é a expressão de fatos sociais, econômicos ou políticos, que não são levados em conta ou não são expressamente reconhecidos como determinantes daquele pensamento.
(2) Impregnação ideológica: infiltração de uma ideologia num meio social.
(3) Ideologia da sociedade industrial: aspecto eminentemente individualista do capitalismo, encoberto por um caráter social relativo à propriedade do capital, o qual, supostamente, é empregado para o bem comum, mas na verdade se atém à busca do lucro.
(4) Hegemonia: preponderância de um povo sobre outros povos
(5) Status quo: estado em que se acha uma questão
A esperança de que o fim da mentalidade ideológica permitiria ver o mundo sem o contraste dos juízos de valor não é senão a ilusão de uma fuga das responsabilidades morais, pois não é a consciência que determina o modo de vida, mas sim este que determina aquela. De fato, a produção das idéias, das representações e da consciência está direta e intimamente ligada à atividade material. São os seres humanos que produzem suas representações, suas idéias, etc, através de um condicionamento determinado por suas forças produtivas. A consciência jamais pode ser senão o ser consciente e o “ser” dos homens é um processo de vida real. O modo específico de produzir sua vida caracteriza o que os homens são. E o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua vida. Desaparece assim o mito de uma consciência pura e de uma verdade absoluta.

Esta concepção não explica a prática segundo a idéia, explica a formação das idéias de conformidade com a prática material, ao longo da história. Assim, todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos não pela crítica intelectual, mas somente pelo “fazer” das relações sociais concretas e práticas do mundo finito, conforme prega o agnosticismo.

Na ideologia medieval, por exemplo, o mundo todo, céus e terra incluídos, era visto como uma hierarquia, em que a terra estava necessariamente subordinada ao céu. Na produção desta ideologia não havia intenção alguma de considerar a ordem feudal; a intenção consciente era a de considerar a ordem do mundo, e isto foi elaborado conscientemente num sistema lógico. Contudo, a ideologia era ainda, na realidade, um reflexo das relações sociais feudais existentes, as quais foram reproduzidas assim nas idéias dos homens por um processo espontâneo, não intencional, inconsciente. A ideologia medieval, com sua concepção religiosa de hierarquia cósmica, que refletia a ordem feudal, significava que a exploração do servo pelo senhor era disfarçada como uma subordinação do servo ao governo de Deus.

Em troca da proteção e assistência econômica que recebiam, os servos ou vassalos, deviam obedecer ao senhor, servi-lo lealmente e, em geral, compensá-lo com tributos ou impostos correspondentes aos serviços que ele “prestava” no interesse dos primeiros, o que foi posto em prática pela Igreja com o nome de “beneficium”. Tal concepção, de forma inconsciente, persiste ainda em grande parte da massa de cristãos.

Ao caráter natural e não voluntário das relações sociais corresponde uma determinação também necessária e não livremente consentida de formas de consciência. Assim, as relações de produção, que são indispensáveis, formam os conteúdos mentais, que não podem ser encarados como “achados” de um pensamento puro.

Numa sociedade de classes, as ideologias constituem um sistema mental orientado pelo interesse de classe e destinado a disfarçar as relações sócio-econômicas a fim de preservar a situação favorável a uma determinada classe. Assim, o interesse de classe vem a ser a matriz das ilusões ideológicas e da falsa consciência em geral. As ideologias, por conseguinte, constituem a mistificação do conhecimento mediante a substituição dos objetos e das relações objetivas por correlatos imaginários, ou da manipulação inconsciente desses conteúdos.

Resulta assim que a estrutura total do pensamento de cada época histórica, ou de cada grupo social, é ideológica no sentido da estrita dependência de uma falsa consciência. A constituição biológica e histórico-social do indivíduo, a peculiaridade das condições de vida do pensador e a estrutura do tratamento dado ao processo de situações vitais, influem nos resultados do pensamento e no ideal de verdade que este pensador é capaz de construir a partir dos produtos do pensamento.

Todas as classes sociais, em uma dada situação histórica, participam da ideologia dominante, ainda que a partir de interesses opostos. O que se denomina “horizonte utópico” (5) da ideologia é compartilhado tanto pelas classes dominantes como pelas classes dominadas, se bem que para as primeiras esse horizonte funciona como referência legitimadora de seus privilégios, enquanto que para as segundas opera como explicação de sua atual condição subordinada e, ao mesmo tempo, como garantia da expectativa de uma satisfação final de aspirações insatisfeitas no presente.

Se o horizonte utópico de uma ideologia postula, por exemplo, princípios de concórdia universal, de justiça distributiva na ordem pública vigente, de liberdade sem violência, de equidade na fraternidade humana, de fiel cumprimento do dever de cada um, de benevolência universal, etc.,e, sobretudo, se fala de ideais e nega a existência de ideologias, então se está em presença de uma racionalização(6) ética do “status quo”, ou seja, de uma retórica que, em fórmula de filantropia universal, mascara a proteção da ordem de dominação existente.
(5) Horizonte utópico: situação que não encontra a menor possibilidade de realizar-se na sociedade correspondente, mas outorga à ideologia que o afirma uma respeitabilidade ideal para a existência prática desta.

(6) Racionalização: “Racionalizações”
A função emascaradora das ideologias se manifesta nos fenômenos de inversão consistentes em uma leitura da realidade segundo esquemas ideais. Isto significa interpretar situações conflitivas como situações harmônicas, etc. Precisamente estes fenômenos de inversão permitem alojar as asserções ideológicas da realidade dentro do horizonte utópico.


Para ilustrar a natureza peculiar das ideologias, basta pensar no contraste entre o lema da Revolução Francesa _ Liberdade, Igualdade, Fraternidade_ que funcionava como horizonte utópico, e as relações de exploração que instaurou efetivamente no plano concreto, como instrumentos de produção nas mãos dos detentores do poder, trabalho assalariado mal remunerado, extorsão dos ganhos da classe trabalhadora através de impostos e tributos, democracia formal de cidadãos economicamente desiguais, etc. Não se pode deixar de salientar também a ética do Cristianismo _ moral do amor fraterno entre os filhos de Deus iguais e livres _ frente às sucessivas estruturas de exploração assentadas sobre aquela ética. Sem o respectivo horizonte utópico, ditos sistemas ideológicos teriam resultado inviáveis.

Assim é indispensável a toda ideologia assumir um horizonte utópico no qual se integra o conjunto de suas formulações, de maneira que as situações de dominação e de dependência possam inserir-se num contexto ilusoriamente aceitável para as classes negativamente discriminadas quanto aos processos de alienação da consciência.

Um tratamento espiritualista da história do cristianismo, desde suas origens, por exemplo, limitando o seu “Sitz im Leben” (situação de vivência do autor do evangelho) a meros interesses teológicos, isolados portanto dos interesses econômicos, sociais e políticos da sociedade em que viveu o evangelista, estará privado do critério básico que permite estabelecer uma exegese (7) profissional confiável.

Ficará então manifestado que as motivações ideológicas prévias influenciam as motivações teológicas. As formas ideológicas não só refletem de modo consciente ou inconsciente as relações que descrevem como, muitas vezes, as apresentam de modo invertido para propagar uma cosmovisão que legitime a dominação pretendida.

A ideologia que a Igreja começou a impor a partir do proselitismo desenvolvido por Paulo de Tarso desempenhou a típica função conservadora da ordem econômica e social vigente _ primeiro no Império Romano, depois no curso da história do Ocidente _ que corresponde às formas religiosas de alienação: as classes inferiores se contentariam com as satisfações ilusórias que lhes oferecia uma cristologia despojada do significado original pregado pelo Jesus histórico
(ver “Do Jesus da História ao Cristo da Fé”) e moldadas pela soteriologia(8) sincretista(9) do helenismo(10) orientalizante de Paulo.


(7) exegese: minuciosa interpretação de um texto, em especial da Bíblia, através de análise crítica baseada em critérios científicos.
(8) soteriologia: parte da teologia que trata da salvação dos homens
(9) sincretismo: sistema filosófico que concilia doutrinas ou religiões diferentes
(10) helenismo: civilização que se baseava numa fusão de elementos gregos e orientais

Só uma concepção libertadora, o agnosticismo, é capaz de livrar o homem das peias das ideologias e torná-lo um ser autônomo, perfeitamente situado na finitude, quer no domínio lógico quer no ético.

O fundamento do agnosticismo consiste em assumir radicalmente a finitude do ser humano, sem o álibi da transcendência ou de qualquer ideologia religiosa, esforçando-se por construir um mundo não tomado pelo fanatismo determinado pela fé, aceitando os acontecimentos como fatos que se dão sem nenhuma causação nem direcionamento exterior ao mundo. A satisfação do mundo do agnóstico é a satisfação do que o mundo pode oferecer, mesmo nos casos em que a finitude é dor ou preocupação. E nisso consiste a serenidade do agnóstico que, através da auto-realização, procura a felicidade,não sendo instrumento de nenhuma autoridade transcendente ou ideológica, não resignado, mas sereno, não desencorajado, mas capaz de assumir com coragem, aquilo que a finitude lhe oferece.

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linguagem simbólica
João Laurindo de Souza Netto


A apologética (ramo da teologia que justifica a fé cristã), tem adotado, sobretudo através dos meios de comunicação, uma nova estratégia com a finalidade de dotar os mitos bíblicos de verossimilhança para uma mente moderna. Recorre a conhecidas técnicas de simbolização, que permitem fazer “compreender” pela grande massa de fiéis as figuras e os acontecimentos da história sagrada.

Esta técnica se propõe a recuperar o sentido supostamente racional dos mitos bíblicos legados pela tradição, mediante um incessante jogo de vai-e-vem entre a compreensão que tiveram da Revelação (“ação divina” que comunica aos homens os desígnios de Deus e a “verdade” que estes envolvem, sobretudo através dos livros sagrados: Antigo Testamento “entregue” aos israelitas, o mistério da Santíssima Trindade, etc) seus destinatários originais e a que devem ter ser destinatários atuais.

A tradição, ou seja, o passado, é dessa forma convertida em uma realidade sempre presente. Deus, assim, sobrevoando a história, revalida e presencializa constantemente o conteúdo simbólico dos mitos, e, além disso, atualiza, de conformidade com a linguagem e a compreensão de cada tempo, as “verdades” eternas da mensagem divina de salvação.

A proliferação dos tropos lingüísticos (emprego de palavras em sentido figurado), como metonímia (tropo que consiste em designar um objeto por uma palavra designativa de um outro objeto que tem com o primeiro uma relação determinada, como, por exemplo, relação de causa e efeito: trabalho, por obra; continente e conteúdo: copo, por bebida; matéria e objeto: porcelana, por louça de porcelana; abstrato e concreto : bandeira, por pátria; autor e obra: um Camões, por um livro de Camões, etc), sinédoque (tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo pela parte: fitava o horizonte do leste; do plural pelo singular ou vice-versa: os Machados, os Nabucos; o gênero pela espécie: cidade de 500.000 almas, por 500.000 habitantes; os mortais, em lugar de os homens, etc., metáfora (tropo que consiste em usar palavras com um sentido distinto do que têm normalmente, baseando-se numa comparação real ou imaginária: a primavera da vida; a luz da inteligência; ouvir estrelas, etc), unida ao pródigo uso da analogia (ponto de semelhança entre coisas diferentes) e da imaginação alegorizante (ficção de uma coisa para dar idéia de outra), têm sido excelentes meios para o exercício de formas simbólicas do pensamento, usadas com o objetivo de procurar explicar a natureza da religião e de privilegiar a vertente simbólica dos fatos religiosos, relegando ao segundo plano sua vertente epistemológica (que estuda o grau de certeza do conhecimento científico).

O simbolismo é muito falível, no sentido que pode induzir ações, sentimentos, emoções e crenças sobre coisas que são meras noções, sem exemplificações no mundo que o simbolismo leva a pressupor. Por símbolo, entende a apologética toda representação de uma ausência. Trata-se então de presencializar realidades ausentes, mas este discurso oculta um equívoco conceitual: a ausência de um simbolizado, empiricamente possível ou mentalmente representável, embora não explícito, é uma ausência totalmente diferente de um simbolizado transcendente e não representável. As operações simbólicas de caráter religioso, portanto, eliminam, de fato, toda representação empírica e identificam-se com o meramente ritual_ gestos, ritos, comportamentos, sinais, etc. Há efeitos perversos na ação simbolizadora quando se perdem as âncoras com os referenciais objetivos _ nem sempre necessariamente empíricos.

A tarefa da razão é pois entender e corrigir os símbolos que afetam a humanidade. Todo simbolismo, por mais superficial que possa parecer, se reduz, em última análise, a um fio de idéias que liga os elementos veladamente sugeridos com modos alternativos de reconhecimento direto. As fissuras na “referência simbólica” podem produzir desastres, pois, nos processos iniciais da simbolização, essas fissuras _ ou erros _ são os estimulantes que promovem a liberdade da imaginação. E quando se dá asas à imaginação ela dispara atabalhoadamente.

Precisamente, o risco das simbolizações se deve à “ação de reflexo”, que consiste em que a ação de resposta ante um símbolo pode ser tão direta, que é capaz de cortar qualquer referência à coisa simbolizada. Então, a conduta se torna literalmente confinada no uso de certos sinais ou palavras, ou seja, em um simbolismo sem correlatos significativos, isto é, em uma linguagem recortada _ ou, melhor dito, alienada. Nestes casos, há uma cadeia de derivações, de símbolo em símbolo, na qual as relações entre o símbolo final e o significado último se perdem inteiramente. No campo religioso, este mecanismo converte a alienação religiosa em uma alienação de segundo grau, isto é, uma alienação alienada.

É uso comum glorificar o homem religioso como o seguidor de mitos e manipulador inconsciente de fábulas, mas frente ao “animal symbolicum”, a flecha da civilização aponta para o homem emancipado de toda fabulação, ao “animal rationale”. A atitude das massas a respeito do simbolismo, contudo, exibe uma amálgama instável de atração e repulsão. A inteligência prática, o desejo teórico de penetrar até o fato último, e irônicos impulsos críticos, têm sido os portadores dos principais motivos de repulsão ao simbolismo. As pessoas sensatas necessitam fatos e não símbolos. Um intelecto teorético claro, com seu ansioso entusiasmo pela exatidão, desalojará os símbolos por considerá-los enganosos, que ocultam e desfiguram a simples realidade que a razão busca incessantemente como verdade. Os irônicos críticos dos desatinos da humanidade têm realizado notáveis serviços para excluir os velhos hábitos de inúteis cerimônias que simbolizam, às vezes, apenas fantasias do passado repetido. A repulsão do simbolismo passivo, destaca-se como um elemento bem preciso na história cultural dos povos civilizados. Não cabe dúvida de que esta contínua crítica tem desempenhado um serviço necessário na promoção de uma civilização mais desenvolvida, tanto do lado da eficácia da sociedade organizada como do lado de uma correta direção do pensamento.

Mas é imprescindível constatar que, lamentavelmente apesar da sua não-verdade, o simbolismo religioso continua atraindo multidões acríticas, cuja existência individual e coletiva é marcada por condutas e atitudes previamente induzidas, que se conformam em manter, passivamente, mentes e hábitos alienados.

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o agnosticismo antigo e moderno
João Laurindo de Souza Netto


Quatro correntes filosóficas, que se poderia chamar agnósticas, influenciaram profundamente o mundo grego antigo.
Modernamente, pode-se destacar o filósofo David Hume.

1. O Epicurismo

Doutrina de Epicuro, filósofo grego nascido em Samos (342-270 a.C.). Na sua cidade natal ouviu preleções do platônico Pânfilo, das quase lhe veio aversão, jamais abandonada, pela filosofia platônica. Estabeleceu-se, por volta de 311 a.C. como professor da ilha de Lesbos. Mudou-se depois para Atenas, onde cercou-se de um grupo de homens e mulheres que se dedicavam à prática de seus princípios. Sua escola exerceu profunda influência no mundo grego e no império romano até o século III d.C., quando, pela forte ascendência do cristianismo, o epicurismo começou a declinar.

Tal como a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, o Jardim de Epicuro teve o caráter de associação de estudos, onde o culto religioso não se rendia a divindades, mas sim ao próprio Epicuro, mesmo após a sua morte.

O epicurismo foi influenciado pelo atomismo de Demócrito e pelo hedonismo de Aristipo de Cirene, mas tem sua estrutura própria, que o torna muito superior a uma simples combinação de tendências. Sua doutrina divide-se em Canônica, isto é, teoria da evidência, em Física e em Ética.

A Canônica, que compreende as investigações lógicas, retóricas e de conhecimento, ocupa-se principalmente da indagação sobre as diversas classes de evidências:
• a paixão, que é a evidência do prazer e da dor;
• a sensação, a prenoção ou prolepse (figura de retórica pela qual se refutam antecipadamente as objeções do adversário);
• a visão direta ou intuição, que compreende não somente as evidências sensíveis, mas também as inteligíveis, como a “visão” dos átomos.

A Física abrange a Cosmologia (estudo da estrutura do Universo) e a Teologia (estudo da divindade), sendo a Natureza concebida como a totalidade do que existe (finitude). Segundo Epicuro, existe no mundo uma infinidade de átomos no espaço que nos envolve (finitude). Os átomos são os componentes das coisas, as sementes de tudo o que existe, e são constituídos por partículas ínfimas que são iguais e não têm forma. No entanto, os átomos são diferentes entre si, porquanto as partes ínfimas que os compõem situam-se em diferentes posições. Epicuro introduz na Física de Demócrito uma grande modificação, com o conceito de desvio que sofreriam os átomos em sua queda vertical.

Ao contrário da noção vulgarmente aceita, que confunde epicurismo com hedonismo, a ética de Epicuro baseia-se no prazer considerado como serenidade. O verdadeiro prazer é para Epicuro, o prazer tranqüilo, o equilíbrio do corpo, que se manifesta pela resistência à dor ou imperturbabilidade.

Epicuro deu importância fundamental à necessidade de libertar a humanidade de seus dois maiores temores: o temor aos deuses e o temor à morte. Sem negar a existência da divindade ou o valor da religião, afirmou que os deuses não têm qualquer interesse nas relações humanas, nem qualquer relação com elas. A morte é simplesmente o fim da vida, não havendo qualquer espécie de vida no Além. Para Epicuro as superstições e crenças da religião, assim como o temor aos deuses e o que se poderia esperar depois da morte seriam os fatores que maior influência exerceriam contra a serenidade. A razão para não temer os deuses é que estes não se preocupam em proteger os homens de seus males, haja vista a existência do mal no mundo, tese que já encolerizava Platão em seu tempo (428-348 a.C.). Segundo Epícuro, se os deuses fossem afetados pela conduta humana, não desfrutariam de sua impassibilidade. O atomismo de Epicuro suprime toda a possibilidade de que os deuses tenham criado o cosmo, dadas as deficiências e calamidades deste. Por isso, Epicuro não admite nem a teleologia (estudo dos fins do homem), nem a Divina Providência, mas somente a casual combinação de átomos que nada diz sobre as supostas retribuições celestes dos atos humanos. Admite, no entanto, a liberdade da vontade humana, pois é graças à sua liberdade de vontade que o homem tem a capacidade de escolha.

O Epicurismo desenvolveu-se no período de declínio político grego, que se seguiu à morte de Alexandre Magno, em que cada um passou a se preocupar com a vida individual e com o pleno aproveitamento de sua passagem pela vida. Ao contrário do estoicismo, o epicurismo permaneceu imutável em suas linhas mestras, durante toda a antiguidade. Os partidários do epicurismo foram considerados inimigos por todos aqueles que pretendiam assegurar a obediência dos homens por meio de uma religião de Estado.

Quanto à Providência do Deus judaico, Epicuro afirmava: ou Deus quer eliminar os males do mundo e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e não pode, ou quer e pode. Então:
1. quer e não pode: é fraco,
2. pode e não quer: é mau,
3. não quer e não pode: é mau e fraco,
4. quer e pode: então por que não suprime os males do mundo?
Assim, procurava Epicuro afirmar que a existência do Deus onipotente e providente dos judeus seria um paradoxo.

2. O Ceticismo
Doutrina que põe tudo em dúvida, afirmando que a verdade não existe e que, se existisse, o homem seria incapaz de conhecê-la. Em sentido amplo, o ceticismo é um estado de dúvida ou de suspensão do julgamento. Quando usado em relação com a crença religiosa, indica dúvida ou descrença das doutrinas consagradas. Em Filosofia, refere-se ao problema do conhecimento, significando dúvida sistemática ou descrença completa na mente humana para alcançar o conhecimento da verdade. A base fundamental do ceticismo repousa principalmente na afirmação de que o conhecimento se origina de uma sucessão de sensações particulares que são as modificações subjetivas e os estados mentais transitórios e isolados. Como modificações subjetivas, estas sensações são produto dos órgãos dos sentidos do indivíduo. A sua natureza depende da estrutura dos órgãos dos sentidos em particular, cada um dos quais variando de indivíduo para indivíduo, e também das condições físicas de momento do indivíduo considerado, as quais também variam a cada momento. Como essas sensações têm relação direta com as estruturas e as condições individuais, é certo portanto que elas oferecem apenas um valor subjetivo e não podem apresentar nenhuma verdade que seja absoluta. Além dessas considerações teóricas, muitas outras razões práticas têm sido alegadas em apoio ao ceticismo, tal como as diferenças de opinião, de formação e de crença, entre pessoas e povos diferentes, tanto no que diz respeito a questões da vida cotidiana como à moral. Quem possui a verdade?

Os primeiros expoentes do ceticismo, na antiguidade, foram os sofistas da Grécia. A escola dos sofistas caracterizou-se pela concepção de uma cultura puramente formal e orientada para a prática, sobretudo em relação à arte de discutir e de falar. A corrente dos sofistas caracterizou-se por uma concepção antropocêntrica, em oposição à tendência exclusivamente cosmológica das especulações anteriores dos filósofos jônicos. Apresentaram, pois, uma concepção que hoje se poderia chamar pragmática e que tornou a aparecer em diversas épocas.

Protágoras, uma das figuras eminentes da escola sofista, afirmava que toda a verdade é relativa, porque todas as sensações são subjetivas. Protágoras (481-411 a.C.) nascido em Abdera, discípulo de Demócrito, é considerado o primeiro filósofo sofista por ter sido o primeiro a tomar como ponto de partida não o objeto, mas sim o sujeito, isto é, o homem. Seu relativismo subjetivista se expressa no princípio fundamental de sua obra “Acerca da Verdade”: “o homem é a medida de todas as coisas”.

Num período posterior do pensamento grego, surgiu um ceticismo sistemático, desenvolvido por Pirro de Elis e elaborado por sua escola.

O ceticismo desempenhou uma importante função no desenvolvimento do pensamento. Tanto na vida dos indivíduos como na dos povos, os períodos de ceticismo servem para pôr em dúvida as crenças tradicionais, que carecem de fundamento racional, preparando assim o terreno para conclusões mais bem elaboradas.

3. Os Cínicos
A escola cínica, também chamada escola de Antístenes, é uma corrente filosófica fundada por Antístenes no século V a.C., e que teve como continuador Diógenes de Sinope. Recebeu este nome, segundo alguns autores, da palavra grega kyon, cão, cujo qualificativo os cínicos consideravam uma honra, dado o seu significado de fidelidade (aos seus princípios).

O cínico era uma filósofo para quem as coisas do mundo eram indiferentes. Epícteto, filósofo estóico da era cristã, afirmava que é muito difícil ser cínico. Para o cínico, o prazer era o maior de todos os males; preconizava a renúncia a toda espécie de alegria, tanto espiritual como material. A escola cínica se caracterizou pelo total desprezo às convenções sociais, manifestado tanto em atos como em palavras. Os cínicos estabeleciam uma oposição radical entre a lei, ou a convenção de qualquer tipo, e a Natureza, à qual pretendiam voltar. Em Lógica, esta escola é nominalista (os nomes que pretendem designar as idéias são meros sinais); nada se define, tudo não passa de uma série enumerativa. Em Ética, a virtude é o bem; o vício, o mal; tudo o mais é indiferente.

Diógenes, cognominado “o Cínico”, nasceu em Sinope (412-323 a.C.). Exilado de sua terra natal, passou a Atenas, onde adotou as doutrinas de Antístenes e em breve superou o ascetismo de seu mestre, tornando-se famoso pelo rigor e frugalidade de sua vida. Vivia num tonel do templo de Cibeles. Vestia-se muito simplesmente, carregando um tipo de mochila rústica e uma tigela de madeira. Quando, certa vez, viu um menino camponês tomando água no côncavo da mão, jogou fora a tigela, por julgá-la supérflua. Zenon de Eléia, filósofo grego, negava o movimento, dando como exemplo a flecha que voa, a qual, segundo ele, está imóvel porque a cada instante se encontra em um ponto definido, o que equivale ao repouso. Para refutar os argumentos de Zenon, Diógenes simplesmente punha-se a andar ao redor dele. Quando Platão definiu o homem como um bípede sem plumas, Diógenes lançou-lhe um frango depenado, declarando: “Eis o homem”. Apresentou-se certa vez nas ruas de Atenas com uma lanterna, em plena luz do dia, declarando:” Estou procurando um homem virtuoso”.

Diógenes ensinava que a virtude consiste em repelir todo o prazer físico e, para atingi-la, a dor e a fome constituem o método mais eficaz. Dizia ainda que a natureza e a simplicidade eram os pressupostos fundamentais da moralidade. Alexandre Magno, em sua passagem por Atenas, quis visitá-lo em seu tonel. Como resposta à pergunta de Alexandre sobre o que poderia dar-lhe, disse: “Quero apenas que não me tires o que não me podes dar”, referindo-se ao sol, pois Alexandre lhe fazia sombra.
Tornou-se, mais tarde, preceptor dos filhos de um governante de Corinto, onde passou o resto de seus dias.

4. O Estoicismo
Costuma-se denominar estoicismo a escola fundada por Zenon de Cítio (336-264 a.C.), que se caracterizou pela aceitação de alguns elementos da escola cínica, principalmente na esfera moral, e, em parte, na Lógica de Aristóteles. Zenon, defensor do direito de suicídio, matou-se por espontânea vontade quando julgou terminada sua carreira. Os seguidores de Zenon foram os filósofos gregos Cleanto (séc. III a.C.), Crispo (280-208 a.C.), e os romanos Epícteto (?- 125 d.C), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.).

O estoicismo é um conjunto de teorias filosóficas, uma concepção do mundo e um modo de vida. Escola filosófica originada na Grécia e transmitida, depois, ao mundo romano, tornou-se ainda uma constante na história do pensamento ocidental. O mundo é, para os estóicos, inteiramente material. O eudemonismo ( do grego: eudamon = felicidade; teoria moral que se baseia na noção de felicidade), segundo o estoicismo, não consiste no prazer dos sentidos, mas sim no exercício da própria virtude. O primeiro imperativo ético é viver de acordo com a Natureza, isto é, conforme a razão, pois o natural é racional. A felicidade consiste na aceitação do mundo como ele é, isto é, com todas as suas imperfeições. Contudo, muitos estóicos exerceram severa crítica social e política ao mundo de seu tempo. O estoicismo, como atitude perante a vida, consiste na busca da ataraxia, ou seja, na imperturbabilidade, como o ideal do sábio. Pregava a austeridade de caráter, a rigidez moral e a impassibilidade em face da dor ou do infortúnio, salientando a necessidade da fortaleza ante a adversidade.

Costuma-se denominar “estoicismo antigo” a escola fundada por Zenon de Cítio. Os antigos estóicos preocupavam-se ao extremo com os problemas do mundo físico. Em relação à teoria do conhecimento, sua posição foi tipicamente racionalista (a razão considerada como única autoridade). Denominou-se “estoicismo médio” uma escola filosófica de orientação platônico-cética, cujos representantes deram grande preeminência aos problemas humanos. Já o “estoicismo novo”, que teve caráter moral e religioso, foi uma tendência essencialmente romana, sendo seus principais representantes Sêneca, Epícteto e Marco Aurélio. O estoicismo, como atitude perante a vida, exerceu grande influência, mesmo depois do desaparecimento dos maiores filósofos estóicos.

5. David Hume
Filósofo escocês (1711-1776). Em 1739 publicou o “Tratado da Natureza Humana”, sobre a teoria do conhecimento. Em 1744, depois de ter escrito várias outras obras importantes, deixou de receber cátedra em Edimburgo, devido à fama de antiortodoxo, granjeada com o Tratado.

Tornou-se famoso por haver levado a conseqüências extremas o empirismo de Bacon e Locke, bem como o idealismo de Berkeley. Sua filosofia, baseada no ceticismo e na destruição da unidade dos sistemas antigos, mostrou a necessidade de novas teorias do Universo.

Locke pouco se preocupou com especulações metafísicas, sendo sua preocupação os acontecimentos percebidos pelos sentidos considerados como origem de todo conhecimento, e que serviram de base ao lançamento do empirismo. (doutrina segundo a qual todo conhecimento tem sua origem na experiência).

O método preconizado por Bacon é o indutivo ou experimental. A natureza deve ser interpretada através da experiência, conduzida cientificamente. A grande vantagem do método de Bacon foi a crítica do método escolástico (proposto por Tomás de Aquino) e o estabelecimento de um novo método aplicado ao estudo das ciências.

Quanto a Berkeley, sustenta o livre-pensamento, em oposição a sua própria teoria anterior de que tudo na Natureza é a expressão da linguagem de Deus. O empirismo científico, denominado por alguns empirismo lógico, afirma a necessidade de verificabilidade, para qualquer proposição sintética. Deu origem ao movimento para a ciência unificada, proposto por Hume.

6. O Agnosticismo
Doutrina proposta por Thomas Huxley, em 1869, na Methaphysical Society, de Londres. Designa o conjunto de doutrinas filosóficas, diversas entre si, mas que têm em comum a circunstância de admitir a existência de realidades incognoscíveis dentro do mundo não transcendente, negando portanto a possibilidade do conhecimento da “verdade absoluta”.

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personalidade agnóstica

João Laurindo de Souza Netto


A larguíssima tradição cultural teológica cristã(1,2) do Ocidente, a prática permanente e generalizada, sobretudo entre as grandes massas populares, do culto religioso, e a associação das diferentes igrejas aos interesses de classe, tornaram sumamente difícil que aparecessem e se multiplicassem as personalidades agnósticas. Os ateus cresceram como contradição lógica e vital do crente, porém o agnóstico(4) que superou essa contradição tardou muitos séculos a aparecer e surge agora como expressão do primado da finitude(3) e começo da recuperação da consciência do ser humano para o significado de finitude em sua marca distintiva de inefável.

(1) TEOLÓGICO – relativo ao estudo das questões referentes ao conhecimento da divindade, de seus atributos e relações com o mundo.

(2) TRADIÇÃO CULTURAL TEOLÓGICA CRISTÃ – transmissão dos valores teológicos cristãos através de gerações. A disposição mental favorável a comportamentos religiosos é inculcada desde a infância, mediante os mecanismos mais eficazes para a edificação de um forte super-ego que condiciona toda a personalidade. A questão da fé não se coloca como uma verdadeira questão, porque a assimilação precoce da fé ancestral desaloja a possibilidade de assumi-la realmente mediante um ato ponderativo e deliberativo do intelecto e de uma decisão da vontade. O problema da fé cristã não é só o problema da fé em Deus. Porém erram os que pensam que em uma sociedade que durante séculos se manteve submetida a um regime de cristandade tais problemas possam ser separados na prática. Um estudo intelectualmente satisfatório sobre a existência de Deus não se pode fazer, obviamente, com rigor, a partir da fé cristã, porque esta influencia os mais recônditos e íntimos recursos psicológicos do crente e o incapacita para uma interrogação radical, já que a resposta está existencialmente antecipada. As respostas a tais questões têm sido ditadas pelos órgãos disciplinares da Igreja no dilatado processo histórico de composição, recomposição, adição, omissão, adaptação e correção de velhas e novas “verdades” e neste espaço jamais foi permitido que emergissem as interrogações decisivas sobre a dogmática.

(3) FINITUDE – estado de plenitude satisfatória, isto é que se satisfaz a si mesmo, não concebendo nada que o transcenda. A finitude, nesta conceituação, não admite como objeto de conhecimento qualquer divindade que transcenda o mundo, entendendo por mundo tudo o que pode ser admissível como real segundo as exigências da razão e as comprovações da ciência. A finitude inclui a realidade material e imaterial do que existe, pondo-se em contraposição ao transcendente, tanto no que chamamos de matéria como no que chamamos de espírito. A finitude não admite como existente nada alheio à realidade finita, sendo a divindade transcendente – Deus – entendida como uma hipótese que não pode ser demonstrada. A finitude não é pois existencial e nem tampouco uma substância, mas a expressão generalizada do finito, que não significa, aqui, o contrário do infinito. Finito e finitude devem ser entendidos como o que não é transcendente. Trata-se de afirmar que finito é a realidade enquanto realidade relativa ao ser humano e que a condição também humana da finitude pode converter em nova hipótese. Finito é tudo o que concerne ao ser humano, incluindo sua humanidade.

(4) AGNÓSTICO – aquele que aceita e vivencia o agnosticismo(5) como uma doutrina não existencial, cujo caráter de não ser atributo essencial da existência permite-lhe integrar-se inteiramente à finitude. O agnóstico afirma que não é possível conhecer nada que esteja fora de suas possibilidades de conhecer e que suas possibilidades de conhecer se esgotam no finito.

(5) AGNOSTICISMO – palavra derivada do grego pela composição da partícula a que nega a noção subseqüente e de gnosis que significa conhecimento. Portanto agnosis, através da palavra grega agnostos, significa “não conhecido” ou “ignorado”. Assim, agnosticismo é a doutrina que nega à inteligência a capacidade de conhecer a verdade absoluta. Admite portanto que a fé é a submissão a determinada afirmação de ordem transcendente, aceita como verdadeira, independentemente de que seja ou não seja e que não procede de Deus, mas, ao contrário, determina a existência de Deus, assim como pode determinar a existência de qualquer ser de natureza divina.

O agnosticismo distingue os conceitos de fé e de crença. Embora sejam conceitos quase sempre identificados entre si, há grande distinção entre eles. A fé pressupõe um objeto transcendente e inquestionável, portanto uma “verdade absoluta”, naturalmente estabelecida em suas origens pelo próprio homem, modificada e interpolada no decurso da história, que não se baseia em fatos que se possam refutar por não possuir uma base empírica verificável, como por exemplo a fé em Deus. A fé se reduz, definitivamente, a uma esperança de imortalidade num mundo celestial. Além disso a fé é excludente. A fé professada pelos crentes de cada um dos três monoteísmos ocidentais, cristianismo, islamismo e judaísmo, por exemplo, exclui a dos outros dois, reciprocamente. Por não ser baseada na razão, a fé não reconhece argumentos. Assim, tendo a fé como base, ou seja, a suposta “verdade absoluta”, não há como refutar seus argumentos. Qualquer indivíduo, com refinamento intelectual ou totalmente desprovido dele, pode ter fé numa entidade transcendente, que não se pode negar por não existirem, dessa entidade, elementos objetivos de ordem empírica que permitam afirmar sua falsidade. Portanto, dessa entidade, tudo se pode dizer pois ela é um produto da imaginação de quem afirma a sua existência; na fé se igualam os cultos e os incultos pois seu objeto é o mesmo: a submissão a uma entidade transcendente.

De outra parte, a crença exige o saber. Assim, por exemplo, é preciso ter pelo menos noções de Cosmologia e de Astronomia para entender a teoria do “Big Bang”, atualmente aceita para explicar a criação do Universo até mesmo pela Igreja Católica, naturalmente com os adendos necessários a sua teologia. É também necessário ter algum conhecimento de dinâmica relativista para aceitar a não existência do tempo absoluto, ou seja que a gravitação, segundo Einstein, surge de uma curvatura no espaço de quatro dimensões no qual o tempo constitui a quarta dimensão; ou ainda, para acreditar em Plank, que afirmou serem grandezas até então consideradas contínuas, como o tempo e a luz, divididas em quantidades elementares muito pequenas ou quantum (teoria dos quanta). Tanto no macrocosmo como no microcosmo a crença se situa na finitude e portanto questiona constantemente tudo o que se apresenta, enquanto que a fé transcendente não reconhece argumentos. A crença deixa de existir se surgirem dados comprováveis que invalidem a teoria aceita. Já a fé é cega. Se a fé é o compromisso do indivíduo com transcendente, a crença é o compromisso com a finitude. A noção de transcendência é fundamental para sustentar as idéias cristãs de criação e de eternidade, mantendo a divindade fora de qualquer condição antropológica. Por este caminho a espiritualidade cristã separou-se da espiritualidade das sabedorias orientais, que admitem a finitude, e negou a fé a quem não admitisse a divindade transcendente. Mas o agnóstico não aceita como verdadeiro nada que contradiga a finitude.

Assim, para o agnóstico, o objeto da fé cristã – Deus - é uma hipótese indemonstrável pela impossibilidade de negar qualquer atributo objetivo que se lhe possa atribuir. Estabelecidas arbitrariamente as premissas, a razão raciocinante faz maravilhas, levanta edifícios teológicos colossais, cujos alicerces são petições de princípio, isto é, a demonstração se apóia sobre a própria tese.

O agnóstico respeita a hipótese da existência de Deus, mas não admite que o reconhecimento da legitimidade lógico-formal da hipótese suponha qualquer compromisso com suas referências ou significados existenciais, pois um agnóstico não pode aceitar como verdadeiro nada que contradiga a finitude. Na concepção agnóstica, há necessidade de restituir ao ser humano tudo aquilo que, durante mais de dois mil anos, a cultura religiosa cristã vem colocando fora do ser humano, ou seja, fora da finitude. Nos diversos ensaios de restituição que têm aparecido na cultura moderna, nenhum parece mais esclarecedor que o de voltar aos clássicos pré-cristãos como regresso à espontaneidade com relação ao mundo. No entanto, é inútil pretender esta classe de regresso. O regresso é uma viagem de volta que não elimina o que foi aprendido na viagem de ida. Qualquer tentativa de restituição ao mundo aquilo que é do mundo (finitude) tem que ser feita a partir do presente, e com intensidade tal que imponha restituição: identificação total (não a meias) com a finitude, que é o verdadeiro lar do ser humano e não um céu de prazerosas consolações como afirma a Igreja para aplacar o “terror mortis”.

Se o ser humano era considerado dual, na concepção religiosa cristã, para o agnóstico não há dualidade, há simplesmente uma união entranhável matéria-espírito, que constitui a finitude do ser humano. No mundo ocidental, sobretudo na América Latina, a Igreja Católica segue inspirando uma religiosidade eminentemente antiintelectualista, baseada no “terror mortis”, que lhe proporciona, a cada momento histórico, a versatilidade operativa e a plasticidade ideológica para acomodar-se a todos os contextos sociais. O antiintelectualismo da religiosidade católica sempre teve como centro a manutenção do “mistério” como horizonte-limite da religiosidade popular. O antropomorfismo impulsionou a atribuição de guias humanos de comportamento: orações, súplicas, tributos, promessas, como se fora para os grandes potentados da terra. Segundo a Igreja católica, segundo Lutero e, mais do que ele, segundo Calvino, Deus representa os próprios poderes do homem, de modo que o homem só está em contato com seus próprios poderes através da adoração a Deus. Quanto mais forte e rico for Deus, mais fraco e pobre se torna o homem.

Encontrar a certeza pela anulação do “eu” individual, tornando-se um instrumento nas mãos de um poder esmagadoramente mais forte e alheio ao ser humano é a tese cristã, sobretudo nas confissões de caráter reformado (protestantes). O agnóstico, ao contrário, por estar perfeitamente situado na finitude, não entende a necessidade de uma realidade transcendente. Decorrendo imediatamente dessa concepção, ficam eliminadas, de pronto, por falta de um embasamento racional, todas as superstições, crendices e medos, que constituem o crivo pelo qual devem passar todas as afirmações. Convém reafirmar que o fato de ser agnóstico é admitir Deus como uma hipótese metafísica cuja verificação não é possível. Não havendo possibilidade de verificar a hipótese da existência de Deus, o agnóstico se despreocupa dela. O agnóstico se impõe, pois, como o homem sem tragédia teológica. E nessa convicção se encontra a serenidade do agnóstico e sua atitude ante a morte. A morte é encarada pelo agnóstico como a conclusão do processo de vida e nada mais do que isso. Quem vive está fadado a morrer. Portanto o agnosticismo derrota o “terror mortis” e nisso está sua grande vitória, pois vencido o medo da morte, os demais medos passam a ter menor valor e caem por si próprios.

O agnóstico encontra pois em si mesmo a força para não ser instrumento de nenhuma autoridade transcendente de qualquer tipo; não é resignado, porque a resignação supõe admitir uma instância superior à razão; não sente-se infeliz, nem desencorajado, nem culpado, mas capaz de aceitar, com serenidade vital, os acontecimentos da vida com sua arbitrariedade própria, porque a contradição é própria da finitude

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ética agnóstica
João Laurindo de Souza Netto

ÉTICA . Estudo dos juízos de valor sobre a conduta humana


1.
O agnóstico admite como princípio fundamental que não é possível conhecer nada que esteja fora de suas possibilidades de conhecer e que estas se esgotam no finito e não abrangem, portanto, o transcendente.

2.
Para o agnóstico, o Deus transcendente das religiões monoteístas é uma arbitrária hipótese metafísica, indemonstrável por não haver, de Deus, nenhum atributo objetivo capaz de ser refutado, resultando daí o lema: “tudo se pode dizer do que não se pode refutar”. Assim, de Deus pode-se dizer tudo porque não se conhece nada. Não havendo possibilidade de verificar a hipótese da existência de Deus, o agnóstico se despreocupa dela. Não se propõe questões cuja verificação não é possível.

3.
O agnóstico considera admissível a crença cujo objeto seja uma hipótese plausível sobre a origem e o sentido do mundo. Inclui também como hipótese plausível a que nega sentido às questões escatológicas, entendendo que o sentido do mundo é o que lhe dá o homem, pois as coisas não têm um sentido além de sua mera existência. As coisas são o que há, sem mais. O sentido de cada ente depende do próprio sentido que o ser humano lhe dá, decorrente de seus interesses pessoais, de sua personalidade, de sua maneira de ver as coisas enfim, sem especulação sobre algum suposto horizonte religioso como matriz criadora ou definidora dos fins do mundo.

4.
O agnóstico está perfeitamente instalado na finitude, ou seja, na realidade material e imaterial que constitui o que existe, em contraposição ao transcendente, tanto naquilo que chamamos matéria como no que chamamos espírito, que não podem existir separadamente um do outro.

5.
Para o agnóstico, o espírito é parte do mundo e portanto pertence à finitude. Por conseqüência, a espécie humana se realiza no que chamamos matéria, sem que se possa omitir no conceito de matéria sua relação substancial com o espírito, formando com ele um todo indivisível.

6.
O agnóstico não é tomado pela fé transcendente: fé que não procede de Deus, admitido como hipótese indemonstrável, mas que determina a existência de Deus e de todos os seres celestes, e que, além disso, é excludente. Assim, cada um dos três monoteísmos ocidentais_ judaísmo, cristianismo, islamismo_ nega a “verdade” propagada pelos outros dois e engendra, por sua própria natureza, intolerância e fanatismo, contra o que se posiciona o agnosticismo.

7.
O traço comum dos três monoteísmos _ a fortíssima impregnação antropomórfica de um Deus pessoal, que pode estabelecer uma relação com os fiéis _ nada tem a ver com a relação iogue com o transpessoal. Daí que as transformações esotéricas da piedade cristã (respeito às questões religiosas) em formas de mística oriental não só não potencializam a fé monoteísta, como tendem a esvaziar seu sentido. Muitos cristãos são inclinados a aderir ao Zen Budismo ou à Meditação Transcendental. Mas o que significa para eles Deus se o seu interlocutor pessoal é uma energia infinita? Que pode significar sua imortalidade se já não são mais do que uma nuvem de ondas ou partículas que se espargem num todo energético após a cremação? São todas formas alienatórias de consciência, que o agnosticismo nega definitivamente, inclusive porque conceber a Igreja Cristã, ou qualquer religião, como um corpo homogêneo de crenças do qual os fiéis participam por igual, é uma ilusão. Há, portanto, para o agnóstico, que não admite tais concepções, uma tranqüilidade vital, que provém de estar isento e satisfatoriamente instalado na finitude.

8.
Mas o “não ser tomado pela fé transcendente” do agnóstico, não é uma simples negação, mas, ao contrário, uma posição dialética de conteúdos definidos, que se verificam no marco de um processo histórico-cultural que deve ser bem entendido. Este processo, que exige estudo acurado, remete a um campo semântico que proporciona um rico tecido de convicções éticas, sociais, políticas e econômicas, de contornos precisos e racionalmente analisáveis. O mundo, para o agnóstico, é assumido como finitude, o que revela todo o conteúdo positivo da concepção agnóstica.

9.
O agnóstico admite que a fé transcendente pressupõe uma afirmação inquestionável, portanto, uma “verdade absoluta”. Mas tal “verdade” não poderia ter sido estabelecida por Deus, que é apenas uma hipótese personificada pelos monoteísmos. Foi portanto estabelecida por homens, ao longo da história, tendo sido, através de manipulação e adaptações, modificada em sua formulação original de acordo com interesses específicos.


10.
O agnóstico admite que a fé se reduz, definitivamente, a uma esperança de imortalidade num mundo celestial, capaz de aplacar o “terror mortis”, e que é supostamente capaz de promover a concessão de “graças”. Por não ser baseada em fatos que se possam refutar objetivamente e por não possuir uma base empírica intersubjetiva, não permite a argumentação. Portanto, para o agnóstico, ante o fenômeno da fé nada cabe senão o silêncio.

11.
O agnóstico aceita e vivencia intensamente o agnosticismo, palavra derivada do grego pela composição da partícula “a”, que nega a noção subseqüente, e de “gnosis”, que significa conhecimento. Portanto “agnosis”, através da transliteração de “agnostos”, significa “não conhecido” ou “ignorado”. Assim “agnosticismo” é a doutrina que nega à inteligência humana a capacidade de conhecer a “verdade absoluta”. Admite que a fé é a submissão a determinada afirmação de ordem transcendente, aceita como verdadeira quer seja ou não. O agnóstico, porém, respeita a fé professada pelas pessoas, na convicção de que frente a este assunto todos os argumentos desmoronam porque a fé não argumenta, simplesmente crê.

12.
O agnóstico, por estar perfeitamente situado na finitude, não admite uma realidade transcendente. Como decorrência desta concepção, ficam eliminadas de pronto, por falta de um embasamento racional todas as superstições, crendices e os clichês de natureza religiosa (graças a Deus, se Deus quiser, etc), que constituem o crivo pelo qual devem passar todas as afirmações.

13.
O agnóstico se impõe como o ser humano sem tragédia teológica, isto é, sem viver a contradição entre a vida neste mundo e a vida além deste mundo, pois para ele só existe este mundo, isto é, a finitude. E nessa convicção se encontra a serenidade vital do agnóstico, para o qual os acontecimentos de sua vida são fatos que se dão sem nenhuma causação exterior ao mundo. A ausência do transcendente dá serenidade sem resignação, pois esta supõe uma instância superior à razão que determina as contradições do mundo. O mundo há que aceitá-lo como é.

14.
O agnóstico tem como meta permanente a auto-realização e portanto a felicidade, posto que esta é conseqüência daquela. A auto-realização, como pressuposto da felicidade, implica, como o nome diz, em ser _ apesar de suas deficiências _ auto-realizado, isto é, um ser humano integral, não instrumento de uma autoridade transcendente de qualquer tipo, não resignado, não infeliz, não desencorajado pelas vicissitudes da vida, não culpado pelo pecado de Adão (que exige a “Redenção”), mas sim consciente de sua capacidade de realizar o seu potencial e de manter-se imperturbável ante o sofrimento.

15.
A satisfação do agnóstico é a satisfação do que o mundo pode oferecer, mesmo nos casos em que a finitude é dor ou preocupação, procurando, na medida do possível, reverter tais situações, mas capaz de assumir, com coragem e fortaleza, aquilo que a finitude lhe apresenta.

16.
O fundamento do agnosticismo consiste em assumir radicalmente a finitude do ser humano, sem o álibi da transcendência ou de qualquer ideologia, esforçando-se por construir um mundo não tomado pelo fanatismo determinado pela fé, produzindo códigos de valores favoráveis ao respeito à vida, à liberdade, à justiça e à lealdade.

17.
O agnóstico admite que a idéia de uma verdade intemporal, definitiva e absoluta outorgada por uma divindade onisciente e administrada por uma burocracia clerical, não engrandece o homem, apenas consagra a credulidade dos que dão as costas à razão.

18.
O agnóstico aceita a possibilidade da transformação da consciência, sem o que o o agnosticismo não pode ser vivido em sua plenitude, pois exige uma alta capacidade de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados, avaliados pela própria consciência. A idéia subjacente é a de que o que conta é o que sentimos e fazemos e não apenas o que dizemos, e que, portanto, somos os únicos responsáveis pelo sentido que damos às nossas vidas, posto que não existem poderes misteriosos fora de nós mesmos, e que, portanto, devemos aprender a superar os bloqueios que nos impedem de realizar-nos autonomamente alçando-nos acima das sempre enganosas ideologias.

19.
O agnóstico, liberto de toda classe de dependência, reconhecendo e desconstruindo, através do estudo, da pesquisa, e da prática cotidiana, as falsas crenças e bloqueios que obstruem a mente, torna-se um terapeuta do seu espírito, capaz, finalmente, graças a uma autodeterminação total, de chegar ao encontro de sua própria força interior e de exercê-la.


20.
O agnóstico não admite a existência de almas nem de espíritos que se movam livre, misteriosa ou sigilosamente numa realidade transcendente. Admite sim a existência de seres humanos em que a dualidade matéria espírito não implica em cisão ontológica, seres humanos que nascem e morrem no único mundo que existe, o mundo do aqui, mesmo que a finitude inclua realidades não vizualizadas.

21.
Totalmente liberto, o agnóstico contribui para o processo evolutivo global. Em outras palavras: o despertar da própria consciência para um mundo novo promove a elevação da consciência dos que o cercam e também contribui para a plenitude do humanismo. Este processo é ao mesmo tempo popular, porque é acessível a todos os que tiverem vontade de se integrar, e elitista porque só a elite intelectual decidida a elevar a consciência e a mudar a realidade pode fazê-lo.

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concepção de deus. considerações
joão laurindo de souza netto setembro 2004

1. Se não se possui uma definição prévia coerente de Deus, não cabe tentar nenhuma consideração sobre a sua existência.


2. Uma definição ontológica (1) de Deus, segundo as idéias do teísmo, comporta duas características: ser sobrenatural e ser transcendente.


3. Trata-se do conceito judaico-cristão de Deus, tal como foi veiculado pelo pensamento do Ocidente.


4. O antropomorfismo expõe-se claramente nesta ontoteologia(2) clássica.


5. Se no ser humano o poder, o conhecer e a bondade são atributos limitados por suas contrapartidas de impotência, ignorância e maldade, na operação concreta do mundo real jamais podem considerar-se logicamente antinômicos(3), mas somente como geradores de um mundo imperfeito e contingente(4).


6. Pelo contrário, se adjudicamos a Deus estes atributos, porém num grau de máxima perfeição, somente um mundo necessariamente perfeito salvaria de contradição esta idéia de Deus.


7. Mas como o mundo não é perfeito, mas sim o lugar onde prosperam os infortúnios,as enfermidades, o sofrimento e as misérias que assolam a natureza, como pragas, pestes, cataclismas, etc., o antropomorfismo oculto nesta idéia aparece a descoberto.


8. Os atributos do ser humano de carne e osso são, como no clichê de uma fotografia, a figura de Deus em negativo, que, ao se revelar, mostra toda a realidade antropomórfica.


9. A fuga para novas concepções de Deus só evitaria as antinomias da ontoteologia recaindo no panteísmo(5), que é a mais trivial e irrelevante de todas as definições da divindade.


10. É inútil tentar desviar a atenção do núcleo básico do conceito ocidental de monoteísmo.


11. A origem histórica deste conceito deixa-o, contudo, aberto a ambíguas indefinições: Todo-Poderoso (Onipotente); Onisciente; Onipresente; Providente; Supremo em Grandeza e Bondade; Misericordioso; Altíssimo; Eterno; Imortal; Infinito; Inefável, etc

12. É de causar espanto como é possível alguém declarar a incompreensibilidade de Deus e ao mesmo tempo enumerar tantos atributos.


13. No entanto, o debate sobre Deus centra-se no monoteísmo judaico-cristão e em sua sistematização filosófica ocidental, e inclui todas as identificações que envolvem os sucessivos conceitos de Deus, desde Abraão e Isaac até hoje.


14. Mas como se pode resumir, em termos coerentes e reais, o juízo de existência de algo tão imaginário e, por oposição, tão antropomórfico, se não há nenhum procedimento de identificação intersubjetiva? Impossível, pois tudo se pode dizer do que não é mais, como entidade, que uma arbitrária hipótese metafísica.


15. Não se pode definir um conceito de Deus sem uma ontologia prévia. E os limites da definição teológica do Deus judaico-cristão, na tradição ocidental, são suficientemente estritos para circunscrever estreitamente o círculo de interpretações possíveis.


16. Admitir, por exemplo, como possibilidade, a concepção de um Deus impessoal e imanente(6) nos colocaria automaticamente fora da órbita do conceito judaico-cristão de Deus. Estaríamos então na trivialidade panteísta.


17. As duas características mais relevantes do conceito de Deus na teologia ocidental _ a sobrenaturalidade como característica ontológica e a transcendência(7) como característica epistemológica(8) _ restringem drasticamente as alternativas que se pode imaginar como concepções de Deus.


18. A essência de Deus, como Ser sobrenatural e transcendente, gera problemas insolúveis para a ontoteologia quando coloca-a ante a exigência de inserir no tempo e na história um ser eterno, ou seja intemporal, que, por definição, está mais além da natureza, do mundo e do conhecimento histórico humano.


19. O crente, na sua candidez, ainda não contaminado pela teologia, descobriu, por intuição, a partir da própria experiência, as contradições inerentes à idéia de Deus: quem é o responsável pelo mal no mundo?


20. Quem deve responder pela dor, pelo sofrimento, pela enfermidade, pela morte? Para o sentido comum resulta evidente que a maior poder e saber incumbe maior responsabilidade. E no caso de Deus, onipotente, a responsabilidade haveria de ser máxima.


21. Este é o chamado “problema do mal no mundo”. Sua impossibilidade de solução se deve aos mesmos postulados da teologia. O culpado é Deus ou sua criatura?


22. Toda ontoteologia está construída sobre a idéia de que Deus onipotente e supremo é a causa primeira e universal de tudo, ainda que no processo de Criação sua causalidade atue por uma cadeia de causas segundas que são causadas, em última análise, pelo próprio Criador.


23. A ontoteologia afirma que as causas segundas(homem) não podem atuar sem o impulso da causa primeira.


24. Mas a articulação da causalidade primeira (divina) com a causalidade segunda(humana) produziu uma assombrosa inversão de energia psíquica para a sua satisfatória formulação no pensamento ocidental, porque é o homem que transfere (projeta) as características divinas.


25. Suma bondade, justiça, amor, onipotência, onisciência e liberdade se entrecruzam numa rede de contradições: se Deus é bom, não é onipotente porque não pode livrar o homem do mal; se é onipotente, não é bom, porque, podendo, não livra a causa segunda do mal.


26.A interrogação segue de pé: se Deus conhece o ato mau que a criatura vai cometer, ou se conhece o mal físico ou moral que vai abater-se sobre a humanidade, por que consente que isto aconteça? Por que não impede? O teísta responde:”mysterium ineffabile”. Mas tudo isto implica no “sacrificium intellectus”.


27. O agnóstico, pois, admite Deus como uma arbitrária hipótese metafísica, indemonstrável, da qual tudo se pode dizer, a qual, como “mysterium” fica protegida de qualquer desmentido dos fatos do mundo. De Deus pode-se dizer tudo porque não se conhece nada. Por outro lado a apologética da existência de Deus se associa sempre a uma noção de transcendência. Deve-se no entanto considerar que transcendente não significa incriado porque o transcender pode se cumprir na imanência universal do que existe. A relação de causalidade ôntica é o principal fundamento dos apologistas. A sucessão de causas, segundo eles, exige um princípio incausado, uma “causa prima” que produz e sustenta todas as outras. No entanto, a cadeia de causas pode seguir-se indefinidamente sem vulnerar as regras da lógica; nenhuma regra lógica nos obriga a admitir uma causa primeira, qualquer que ela possa ser (Kant).


28. A crise dos costumes em uma sociedade tecnologicamente avançada, mas dotada de uma organização social e econômica sumamente injusta, em que os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres, desenvolve sempre a anomia (contradição de normas sociais) e a criminalidade. Isso, por um lado, favorece a chamada “volta a Deus”, sobretudo dos menos protegidos, como uma ilusória solução para a consciência das pessoas das mais diversas motivações.


29. Trata-se de um fenômeno ideológico e não simplesmente religioso, ao qual a religião procura dar resposta com o oferecimento de organizações especiais: organizações religioso-sociais; organizações religioso-políticas; organizações religioso-psicológicas, etc.


30. Esta nova apologética procede de líderes vinculados a igrejas católicas e evangélicas, a universidades religiosas e a centros de docência religiosa, com uma compulsão tal que as fraquezas humanas não poderiam resistir.


31. A fé religiosa não é racionalmente aceitável. Ela deriva sua inegável força da tendência ao dogmatismo acrítico das pessoas carentes e, geralmente, pouco ilustradas.


32. Não há um caminho fácil para defender, racionalmente e não emocionalmente, a religião, quando se admite que a pretensão de que há um Deus não pode sustentar-se de fato. Resta então a fuga para um fideísmo estrito, a fim de assumir a ilusão e a esperança como um ingente esforço por segurança, que leva ao naufrágio num subjetivismo radical.
Ao contrário da postura passiva da religião que sempre procurou impedir o desenvolvimento de qualquer doutrina que não fosse a que proclamava como única e verdadeira, só uma atitude heterodoxa como o agnosticismo, proporciona ao indivíduo a independência moral e a força interior para lutar e vencer as mazelas da vida e o “terror mortis”, pois a heterodoxia é sempre uma atitude criadora e fortalecedora.

(1) Ontológica _ relativa à ontologia: parte da metafísica que trata do ser em geral e de suas propriedades transcendentais como tendo um natureza comum, que é inerente a todos os seres, e também uma natureza própria a cada um deles.
(2) Ontoteologia _ parte da teologia que estuda Deus como ser supremo.
(3) Antinômico _ que encerra antinomia: contradição entre dois princípios.
(4) Contingente _ que pode ou não suceder.

5) Panteísmo _ Doutrina que identifica Deus com a totalidade do Universo.

(6) Imanente _ que está contido na natureza das coisas: a dor e a alegria são imanentes ao homem
(7) Transcendente_ que ultrapassa os limites da ciência experimental. A transcendência é o conjunto dos atributos de Deus.
(8) Epistemologia _ estudo do grau de certeza do conhecimento científico em seus diversos ramos

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animismo . considerações . setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto


NUME: do latim numen _ força divina de deuses ou deusas que constitui a sua natureza divina ( na mitologia romana).
NUMINOSO: relativo ao nume como manifestação de poderes da divindade.
ANIMISMO: crença que admite a existência de almas que animam todas as coisas, animadas e inanimadas.
TOTEM: animal ou qualquer objeto da natureza que se toma como protetor de um grupo ou de um indivíduo e às vezes como ascendente ou mesmo progenitor.
TABU: proibição convencional, baseada em preconceitos, de relacionamento com pessoas, objetos ou lugares ou deles se aproximar.
AMULETO: pequeno objeto (medalha, figa) que, supostamente, afasta as desgraças.
FETICHE: objeto material ou animado ao qual é atribuído poder sobrenatural e ao qual se presta culto; ídolo.


1. Quando o ser humano, favorável, desde os tempos mais remotos, a detectar numes em objetos e seres animados, atribui qualidades numinosas a certos animais que lhe causam temor, está já projetando neles a crença de que existem almas nesses indivíduos. Esta crença se fundamenta na hipótese animista.

2. É sempre o ser humano quem animiza ou numiniza (projeta a noção de alma). Portanto, os numes são propriedades ilusórias que o ser humano adjudica (transfere) a algo ou alguém.


3. A hipótese animista é pois prévia, na ordem genética e causal, à atribuição de numes aos animais e às coisas. Quando o ser humano numiniza, e de certa forma antropomorfiza, os seres animados e inanimados, sua crença em almas ou espíritos já estava formada em sua mente.


4. As alucinações (privações da razão) foram importantes para forjar a hipótese animista, que se desenvolveu no marco de uma série de fenômenos inquietantes para o homem pré-histórico.


5. Na pré-história havia questões inevitáveis ao homem primitivo:
1ª) A 1ª. Questão ainda numa fase de nível muito baixo de cultura, era a de responder a seguinte pergunta: qual a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto? A esta pergunta segue-se imediatamente: O que dá origem ao despertar, ao sonho, à alienação (alucinação), à enfermidade e à morte?
2ª) A 2ª. Questão não era menos importante: o que são as formas humanas que aparecem nos sonhos e nas visões?
3ª) Como resposta, aqueles selvagens admitiram, naturalmente sem nenhuma elaboração do tipo silogístico(1) que todo homem possui duas coisas que lhe são próprias: uma vida e um fantasma. A vida permitindo-lhe sentir, pensar e atuar, e o fantasma constituindo sua imagem ou segundo eu. Ambos são percebidos como coisas separáveis do corpo: a vida porque pode abandoná-lo e deixá-lo morto; o fantasma porque pode aparecer a outros, que se encontram longe dele. Posto que ambos pertencem ao mesmo corpo, por que não haveriam também de pertencer um ao outro e ser manifestações de uma só alma? Essa alma seria, para os primitivos, uma alma-aparição ou alma-espectro. A alma-espectro era pois, para o homem primitivo, a causa da vida, do pensamento e da ação no indivíduo que anima. As funções da vida seriam portanto, causadas pela alma-espectro, e essa foi a base da teoria animista dos primitivos.


6. Entre os povos primitivos, a concepção de alma é a de uma materialidade vaporosa (volátil) que, ao aparecer, mantém sua semelhança com o corpo físico do indivíduo, e é, a princípio, implicitamente aceito por aqueles povos que se encontra presente nos sonhos e sobretudo nas visões. Assim se dá por certo, na filosofia animista, que as almas que aparecem fora do corpo físico são reconhecidas porque mantêm uma semelhança com ele. Não são portanto espíritos.


7. A “invenção” da alma-espectro é uma operação que tem lugar na esfera reflexiva do ser humano primitivo e recai sobre experiências perceptivas de referenciais reais ou ilusórios que podem gerar na consciência situações de angústia, temor, emoção, inquietude, perplexidade, etc.


8.Sonhos e visões são pois os principais motores do animismo original, que não é uma concepção espiritual. Nos níveis mais baixos de cultura, a idéia de uma alma-espectro, que anima o homem enquanto se acha dentro do seu corpo e que aparece em sonhos e visões, sobretudo em situações de angústia ou grande temor, é perfeitamente justificada.


9. Os selvagens primitivos falam com animais vivos ou mortos tão seriamente como falariam com outros homens vivos ou mortos, prestam-lhes homenagens, pedem-lhes perdão quando são obrigados a caçá-los ou matá-los, porque admitem (ou projetam) a existência de almas nesses seres.


10. A experiência desoladora da morte para o homem primitivo, a quem tudo representava motivo de temor, ativou dramaticamente a hipótese animista primitiva, como suporte da esperança de uma sobrevivência “post-mortem”, onde os mortos, sob a forma de alma-espectro, podiam se apresentar e falar com os vivos.

11.Originariamente, o halo (auréola) de numinosidade que acompanhava as almas humanas, concebidas pelo homem primitivo, não outorgava a estas ilusórias entidades os extraordinários poderes que o ser humano passou a atribuir posteriormente aos espíritos.


12.É importante ressaltar que a noção metafísica de imaterialidade, em que se transformou, com o passar do tempo, a idéia de alma pessoal, não poderia ter nenhum significado para o selvagem primitivo.


13.É no âmbito das visões onde a crença animista original adquire conseqüências decisivas para a fundamentação de um mundo de espíritos inquietantes, que se movem com autonomia ao apresentar-se ante a mente primitiva como realidades objetivas.


14.A crença em seres espirituais tem sua origem na crença que o homem pré-histórico “deduziu” da hipótese animista.


15.A multilocalização de espíritos, que aparecem e desaparecem, que se deslocam, etc.não é, para a mente primitiva, numa segunda fase, uma percepção ilusória, mas inquestionável, como aliás seguem crendo ainda milhões de pessoas de nossa época, que se entregam à fé na aparição de espíritos, em teofanias (manifestações de Deus em algum lugar), em hierofanias (manifestações de coisas sagradas), etc.


16.Examinando a doutrina das aparições entre os povos civilizados, pode-se constatar três âmbitos onde esta doutrina é especialmente predominante:
a hagiografia cristã ( história da vida dos santos), a tradição popular e o espiritismo moderno.


17.A hipótese animista primitiva não era, originariamente, um fato religioso, mas sim uma inferência a que chegou o homem pré-histórico na mais antiga fase de reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo que o cercava.


18.Sem a projeção animista original não teriam sentido formas religiosas de pensar.


19.O animismo é a doutrina da alma humana. Mas esta doutrina sofreu uma extrema modificação ao longo do curso da cultura. Parece que foi no marco das escolas de teologia onde se obteve as transcendentais definições da alma imaterial, mediante a abstração da concepção primitiva de alma etéreo-material-vaporosa, para reduzi-la, de uma entidade física a uma entidade metafísica.


20. As fixações animistas foram então zelosamente fomentadas pelos credos religiosos.


21.Uma definição mínima de religião é “a crença em Seres Espirituais”, que, se diz, influem ou controlam os acontecimentos do mundo.


22. O homem emergiu de uma condição não religiosa característica dos grupos muito antigos ou dos contemporâneos imperfeitamente conhecidos.


23.No entanto, a hipótese animista resulta inevitável para explicar a origem da religião. O temor angustiante da morte, das enfermidades, da fome, dos animais, das forças da natureza, etc., oferece as condições para que essa idéia floresça nas formas religiosas de consciência.


24. O animismo foi pois, o pai legítimo da religião, desde os homens primitivos até os modernos civilizados.


25. A ilusão animista do homem primitivo é um fenômeno prévio e genético a respeito da ilusão religiosa pois não há evidência de que as manifestações originais do animismo comportem vivências religiosas.


26. O universo animista nada deixa de fora porque, aceitando a existência de um princípio vital, a natureza toda se faz animada.


27. Uma vez em marcha, a crença animista haveria de proliferar, com naturalidade, num enxame de espíritos, libertos dos corpos físicos, que passam a constituir um mundo etéreo que circunda o mundo dos homens e dos animais.


28. A doutrina da alma, originária das naturais percepções do homem primitivo, deu pois origem à doutrina dos espíritos, que estende e modifica a doutrina original para aplicá-la a novos objetivos, mais fantásticos e menos espontâneos, que vão desde o mais sutil elfo (gênio mitológico do ar) até o Criador Celestial do mundo.


29. A crença e, freqüentemente, o culto, a alguma forma de entes espirituais é hoje universal, a não ser nas minorias ilustradas que, mediante o estudo e a pesquisa, superaram a idade do mito.

(1)argumentação baseada em duas premissas das quais se tira uma conclusão, como por exemplo: todo homem é mortal, ora Sócrates é um homem; logo Sócrates é mortal. O silogismo consagra a concepção dedutiva do conhecimento.

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pós - animismo . considerações setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto


1. A radical imersão do ser humano em uma visão mítico-religiosa do mundo, desde o instante imemorial em que começou a dar-se conta de uma série de experiências enigmáticas, associada a práticas mágicas e condutas supersticiosas de todo tipo, gerou uma espécie de segunda natureza que o impedia de atingir formas intelectualizadas e crítico-analíticas de reconsiderar a realidade.


2. A origem dessa visão foi a interpretação animista de ditas experiências, interpretação que constituiu o motor de uma concepção do mundo como uma rede inextricável de entidades animadas movendo-se num contexto de intencionalidades e de finalidades.


3. O animismo representou o umbral (entrada) de um desenvolvimento mítico-religioso que levou o ser humano, de uma visão unitária do mundo, em que a cisão alma-corpo não estava considerada,a uma visão dualista do mundo, em que o espaço do sagrado adquiriu forma própria e separado do profano.


4. De modo crescente, esse espaço sagrado passou a ser de competência de indivíduos que se reuniam em uma casta endógama (que só se reproduz dentro do próprio grupo), a qual mantinha exclusividade na manipulação ritual desse espaço: feiticeiros, xamãs, sacerdotes, etc.


5. Somente muitos mil anos mais tarde, a ideologia animista passou a ser uma especulação documentável e sujeita à análise.


6. A incalculável pressão social nos agrupamentos primitivos torna improvável que os códigos de valor e de conduta fossem modificados pela análise sobre a validade da concepção mítica do mundo. Mas à medida em que a evolução da produção econômica e das relações políticas se fortaleciam, surgiam reflexões e q uestionamentos sobre o sistema de crenças herdado.


7. Indubitavelmente, a possibilidade de um questionamento que incidisse nas representações coletivas e não somente num indivíduo isolado, mesmo que fosse um grupo avançado para a sua época, demorou um tempo muito dilatado, tendo que vencer obstáculos tais como: a inibição espontânea ante qualquer estímulo que pudesse pôr em questão as crenças sobre a origem e a natureza das coisas e do ser humano; o sistema de tabus expressos ou implícitos, que impedia a transgressão, pelos indivíduos, das normas que protegiam o domínio das coisas sagradas; as sanções sociais e psíquicas a que se arriscava quem penetrasse no universo do numinoso e do misterioso; a estreita dependência do mundo dos vivos a respeito da morte e de um suposto “mais além”; o onipresente “terror mortis”, etc.


8. Tudo isso gerava uma adesão quase indestrutível aos rituais de veneração dos ancestrais e às estruturas parentais (dos parentes) em que se fundava e perpetuava o grupo.


9. A estruturação do espaço do sagrado se apoiou fortemente no marco da visão mítico-religiosa do mundo, nas fantásticas e arbitrárias especulações cosmogônicas (origem do Universo) e antropológicas (estudo do homem como ente natural e social), estreitamente vinculadas a impulsos desiderativos (que exprimem desejo), exigências psíquicas e interesses sociais, dirigidos, em última análise, a satisfazer interesses de segurança pessoal, na esfera do indivíduo, e de dominação, na esfera da coletividade.

10. O crescente peso histórico da visão mítico-religiosa do mundo, característica da fé cristã, e sua vigência quase incontestada nas sociedades ocidentais desde o século IV, criou a miragem, nestas sociedades, de que a verdadeira civilização estava consubstancialmente vinculada à visão teísta do mundo e que o cristianismo representava o nível mais alto de verdade a que se havia elevado a mente humana.


11. Contudo, não é correta a inveterada (muito antiga) convicção de que somente as tradições religiosas acompanharam o processo civilizador da humanidade, e que seria preciso chegar praticamente à Europa do século XVIII para que a Ilustração (Iluminismo) permitisse aos homens consentir com a colocação em foco da questão sobre a existência de Deus e da visão mítico-religiosa da realidade. O estudo objetivo da realidade histórica mostra o apaixonante panorama da antiga inquietude dos seres humanos mais lúcidos para a indagação, mais além dos véus dos mitos religiosos, sobre a verdadeira natureza do Universo, de sua origem, do ser humano e seus fins, bem como sobre os conflitos das sociedades.


12. Desde que a adesão aos fundamentos sobrenaturais da organização social começou a se debilitar, as dúvidas sobre a validade ideológica desses fundamentos passam a se manifestar publicamente de forma interrogativa.


13. Mas, no geral, o questionamento dos princípios éticos estabelecidos, e a crítica dos comportamentos morais apareciam apenas como milícias avançadas (“guerrilheiros”) de alterações de maior envergadura, que viriam depois.


14. Os processos de transformação ideológica só muito lentamente foram conseguindo formar rupturas no sistema de crenças, e necessitavam que as conjunturas históricas eventuais fossem favoráveis a modificações perceptíveis na visão mítico-religiosa vigente.


15. Dado que o pensamento é, definitivamente, uma atividade da mente, toda a transformação ideológica da sociedade é gerada a partir de formulações de personalidades capazes de produzir, ou de interpretar, novas perspectivas sobre a realidade.


16. Um exemplo fascinante da completa simbiose político-religiosa das estruturas de poder, é a teocracia real-sacerdotal do Antigo Egito.


17. A evasão da hierocracia (poder do sagrado) de Amon-Ra, lançada por Akhenaton, quis destruir o opressivo politeísmo zoolátrico da velha mitologia egípcia. O faraó, no entanto, teve que enfrentar abertamente os sacerdotes, cujo nefasto poder ele ignorava. O culto monoteísta do Sol, instaurado por Akhenaton, provavelmente aprofundando o tradicional culto supremo a Amon-Ra, foi execrado e olvidado pouco depois de sua morte.


18. Outro exemplo é encontrado nas composições babilônicas, que debatem o problema teológico e ético do sofrimento do inocente, questão crucial para verossimilhança do teísmo desde então.


19. Os administradores dos mistérios da religião, contudo, respondiam já desde então com dois argumentos que, ainda hoje, não passam de evasivas: só os deuses (Deus no monoteísmo) conhecem as intenções morais ou imorais dos homens; e só os deuses conhecem o destino final das almas. A apologética estava, pois, já presente na Teodicéia (estudo da justificativa do mal no mundo) Babilônica, como aconteceria, posteriormente, no Livro de Jó: a ótica humana, supostamente, é incapaz de perceber a providência e a clarividência divinas.


20. Os homens seguiram, por essas veredas, jungidos ao jugo das ilusões mítico-religiosas , porque a esperança sempre seguiu alimentando-se das ilusões nascidas nas pulsações psíquicas fáceis de explorar por magos, gurus e sacerdotes.


21. Só uma doutrina capaz de eliminar todas as superstições, crendices, medos e ilusões mítico-religiosas, como o agnosticismo, por estar perfeitamente situada na finitude e não aceitar a submissão a qualquer entidade transcendente, é realmente capaz de libertar o homem do atavismo(manutenção de traços dos antepassados) animista que o rodeia.


22. Se houvesse um eixo da história universal, válido para todos os homens, tal eixo deveria estar situado pelo ano 500 a.C. no processo intelectual que ocorreu entre os anos 800 e 200 a.C. Neste período emergiram não só as ideologias religiosas de salvação, como também os primeiros questionamentos explícitos da visão mítico-religiosa do mundo em suas formas herdadas.


23. Na China, vivem Confúcio (550-478 a.C.), Lao-Tsé (604-500 a.C.) e muitos outros. Na Índia surgem os Upanishades (tratados filosóficos sânscritos, que formam uma divisão dos Vedas) e vive Buda (563-483 a.C.) Na Pérsia, Zoroastro (c.500 a.C.) prega a doutrina do combate entre o bem e o mal. Na Palestina, surgem os profetas. Na Grécia, encontramos Homero(século VII a.C.) e os filósofos Parmênides (504-420 a.C.), Heráclito (540-475 a.C.), Platão (428-348 a.C.). Desenvolvem-se todas as tendências filosóficas, desde o ceticismo _ Protágoras (481-411 a.C.) _ ao materialismo _ Demócrito (460-370 a.C.) e ao niilismo. Tudo o que estes pensadores apresentam tem origem neste período, quase ao mesmo tempo, na China, na Índia e no Ocidente, sem que soubessem uns dos outros.


24. O homem se eleva à consciência da totalidade do ser, de si mesmo e de seus limites. Formula perguntas radicais. Há um trânsito a um nível superior da mente humana, que inicia, ainda com muita inércia mítica, o caminho de sua emancipação intelectual dos deuses, primeiramente, e de Deus, depois.


25. As grandes religiões nascidas em torno do tempo-eixo tentam racionalizar o mito, criando no entanto as ambigüidades que permitem o uso interessado do conceito de razão.


26. As grandes concepções religiosas do mundo, seguem movendo-se, no entanto, no espaço mítico da crença animista transformada, e isto acontece também a muitas correntes especulativas iniciadas no tempo-eixo, tanto no Oriente como no Ocidente.


27. A noção de um Deus único e transcendente, ou a idéia de um mundo divino, não curam o ser humano de sua propensão a cair nas “explicações” míticas, nem sequer quando estas “explicações” submetem as crenças a uma depuração alegorizante das fabulações herdadas. O homem “quer”crer.


28. O mais valioso da eclosão do tempo-eixo é o começo da crítica radical da visão religiosa da realidade, crítica sujeita a interrupções ou eclipses, porém nunca suprimida e progressivamente operante no intelecto humano. O agnosticismo é o melhor exemplo que podemos considerar, de uma doutrina válida e capaz de proporcionar ao ser humano a serenidade, tantas vezes buscada mas dificilmente alcançada.

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o legado dos hebreus . considerações setembro 2004
João Laurindo De Souza Netto

A tradição histórica alternativa, frente à concepção mítico-religiosa da realidade, destrói a errônea convicção de que a religiosidade é conatural (1) e indissociável da consciência humana. O insuprimível fio da dúvida corre paralelo à emergência das crenças religiosas, e vai adquirindo crescente firmeza na direção de uma radical dessacralização do mundo. A dúvida analisada, a reflexão serena e sincera das mentes mais esclarecidas, voa diluindo as falsas conjecturas que levaram os seres humanos às ilusões do animismo, com sua proliferação de almas e espíritos, como umbral da aparição de crenças religiosas no sentido próprio do termo.

O Agnosticismo designa uma atitude que despoja tais crenças dos fundamentos epistemológicos (2) de suas pretensões de verdade. Esta atitude crítica desconsidera a fé religiosa e assume uma prática que prescinde (3) de toda referência a entes divinos.

A lenta ascensão do homem desde a intempérie cósmica até um altíssimo domínio tecnológico da natureza, foi também marcando o caminho_ nas mentes capazes de libertar-se das hipotecas do animismo herdado _ da emancipação das formas espiritualistas e sobrenaturalistas de pensar.

Nas últimas décadas, o avanço dos conhecimentos científicos desvelou a fragilidade das religiões, de todas elas, porém de um modo muito notório das fundadas em supostas revelações divinas _ diretas ou através de profetas. Em nossa cultura ocidental da atualidade estamos presenciando o colapso do compacto sistema de dominação ideológica imposto desde o século IV pela Grande Igreja (4), ou, pelo menos, sua manifesta desintegração nas mais variadas seitas que disputam entre si a afiliação de fiéis e, ao mesmo tempo, vemos também a extensão das minorias que, pelo maior acesso à informação, atingiram a maturidade intelectual.


O imponente aparato burocrático-religioso gerado pela Igreja Católica não é produto do acaso. Pode, apenas, ser considerado um fenômeno casual na medida em que, valendo-se de situações fortuitas, conseguiu inserir-se num espaço cultural escassamente propício; mas resulta manifestamente plausível se se estuda a matriz hebréia que o gerou, da qual eclodiu o seu exclusivismo religioso, a sua agressividade messiânica e o seu proselitismo congênito, guiados pela convicção do investimento em uma missão universal decretada por Deus.

Ainda que no sistema religioso cristão confluam elementos fundamentais que não procedem da tradição judia _ e que, aliás, estão em radical oposição a ela _ resulta evidente que, tanto pelo que é, como pelo que seus próprios doutores dizem que é, a Grande Igreja cristã seria incompreensível sem o conhecimento de suas origens hebraicas.

O antigo judaísmo se apresenta como uma religião de salvação, revelado por Deus a profetas, orientada para um estrito monoteísmo e vinculada a um povo dito eleito e investido de uma mensagem de domínio universal. Ainda que sua história não tenha sido retilínea, mas semeada de confusão e dúvidas, seu pólo magnético foi sempre a fé em um Deus pessoal, criador, inefável e inominável, porém que, a seu modo, se havia revelado definitivamente ao “povo eleito”para manter a sua unidade étnica.

A salvação comportava duas vertentes _ a individual: quem obedecesse os mandamentos de Deus obteria o prêmio de um bem-estar terreno; e a coletiva: o povo eleito não seria dominado por nenhum outro e seria sempre o favorito de Deus.

O interesse de Israel pela natureza e pelos processos naturais, diferentemente da antiga Índia, China e de outros povos orientais, sempre foi mínimo.Sua repulsa à mitologia helênica e às orientais em geral esteve baseada sempre em sua concepção mítica. Tal concepção tendeu, desde as suas origens, a dessacralizar a Natureza e seus fenômenos. O sobrenaturalismo, englobando toda a realidade, do qual compartilham ainda judeus e cristãos, impediu, durante séculos sem conta, o laicismo do pensamento e instaurou a “Cultura do Milagre”, da qual continuam sendo tributários imensos setores do mundo atual. O sol, a lua, as estrelas, a chuva, o raio...são para o hebreu criações divinas, submetidos à vontade de Deus, embora não possuam qualidade divina alguma.

Além da dessacralização da Natureza, o elemento sobressalente da cosmovisão mítico-religiosa dos hebreus foi a mais forte personalização da transcendência sobrenatural do Deus único, que havia falado decisivamente e ditado a sorte de “seu”povo mediante a palavra e a história. Desde a ordem a Abraão para abandonar a Suméria e encaminhar-se com seu gado a novos pastos, o Senhor da História, não só da Criação, vinha intervindo na vida do “povo eleito”, com um propósito flutuante mas bem definido: Jeová eleva e relega os grandes poderes _ Egito, Assíria, Pérsia, Grécia, Roma _ a fim de castigar ou premiar Israel.

Tal interação entre o divino e o humano na história e, eventualmente , na natureza, é um a exacerbação, não um debilitamento, da mentalidade mítica, e representa um sobrenaturalismo extremo, no qual iria naufragar todo intento de visão secular da vida. Esta é a visão da história que Israel, povo eleito, legou à Igreja Católica, pois o traço principal do monoteísmo judeu situava o motor da vida coletiva na sacralidade da história e no destino do povo eleito por um Deus pessoal, saturado de traços antropomórficos.

A idéia do monoteísmo judeu é a construção humana mais ominosa (5) de tudo o que foi inventado pelo homem, devido a suas destrutivas conseqüências para a sua liberdade de consciência e para a sua dignidade de ser humano livre. O terrível legado de um teocratismo fundado em um monoteísmo intolerante e agressivo, cuja paulatina cristalização na concepção messiânica da história seria recolhida, com sua peculiar maneira, pela Igreja Católica para sua instauração na sociedade romana tardia, teria reflexos em todos os povos assentados no Ocidente.

O Deus excludente(6) e exclusivo(7) deste feroz monoteísmo se converteria então no baluarte do fanatismo e da intolerância, rompendo assim a tradição de tolerância do helenismo clássico. A mentalidade hebréia manteve o germe da sacralização dogmática, cujo legado, assumido pela Igreja Católica, foi imensamente negativo para a evolução da ciência, mesmo quando o Ocidente já havia desenvolvido formas laicas de convivência política.

O método científico repele, por definição, a idéia de causalidade sobrenatural no mundo, qualquer que seja a escala considerada. A mente hebréia, contudo, assim como a mente cristã depois, se move sempre, em última instância, em termos de mistério e de milagre, e acaba assim, de um modo ou de outro, ressacralizando o mundo. A lógica interna dos atuais três monoteísmo do Livro _ filhos de uma mesma matriz_ e suas fórmulas doutrinais, somente podem deixar lugar à investigação científica mediante o expediente de adjudicar-lhe um espaço hipoteticamente separado de sua matriz divina _ na qual haveria que encontrar inserção com submissão ao plano sobrenatural. O cientista vive assim em estado precário, pois os resultados de seus estudos devem integrar-se na Ordem Divina criada pela Providência Divina. A ciência tem crescido no Ocidente, não por causa da concepção bíblica do mundo, mas apesar dela e, freqüentemente, contra nela.

A Igreja Católica, ao opor os mais pesados obstáculos à liberdade de consciência, de raciocínio e de investigação, exerceu dessa forma uma função de contenção ao progresso científico, ainda que muitos fiéis, em que a razão não ficou totalmente sufocada pela fé, tenham contribuído para esse progresso; mas sempre pagaram o preço da marginalização intelectual ou até mesmo social.

(1) Conatural – conforme a natureza do outro
(2) Epistemológico - relativo à epistemologia: estudo crítico das ciências, com o objetivo de determinar o seu alcance objetivo. Também chamada Teoria da Ciência.
(3) Prescinde – não leva em conta
(4) Grande Igreja – a Igreja Catolica
(5) Ominosa _ Detestável
(6) Excludente _ que exclui quem não aceita seus ditames
(7) Exclusivo _ privativo de quem aceita seus ditames

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a contribuição dos gregos . outubro 2004
João Laurindo De Souza Netto

A tradição alternativa da concepção mítico-religiosa (1) do mundo alcançou um ponto culminante no seio da cultura helênica. A ampla brecha que a crítica racional da religião abriu nas tradições culturais dos povos chineses e indianos foi possível em virtude da reflexão de elites intelectuais, porém sempre em tensão com os poderes dominantes. A ruptura grega no entanto teve lugar não só no plano do pensamento como no âmbito da própria vida pública. A passagem do “mytos” para o “logos”se cumpriu paralelamente ao passo da autocracia à democracia.

A ruptura grega significou o umbral do acesso a uma nova idade do ser humano, o trânsito da heteronomia para a autonomia na reflexão intelectual, na ética e na política. Uma façanha incomparável que, apesar de seus avatares(2) históricos, havia de selar irrevogavelmente o destino da civilização ocidental. O humanismo helênico instituiu a liberdade de pensar e a liberdade de optar sobre as pretensões limitadoras de autoridades sobrenaturais. Só os gregos tiveram a genialidade e a energia indispensáveis para enquadrar a crítica da religião nas instituições da sociedade democrática, livre e autônoma.

Esta inestimável herança alcançaria sua mais alta expressão na Europa moderna, depois de superar a grande crise dos séculos de obscurantismo. Não é supérfluo, pois, salientá-la, quando o estéril esnobismo intelectual pretende encontrar nas chamadas “sabedorias orientais” a chave da compreensão da realidade.

Os dois eixos da atitude racionalista dos gregos foram a observação empírica e o trabalho especulativo da mente. Esses dois eixos determinaram a marcha para a ruptura com o congelamento mítico-religioso da cultura arcaica.

A concepção helênica da Natureza é da maior importância para a compreensão da religião e do pensamento dos gregos. Não existe nessa concepção nenhuma contradição entre a natureza e o divino_ contradição que existe no monoteísmo judaico-cristão _ apenas que a natureza mesma é considerada divina. Não há Criação do nada, idéia impossível para o grego, nem tampouco sentimento de “criatura” no homem. O grego não conhece mais do que uma transição do caos, estado desordenado dos elementos, para uma ordem universal, o cosmo. Também os deuses são intramundanos e pertencem a este mundo, ordenado e dividido em três níveis, o Hades (3), a Terra e o Céu.


Por isso, apesar da sabedoria superior e do superior poder dos deuses, da sua imperecibilidade e da sua eterna juventude, não existe entre eles e os homens nenhum abismo insuperável. O que une a ambos e os diferencia dos animais é o espírito, a força do pensamento pelo qual os homens participam do espiritual. O grego não segue Escrituras, não tem dogmas nem Igreja e nenhuma classe sacerdotal especial que se encontre mais próxima da divindade que os demais mortais.

O conhecimento da Natureza impulsiona cada vez mais interiormente o conhecimento do divino e, jamais, no âmbito do espírito grego, se poderá admitir que o pensamento possa ser posto em contradição com uma revelação divina a que devesse se submeter. A religião se limita à santificação da realidade objetiva. Seu conteúdo se encontra nas “leis não escritas”, universalmente reconhecidas e que determinam a conduta de forma consuetudinária (4), sem necessidade de nenhuma formulação rigorosa.

A ausência de Escrituras Sagradas e de um sacerdócio carismático investido em sua interpretação dogmática, desobrigou os gregos das gravíssimas hipotecas intelectuais do monoteísmo judaico-cristão. Diferentemente da Índia, firmemente comprometida com a revelação védica, e da China, livre de vassalagens escriturais, mas tributária de um regime imperial cujo titular era tido por Filho do Céu, o sacerdócio pagão (5) da Hélade (6) jamais se situou à parte da ordem política e nunca desempenhou funções de definição teológica de crenças religiosas de salvação.

Xenófanes de Ólofon (570-480 a.C.) e Heráclito de Éfeso (540-475 a.C.), prosseguindo a linha crítica da épica (7) de Homero, denunciaram o antropomorfismo dos deuses míticos, iniciando-se então um revisionismo teísta. Para Xenófanes, os mitos religiosos são fenômenos sócio-culturais: “se os bois pudessem pintar, apresentariam os deuses segundo sua própria imagem”. A partir daí, divulgou-se a sentença: “se os bois tivessem deuses, os deuses dos bois teriam chifres”.

O agnosticismo grego a respeito do panteão (8) olímpico e de outros deuses, repelia a validade teórica ou cognitiva dos mitos e de seu modelo para as exigências da crença dos gregos.

No entanto, a que se conhece como “escola itálica”cultivou a vertente mística da mente helênica, que teve um expoente máximo em Platão. Também as grandes figuras literárias _ Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e outros, iam mais além don que exigia a depuração moral dos gregos. A inércia dos mitos garantia a sua presença na vida grega, ainda que seu descrédito moral tenha alcançado na erística (9), cultivada pelos sofistas, dimensões até então não pensadas. Protágoras, por exemplo, praticava um discurso demolidor, cuja divisa (10) poderia ser a afirmação feita em seu “Tratado sobre a Verdade”: “o homem é a medida de todas as coisas, do ser das que são ao do não ser das que não são”.

Até a implantação do cristianismo como religião do Estado, as convicções religiosas eram assunto pessoal e privado. Anteriormente, o culto aos Imperadores foi estritamente uma cerimônia pública anual de “reconhecimento civil ao Imperador”, como garantia da “pax romana”(11). Jamais foi um desafio às crenças religiosas privativas de cada cidadão. A rigor, as episódicas perseguições aos cristãos foram conseqüência da atitude de desafio da única fé religiosa exclusivista no âmbito de um Império (Romano) que só exigia acatamento político.

Quanto aos pré-socráticos, é possível avaliar a mudança profunda que provocaram no modo de pensar dos gregos, pela sua disposição de romper, em todo o possível, a mentalidade mítico-religiosa tradicional. Quiseram saber, entre outras coisas, se há deuses e se vale a pena ocupar-se deles. Sua tendência humanista materialista era radicalmente orientada para os assuntos dos homens. Tales de Mileto, Anaxímenes, Heráclito e outros se entregam à especulação da ordem natural. A natureza ainda tinha para eles alguma conotação divina, derivada da mitologia. Seu tema obsessivo era saber como da unidade da matéria única emergia a multiplicidade diversa das coisas, o que mudou mais a atitude do homem para a natureza, passando de ativa e emocional, para ser intelectual e especulativa.

Há, sem dúvida, importantes diferenças entre a mitologia e a filosofia milésia (12). Os milésios não expõem seus relatos sobre o universo como transmitidos desde a imemorial antiguidade, mas como suas próprias conclusões. Seu primeiro princípio existe eternamente. Em lugar da personalização dos velhos mitos, temos descrições das várias entidades do processo cósmico, e o processo mesmo é concebido impessoalmente e em termos de movimentos naturais.

Trata-se de uma atitude não-religiosa, ainda que não propriamente irreligiosa. Tales (640-546 a.C.), por exemplo, defendia que a alma penetra tudo, o que representa os últimos resíduos de um animismo mitológico primitivo.

O também jônico (13) Anaximandro (611-547 a.C.), pertencente à geração seguinte, dá um passo significativo na despersonalização do pensamento, ao admitir a natureza como, inicialmente, sem forma alguma, mas da qual emergem céu e terra e, logo, todas as demais coisas, que depois se destroem em um processo sem fim. Estes novos conceitos da especulação cosmogônica impulsionam o pensamento para uma abstração mais abrangente na contemplação da natureza, admitida como mudança e conflito permanentes, fechando assim o acesso a qualquer personalização do processo cósmico.

Esta é a plataforma de uma cosmologia na qual não há lugar para nenhum deus, a não ser que se recorra a algum subterfúgio que permita personalizar a natureza, como segue sucedendo até hoje.

O atomismo seria a culminação do enfoque materialista de milésios e jônicos, que foi continuado por Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C.), Anaxágoras (500-428 a.C.), filósofo jônico, e Empédocles (490-430 a.C.), afirmou a existência de dois agentes contrários que atuam sobre as coisas: o amor e o ódio; o primeiro unindo, o segundo separando.

Leucipo (século V a.C.), de Mileto, leva a sua plenitude a concepção mecânico-materialista da realidade que caracteriza a filosofia atomista, aperfeiçoada depois por Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), Epicuro (342-270 a.C.) e Lucrécio (96-55 a.C.).

A partir desta base, o Agnosticismo levantou os pilares de uma doutrina peculiar, que considera o ser humano como uma unidade espírito-matéria, indissociável, de tal maneira que o espírito e o que não é espírito não têm que viver como duas realidades distintas. Admite também que o espírito não compartilha o reino dos sentidos e que as duas afirmações anteriores estão inter-relacionadas com a idéia de que o “meio”, isto é, o que se considera que não somos nós próprios, mas nosso condicionamento, tem que deixar de ser um condicionamento que aumente as diferenças entre pó indivíduo, o meio e a espécie (humana), para converter-se em um condicionamento que aumente as coincidências, até chegar à identificação do indivíduo e da espécie, de tal modo que a espécie signifique finitude e seja a única realidade global.

(1) Avatar _ mudanças ou transformações de coisas que se sucedem.
(2) Tradição alternativa mítico-religiosa _ tradição que considera a religião como um mito.
(3) Hades _ Na mitologia grega, rei do mundo inferior. A partir do século V a.C. Hades transformou-se em substantivo comum, como sinônimo de um lugar “a casa de Hades” onde iriam habitar os espíritos débeis dos mortos.

(4) Consuetudinário _ fundado nos costumes
(5) Pagão _ adepto do paganismo, sistema religioso em que se veneram muitas divindades. Como sistema politeísta, constitui uma fase da história pela qual passaram todos os grupos étnicos. No cristianismo é considerado pagão o indivíduo que não foi batizado.
(6) Hélade _ a Grécia antiga
(7) Épica _ relativo à poesia épica: poema de longo alcance sobre assunto heróico (Ilíada e Odisséia são os poemas épicos de Homero; os Luzíadas , de Camões)
(8) Panteão _ templo que na Roma antiga era dedicado a todos os deuses. Monumento em memória de heróis.

(9) Erística _ escola socrática de Mégara. Arte da discussão sutil.
(10) Divisa _ sentença ou frase que simboliza a idéia ou o sentimento de alguém, ou a norma de um partido.
(11) Pax Romana _ a dominação pacífica de Roma, após a conquista pelas armas, de todo o Império Romano.
(12) Milésia_ que se refere à cidade de Mileto, uma das grandes cidades da Ásia Menor.
(13) Jônico_ relativo à Jônia, região da costa ocidental da Ásia Menor. A Jônia foi constituída, por volta de 1000 a.C., por 12 cidades, entre as quais Éfeso e Mileto.
Ásia Menor _ Península também chamada Anatólia e que constitui a maior parte do atual território da Turquia.

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