domingo, 26 de setembro de 2010

A máquina de morar de Jacques Tati: a casa positivista

Fonte: Google Imagens
No filme Mon Oncle, Tati contrapõe a forma de viver de Monsieur Hulot e dos Arpel. Essa comparação entre os estilos de vida se dá através de ações e dos elementos físicos que os rodeiam, que são introdutores dos comportamentos, sua causa e conseqüência. É uma lição crítica de arquitetura, na qual se enfrentam dois modos de pensá-la e que são também modos de vivê-la (duas correntes de pensamento) que leva a crise dos dogmas modernos, no X CIAM, através de jovens arquitetos reunidos no Team X. O alvo era o reducionismo positivista que dominava a arquitetura moderna da época. 

No pensamento positivista, a filosofia seria auxiliar ao trabalho cientifico, e teria existência apenas enquanto justificasse e interpretasse a ciência, tida como a mais evoluída forma do conhecimento humano. Seu objetivo era conduzir o homem a uma sociedade perfeita, um império de ordem e progresso onde o individuo é tido como um dado estatístico. Tati faz uma caricatura dessa inserção maquínica como parte da engrenagem da sociedade em que os Arpel representam uma família modelo de comportamentos objetivos como no Existezminimun. 

Os Arpel estão imersos no tempo teleológico do positivismo, que se projeta para o futuro, desligando-se do passado, como ocorre na Paris do Plan Voisin, onde Madame Arpel exibe sua casa, onde tudo é funcional, “tudo se comunica”, ante sua obsessiva mania de limpeza. De encontro a essa sociedade unidirecional vem Monsieur Hulot, vivendo em um labirinto fenomenológico e indiferente a toda idéia de progresso urbanista. Para os arquitetos da época o que valia era o “metro-quadrado” e como se daria sua otimização com as técnicas do Taylorismo. A casa experimenta então, uma fragmentação em unidades mínimas que darão origem, posteriormente, às construções em série. Esse espaço, produto da geometria, encena a exposição de uma família igualitária, trabalhadora, eficiente e saudável uns frente aos outros e para o exterior. 

Tanta higiene, proporcionada pela limpeza e pela transparência exibe um espaço sem densidade e memória, mas bastante moralista e repressivo como no Panóptico de Jeremias Bentham. É um espaço marcado pela vigilância, a exposição do privado, o domínio do entorno pelas janelas do quarto do casal: uma máquina de vigiar a unidade e a ordem. Utiliza-se uma versão doméstica do Panóptico onde casa e jardim são separados apenas por um pano de vidro e onde as concepções médicas encontrarão terreno fértil para promover a saúde através do eixo heliotérmico da casa que se estende ao bairro, como a Ville Radieuse. A natureza é reduzida à “superfície verde”: res extensa + eixo heliotérmico. Tati opõe o jardim dos Arpel com seu peixe-fonte e sua codificação de usos e movimentos com os arrebaldes por onde Monsieur Hulot circula e suas formas mais intensas de socialização. 

Há também uma discussão acerca dos materiais e técnicas industriais da época. Cada material industrializado colaboraria com suas propriedades físicas derivadas de leis e normas, o branco caracterizaria o espaço cartesiano e higiênico, moderno, visível e integrador. Surge o vidro, perfeito em suas propriedades, coincidindo com a ascensão dos valores ideológicos. A casa positivista é a única que encontra seu apogeu no conjunto habitacional, pois se integra a uma engrenagem coletiva superior para conformar e modelar a cidade. O conjunto habitacional sintetiza a metáfora orgânica da célula e o organismo para produzir uma série de objetos-tipo para famílias-tipo. 

As seqüências de Mon Oncle representam também as unidades mínimas de Taylor e da vida dos Arpel, materialização direta da Carta de Atenas, em que habitação, lazer, trabalho e circulação são separados no tempo e no espaço para otimizar a produção da sociedade industrial. Com estas unidades mínimas Le Corbusier organiza sua Ville Radieuse, reino da unidade e da ordem exposta ao eixo heliotérmico, que demonstra, no esplendor da sua perfeição, a necessidade do urbanismo. Assim, a cidade utópica dos Arpel se materializou em Brasília. Vemos reproduzidos na escala da cidade os mecanismos de projeto da casa, feita para ser uma “máquina de morar”, insensível e desvinculada do passado. Nessa época, o arquiteto projetava ligado mais a estética do que a prática, pois expressava a maquinização. O que deixou de estar presente foi a individualização do espaço, pois tudo já fora previsto por outro, o arquiteto moderno. A Villa Arpel expressa bem essas falhas sistemáticas nos seus automatismos, sua ineficiência técnica e suas conseqüências escravizadoras. Falta apropriação do espaço, conforto... Não há estímulos sensoriais que tornam a casa agradável, pelo contrário: a sonoridade metálica e irritante reproduz a da fabrica. Não há prazer, descanso, intimidade. Seu maior relaxamento, a televisão, aponta para a limitação nas formas de pensar e habitar a casa positivista. Ainda hoje a arquitetura encontra dificuldades para superar essa ideologia, profundamente arraigada nas normas que deixou como herança. 

Nossa visita a casa dos Arpel faz-se enviesada e parcial, e seria bem distinta se considerássemos a situação histórica, a explosão demográfica associada à industrialização, o caráter progressista de tantas experiências, o beneficio à qualidade de vida daquelas mesmas regulações e leis, o sentido de resistência da modernidade frente às tendências mais brutalistas do capitalismo selvagem... Enfim, sabemos que estamos condenados a esta fascinação exercida pelo mundo de onde viemos, que nos fez como somos, que nos forneceu as normas com e contra as quais viver, isto a que sempre se denominou “tradição”.

Fonte: A BOA-VIDA - VISITA GUIADA ÀS CASAS DA MODERNIDADE, de IÑAKI ABALOS.

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