12 de fev. de 2010

História de Mowgli - Parte III

Como apareceu o medo


Certa vez, no inverno, quando as chuvas deram de falhar, e a Jângal, cada dia que passava, ficava mais seca, os animais estavam morrendo; o único que engodava era Chill, que comia carniça, e como tinha carniça!

O Waingunga era a única reserva de água, a correr por entre a Jângal. E quando Hathi, o elefante selvagem, viu no centro do rio uma rocha, ele reconheceu que era a Rocha da Paz. Ergueu então a tromba e proclamou a Trégua das Águas, como seu pai fez há cinqüenta anos arás.

Segundo a Lei da Jângal, é proibido caçar nas horas de matar a sede, pois os animais vinham magros de fome ao bebedouro.

Todos se reuniram lá para falar da seca.
Certa vez Shere-Khan chegou no bebedouro para molhar a face e comentou que tinha matado, não fazia uma hora, um homem. Hathi perguntou a Shere-Khan se ele havia matado o homem por gosto. Shere Khan respondeu:
-Sim. Era meu direito e estava em minha noite de caça.

-Sim eu sei, disse Hathi. Se já acabou, então pode ir embora.

Mowgli perguntou então:
-Que direito é esse que Shere-Khan falou, Hathi?

-Trata-se de uma história muito antiga, mais antiga que a velha Jângal.

Hati pediu silêncio para contar a história.
-No começo da Jângal, mas ninguém sabe quando foi, nós convivíamos harmoniosamente, sem que tivesse medo um do outro. Não existia seca naquele tempo, todos os animais alimentavam-se de folhas flores, frutas e cascas.

O Senhor da Jângal era Tha, o Primeiro dos Elefantes. Foi a tromba de Tha que tirara a Jângal do fundo das águas, com as patas, se formaram lagos. Deste modo se formou a Jângal.

Ocupado em criar novas florestas e abrir novos rios, Tha fez o Primeiro dos Tigres, o mestre e o juiz da Jângal, para que se existisse alguma queixa, fosse feita ao primeiro dos tigres, já que Tha não tinha tempo.

Naquele tempo, o primeiro dos tigres comia ervas e frutas como os demais, ele era grande, como eu sou, e belo de cor; tinha a cor das trepadeiras amarelas, nenhuma listra ou pinta manchava sua pelagem macia. Todos os animais chegavam perto dele sem medo, sua palavra era lei.

Certa noite, houve disputa entre dois gamos, pelas pastagens, que se resolveu a coices e chifradas. Os dois foram à presença do primeiro dos tigres, que durante a conversa, um dos gamos o feriu com um dos chifres e, esquecido de que era o juiz, o tigre deu um munhecaço, quebrando o
pescoço do gamo.

Até aquela noite, ninguém havia morrido.

Nós desconhecíamos a morte e o Primeiro dos Tigres, vendo o que fez, sentiu-se alucinado
pelo cheiro de sangue, correu e mergulhou no mato. Ficando sem juiz, os animais passaram a
disputar tudo, ficando a Jângal abandonada. Quando Tha chegou, não disseram-lhe o que havia acontecido, mas Tha percebeu o corpo do gamo. Ninguém respondeu, estavam todos doidos pelo cheiro do sangue.

Há então deu ordem aos cipós e árvores de galhos baixos que margeiam as trilhas para que marcassem o matador, de modo que pudesse ser sempre reconhecido. Tha perguntou a todos quem queria ser o chefe do povo, o macaco gris saltou dos galhos onde vivia e respondeu que seria o chefe; mas o macaco deu de coçar-se e pular. Quando Tha voltou de novo, encontrou o macaco gris de cabeça para baixo, pendurado pelo rabo num galho, fazendo macaquices para o povo da Jângal, que começou a gozar dele. Tinha assim desaparecido a lei, sendo substituída pela conversa tola e sem sentido.

Então, Tha nos chamou e disse:
-O primeiro chefe que eu dei a vocês, trouxe a morte para a Jângal. É tempo de vocês terem uma lei que não seja quebrada. Será ela o medo. Quando encontrarem o medo, verão que é ele realmente o vosso chefe.

Então o povo da Jângal perguntou:
-Que é o medo?

E Tha respondeu:
-Vocês aprenderão em breve. Procurem!

Então o povo da Jângal espalhou-se à procura do medo. Certo dia os búfalos...
-Uh! Interrompeu Mysa, o chefe da manada de búfalos.
-Sim, Mysa, os antepassados dos teus búfalos de hoje, apareceram com a notícia de que no meio da floresta, lá em uma gruta, morava uma criatura sem pelo no corpo e que andava de pé.

O povo da Jângal então foi até à gruta, e encontrou o medo. Quando nos viu chegar, gritou, e sua voz nos fez ficar com o medo que até hoje nos causa, sempre que o ouvimos.

Quando o Primeiro dos Tigres ficou sabendo que o povo da Jângal tinha encontrado o medo lá naquela gruta, disse:
-Irei ver essa coisa nua e lhe quebrarei o pescoço.

Disse e fez. Andou toda a noite à procura da gruta e foi então que as árvores e cipós do caminho atentos às ordens de Tha, o riscaram de listras nas costas, na testa e no focinho. Sempre que esbarrava num galho ou cipó, ficava com uma listra ou pinta nova em sua pelagem amarela. E essas marcas até hoje seus descendentes as usam.

Quando ele chegou na gruta, o pelado apontou para ele e disse:
-O manchado aí vem.

O primeiro dos tigres teve medo do pelado e voltou, miando, para o mato. Tão alto miava o tigre, que Tha o ouviu e perguntou:
-O que aconteceu?
-Achei o medo, e ele me expulsou e me chamou de sujo e fiquei mal visto pelo povo da Jângal.
-E por quê?
-Porque eu estava todo listrado de lama!
-Então vá lavar-se no rio, para que tuas listras saiam.

Então, o tigre se banhou no rio para tirar as manchas, mas nenhuma listra saiu.
-O que fiz para ficar assim? Perguntou o tigre.
-Você matou um gamo e espalhou o medo em nosso povo.

Tha então mandou o tigre embora, mas antes disse para o tigre que por uma noite, a cada ano, quando ele encontrar o pelado, cujo nome é Homem, não terá medo, mas o pelado sim.

Logo depois, ele foi beber água, viu refletir suas listras e lembrou que o pelado tinha lhe chamado de sujo, então percorreu a selva, esperando o dia que Tha lhe prometeu. Ele esperou a lua e foi atrás do pelado, e lhe quebrou a espinha com um munhecaço, pensando assim que tinha matado o medo. Tha logo ficou sabendo da morte do pelado e foi arás do tigre e disse para ele que havia muitos pelados. Com essa morte, ninguém mais iria arás dele, nem dormiriam perto dele.

Quando amanheceu, apareceu na boca da gruta outro pelado, e viu o que o tigre fez, e pegou uma enorme lança, com uma ponta afiada, atirou no tigre, que correu até que quebrasse a vara. Os filhos da Jângal ficaram sabendo que os pelados poderiam matar de longe e ficaram com medo do
Homem. Foi o primeiro dos tigres que ensinou o homem a matar.

Hathi mergulhou a tromba na água, dando assim por encerrada a história. Mas Mowgli perguntou a Baloo por que os tigres alimentam-se de carne hoje, se antigamente eles comiam apenas folhas de árvores e ervas. O que foi que o levou a comer carne? E Baloo respondeu:
-Porque ele quebrou apenas o pescoço do gamo, não o comeu, mas as árvores e cipós o haviam marcado.Por isso, o tigre não alimentou-se mais de folhas e ervas rasteiras.
-Até você sabia dessa história, Baloo? Perguntou Mowgli.
-Sim, eu sei de muitas histórias, Mowgli!

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