Artigo

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A CRISE DO ESTADO

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é promover inicialmente uma análise da gestão pública, suas deficiências e possíveis alternativas para atendimento adequado das novas demandas sociais, bem como a utilização da extrafiscalidade como política pública de inclusão social.

Em um segundo momento serão feitas reflexões sobre como devem se processar no âmbito da administração as decisões por tais políticas, como também se no caso da extrafiscalidade, há atualmente tendência da mesma representar mera renúncia, decorrente de imposição de segmentos sociais.

Por fim, tentaremos também projetar possíveis soluções para crise do Estado, medidas para redução de sua esfera de atividade, com transferência respectiva a outros atores sociais. Em complemento, avaliar igualmente a extrafiscalidade, os problemas relacionados com a necessidade e as dificuldades de encontrar um ponto de equilíbrio, de modo a fazer com que tal política não seja resultado de imposições de mercado, mas sim fruto de avaliação criteriosa, com identificação de sua condição de efetiva política pública de inclusão social, bem como de estímulo ao desenvolvimento de regiões e expansão de setores produtivos do país.

Necessárias igualmente se mostram considerações sobre os reflexos da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial se a mesma se apresenta como facilitadora de investimentos ou se suas restrições representam fator recessivo, na medida em que engessam muitas vezes iniciativas por políticas de desenvolvimento. Por conseqüência, inafastável será aqui a discussão sobre o função social do novo modelo de Estado, modelo este imposto pela referida lei de responsabilidade fiscal, como igualmente se este terá condições de promover medidas que garantam à sociedade brasileira o bem-estar social assegurado pela Carta Política.

1 O ESTADO BRASILEIRO, A CRISE FISCAL E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O Estado Democrático de Direito no Brasil precisa ser pensado e constituído a partir de suas particularidades sociais, culturais e econômicas, evidenciadoras de profundos déficits de inclusão social e participação política[1].

Leal[2] é preciso ao lembrar que a Constituição de 1988 em seu título primeiro elenca “os princípios fundamentais que pautam a organização do Estado e da Sociedade brasileira, deduzindo como fundamentos da República, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Essa mesma República tem, como objetivos, a construção de uma Sociedade livre, justa e solidária: garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

A previsão constante da Carta Política Brasileira impõe registro no sentido de que o constitucionalismo moderno-contemporâneo contemplou duas fases. Uma caracterizada pelo Estado Liberal e a outra pelo surgimento e consolidação dos direitos sociais, decorrente da necessidade de identificação de um novo papel para o Estado. Consolida-se a partir de então uma noção mais consistente de cidadania.

Vieira[3] registra que a cidadania é composta pelos “direitos civis e políticos – direitos de primeira geração – e os direitos sociais – direitos de segunda geração. Os direitos civis, conquistados no século XVIII, correspondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir, direito à vida, segurança, etc. São os direitos que embasam a concepção liberal clássica. Já os direitos políticos, alcançados o século XIX, dizem respeito à liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical, à participação política e eleitoral, ao sufrágio universal etc. São também chamados direitos individuais exercidos coletivamente e acabaram se incorporando à tradição liberal.”

Já os direitos de segunda geração, os direitos sociais e econômicos, também segundo Vieira “foram conquistados no século XX a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os direitos a trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos meios de vida e bem estar social”.

Borja[4] refere que no século XX a “cidadania adquiriu um novo conteúdo: o social. Ser cidadão hoje é ter direito a receber educação e assistência, serviços sociais diversos, serviços públicos subvencionados, salário regulamentar, proteção trabalhista, etc. Em suma, podemos chamá-los como direitos humanos econômicos, sociais e culturais”. Acrescenta que a “cidadania moderna é também um resultado do desenvolvimento econômico e social do século XX que configurou o Welfare State”.

Assim, a expressão “Estado de Bem-Estar Social” constitui forma de caracterizar estados liberais-democráticos, com atuação intervencionista no campo social e econômico, objetivando assegurar o bem-estar da sociedade.

Bolzan[5] afirma que o Estado do Bem-Estar Social corresponde aquele  “no qual o cidadão, independentemente de sua situação social, tem direito a ser protegido, através de mecanismos/prestações públicas estatais, contra dependências e/ou concorrências de curta ou longa duração, dando guarida a um fórmula onde a questão da igualdade aparece – ou deveria parecer – como fundamento para a atitude intervencionista do Estado”.

Em outras palavras este modelo de Estado é identificado em face de garantir a todo cidadão direitos básicos, como alimentação, educação, saúde, habitação, etc. E isto mediante o reconhecimento de que tais garantias importam em efetivo direito político. Todavia, as dificuldades de transpor o plano teórico em direção ao prático, permitiu no Brasil a identificação de uma crise resultante das dificuldades de ordem econômica, eis que as receitas do Estado não tem sido suficientes para suportar as despesas decorrentes dos gastos com investimentos sociais. Reilly[6] bem identificou este fenômeno ao referir que a cidadania “assumiu não só as ilusões do progresso, mas também uma progressão real, uma seqüência dos direitos sociais civis e da titularidade dos mesmos para os direitos políticos. Essa progressão continha em seu seio as sementes de uma contradição que, uma vez manifestada, solapou e depois deslocou algumas das liberdades individuais e algumas das dimensões comunitárias. Essa progressão levou o papel do Estado muito além de sua capacidade fiscal e alimentou ambições monopolistas e burocráticas, dando lugar a Estados do bem-estar ou benfeitores com menor capacidade de resposta e menos sustentáveis”.

De outro lado, esta crise determinou também a procura de alternativas para enfrentamento do problema, na medida em que soluções deveriam e devem ainda ser buscadas. Com efeito, outro fenômeno pode ser identificado. Ao mesmo tempo em que se consolida a posição pelo dever do Estado de proporcionar o bem-estar à coletividade, também se percebe as dificuldades decorrentes em face do crescente déficit estatal, resultante da implementação de políticas públicas impostas pelas novas demandas sociais. Inclusive, o surgimento da Lei de Responsabilidade Fiscal apontou para a necessidade de estabelecimento de limites nos gastos públicos, mesmo se estes resultem de políticas dirigidas ao atendimento de direitos dos cidadãos.

Sem dúvida alguma, a referida lei determinou significativa modificação no modelo econômico, sobretudo por instituir a figura do gestor responsável. O objetivo é a busca de um Estado austero, responsável e equilibrado, e por isso em condições de cumprir seu papel social, conciliando disciplina fiscal e desenvolvimento econômico.

Em síntese, um novo modelo de Estado está sendo perseguido, que tenha finanças saneadas, que seja capaz de investir no bem-estar, cumprindo seu dever social e, concomitantemente, consiga atrair investimentos. Todavia, o passado recente e a realidade atual demonstra que o Estado brasileiro enfrenta ainda sérias dificuldades para cumprir eficazmente este seu papel social.

Diante deste quadro, quais as alternativas possíveis? A resposta para a indagação lançadas, tentaremos a seguir apresentar.

2 A REDUÇÃO DAS ATIVIDADES DO ESTADO E AS POLÍTICAS EXTRAFISCAIS

A solução para as dificuldades enfrentadas pelo Estado para adequado atendimento das demandas sociais, passa obrigatoriamente em um primeiro momento, pelo exame da arrecadação, e num segundo, pela redução dos gastos públicos. Isto porque não há como pensar atualmente o Brasil como Estado eficiente sem projetar e pensar no aumento da carga tributária, como também na diminuição de suas despesas através de redução das atividades estatais, com correspondente repasse ao setor privado.

Em relação ao primeiro aspecto, a receita pública, vale o registro de Hugo de Brito Machado de que no Brasil vigora a regra da liberdade de iniciativa na ordem econômica, bem como que a atividade econômica é entregue à iniciativa privada, com exceção dos casos previstos na Constituição Federal, quanto há exclusividade por parte do Estado, devido a imperativos vinculados à segurança nacional ou na hipótese de relevante interesse da coletividade. Destaca ainda:

… Não é próprio do Estado, portanto, o exercício da atividade econômica, que é reservada ao setor privado, de onde o Estado obtém os recursos financeiros de que necessita. Diz-se que o Estado exercita apenas atividade financeira, como tal entendido o conjunto de ato que o Estado pratica na obtenção, na gestão e na aplicação dos recursos financeiros de que necessita para atingir os seus fins.

A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ela não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez a única arma contra a estatização da economia.

Justifica-se o poder de tributar conforme a concepção que se adote do próprio Estado. A idéia mais generalizada parece ser a de que os indivíduos, por seus representantes, consentem na instituição do tributo, como de resto na elaboração de todas as regras jurídicas que regem a nação.[7]

Todavia, necessário aqui se mostra lembrar em vista da linha de desenvolvimento do tema, a expressão de Ives Gandra da Silva Martins[8], conhecida no mundo jurídico-tributário, de que o “tributo é norma de rejeição social”, razão pela qual merece ser “estudado pela Economia, Finanças Públicas e Direito, ofertando os especialistas dessas áreas o modelo ideal para o político, a fim de que a norma indesejável tenha sua carga de rejeição reduzida à menor expressão possível”.

A lição do renomado tributarista parece se mostrar a cada dia mais atual, sobretudo porque tal rejeição apresenta-se ano a ano mais crescente, como instintiva reação do contribuinte diante do aumento da carga tributária no Brasil, em especial a verificada na última década. Não obstante isto, a verdade é que a afirmação de que o tributo é uma norma de rejeição social representa observar apenas uma parte do fenômeno tributário, revelando ótica fragmentada do seu estudo, restrita ao campo sociológico. É que o fenômeno arrecadatório deve e precisa ser visto de forma mais ampla, sobretudo se considerado como fator indispensável a permitir que o Estado cumpra seus deveres na forma estabelecida pela Constituição.

Nesta linha, preciso se mostra o conceito de Torres[9]: “Tributo é o dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade do grupo e com a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência específica outorgada pela Constituição”.

Destaque outro deve ser feito relativamente aos institutos da fiscalidade, extrafiscalidade e da parafiscalidade como critério finalístico dos tributos. Registra Rodrigues[10] que “a fiscalidade opera-se quando o objetivo da tributação, sem qualquer interesse social, político ou econômico, visa somente abastecer os cofres públicos, perspectiva essa totalmente inversa aos objetivos extrafiscais, os quais visam justamente prestigiar situações que social, política ou economicamente sejam consideradas valiosas, e para as quais se dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso”.

Já a parafiscalidade ocorrerá quando a arrecadação tiver por fim a obtenção de recursos para sustentar encargos que não são específicos da administração direta do Estado, mas cujo desenvolvimento das atividades respectivas a ele interessa.

Dos objetivos apontados acima interessa-nos aqui de forma especial a extrafiscalidade, que está vinculada  à  interferência no domínio econômico, para atender necessidades na condução da economia, para a correção de situações sociais indesejadas, para o fomento a certas atividades.  CARRAZA[11] afirma que a “extrafiscalidade é o emprego de instrumentos tributários para fins não-fiscais, mas ordinatórios (isto é, para condicionar comportamentos de virtuais contribuintes, e não, propriamente, para abastecer de dinheiro os cofres públicos”.

Como se vê, o tributo tem funções importantes, razão pela qual existe uma obrigação fundamental em pagá-lo, resultante de princípios constitucionais, eis que não é mais possível pensar em direitos fundamentais dos cidadãos de forma dissociada dos deveres fundamentais. Daí porque a superação do individualismo em favor do coletivo conduz necessariamente ao afastamento da visão limitada de que o tributo constitui norma de rejeição social.

Portanto, apesar das exigências tributárias excessivas, circunstância que não pode ser negada diante da realidade brasileira, indispensável se mostra pensar uma sociedade mais justa e solidária.

Desta forma, duas conclusões no ponto se mostram possíveis. A primeira, de que o aumento da carga tributária como alternativa para permitir ao Estado ampliar suas políticas sociais,  não constitui medida adequada sobretudo em face do atual momento político e econômico. E a segunda, de que a extrafiscalidade pode representar instrumento eficaz com o propósito de estimular atividades e o desenvolvimento regional.

Nesta linha necessário agora se mostra o exame do segundo aspecto antes apontado, ou seja, a adoção de medidas para fins de redução do tamanho do Estado. Para Santos[12] deverá o próprio Estado “tomar a iniciativa de promover a criação do terceiro setor por via de políticas de diferenciação positiva em relação ao setor privado capitalista. O perfil destas políticas é um indicador seguro da natureza democrática ou clientelista dos pactos políticos entre o princípio da comunidade e o princípio do Estado que se pretendem construir.”

Segundo Kettl[13] “as pressões pela redução do tamanho do Estado têm feito com que o governo passe cada vez mais atividades ao setor privado a organizações sem fins lucrativos, a concessionários (sobretudo os sistemas federais) e aos cidadãos”.

Vieira[14] destaca que as “associações da sociedade civil e os movimentos sociais têm sido mais analisados do ponto de vista da construção da cidadania democrática e das novas relações Estado-sociedade do que como instância de produção de bens e serviços sociais. No entanto, vem-se intensificando cada vez mais a transferência de bens e serviços, anteriormente a cargo do Estado, para o setor público não-estatal.”

Em verdade, tal fenômeno se mostra possível na medida em que certas atividades não devem ser exclusivas do Estado. Ensina Pereira[15]: “Atividades exclusivas são aquelas que envolvem o poder de Estado. São as atividades que garantem diretamente que as leis e as políticas públicas sejam cumpridas e financiadas. Integram esse setor as forças armadas, a polícia, a agência arrecadadora de impostos – as funções tradicionais do Estado – e também as agências reguladoras, as agências de financiamento, fomento e controle dos serviços sociais e da seguridade social. As atividades exclusivas, portanto, não devem ser identificadas como o Estado liberal clássico, para o qual bastam a polícia e as forças armadas”.

De outro lado, refere que “serviços não-exclusivos são todos aqueles que o Estado provê, mas que, como não envolvem o exercício do poder extroverso do Estado, podem ser também oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não-estatal (“não governamental”). Esse setor compreende os serviços de educação, saúde, culturais e de pesquisa científica.”

Como se vê há inegavelmente convergência quanto à necessidade do Estado transferir ao setor privado o exercício de atividades, não consideradas como exclusivas.

3 MEDIDAS POSSÍVEIS E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

Nesta linha, examinadas as questões relativas às obrigações do Estado, as dificuldades enfrentadas pelo mesmo em face da limitação de recursos, a função extrafiscal do tributo como alternativa para viabilizar o desenvolvimento, e a transferência ao setor privado de atividades não exclusivas, cumpre agora tentar elaborar uma síntese, de modo a demonstrar a relação possível entre os aspectos acima apontados, permitindo ainda minimamente projetar algumas alternativas para a crise.

Em relação à diminuição da atividade estatal, com ampliação da participação do setor privado em áreas tidas como não exclusivas do Estado, parece não comportar maiores dificuldades, sobretudo porque há significativa harmonia quanto a precisão da respectiva política. De outro lado, impossível se mostra diante do atual quadro econômico e político brasileiro, pensar em aumento da carga tributária como alternativa ao Estado, para atendimento das crescentes demandas sociais. Aliás, recentemente ocorreu expressiva mobilização de segmentos da sociedade civil com o propósito de evitar a conversão de medida provisória em lei, que contemplava elevação da tributação das sociedades prestadoras de serviços.

Desta forma, a solução possível da crise passa necessariamente pela redução da atividade estatal, com possibilidade de atuação de novos atores, bem como a intensificação de políticas capazes de estimular investimentos por parte do setor privado, capazes de direta ou indiretamente assegurar melhorias sociais, muito embora a extrafiscalidade encontre limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal?

Cavalcanti[16] ao questionar como é possível conciliar os necessários investimentos sociais com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que restringe os gastos e limita o endividamento, sustenta que “o ente da federação deve equilibrar e atrair investimentos privados”. Para ele os gastos em obras, infra-estrutura ou serviços públicos não devem mais ficar a cargo exclusivo do Estado, eis que  “os recursos suficientes a esses gastos podem vir de entidades públicas e privadas que decidam investir”. E conclui dizendo que tais investimentos somente ocorrerão naqueles entes que tenham suas contas devidamente equilibradas.

Na realidade, a Lei nº 101/2000 representa instrumento de controle da gestão pública para toda a sociedade, tanto no que se refere a gastos, como no que diz respeito a políticas de estímulo fiscais para atrair investimentos. Estes estímulos fiscais, representados pelas inúmeras variações – incentivos, subsídios, isenções, remissões, anistias, alíquotas zero, financiamentos etc.), têm por objetivo fortalecer e estimular o desenvolvimento e crescimento do país ou de algumas regiões específicas, fenômeno que não ocorreria caso não houvesse sua respectiva concessão.

No ponto vale registrar, que a própria Carta Política prevê tal possibilidade. Atento o legislador constituinte tratou de assegurar exceção ao princípio da igualdade, de modo a permitir o desenvolvimento regional. Esta previsão consta do inciso I, do artigo 151, que proíbe a União instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país.

Significa como visto, que por previsão constitucional os estímulos fiscais são de expressiva relevância como instrumento de viabilização de políticas de desenvolvimento.  Mas como conciliar os princípios da estrita administração da coisa pública, em rígida conformação orçamentária, com a necessidade de promover o desenvolvimento através de estímulos?

Não há, segundo Martins[17], maior dificuldade. É que todo “incentivo fiscal que não se vincule a qualquer receita programada, para o qual não haja qualquer projeção de gastos, ou seja, em que o custo municipal para sua concessão é zero, refoge a rigidez orçamentária à falta de elemento capaz de perturbar o equilíbrio entre receitas e despesas públicas. Em termos diversos, todo o estímulo fiscal cuja concessão possa provocar um impacto negativo no orçamento, com possível redução de receitas, deve ser submetido a todos os severos controles que a Constituição e a lei orçamentária impõem. Não aqueles cujo impacto é nenhum, visto que sua concessão não reduz receitas – no futuro aumentá-las-á -, não tem reflexos, não afeta o orçamento, não gera qualquer despesa não programada.”

Inclusive, é neste sentido o espírito do art. 14 da LRF[18].  Assim,  a possibilidade de criação de estímulos fiscais sem impacto sobre orçamento, corresponde a ferramenta importante para a administração pública, na medida em que atrai investimentos, possibilitando a criação de empregos e permitindo futura geração de receita tributária como resultado das atividades econômicas desenvolvidas.

Ao  analisar a matéria relativa à despesa pública e renúncias de receita, Torres[19] assim se manifesta:

…Mas, como princípio orçamentário, o desenvolvimento econômico atua especialmente sobre a vertente dos gastos, seja sob a forma normal das subvenções, subsídios e outras rubricas da despesa, seja sob a forma anômala dos gastos tributários, que são as renúncias de receita (subvenções, reduções de alíquotas e de base de cálculo, remissões, etc).

Com a crise fiscal do Estado do Bem-estar Social a utilização de inventivos e renúncias de receita para induzir o desenvolvimento econômico entre em refluxo e se assiste à mudança radical na política orçamentária. A CF 88, que agasalha o princípio do desenvolvimento, privilegia os monopólios estatais e adota a política intervencionista no capítulo da Constituição Econômica, abraça, contraditoriamente, na Constituição Orçamentária, princípios como o da transparência, sinalizando no sentido do controle dos incentivos fiscais e das renúncias de receita (art.165, § 6º). A CF 88 é, sem dúvida, uma cara compromissária: no momento em que se torna patente a incapacidade financeira do Estado para conceder incentivos e manter empresas deficitárias substitutivas de importações, há dispositivos que ainda acenam para a política desenvolvimentista sob a liderança do Governo Federal.”

Em resumo, portanto, é possível identificar duas espécies de incentivos: uma com natureza onerosa, na medida em que causa impacto sobre a receita e o orçamento; e outra, que não causa qualquer impacto sobre as finanças do ente público, viabilizando o desenvolvimento regional e o futuro aumento da arrecadação, como resultado da geração de empregos e outros fatores decorrentes das atividades econômicas instaladas a partir do estímulo fiscal concedido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o quadro social e econômico atual brasileiro sinaliza para a presença de uma crise, sobretudo porque nítido está que as demandas sociais não são atendidas pelo Estado de forma eficiente. Há, pois, uma crise de eficiência do Estado. E a eficiência do Estado, como afirma Lourdes Sola constitui um direito republicano: “ou seja, o direito do cidadão de ter um governo eficiente. Isto significa também adotar uma noção de eficiência ao mesmo tempo mais abrangente e objetiva – de modo a recobrir as condições de capacitação do Estado enquanto autoridade democrática, que  assegura a universalidade da lei”[20].

O que se percebe é uma absurda e desproporcional relação entre os indicadores da economia do Brasil, que evidenciam uma atividade equiparável às grandes nações industrializadas, sobretudo em face do alto índice de arrecadação, com insignificantes indicadores sociais, que nos nivela a sociedades subdesenvolvidas, com expressiva marginalidade urbana e com padrões de pobreza inaceitáveis.

Esta evidência, ou seja, a presença de alta receita tributária versus pobreza acentuada, impõe uma reforma do Estado, até porque no entender de  Emerson Gabardo “no sistema constitucional brasileiro, eficiência sem Estado Social não é eficiência em uma interpretação jurídico-política”[21].  Na realidade, a necessidade de ajustes no Estado não constitui privilégio brasileiro, Segundo Kettl[22] desde a década de 80 identifica-se uma onda global crescente de reforma do setor público. Salienta que “praticamente todos os governos têm empreendido esforços para modernizar e agilizar a administração pública. Em todos os países, os governos têm sido abertamente pressionados a reduzir o tamanho do Estado. Em nenhum outro momento da história o movimento em favor da reforma da administração pública avançou tanto e tão depressa.”

Esta reforma no entender de Luiz Carlos Bresser Pereira e Nuria Cunill Grau[23], “deverá conduzir a um Estado fortalecido, com suas finanças recuperadas e sua administração obedecendo a critérios gerenciais de eficiência. Mas a reforma também deverá alcançar a garantia, pelo Estado, de que as atividades sociais, que não são monopolistas por natureza, sejam realizadas competitivamente pelo setor público não-estatal e por ele controladas ainda que com seu apoio financeiro, de maneira a conseguir a ampliação dos direitos sociais”.  Destacam ainda, que “como condição para o desdobramento de suas outras dimensões, a reforma visa renovar o sistema político incorporando a própria participação cidadã mediante o controle social. Um Estado assim reconstruído poderá resistir aos efeitos perturbadores da globalização e garantir uma sociedade não somente mais desenvolvida, mas também menos injusta.”

Leal[24] na linha da necessidade da maior participação da sociedade, tomando por base o discurso da Democracia contemporânea de Habermas, sustenta que “um dos principais desafios de uma Administração Pública que se queira democrática, é a de buscar mecanismos de fundamentação, de ação e de restabelecimento do equilíbrio da autonomia privada e da autonomia pública no cenário societal, eis que os direitos humanos e fundamentais, associados com os objetivos e finalidade da República nacional, só podem estar garantidos onde esteja assegurado/efetivado o princípio da soberania do povo, aqui entendido como o procedimento compartilhado comunitariamente à formação da vontade estatal.”

Cabe em acréscimo lembrar a lição de Vieira[25], de que na teoria habermasiana, o conceito de esfera pública tem posição central na formação d vontade coletiva. É o espaço do debate público, do embate dos diversos atores da sociedade civil. Trata-se de espaço público autônomo com dupla dimensão: de um lado, desenvolve processos de formação democrática de opinião pública e da vontade política coletiva; de outro, vincula-se a um projeto de práxis democrática radical, onde a sociedade civil se torna instantânea deliberativa e legitimadora do poder político, onde os cidadãos são capazes de exercer seus direitos subjetivos públicos.” Ressalta em complemento, que a reconstrução do espaço público ocorre segundo Habermas, “numa perspectiva emancipatória, contemplando procedimentos racionais, discursivos, participativos e pluralistas que permitam aos atores a sociedade civil um consenso comunicativo e um auto-regulação, fonte da legitimidade das leis. Nem o espaço doméstico nem o espaço de produção têm esse potencial democrático. A autonomia do espaço público participativo revaloriza o primado da comunidade e da solidariedade, possibilitando a libertação da sociedade civil dos imperativos sistêmicos, isto é, dos controles burocráticos do Estado e das imposições econômicas do mercado.”

Os registros acima sinalizam para a evidência de que este processo de reforma do Estado, deve passar obrigatoriamente por uma ampla participação dos mais variados segmentos da sociedade brasileira, até porque as políticas públicas precisam ser vistas como processo que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito[26].

A partir desta reestruturação ou concomitantemente a ela, através de democrático movimento social, cumpre buscar soluções para atendimento das demandas sociais. Todavia, há certeza de que as alternativas possíveis passam necessariamente por medidas que comportem a diminuição das atividades estatais, possibilitando a organização da sociedade para assumir novos compromissos, passando a mesma a responder por atividades antes exercidas exclusivamente pelo Estado.

Em contrapartida, indispensável também que a administração pública retome com mais intensidade as políticas vinculadas à extrafiscalidade, na medida em que representam instrumento importante de estimulo ao desenvolvimento. Entretanto, apenas se mostra possível o planejamento e a atração de investimentos com a  implementação de uma disciplina fiscal severa, até porque isto constitui imposição da Lei de Responsabilidade Fiscal. É necessário conter os gastos excessivos e, assim, evitar o descalabro público. Isto porque como bem alerta Leal[27], “a Administração Pública o Brasil, assim como na maior parte dos países da América Latina, tem se pautado pela profunda indiferença em relação às aspirações e reais demandas da comunidade alcançada por suas práticas oficiosas, gerida por corporações que se apoderam do Estado e o transformam em aparelho ou instrumento de seus interesses privados.”

Portanto, o estabelecimento de limites para o endividamento representa claro sinal de que os entes da federação poderão se endividar, porém obedecendo a parâmetros prudenciais, o que evita o risco de crises sistêmicas.

Importante é perceber que a Lei de Responsabilidade Fiscal concilia a função social do Estado com a atração de investimentos, especialmente quando examinada em relação as possibilidades de se utilizar o orçamento de forma flexível.

No entanto, indispensável se mostra um alerta. Não pode o Estado neste processo assumir um papel de mero expectador, tanto no que diz respeito à transferência de parte de suas atividades ao setor privado, como em relação às políticas de favor fiscal. É imprescindível o estabelecimento de compromissos claros por parte de todos os participantes deste movimento de transformação, sobretudo para evitar que a sociedade passe a ser mera refém do poder econômico, até porque o Estado Social e Democrático deve “opor-se à anarquia econômica e à ditadura, no sentido de resguardar os valores da civilização”[28].

Em síntese, a ampliação da participação da sociedade associada à atração de investimentos, via políticas extrafiscais, permitirão ao Estado voltar a concentrar e a destinar verbas para atender a sua verdadeira vocação, que é o bem-estar social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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14. MARTINS, Ives Gandra da Silva. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Direito Administrativo, financeiro e gestão pública: prática, inovações e polêmicas. Ed. Revista dos Tribunais, 2002.

15. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser e GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e o mercado: o público não-estatal (texto fornecido como material didático da disciplina Estado, Sociedade e Administração Pública, ministrada pelo Profº. Dr. Rogério Gesta Leal).

16. KETTL, Donald F.  A revolução global: reforma da administração do setor público. (texto fornecido como material didático da disciplina Estado, Sociedade e Administração Pública, ministrada pelo Profº. Dr. Rogério Gesta Leal).

17. SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

18. GABARDO, Emerson. Eficiência e Legitimidade do Estado: uma análise das estruturas simbólicas do direito político.Barueri, SP:Manole, 2003.

19. LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

20. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.

21. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol.V – Rio de Janeiro; Renovar, 2000.


[1] LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas p. 20.

[2] Op.cit. 94.

[3] VIEIRA Liszt. Cidadania e Controle Social, p. 215.

[4] BORJA, Jordi. Sociedade e Estado em Transformação, p. 365.

[5] BONZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação especial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.p. 3.

[6] REILLY, Charles A. Redistribuição de direitos e responsabilidades – cidadania e capital social. p. 411.

[7] in Curso de Direito Tributário, 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, p.3.

[8] in Curso de Direito Tributário. (org). vol. 1. 2.ed. Belém: CEJUP, 1993. p.18.

[9] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 7.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 320-321.

[10] RODRIGUES, Hugo Thamir. Anais do II Seminário Internacional sobre Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea. p.57. Ed. Evangraf Ltda.

[11] in Curso de Direito Constitucional Tributário, 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 475.

[12] SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado. p.270.

[13] Op.cit. p.115.

[14] in Cidadania e Controle Social. p.242.

[15] PEREIRA Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado e Administração Púbica Gerencial, p. 33-34.

[16] CAVALCANTI Márcio. Direito Administrativo, financeiro e gestão pública: prática, inovações e polêmicas, p.302. Ed. Revista dos Tribunais, 2002.

[17] MARTINS, Ives Gandra da Silva. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Direito Administrativo, financeiro e gestão pública: prática, inovações e polêmicas. Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p.277.

[18] “Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

§ 1.º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

§ 2.º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

§ 3.º O disposto neste artigo não se aplica:

I – às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º;

II – ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança”.

[19] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. vol.V, p.234.

[20] SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: UNESP, 1999. p.31.

[21] GABARDO, Emerson. Eficiência e Legitimidade do Estado: uma análise das estruturas simbólicas do direito político. p.163. Barueri/SP: Manole, 2003.

[22] KETTL Donald F. A revolução global: reforma da administração do setor público. p.75 .

[23] In Entre o Estado e o mercado: o público não-estatal, p.17-18

[24] Op cit. p.96.

[25] in Cidadania e Controle Social, p.229

[26] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. p.264.

[27] Op. cit. p.63

[28] LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. p.68.