quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Centopéia

Mamãe sempre me mandava muito cedo pra escola. Ia eu com aquele monte de caderno e sono tropeçando pela grama. Eu só gostava mesmo do cheiro dos lápis de cor que ficava na folha branca que a tia dava no final da aula pra gente desenhar. Aliás, gostava mais era de ficar guardando papel de bala e chiclete no estojo só pra chegar em casa e mostrar pra Leléia (minha tartaruga) o quanto eu tinha comido de doce.
Mas teve um dia que tudo ficou estranho. Eu ainda lembro da manhã de garoa fria, dos gorros pelas cabeças de todo mundo. Cheguei na escola bravo por ter saído da minha cama quentinha só pra ficar repetindo umas coisas que chamavam de vogais, tudo letra boba que sempre me deixava com mais sono. E ainda por cima era dia de recorte, o que dava a maior briga na sala pela tesoura e pela cola.
Peguei uma revista, fui procurando as letras, olhando o desenho delas e vendo se achava umas tais de palavras que diziam estarem lá. A tia passou distribuindo as tesouras nas mesas da frente e começou o alvoroço. Alvoroço barulhento que de repente perdeu voz. Tudo ficou quieto. Alguma coisa explodiu e desamarrou de mim. Uma dança louca acontecia na minha cabeça enquanto eu olhava a página da revista, atônito. Palavras... Eu tinha encontrado as palavras! Vi as letras todas espertas se grudando, me agarrei nas sílabas, respirei. Assustado, percebi que estava entendendo: “pre-ço dos le... gu-mes”.
Foi horrível. Contei pra professora, desesperado. Ela me deu um abraço apertado, falou de mim-todo-vermelho pra classe, escreveu bilhete no meu caderno. Na volta pra casa, fiquei sem ação na frente de toda letra que eu via até ela puxar as outras e eu ver uma palavra. Eu não conseguia mais parar de procurar palavra por tudo quanto era canto do caminho.
Chegando em casa, minha mãe leu o bilhete e começou a rir e a chorar. Pegou um papel e ficou escrevendo bem grande um monte de palavras que eu lia pra ela em voz alta. Só que de repente, na mesa, bem do lado da mão dela, um bicho gigante-feio-nojento e com muitas mil patas vinha se aproximando. Eu dei um grito e um salto pro lado. Grudei na parede.
Minha mãe, com aquela calma doce dela, disse que não era pra eu ter medo, pois era só uma centopéia que devia ter vindo do jardim. “Uma o quê, mãe?”. Ela pegou o lápis e escreveu no papel. Eu li: “cen-to... pé-i-a”. Olhei o bicho deslizante. Meu medo se misturou com simpatia. Na minha simpatia juntou tristeza. Descobri que o bicho era aquela palavra cheia de letras. Era só aquilo.
Perdi o medo.
Perdi a simpatia.
Ficou só a tristeza. Tristeza de descobrir que a imensidão de todo o desconhecido que me amedrontava e me fascinava ia pra sempre caber dentro da simplicidade definitiva das palavras.
Saí correndo e fui contar tudo pra Leléia.


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