sábado, 2 de outubro de 2010

Trabalho apresentado no InLetras - X Seminário Internacional em Letras 2010

DO LATIM AO PORTUGUÊS: VARIAÇÕES E MUDANÇAS LINGUÍSTICAS[1]

Luana Iensen Gonçalves[2], Laurindo Dalpian[3]


RESUMO: O presente estudo, de caráter bibliográfico, percorre diacronicamente a evolução do latim vulgar até a atual língua portuguesa. É um estudo de ordem linguística, voltado ao campo da filologia. O latim clássico e o latim vulgar eram variantes de uma mesma língua. A primeira, da escrita, era da escola, da aristrocacia, da literatura. E a segunda, falada, de cunho popular, atendia principalmente às classes menos privilegiadas. Assim, durante séculos de conquistas territoriais, a língua latina modificou-se/adaptou-se sob a influência de substratos, superstratos e adstratos. O propósito maior deste trabalho é descrever a variação linguística do latim e do português e as mudanças ocorridas.

Palavras-chaves: latim vulgar; língua portuguesa; variação linguística; mudança linguística.


INTRODUÇÃO

A variação linguística do latim, no decorrer de todo o processo de romanização, era uma realidade presente em todas as regiões conquistadas do Império Romano, as quais, por sua vez, apresentavam características próprias, quer em função das épocas de colonização quer da mescla linguística havida com os mais diferentes povos. A atual língua portuguesa também apresenta uma grande variação, proveniente dos dialetos regionais, dos falares das diferentes camadas sociais, dos grupos étnicos e de muitos outros fatores. A presente pesquisa, além de analisar a variação do latim e do português, entra no campo das mudanças, ocorridas durante a evolução verificada do latim ao português (diacronia). Dessa forma, essa incursão constitui-se em uma tentativa para recuperar a história da língua. Muitas variantes da língua latina migraram para as línguas românicas, submetidas a um contínuo e lento processo de mudança. Dentro da realidade linguística das províncias romanas, caracterizadas pelas mesclas linguísticas, a comunidade foi aceitando as inovações, em função do prestígio inerente à língua do dominador, em modo particular, e ao uso incessante, integrando-as à fala comum.
Justifica-se a presente pesquisa, por apresentar dados históricos da língua portuguesa, desde seu passado latino, com o suceder-se de mudanças ao longo do tempo. Percebendo-se que a realidade linguística, de qualquer comunidade de fala, se transforma continuamente teve-se como objetivo principal descrever a variação linguística do latim e do português e as mudanças ocorridas.
Este estudo é fruto de uma pesquisa bibliográfica, em que foram analisados, em um primeiro momento, livros teóricos acerca da língua latina e da portuguesa, a respeito de suas variações e mudanças. A coleta das informações apoiou-se na concepção teórica da dialetologia e da sociolinguística, em que a língua é vista como um objeto heterogêneo, relacionando-se à história social e cultural dos falantes. Tomando o latim vulgar como ponto de partida, verificou-se a evolução da língua portuguesa através do estudo de suas fases principais. O entrelaçamento de diacronia e sincronia mostra um longo processo de formação. As influências oriundas dos mais diferentes povos explicam-se pelas mesclas que aconteceram ao longo do tempo e que perduraram pelos séculos.



FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Saussure (2006), a fim de salientar o estudo das variações linguísticas, delineou dois eixos, um horizontal e outro vertical. Representou o primeiro como eixo das simultaneidades, isto é, a sincronia, e o segundo, como eixo das sucessividades, isto é, a diacronia.
A sincronia, ou eixo das simultaneidades, representa as relações entre fenômenos existentes, dos quais se exclui toda a intervenção do tempo. Koch e Silva apontam que Saussure considerou a língua como um conjunto de fatos estáveis, “estudados como elementos de um sistema que funciona num determinado momento do tempo”. O eixo das sucessividades, ou diacronia, representa os fenômenos que se modificaram ou se substituíram numa sucessão no tempo; “tais fenômenos não são isolados, mas acarretam modificações no sistema, determinando a passagem de um estado de língua a outro” (2002, p. 9).
A fim de compreender melhor estas mudanças, partiu-se de dados dialetológicos e sociolinguísticos, os quais delineiam a língua como heterogênea. Saussure (2006) explica que a língua é um conjunto de signos que não pode ser modificada por quem fala e segue as leis estabelecidas pela comunidade. Segundo Bechara (2006) é uma unidade linguística ideal. O dialeto, por sua vez, de acordo com Coutinho (1956), é a modificação regional de uma língua. Desta forma, Cardoso e Ferreira (1994) explicam que os falantes de uma mesma língua, mas de diferentes regiões, possuem características linguísticas variadas e “se pertencem a uma mesma região também não falam da mesma maneira, tendo em vista os diferentes estratos sociais e as circunstâncias diversas da comunicação” (p. 12). Assim é possível compreender porque existiram tantos dialetos no processo de romanização.
Entende-se, dessa forma, a dialetologia e a sociolinguística como estudos das falas, tanto de suas variedades regionais como sociais. A dialetologia tem um maior interesse pelos dialetos regionais, a sociolinguística estuda mais os dialetos urbanos. A primeira se identifica mais com a linguística diatópica, horizontal, e a segunda, com a linguística diastrática, vertical. Neste trabalho foram vistos, ao longo das fases da língua portuguesa, os dialetos regionais e os falares urbanos, uma vez que o latim vulgar tinha inúmeras variações.

A variação e a mudança linguística

De acordo com Bagno (2002), a variação da língua portuguesa pode ser observada tanto na escrita quanto na oralidade, já que ela não é homogênea.
Tarallo (1997) diz que a variação linguística revela as diferentes maneiras de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, com o mesmo valor de verdade, e esta pode acontecer em diversos níveis, conforme a escolarização do falante, sua classe social, o espaço geográfico ao qual pertence etc.. Um exemplo na língua portuguesa é a marcação do plural no sintagma nominal. Temos a variável s e as variantes s e a ausência do s: As meninas bonitas - As meninas bonita - As menina bonita.
Deste modo, segundo Tarallo (1997), pode-se dividi-las em variantes padrão e não-padrão. A variante padrão é conservadora e tem prestígio sociolinguístico na comunidade. A variante inovadora é considerada normalmente não-padrão e estigmatizada pela comunidade. A mudança linguística pode ocorrer nos diversos níveis linguísticos (fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático ou lexical). Entende-se, então, “o fato de que as línguas humanas mudam com o passar do tempo” (FARACO, 1991, p. 9), ou seja, a estrutura da língua se altera no tempo, continuamente. Mas, para o comum dos indivíduos, é difícil perceber essa mudança, pelo fato de que ela ocorre lentamente. Ao mesmo tempo, as pessoas são peças importantes nessa evolução, pelo fato de serem falantes e utilizarem a língua constantemente. Contudo, em “linguística histórica nem toda variação implica mudança, mas toda mudança pressupõe variação” (FARACO, 1991, p. 13).
A mudança linguística pode ser percebida ao comparar textos antigos com os atuais, ou falantes de gerações, classes econômicas ou culturas diferentes. Essa comparação revela que a língua está constantemente passando por transformações, ou seja, “que estruturas e palavras que existiam antes não ocorrem mais ou estão deixando de ocorrer; ou, então, ocorrem modificadas em sua forma, função e/ou significado” (FARACO, 1991, p. 10). O autor aponta ainda algumas características da mudança linguística: contínua, lenta e gradual, e relativamente regular. E relata que, para uma variação linguística tornar-se de fato uma mudança, ela deve ser aceita na oralidade por toda comunidade de falantes e “passar” para a escrita.
O que a história das línguas revela é que esse “jogo” de variação e mudança esteve presente desde os primórdios da humanidade. Isso porque, quando as diferentes civilizações se encontravam, em diversas situações, necessitava-se da comunicação. Assim uma língua misturava-se a outra, mesclava-se, iniciando o processo de variação linguística e consequentemente as mudanças começaram a surgir nas línguas. Nesse jogo, pode-se afirmar que

Na realidade, o latim vulgar é o que corresponde essencialmente ao nosso conceito de língua viva. O latim clássico só era língua viva na medida em que recebia influência do latim vulgar e se tornava, com isso, mais maleável e mesmo um tanto dinâmico (CÂMARA JUNIOR, 1975, p. 22).

Entende-se, dessa forma, porque é possível afirmar que o latim continua vivo entre as línguas românicas, graças às variações e mudanças ocorridas. Dessa forma, como exemplo de variação, tem-se o dialeto (modificação regional de uma língua), o idioleto (variação particular a certa pessoa), o etnoleto (variação para um grupo étnico), os registros de língua falada e escrita, a linguagem padrão e não padrão. Variações como dialetos, idioletos e socioletos podem ser distinguidos não apenas por seus vocabulários, mas também por diferenças na gramática, na fonologia e na versificação. Além disso, afirma-se que a variação pode aparecer em todos os níveis de funcionamento da linguagem. Para uma explicação mais real, toma-se o estado do Rio Grande do Sul como exemplo. Nesse estado tem-se o dialeto conhecido como gaúcho, ou seja, o português brasileiro com o “sotaque” dos habitantes sulinos. “Dentro” desse dialeto existem muitos socioletos, que são as variações linguísticas de grupos sociais diferentes (a fala de professores, comerciantes, estudantes, não escolarizados etc.).
Dessa forma, insere-se no conceito de variação linguística a noção de mescla linguística, que engloba os fenômenos do contato e da mescla, dos homens e sua cultura, suas línguas, a sintaxe, a fonologia e outros. É a partir do convívio social, das maneiras de falar diferentes que a mescla se justifica como um veículo efetivo de comunicação entre os falantes da comunidade. Tarallo e Alkmin (1987) distinguem a mescla intracomunidade (variantes convivendo em uma mesma comunidade de fala, em que somente uma língua é falada, por exemplo, o português) da mescla intercomunidades (línguas distintas coexistindo e se misturando em uma comunidade, por exemplo, a convivência do alemão, italiano e polonês na região sul do Brasil).
Assim, pode-se dizer que ocorreu uma mescla “dos latins”, somando-se a variações históricas, sociais, políticas e geográficas, até chegar-se ao português atual. E estas transformações demoraram muito tempo para se concretizarem, justamente pelas características da mudança, descritas por Faraco (1991).

Variações do latim e do português

A língua portuguesa provém do latim, que faz parte, por sua vez, da grande família das línguas indo-europeias, representada hoje em todos os continentes. No início, era o simples falar de um povo de cultura rústica; depois, com o tempo, a língua latina passou a desempenhar um papel importantíssimo na história ocidental. Conforme afirma Coutinho (1962), o “português é o próprio latim modificado” (p. 51); por isso, muitos estudiosos consideram errado afirmar que o latim é uma língua morta.
O latim é uma antiga língua indo-europeia do ramo itálico, originalmente falada no Lácio (Latium), região da Itália Central. Foi amplamente difundida, especialmente na Europa. Através da Igreja, tornou-se a língua dos acadêmicos e filósofos europeus medievais.
Com o trabalho do método histórico comparativo, estudiosos compararam línguas como o latim com raízes vocabulares diferentes, existentes na Índia, na Pérsia, na Grécia e em muitas outras regiões; e formularam “a hipótese da existência de uma língua primitiva que teria gerado esses idiomas” (CARDOSO, 2006, p. 6). A essa língua-mãe denominou-se indo-europeu. A partir da descoberta dessa língua mãe é que foi possível o estudo detalhado das origens de cada grupo de línguas. Assim, do latim foram desvendadas as origens das línguas românicas, pois as semelhanças que essas possuem entre si provêm do latim, ou melhor, elas são a continuação do latim. Percebe-se que durante um longo período de tempo em que o latim foi utilizado como língua viva, sofreu ele muitas e profundas transformações. Por isso, tem-se o costume de caracterizá-lo conforme a época e as circunstâncias em que foi usado.
Com a latinização, que foi o processo de incorporação ao Império Romano de novos territórios, que passaram a chamar-se províncias, ocorreu a difusão política, paralela à linguística. O latim tinha o prestígio de língua oficial. De acordo com Ilari (1999), “as línguas com que o latim entrou em contato, por efeito das conquistas, pertenciam a diferentes famílias linguísticas, e eram bastante diferentes entre si” (p. 48). Desta forma, entre os fatores que influenciaram na diferenciação do latim, destacam-se o próprio processo de romanização, a diversidade de substratos (as marcas linguísticas dos povos vencidos, incorporadas ao latim), as eras cronológicas (teoria cronológica de Gröber: cada época de ocupação apresentou um latim diferente) e os superstratos (línguas vencidas de povos vencedores), representados pelas línguas dos bárbaros que destruíram o Império Romano.
Para a concretização da romanização de inúmeras populações nativas, concorreram diferentes fatores, dado que o latim foi levado pelos legionários, colonos, comerciantes e funcionários públicos romanos, impondo-se pela força das próprias circunstâncias políticas e econômicas. A cada província conquistada os romanos impunham suas regras, leis e o latim como língua oficial.
Assim, o latim vulgar (falado pelos soldados, comerciantes etc.) sofreu transformações a partir da mescla linguística, na convivência de diferentes variantes linguísticas em um mesmo espaço, por força dos diversos substratos e, posteriormente, dos superstratos. Disso tudo, mais tarde, surgiram as línguas românicas. O termo românia, derivado de romanus, foi usado pelos povos romanizados para se distinguirem dos bárbaros. Ilari (1999, p. 50) aponta que

sobre romanus formou-se o advérbio romanice, ‘à maneira romana’, ‘segundo o costume romano’, e a expressão romanice loqui se fixou para indicar as falas vulgares de origem latina. (...) Do advérbio romanice, derivou o substantivo romance, que na origem se aplicava a qualquer composição escrita em uma das línguas vulgares.

Após as ocupações bárbaras, outras foram acontecendo durante séculos. De acordo com Cunha & Cintra (2008), com a ocupação árabe cresceram, na Península, as artes e as ciências, tendo grande incremento a agricultura, o comércio e a indústria. Ao longo do domínio árabe acentuaram-se as características distintivas dos romances peninsulares. O galego-português constituiu-se como uma unidade linguística única até meados do século XIV, na região que compreendia a Galiza e a faixa entre o Douro e o Minho. Acredita-se que o galego-português teria contornos definidos desde o século VI, “mas é só a partir do século IX que podemos atestar sua existência através de palavras que se colhem em textos de latim bárbaro” (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 18). Este é o que conhecemos como português primitivo.
Segundo Cunha e Cintra (2008), pode-se distinguir algumas etapas evolutivas do latim ao português atual: o latim lusitânico; o romance lusitânico; o português proto-histórico; o português arcaico e o português moderno.
A fase pré-histórica vai do século III a.C. ao século IX d.C. Nessa fase, incluem-se o latim lusitânico e o romance lusitânico.
O latim lusitânico representa a língua falada na Lusitânia, desde a implantação do latim pelos romanos até o século V d.C., quando se deu a invasão dos povos gremânicos. Nesse período espalhou-se por todos os territórios romanizados o latim vulgar falado pelos militares, comerciantes, agricultores e outros, e a cada conquista romana inseriram-se ao latim vulgar as influências dos povos conquistados.
Coutinho (1962) diz que no início existia simplesmente o latim. Mas, com o decorrer do tempo, este passou a apresentar dois aspectos distintos: o clássico, a língua escrita, com apuro do vocabulário, correção gramatical, elegância do estilo, e o vulgar, a língua falada pelas classes inferiores. Basseto (2001) explica que, além do termo vulgar, esse latim era denominado de sermo plebeius ou rusticus, peregrinus, castrensis, militaris.
O processo de romanização/latinização durou diversos séculos e, nesse tempo, os romanos utilizaram diferentes meios para impor o latim. A ocupação territorial acontecia geralmente graças aos exércitos. Os soldados, de início, eram apenas cidadãos romanos, mas, com o crescimento das invasões, foram sendo recrutados provincianos, homens incultos e romanizados. Com este contigente de homens que falavam o latim em contato direto e constante com as populações que invadiam, o latim pôde proliferar rapidamente, recebendo influências orais das línguas dos povos conquistados. Iniciou, assim, um processo de profunda dialetação do latim vulgar.
Contribuiu também para essa proliferação a organização da administração romana. Com a expansão territorial, organizavam-se as províncias, as quais eram governadas por cônsules que deveriam, de acordo com Basseto (2001), manter-se fiéis a Roma, promovendo sua defesa interna e externa, coletando impostos, aplicando as leis e ministrando os serviços de atendimento jurídico. Para chegar a cargos administrativos as pessoas “comuns” aprendiam o latim, mas, com o tempo, o latim culto dos administradores foi se diluindo com o latim falado, pois a língua é o veículo de comunicação entre a elite e o povo, além de estar em todos os documentos.
A administração romana investiu em obras públicas de todos os tipos, garantindo sua expansão e o sucesso da romanização, contribuindo também para a fixação do latim. Entre as obras destacam-se: as estradas, que serviam como acesso rápido entre as regiões; o abatecimento de água, atráves de aquedutos, benefício público que granjeou a simpatia dos aborígenes para com os romanos; os teatros; as escolas; os templos; os monumentos; as bibliotecas e muitas outras obras. O fato é que a cultura romana foi sendo assimilada e, com ela, a língua. Além disso, não se pode esquecer o comércio, que chegava às mais remotas regiões, mesmo às não pertencentes ao Império Romano.
A classe falante do latim compreendia “a imensa multidão das pessoas incultas que eram de todo indiferentes às criações do espírito, que não tinham preocupações artísticas, que encaravam a vida pelo lado prático, objetivamente” (Coutinho, 1962, p. 33). Pertenciam a essa classe os soldados, os artíficies, os marinheiros, os agricultores, os barbeiros, os sapateiros, os artistas de circo, enfim, os homens livres e escravos que andavam pelas ruas. Era a soma das camadas sociais humildes e o latim acabou sendo falado por todas as populações que foram sendo submetidas ao Império Romano. Ao lastro primitivo foram se sobrepondo elementos diversos, dialetais ou de outra procedência. Tinham, porém, em si mesmos, o germe da diferenciação, que foi se acentuando com o passar do tempo.
Com estas transformações do latim, em cada província, resultaram os diferentes romances e, a seguir, as línguas e os dialetos românicos.
É possível verificar que o latim vulgar teve suas próprias características, na oralidade, referentes ao vocabulário, fonética, morfologia e sintaxe. O vocabulário, segundo Coutinho (1962), priorizava “palavras compostas, derivadas ou expressões perifrásticas: accu’iste (iste), depost (post), fortimente (fortiter), ovicula (ovis), entre outras[4]. Tinha vocábulos característicos: comparare (comprar), viaticum (viagem), parentes (parentes), paganus (pagão) E o emprego de termos que representam ideias, expressos diferentemente do latim literário: caballus (equus), apprendere (discere), jocus (ludus), casa (domus), bellus (pulcher).
Quanto à fonética o latim vulgar reduzia ditongos e hiatos a simples vogais: orum (aurum), preda (praeda); transformava fonemas: justicia (iustitia), paor (pauor), rius (riuus); ignorava sons finais: es (est), dece (decem), pos (post); evitava vocábulos proparoxítonos: masclus (masculus), domnus (dominus). O h do latim clássico foi desaparecendo: Omo (homo), abere (habere), eres (heres).
Na morfologia, destaca-se a redução das cinco declinações do latim clássico a três no latim vulgar. Segundo Coutinho (1962), havia confusões entre a quinta declinação e a primeira e entre a quarta e a segunda. Também houve a redução dos casos. Os nomes neutros tornaram-se masculinos, na forma do singular, e femininos, na forma do plural.
Segundo Lopes[5], a sintaxe do latim vulgar preferia a ordem direta, a regência diferente de alguns verbos, maior emprego das preposições ao invés dos casos, construções mais analíticas. Basseto (2001), ainda, revela que o latim vulgar tornou-se uma língua mais analítica e concreta.
Quanto ao latim escrito, impunha-se o padrão culto, privilégio apenas da elite. Conhecido por latim clássico, foi a língua das mais importantes obras da prosa e poesia latinas: as obras de Virgílio, Horácio, Cícero, Tito Lívio, entre outros. Segundo Cardoso (2006), é uma língua cultivada, artística, bem diferente da língua falada.

O romance lusitânico, por sua vez, representa a língua falada na Lusitânia, do século V d.C. ao século IX d.C. Dele também não se tem nenhum documento escrito. Seu início é marcado com a invasão dos povos germânicos. Apesar de passarem ao status de dominadores, política e economicamente, por não possuírem cultura consistente adotaram o latim como língua oficial e, aos poucos, suas línguas foram sendo abandonanadas. Estas passaram a constituírem-se como superstratos, ou seja, línguas vencidas, apesar dos povos vencedores. É possivel observar, ainda, que, com a queda de Roma, manteve-se em relativa estabilidade o saber linguístico, ou seja, houve um período de certa resistência à mudança, uma vez que os habitantes vencidos (romanizados) tinham pleno domínio da língua. Basseto (2001) diz que que a permanência do latim aconteceu porque, nesta época, eram fatores determinantes o prestígio cultural e o desenvolvimento de uma língua para manter-se à frente de outra.
Observa-se, também, que a partir das conquistas bárbaras, a homogeneidade das províncias romanas foi-se dissociando e formaram-se estados independentes e isolados uns dos outros. A partir de então, o latim foi perdendo sua “majestade”, abrindo espaço paras os dialetos que acompanhavam essas novas províncias.
Dessa forma, cada uma das língua românicas seguiu caminhos diferentes, juntando às características locais as que recebeu de outros povos. Por isso, Coutinho (1962) considera a fase que inicia no século V como uma fase de transição, em que ocorreu uma grande diferenciação do latim, com a promoção de múltiplos falares, e resultou no surgimento da escrita das línguas românicas.
Antes da escrita, a maioria dos autores aceita uma fase intermediária para o português: o português proto-histórico. Trata-se de uma língua apenas falada, do século IX até os fins do século XII, da qual podem-se vislumbrar alguns vestígios em textos do latim bárbaro, escrito por tabeliães. Isso significa que já existia uma língua portuguesa falada, mas não escrita.
A fase histórica vai do século XII ao século XXI. Essa fase tem como marco inicial os primeiros textos escritos em galego-português, as cantigas trovadorescas; por isso a denominação de histórica. Pode ser dividida em arcaica e moderna.
A fase arcaica (do século XII até a primeira metade do século XVI) marca o inicio da literatura portuguesa e é subdividida em duas fases: Trovadoresca (1189-1350), com o primeiro documento escrito, e a fase da Prosa Histórica (1350-1536).
Os primeiros documentos em galego-português datam do século XIII. O primeiro texto literário em língua portuguesa de que se tem registro é a cantiga da Ribeirinha. A cantiga foi composta provavelmente em 1189 ou 1198, por Paio Soares de Taveirós, e recebeu esse nome por ter sido dedicada à Dona Maria Pais Ribeiro, amante de Dom Sancho I, apelidada de Ribeirinha, marcando, assim, o início da fase Trovadoresca. Na fase da Prosa Histórica, há um predominio de textos históricos, de escritores como Fernão Lopes, Gil Vicente e outros.
A fase Moderna vai de 1536 (publicação da primeira gramática da língua portguesa, de Fernão de Oliveira) até os dias de hoje. A partir dos descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, os portugueses ampliaram o império de sua língua, que foi levada para os territórios por eles conquistados na África, na América, Ásia e na Oceania. Entende-se assim, que foi com a dialetação do latim vulgar que se originaram muitas palavras na língua portuguesa.
Hoje, o português é a língua oficial de oito países: Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Falado em todo o mundo, o português apresenta uma riqueza de variações. Por sua grande extensão territorial, o Brasil é um verdadeiro “balaio” de variações linguísticas.
O léxico brasileiro é resultado de um verdadeiro cruzamento idiomático. Além das origens no latim vulgar, mais de cinquenta línguas legaram palavras à língua portuguesa. De acordo com Perissé (2007), a influência mais forte vem das famílias grega e latina, introduzidas nas línguas dos colonizadores portugueses e dos imigrantes. Existem também outras influências, do tupi-guarani, das línguas africanas e de muitas outras.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procurou-se ver alguns conceitos de variação e mudança linguística para, então, compreender como essas aconteceram ao longo da história da língua portuguesa. Foi possível comparar o latim a uma semente e que dela germinaram diversas raízes, as línguas românicas. Dentre as diversas orientações teóricas utilizadas para compreender as transformações do latim vulgar, foram os estudos diacrônicos que possibilitaram a exploração das mudanças linguísticas ocorridas do latim para o português, especialmente a visão das fases da língua portuguesa.
A partir dos estudos teóricos, verificou-se que as variações linguísticas, tanto do latim quanto do português, aconteceram principalmente na oralidade, uma vez que o latim vulgar diluiu-se por todo Império Romano através da fala. Com os estudos diacrônicos, foram confrontadas as mais diferentes mudanças. Para chegar-se ao nível de uma mudança linguística, passou-se primeiro pela variação da fala, aceita na comunidade em que foi “criada”, onde tinha prestígio, para, finalmente, consagrar-se na escrita, bem mais tardia. Muitas palavras perderam-se ao longo da história, porque as variações ocorrem de forma mais rápida do que a mudança linguística e “mudam” de região para região. A difusão do latim provocou o surgimento de inúmeros dialetos, alguns dos quais foram constituídos como línguas.
Nesse contexto, Câmara Junior (1975, p. 23) diz que

O latim vulgar só se define como um contraste com a norma ideal do latim clássico. Não é uma unidade linguística em qualquer momento de sua história. Diversifica-se em dialetos sociais, e, diacronicamente, é uma continuidade de mudanças. É justo dizer que as línguas românicas provêm do latim vulgar, no sentido relativo de que resultaram de um latim dinâmico, essencialmente de língua orla, em processo de perene evolução. Elementos do latim clássico, que estão nas origens românicas, são os que se integram no processo evolutivo, fazendo-se ‘vulgares’.

Entende-se, dessa forma, a importância da oralidade para o processo de variação/mudança e, através desse processo evolutivo, o percurso da língua portuguesa ao longo do tempo, que continua indefinidamente. As transformações da língua podem ocorrer pelos mais diversos fatores: geográficos, sociais, culturais etc.. A língua é um instrumento humano, ou seja, vivo, e depende do ser humano para se concretizar e evoluir, uma vez que é heterogêneo, não estático e, por consequência, precisa modificar-se constantemente a fim de atender às necessidades de seus usuários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo: Loyola, 2002.
BASSETO, Fregni Bruno. Elementos da Filologia Românica: história externa das línguas. São Paulo: USP, 2001.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
CÂMARA JUNIOR, Joaquim Matoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
CARDOSO, Suzana Alice; FERREIRA, Carlota. A dialetologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. 6.ed. São Paulo: Ática, 2006.
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática histórica. 5.ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1962.
CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5.ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
FARACO, Carlos Alberto. Linguística Histórica. São Paulo: Ática, 1991
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 1999.
KOCH, Ingedore Villaça; SILVA, Maria Cecília Perez de Souza e. Linguística aplicada ao português: morfologia. 13.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
LOPES, Eliana da Cunha. Pompeia: um relicário do latim vulgar. Disponível em http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno10-14.html, acesso em 09/04/2010.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística Geral. 27.ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
PERISSÉ, Gabriel. Cruzamentos Idiomáticos. Língua Portuguesa – Etimologia: a origem das palavras. São Paulo: Segmento, n. 2. p. 20-21, 2007.
TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática, 1997.
______; ALKMIN, Tânia. Falares crioulos: línguas em contato. São Paulo: Ática, 1987.

[1] Resultado de trabalho de pesquisa da disciplina de Filologia Românica I.
[2] Acadêmica do curso de Letras Português – Centro Universitário Franciscano. luana_iensen@yahoo.com.br
[3] Orientador: Professor Doutor de Língua Latina e Filologia Românica do Centro Universitário Franciscano. laurindodalpian@gmail.com
[4] Todos os exemplos das características do latim vulgar foram retirados de Coutinho (1962).
[5] Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno10-14.html, acesso em 09/04/2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O preconceito linguístico na região de Carazinho.

Hoje divido o espaço com uma colega do curo. Aproveitem o texto: O preconceito linguístico na região de Carazinho. O relato apresentado po...