27 fevereiro, 2009

Há uma mulher nos confins da minha ausência

Fotografia de Maria José Amorim,
emhttp://olhares.aeiou.pt/quando_nao_posso_contemplar_o_teu_rosto___maria_jose_amorim_foto1478274.html




Há uma mulher na minha solidão sem lábios
que não sei se é azul ou verde
que se apaga talvez no horizonte
há uma mulher talvez na palavra solidão
que nunca se distingue da palavra
porque é a palavra mesma que não se diz
porque é a solidão que não é ela

há uma mulher nos confins da minha ausência
como uma sombra da minha ausência
como a ausência da mesma sombra

Há uma mulher nos lábios da minha solidão
que nunca chega a ser pronunciada
ou é o ar de uma sede que não respiro
ou o nada mesmo de toda a solidão

há uma mulher de musgo nas minhas pálpebras
e outra que se esconde nos olhos e é a mesma
há uma mulher de música
no meu sorriso
há uma mulher de tristeza como o tempo
na água das minhas mãos


Há tantas mulheres no meu corpo
e tantas quantas todas são uma só
ou nenhuma
ou nenhuma
e é a mesma que caminha contra o vento
em qualquer rua


António Ramos Rosa
in Diário de Notícias 2003
(este poema foi passado a computador por Gisela Rosa)

25 fevereiro, 2009

O rio do mundo

António Ramos Rosa, fotografia de Gisela Rosa, Setembro de 2008



Através de ti passa el rio del mundo, las cabezas, los brazos, las perspectivas, las bocas...
..Tu liberdad es la música blanca del vacio.

Através de ti passa o rio do mundo, as cabeças, os braços, as perspectivas, as bocas...
...A tua liberdade é a música branca do vazio.

António Ramos Rosa, in Três lições materiais

24 fevereiro, 2009

Como um rio fluindo

Poema manuscrito de António Ramos Rosa, fotografia c/ marca de água de desenho de Gisela Rosa, 22-02-09 (O poema foi-me ditado pelo poeta, o manuscrito sofreu ligeiras alterações nesta transmissão)


À Gisela



Eu dir-te-ei mil vezes, rapariga, e já te disse
e agora também
como um rio só pode correr dizer, correr dizer
sem o o dizer
como um rio ri rindo como o rio rindo como um rio
e és tu sempre rapariga com o teu véu vermelho e verde
ou um rabinho de cavalo atrás do teu cabelo
preto
e agora só agora como um ribeirinho rindo
como só tu podes rir correndo
como um rio fluindo
de água verde num jardim verde
com os teus olhos azuis de um azul tão claro
da nudez que se entreabre
no teu vestido
Óh rapariga rapariga
nunca te tinha dito ou escrito
o que só tu
só tu
neste momento que ainda não chegou
em que ainda não chegaste

Como um rio que já começa a rir
e a correr e a rir
e sou eu e és tu e é o que já me faz correr
para ti entre os teus ombros
como uma chama
verde ou vermelha
e serás tu com o teu nome com o teu sorriso
e o teu desplante alegre
com o teu nome de gazela leve
se não fores se não és tu
tu mesma em vez de outra
quem ou o que poderias ser tu se não fores tu mesma
com o teu nome de Gisela
Gisela! Gisela!

António Ramos Rosa
22-02-09 (inédito)

22 fevereiro, 2009

Um diálogo com o universo

António Ramos Rosa lendo um livro de João Rui de Sousa, "António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo", fotografia de Gisela Rosa, 22-02-09


Hoje o meu tio António falou-me de João Rui de Sousa, da importância que este seu grande amigo e a sua escrita têm para ele.

21 fevereiro, 2009

rumores do traço


Gisela Rosa, tinta da china em canvas pad, 21-02-09

Um dia tentando o branco
encontrarás chama alta
prumo e nível verdadeiro
círculo inteiro alma intacta

António Ramos Rosa

20 fevereiro, 2009

O paciente labirinto de linhas

Fotografia de Marta Tavares


...Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.

Jorge Luís Borges, Buenos Aires, 31 de Outubro de 1960
in o Fazedor, epílogo

17 fevereiro, 2009

O céu pode tocar a terra ou o mar

Ilha, desenho a tinta da china em papel, Gisela Rosa - Fev. 2009



O Universo é um ruído a converter-se em harmonia,
um corpo a mostrar a alma.

Teixeira de Pascoaes, Aforismos

15 fevereiro, 2009

Uma caligrafia que me olha

Gisela Rosa, tinta da china em papel, Fev 2009


“Desço à escritura como os veados aos salmos”
Daniel Faria


Tenho um girassol e uma mulher
nas escarpas da casa
e um relógio que separa os braços
das árvores que me avistam
em movimentos cadenciados
num centro de silêncios contados
num abraço que assinala o Sol
que através dos rostos transparece

quantas imagens de uma caligrafia
que me olha como se tudo o que vejo
me vê e me percorre como se eu fosse
uma superfície translúcida

estou entre tudo e nada
atravesso a sombra das cinzas
e cultivo os meus passos
perto dos arbustos e das árvores
que se propagam com o canto das aves

entro inteira na sombra dançarina
neste ritmo cadenciado que me oferece
a leve sensação de uma dança
na fonte de um corpo
que se escreve e se inventa

Gisela Rosa

Sobre as raízes do tempo


António Ramos Rosa, fotografia de Gisela Rosa Novembro de 2008


...
Mi pensamiento
Es más ligero que el aire
Soy real

Veo mi vida y mi muerte
El mundo es verdadero
Veo
Habito una transparencia

Octavio Paz, La Centena, Contigo, p. 195

14 fevereiro, 2009

Se o poema não serve para dar o nome às coisas

António Ramos Rosa, fotografia de Gisela Rosa, Outubro de 2008

Arte Poética

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplendecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

António Ramos Rosa, in Sema, 1980

11 fevereiro, 2009

o horizonte da palavra

António Ramos Rosa, Outubro de 2008, Fotografia de Gisela Rosa


Na aurora nasce o perfume de um poema
o mistério repousa na página
os signos dançam respirando o início do tempo
e o poema ganha os contornos de uma galáxia
no horizonte da palavra onde repousa
o silêncio de um segredo

Gisela Rosa, Vasos Comunicantes, p. 77

09 fevereiro, 2009

As árvores dançam sempre

Gisela Rosa, A Árvore, tinta da china em papel, 8-02-09

É preciso dançar ao som do vento: as árvores dançam sempre, mesmo quando estão paradas. As árvores são corpos em extensão. É preciso parar o vento.
É preciso que as mãos desenhem ..." árvores...

Isabel Aguiar Barcelos,

08 fevereiro, 2009

A dança

Gisela Rosa, A dança, tinta da china em papel 08-02-09


"...Nenhum movimento acaba num lugar preciso da cena ojectiva, como os limites do corpo do bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele. Há um infinito próprio do gesto dançado que só o espaço do corpo pode engendrar...."

José Gil, Movimento Total - O Corpo e a dança, p. 64

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"É preciso dançar ao som da guitarra. Descobrir o Sol no corpo. É preciso estar atento ao movimento do Sol no horizonte. Estar unicamente em movimento não é suficiente. Estar unicamente em movimento com o Sol no Coração é estar em movimento na Órbita Sagrada da Revelação. A dança é a libertação da Energia Solar. Os corpos comungam a mesma energia: tornam-se únicos e são corpos celestes na extensão do horizonte. Tantas vezes os corpos páram e não conseguem dançar. É preciso que os corpos se recolham em si mesmos para que a dança continue noutra órbita. É preciso dançar ao som do vento: as árvores dançam sempre, mesmo quando estão paradas. As árvores são corpos em extensão. É preciso parar o vento.
É preciso que as mãos desenhem corpos tão belos como estes."

Isabel Aguiar Barcelos,
(este último texto foi escrito como comentário a este post (08-02-09, muito agradeço a luz das tuas palavras Isabel )

07 fevereiro, 2009

O traço

O traço, tinta da china, 07-02-09

05 fevereiro, 2009

Desejava construir um poema

Landscape with Yellow Birds, Paul Klee


je peins pour me déconditionner"

Henri Michaux
Passages, Gallimard 1963, p. 142


Desejava construir um poema

como se estivesse a flutuar na água que acolhe um barco

na margem que promete outra paragem

Desejava criar palavras brancas

onde todas as cores pudessem realçar formas figuras, as coisas


Desejava mostrar como sinto o real como o real me sente

quando olho uma criança uma flor um pássaro uma nuvem

ou escuto os sons de uma guitarra

enquanto a chuva incendeia as paredes do meu quarto

por isso calco com os meus dedos o tempo passageiro

nomeio sem querer conquistar o si das coisas

e o poema essa extensão do meu eu

é “um movimento no meio da multidão”*


Gisela Rosa


* poema publicado na revista Mealibra, 2006

02 fevereiro, 2009

as mãos da escrita

Fotografia de Gisela Rosa, António Ramos Rosa a escrever num poema seu (antologia Leya Poemas, JL), 2-2-09

01 fevereiro, 2009

Um arco de pedra

Mãos sem infância, Fotografia de Rui Manuel Machado Rodrigues,
em http://olhares.aeiou.pt/maossem_infancia_rui_manuel_machado_rodrigues_foto2511634.html
Répública Democrática do Congo. Zona de Inongo 08
* Agradeço ao fotógrafo Rui M.M..Rodrigues a cedência destad imagens da série de crianças do Congo.



Se houvesse uma pedra
a que eu pudesse chamar pedra
...

Se tivesse ao menos uma pedra
que faria da pedra?

Que farei desta mão
definitivamente sem a pedra?

Farei o que puder
com a palavra pedra
quer tenha a pedra ou não


E se eu tivesse a pedra
sem o saber
se a pedra pedra ou não
de qualquer modo fosse essa pedra já
que há tanto tempo habita
a pedra que é desejo
da transparência viva?

A pedra que eu habito
é um arco
um arco de pedra

Podes chamar-lhe buraco

No buraco
está o arco
do buraco

Queria mais que uma pedra
queria outra pedra

Invento uma pedra
para esta pedra

Invento outro arco
e outro
e outro ainda

Atiro uma pedra
para ser flecha
Mas será flecha?
E será de fogo?

Saio do buraco
vou ao teu encontro
com a minha pedra
...

e por isso dou-ta
com o calor da mão
...

Se te dou a pedra
logo a pedra existe

Logo a pedra é pedra
...

Se a pedra é pedra
logo tu existes

Todo o mundo habita
no gesto da mão
que te dá a pedra

Toma então a pedra
meu irmão

António Ramos Rosa,


A minha pedra para José Gomes Ferreira,
em O Centro na Distância, pp. 47-50