sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Em busca dos universais linguisticos


Em busca dos universais linguísticos *

Com “o exercício do ato de sentir”


Qual o papel da linguagem na cognição? “Contar uma história” a este respeito, “e refletir as aquisições da criança na decodificação e construção de estruturas linguísticas”, é o que fundamentalmente procura fazer Dan Isaac Slobin em Psicolinguística, que chegou ao Brasil em 1980, vol. 16 da coleção Biblioteca Universitária, série 5ª – Letras e Linguística.
A edição príncipe vem acrescida de observações – feitas por Slobin e por outros pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia no campo dos universais linguísticos e/ou dos fundamentos biológicos da linguagem. Slobin explica: "Começamos a pôr a linguagem humana numa estrutura universal, tanto em termos dos universais linguísticos dos sistemas de comunicação de nossas espécies, como em termos do meio biológico do comportamento humano típico”,
Refere com particular admiração a influência que sobre ele e seus companheiros de pós-graduação no Center for Cognitive Studies, de Harward, nos anos de 1960 e 64, exerceu Noam Chonsky com “as novas formulações de gramática transformacional e sua eventual significação psicológica”. E recorda ter sido Jerome Bruner quem então os levou até os estudos do soviético L,.S.Yygorsky, que não se desviara dos rumos traçados à Fisiologia por René Descartes, Ivan M. Sèchenov e Ivan Petrovich Pavlov e aos do suíço Jean Piaget ,que acabou procedendo de forma um pouco análoga, dando a suas investigações certo sentido ontogênico, biológico. Com seu primeiro livro, editado em 1923, Le langage et la penseé chez l’énfant, Piaget tivera a oposição de Vygotsky pelo fato, p.ex., de atribuir a uma “incontinência verbal”precoce a fala egocêntrica na qual não viu como Slobin registra funções especiais.Vygotsky já sustentava que a função da fala egocêntrica assemelhava-se à da fala interior. Ela não apenas acompanha a atividade da criança; serve de orientação mental, compreensão consciente, ajuda a venccr dificuldades; é fala para si mesma, ligada íntima e proveitosamente ao pensamento infantil.(...) No fim, ela se torna fala interior”.
O próprio Dan Isaac Slobin opina que “a aquisição da linguagem é dirigida por princípios estruturais inatos, alguns dos quais são exclusivamente para esta tarefa especial, sendo alguns outros mais gerais”. Uma posição dir-se-á nativista, que ele mesmo, por sinal, admite, ou melhor, naturalista. Implicitamente, de um fisiolinguista. Significa que numa 3ª edição não seria incorreto apor a tal título, a escolher, “ou Fisiolinguistica”.
Ele explicita: “já dissemos o bastante para lançar sérias dúvidas sobre a idéia – comum a muita prática educacional – de que a língua é a fonte do desenvolvimento mental. E também debatemos a idéia de que as diferenças culturais se refletem com déficits gerais em capacidade da mente. Entretanto, continua sendo meta de uma boa parte da educação nos Estados Unidos tentar, em relação às crianças pequenas negras, portorriquenhas, mexicanas e asiáticas (e até surdos), que falem o inglês americano, padrão da classe média (Standard Middle-Class American English, geralmente mencionado pelos pofessores como inglês correto (...) .Slobin reconhece na criança uma capacidade de construir línguas. E Nicolas Ivanovith Krasnogorski já em suas primeiras observações (1907-1913), sobre o desenvolvimento da linguagm infantil (La actividad nerviosa superior del niño, ediciones en lenguas extranjeras, Moscou,1960) ... constatava que as reações elocutivas são no fundo reflexos que se formam segundo as leis das conexões temporais” ... Krasnorgoski, que se destacou como um dos maiores discípulos e seguidores de Pavlov, tendo publicado sua primeira comunicação dessa especialidade no n° 36 da revista Russki Vrach em 1907 sob o título Obtenção de reflexos condicionados das crianças” expõe que no homem, à diferença dos animais, predomina um analisador locutivomotor especial composto de células cinestésicas que percebem os estímulos internos vindos dos músculos vocais. E que a existência nele de um sistema elocutivo de sinalização especial – a realizar a atividade verbal – faz com que tal sistema reflita o mundo externo e interno no homem, nos reflexos elocutivos, constituindo assim a base do conhecimento. “O método fisiológico no estudo da atividade dos sistemas de sinalização do cérebro tem aberto amplo acesso à investigação científica experimental não só do mundo exterior como também do mundo interior – através do sistema locutivo.
Em suma, a corrente pavloviana testemunha uma suficiência de linguagem sensorial ao término do 1° ano de vida, com o desenvolvimento bastante significativo da função conectora do córtex (ou córtice) cerebral da criança. Isso quer dizer que ela, em tal estágio, compreende muitas palavras, ainda que não as pronuncie.
Dentro deste quadro expositivo de natureza essencialmente fisiológica é que parecem movimentar-se psicólogos do porte de Dan Isaac Slobin, que realiza gradualmente em Berkeley, desde 1964, um programa de estudo de aquisição da linguagem, envolvendo duas (ou mais) línguas. Diz ter passado os anos de 1969-70 e 1972-73 na Turquia,” aprendendo o turco e também observando como as criancinhas aprendem esse idioma”. Para ele, é uma língua rica e fascinante, que lhe fornece contrastes com o inglês e o leva a pensar em universais linguísticos.
O problema, como se percebe, é mais de ciências naturais do que de outra área. E não seriam os universais lingüísticos a base sensorial do conhecimento? Para ilustrar, ou divertir, vejamos um trecho de conto da escritora Esther Lúcio Bittencourt, autora de No país das palavras onde moram os homens mudos, edição São José, 1975, rodado também em mimeógrafo para a antiga Feira do Autor, uma feira que funcionou por algum tempo no Campo de São Bento, Niterói, reunindo escritores e artistas de vários Estados, com ampla repercução no meio cultural do Rio, São Paulo e Minas Gerais, principalmente.
O conto é apresentado como parte de uma série por título flagra e que a autora explica tratar-se de “exercício do ato de sentir”:

Arimori camireri vilupodi drinca de sula Olibali peri nodi ende virdi. Manilamente vidi ensi malo viguibinte. Osú, Arimori. La mergue de plengue viguiri la virma emos de los pies entre dos. Vijo. Arimori ni. E ni. e ni. La plantica vertiplenta vibri entra drei erere mele duestra plei. Duolo. Isare capricou vitile emirante deli... E tal “exercício do ato de sentir” levou-me a compor o soneto que se segue:




Marchim de fasta, fuesta delevisa.
Mergue de plengue, vijo tus sonombres.
Encorpulo de vim los emos amos.
Ama la vela de los nolos dami.
Corsas di visde nostaljuramani.
Pianze mnodo ritime ni de mer.
Zivali poli poli valipor.
Falui de mari, ni le mali amon.
Incelo in te conosconoscision.
Segrido mei, la plaga melitosa.
Visuando mele duestra plei sensare.
Camireri de panto, sulaminte.
Sula manifaciene d’emirade.
Manilamente vidi en ti – Isare.


* O Fluminense, Caderno Encontro, 19 e 20 de outubro de 1980; Fernando Henriques Gonçalves

sábado, 20 de dezembro de 2008


Honra ao Conselheiro

Pela primeira vez se rende algum tributo à memória de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, natural do Ceará, arquiteto de Canudos, Bahia – e isto acontece amanhã, no 92 aniversário de sua morte.
Quem já atravessou o caudal de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e repetiu a travessia – com a mesma atenção e interesse dos estudiosos dos textos bíblicos, com o mesmo afã como artistas de tendências diversas vão buscar na Bíblia Sagrada elemento para suas produções – terá conhecido essa figura impressionante, acidentalmente gnóstica, que foi Antônio Conselheiro.
Os Sertões de Euclides compõem a Bíblia da nacionalidade brasileira, que o Conselheiro pervaga menos na condição de mais um messiânico posto no mundo do que na de revolucionário nos limites e moldes de Canudos: a Favela de Monte Santo, por ele transformada, a um tempo, em espécie de casa de correção e oficina de justiça social.
Apóstolo, beato ou bruxo, qualquer outro qualificativo que se lhe possa atribuir, certo é que ele realizou, praticamente, da noite para o dia, pelo fascínio que exercia sobre os párias do Norte e do Nordeste do Brasil, aquilo que o Direito Penal de uma “civilização de empréstimo” (expressão usada por Euclides para retratar as classes dominantes da época) jamais conseguiria: a reabilitação em massa de criminosos comuns ou seu direcionamento a uma causa internamente justa: a incorporação deles num sistema assemelhado ao dos primeiros cristãos – o comunitarismo, em linguagem eclesial.
E pensar que o Conselheiro deve ter-se inspirado nas abelhas para conceber aquele seu pequeno mundo de irmãos, como fez Karl Marx em escala científica. O personagem quase irreal da obra extraordinária de Euclides da Cunha pregava, conforme se lê em Os Sertões e as cevadas elites culturais de hoje encobrem o quanto podem, a “comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”.
(A tais elites , por sinal, pertence o escritor e político Vargas Llosa, ex-guru – ou ainda o é? – da esquerda distraída sob um céu de anil e que, após tentar reduzir a uma guerra de fim de mundo a resistência de Canudos, abalou-se em campanha pela internacionalização da Amazônia. Esbarrando, entretanto, na prancheta de Oscar Niemeyer, que se recusou, indignado, a assinar uma carta de penas serviçais do latifúndio transnacionalista).
Gente afeita a desfiar rosários de coco, outro tipo a talhar seus crimes de morte no clavinote, no mosquetão, no trabuco; criaturas pacatas e facínoras até o último grau, cangaceiros e jagunços, brancos, negros, mulatos, amarelos, todos irmanados em defesa do Arraial do Bom Jesus (assim tratavam o Conselheiro) e suas conquistas sociais - das balas da artilharia pesada, dos vômitos dos canhões Krupp, de uma república “de empréstimo”
E se tornaram competentes, audaciosos guerrilheiros. Em face do desvario de um exército que, acompanhando-se a avaliação dos acontecimentos feita pelo tenente Euclides da Cunha (tinha ele os cursos de Estado-Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), descera ao nível de grande parte dos habitantes de Canudos – antes da regeneração
O Conselheiro e seus homens morreram de pé..




Ultima Hora, 21 de setembro de 1989, Opinião, Fenando Henriques Gonçalves

sábado, 13 de dezembro de 2008


A Resistência *
Canudos (1896-97)




A República de Floriano, não mais que “meia ração de glória”

Entre os novos críticos de Euclides da Cunha e sua obra documental, Os Sertões, nota-se vez e outra uma sôfrega preocupação de lançar dúvidas à veracidade de registros feitos por aquele autor na cobertura jornalística do episódio de Canudos, além de reinterpretá-lo ao sabor da conveniência dos dias atuais. Há como que uma ação orquestrada no sentido de deseuclidizar o sertão de Antônio Conselheiro e sua antítese, o latifúndio, quando o próprio Euclides, ao compor a tríade sarmientiana “o Homem, a Terra, a Luta”, procurou e conseguiu, até onde lhe foi permitido avançar, impessoalizar-se na medida e nos momentos em que o puro e cru desenrolar dos fatos o exigia, embora chocando-se ao primeiro toque, às vezes, já transpostos ao papel, com o testemunho que ele daria no remate do livro.
Logo, as personagens deste romance vivo e epopéico de certo período da História brasileira que são Os Sertões têm luz própria. Umas, bruxuleante, outras, de uma luminosidade copada. As oscilações vão à custa da estrutura feudal de uma época visceralmente ainda bem próxima da que se vive agora no Brasil e, de roldão, por outros países de uma América pobre porque saqueada nos moldes da diplomacia, inclusive de canhoneiras, ao correr dos dados narco e/ou anarcocapitalistas.
Atiradores do sertão e de caserna, rosários de coco e pentes de chumbo, o clavinote à bandoleira.talhado a canivete (cada talho, uma, vida fechada) e o canhão Withworth 32, que viera adrede para lhe derrubar os muros, da igreja nova de Canudos, sem no entanto a atingir, visto que “as balas passavam-lhe, silvando, sobre a cumeeira”, tudo isto a entrelaçar-se numa engenharia singular, instigadora, derivada da visão ..quase a um tempo impulsiva e serena de Euclides acerca dos acontecimentos que deram à República mal começada, de 1896 a 97, não mais que “meia ração de glória”.
Hoje, discute-se não a campanha de Canudos, pelo lado das sucessivas expedições batidas em confronto com a “guerrilha sertaneja”, culminando com o tresloucado assalto a uma “Jerusalém de taipa”, mas a resistência de Canudos, que tombou sem render-se. E o Conselheiro, guia dos rebelados sem eira nem beira contra algo, para eles, com o peso de cangalha tributária jogada aos seus lombos pelo novo regime, estava morto, após dias de sofrimento, atingido que fora por estilhaços de granada.
Em solo rebelde, presunçosamente tomado pelas forças legais, ferira-se um diálogo laminar entre Antônio Beato, o altareiro do arraial conflagrado, e um general de brigada. O fiel seguidor do já então finado Conselheiro nos ofícios de acolitá-lo nas avemarias e de acionar o bacamarte, escudeiro descrito por Euclides da Cunha como um mulato claro e alto, sobranceiro, vestindo camisa de azulão e a corrupiar pelos dedos um gorro azul, de linho, esperou que o general principiasse.
“Quem é você?”, perguntou-lhe enfim, e o provavelmente ardiloso emissário do que sobrara da resistência, uns poucos guerrilheiros, porém dispostos ao combate até o último homem, tirante o ajuntamento de inválidos e crianças a aguardar recolhimento – tinha pronta a resposta:
“Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato, e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião”...
Queria dizer: munição. E convenhamos: opinião deste calibre é o que jamais faltou aos opressores, do passado e do presente. Para determo-nos no século XX e no raio latino-americano: a partir de 1903, contra o Panamá; de 1908, Nicarágua, de 1914, México e Haiti, de 1916, República Dominicana; em 1954, Guatemala; em 1961, Cuba; em 1973, Chile, e em 1983 com a invasão da pequenina ilha de Granada. O agressor: Estados Unidos da América do Norte, que a par dessa listagem de agressões armadas e além das intervenções camufladas no Paraguai e no Brasil, em 1954, outra vez no Brasil, em 1964, no Uruguai, em 1973, e na Argentina em 1976, para implantação da ditadura do capital , não negaram apoio logístico à guerra da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, via Londres, no Atlântico Sul, em 1982. Contra a República Argentina, a fim de garantir pelo último argumento dos reis, que é a força bruta, a pretensa e impudente soberania britânica sobre as ilhas nomeadas Malouines, em 1620, por marinheiros franceses, de Saint-Malo, soberania conquistada a botas de vândalos, em 3 de janeiro de 1833, primeiro estágio do mais ambicioso sonho do imperialismo que é exercer pleno e total controle sobre a Antártida.
Todavia, Canudos também teve opinião e, com todo o efeito naquele seu espaço, soube usá-la. Ou descarregá-la pelas mãos de gente que dominava coisas nativas, segredos marciais de raiz. Invejados e, sobretudo, odiados nas fileiras regulares, não tanto pelo fato de se terem revelado hábeis estrategistas, mas por sua simples, positiva, astuta condição de matutos. Tinham a seu favor as incríveis ciladas naturais, que a natureza, rude, à volta armava e contrapunha aos passos que lhe fossem estranhos.
Entrecruzavam-se, assim, o homem da caatinga e o próprio meio hostil ao homem da civilização, qual seja, naquela circunstância, o dos quartéis – oficiais e praças de unidades do Exército nacional baseadas na Bahia, Pernambuco, Amazonas, Pará, Sergipe, Alagoas, São Paulo, em todos os quadrantes do país, mobilizados para defenderem a República de fantasmas da Monarquia encarnados pelo Conselheiro e seus homens e para as reverências de estilo à lápide de Floriano Peixoto, cognominado o Marechal de Ferro.
O tenente Euclides da Cunha (com os cursos de Estado- Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), a cuja formação militar – apesar do gesto, na época, de indisciplina, quando cadete republicano no ocaso da Monarquia, de atirar o sabre aos pés do ministro da Guerra, Tomás Coelho -, pode ser atribuída, em grande parte, a disciplina na construção de Os Sertões, viu nas caatingas “um aliado incorruptível do sertanejo em revolta.” E não perdeu um só detalhe: “Entram também (as caatingas) de certo modo na luta. Armam-se para o combate, agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jagunço faz-se o guerrilheiro-thug, intangível.
Envolvente a “guerra das caatingas” tal como a apresenta Euclides:
- “E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. (...) E lá se vão,marchando, tranqüilamente, heróicos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem. (...) As seções (da expedição) precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as aguilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre o raios do sol joeirados pelas árvores sem folhas, e parte-se, falseando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
“Circulam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à-toa, num labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipés reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
“Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate: faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem – enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projéteis do adversário.
De repente, cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.” (...)
São passagens como esta que irritam os catadores de sutilezas nas aparas do livro maior de Euclides, empenhados que estão em falsear a verdade de Canudos, em cobrir com o manto linearmente messiânico o conceito de guerrilha enristado nas páginas de Os Sertões por um engenheiro militar; o escritor e político Mario Vargas Llosa tentou consagrar a escamoteação com o seu romance A Guerra do Fim do Mundo. Quando não, em proceder à maneira do historiador baiano José Calasans, para quem Canudos foi o “último quilombo do Brasil” (O Estado de S. Paulo, 1987, pág. 16). Nos achados do professor Calasans sobreleva a revelação- resultado de 36 anos de laudáveis buscas em documentos oficiais mas nem sempre acreditados – de que a população de Belo-Monte, nome original de Canudos, se constituía basicamente de ex-escravos. A documentos produzidos em cartórios do latifúndio, o bom-senso recomenda inclinarmo-nos pelo que registrou esse grande repórter que foi Euclides da Cunha, testemunha ocular de acontecimentos que abalaram a nação por fins do século XIX, e O Estado de S.Paulo deve ter-se arrependido mil vezes de havê-lo designado seu enviado especial ao front sertanejo. O Estado não fugiu à regra ventral da imprensa brasileira que imputara à colméia humana de Canudos o estigma de massa de manobra monarquista para derruir uma República mal saída do cueiro. Uma República que, a bem da verdade, manejava as mesmas armas da Monarquia, que a gerara. E os remanescentes do cativeiro, comprovados à lâmina em função de uma cultura religiosa peculiaríssima, sem nenhuma afinidade com o catolicismo estampado na “ bandeira do Divino” se predominavam no reino de Antônio Conselheiro, nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, como quer o esforçado historiador baiano, teriam então desempenhado papéis secundaríssimos sob o fogo da campanha republicana e o comando da resistência, este entregue ao pulso firme e decidido de todo um produto de milagrosa convergência: cangaceiros e jagunços. Alguns, quem sabe, a se penitenciarem até de terem servido ao escravagismo pegando na chibata contra cada amarrado ao tronco ou acertando a tiros fujões estropiados para os afazeres do eito.
De qualquer forma, sob a “bandeira do Divino” transformam-se todos, “mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor, em audazes guerrilheiros: o qualificativo preciso que se há de conferir a uma turba, paradoxalmente, disciplinada que revida com flama e destreza, com bravura, a fuzilaria e as bombas expedidas em nome e honra da lei e da ordem estabelecidas. A lei e a ordem, contudo, que o governo da República suava para impor na comarca de Monte-Santo. Uma ordem econômica com a qual não concordava Antônio Conselheiro. Este pregava, segundo Euclides, “a comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”... Certo, ia ao paroxismo no distanciamento de valores normais da vida em sociedade, ou civilizada, ao tolerar a “promiscuidade de um hetairismo infrene” sob o argumento de que todas as donzelas pastavam, inexoravelmente, “por baixo da árvore do bem e do mal”, sendo-lhes admitido fazer a opção.
E nem podia ser diferente, pois o Conselheiro era o gnóstico bronco fora do sertão e, enquanto não passasse à imortalidade, só lá dentro, um revolucionário autêntico.
Os paralelos, entretanto, não o deixariam a salvo da rotulagem, de agente de Moscou se a explosão de Canudos, com o mesmo elenco, acontecesse mais à frente, após a Revolução (russa) de 1917. Governo e imprensa logo cairiam em cima de Antônio Conselheiro com acusações como a de pretender semear pelo Nordeste do Brasil a ditadura... do campesinato.
Quimera que transporta despertados.

· Correio do Ilac, órgão do Instituto Latino-Americano de Cultura, Rio, Ano III, nº 15; por Fernando Henriques Gonçalves

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008


CIA rumina planos de
guerrilha contra Cuba *

Filho de Bush dá apoio a
exilados

Carlo Patiño **


A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, efetivamente iniciada por Mikhail Gorbachov através de uma irônica reestruturação transparente - na realidade, planejada no eixo Moscou-Washington-, alarga a vulnerabilidade da América Latina e o Caribe à ditadura do capital do complexo industrial-militar: denominação dada orgulhosamente por Eisenhower à argamassa do capitalismo norte-americano.
A economia de mercado não vive sem a indústria de guerra, e capitalismo periférico, para o qual caminham os russos nesta sua contra-revolução importada dos EE.UU., numa hora em que nos EE.UU. crescem a taxa de pobreza e o banditismo, significa dependência ao centro de uma produção industrial que Bertrand Russell já nos anos 60 dizia ser “empregada no sentido não só
de perpetuar a fome no mundo, mas ainda de aumentá-la em alta escala e com fins de lucro”.
Em muitos pontos, ou no conteúdo, o discurso de Bertrand Russell (“Paz por meio da resistência ao imperialismo dos Estados Unidos da América”) não perdeu atualidade. Entre um crime e outro da Guerra do Vietnam, bradava o pensador inglês: “Como abutres, o pequeno punhado de ricos é cevado à custa dos pobres, dos explorados, dos oprimidos.(as riquezas da Terra são esfaceladas, dissipadas, saqueadas por uns poucos e usadas para matar milhões. Três mil e 300 bases militares estão espalhadas por todo o planeta para impedir que os povos derrubem um sistema nocivo”.
O do império das armas e dos dólares, uma de suas bases, talvez a mais bem cuidada, ocupa (desde 1903) 118 Km2 da província cubana de Guantánamo: permanentemente voltada contra a Revolução de 1º de janeiro de 1959 e a Vitória de Playa Girón, de 19 de abril de 1961, quando uma expedição de anticastristas armados no exílio pela Central Intelligence Agency (CIA), reforçada por mercenários, foi batida fragorosamente pelas forças de defesa de Havana.
E com a estranha derrocada do regime soviético, pela rapidez como ela se processou, a primeira impressão que se tem é de que o regime marxista-lenilista adotado na ilha caribenha, mesmo sem ferir peculiaridades locais, encontra pela frente maiores ameaças de desestabilização. Isto, levando-se em conta estarem os cubanos preparados para a Opção Zero, por exemplo a substituição de automóveis por bicicletas, como forma de sobrevivência nacional a um bloqueio cerrado do imperialismo às importações de petróleo e outros condutos naturais de progresso dentro dos padrões atuais de civilização.
Entretanto, o socialismo cubano não se renderá enquanto Fidel viver, sendo esta a dedução dos mais realistas do anticastrismo estabelecido em Miami, empresários em grande número. Há exilados, como Sergio López Miro, que colaboram no The Wall Street Journal, sustentando que falta a Cuba uma liderança contra-revolucionária da envergadura de Gorbatchov (um Boris Ieltsin não é citado, naturalmente porque não teria a menor chance de falar aos ilhéus de cima de um blindado das forças sob o comando de Raúl Castro, irmão do presidente), ou do polonês Lech Walesa, coqueluche do sindicalismo de uma época no Ocidente, protótipo do peleguismo internacional***, para enfrentar Fidel Castro em igualdade de condições, sobretudo carismáticas, na crista de uma sonhada onda insurrecional.
O deflúvio planetário do marxismo-lenilismo não será contido em razão de uma parada histórica ou desvio filosófico de rumo no Leste Europeu: se a História pára por assim dizer em determinada região, acidental ou criminosamente, em seu leito geopolítico, ela prossegue em outra região, até numa república insular. Não é por outro motivo que Cuba de após desintegração soviética – provocada a débácle menos pela reconhecida incompatibilidade socialista existente entre desenvolvimento sócio-econômico e armamentismo, pela contingência em que se viu Moscou de ingressar numa corrida armamentista, do que pela gradual infiltração de enganosos valores ocidentais nos próprios quadros dirigentes da URSS - transformou-se de pronto e na esteira de tão surpreendentes acontecimentos em símbolo concreto e vigoroso de resistência da cultura mundial ao neocolonialismo.
Logo, ninguém pode escamotear a evidência de estar a CIA hoje, mais do que nunca, ruminando planos devastadores contra a estrutura política e econômica de Havana. E tirar Fidel de cena, eliminando-o fisicamente, é o primeiro deles, fundamental para dar passagem à guerrilha de Miami: em treinamento nos pântanos da Flórida, com o apoio às claras de Jeb Bush, filho do presidente dos Estados Unidos.

* Correio do Ilac, Ano VI n.18
**Pseudônimo de Fernando Henriques Conçalves
*** Falsa representação sindical de trabalhadores, a serviço de empresas transnacionais.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Novela Amazônica...

Eva Bán


Grupo de Vargas Llosa (*)
entra na novela amazônica

Sarney acusado até de etnocida
e embaixador reage. No Rio,
jornalista conta toda a trama



O Grupo dos100, que reúne Mário Vargas Llosa(aspirante à presidência da República do Peru), Gabriel García Márques, Carlos Fuentes e Ernesto Sábato, com outros intelectuais e artistas latino-americanos, escreveu ao presidente Sarney clamando pelo fim da “barbárie dos depredadores da Amazônia”, e responsabilizando-o pelo futuro de “um dos principais pulmões do mundo”
A carta de mais esse grupo ecológico, endereçada a Sarney dia 3 último, f oi publicada esta semana no jornal mexicano La Jornada e, nela, o presidente brasileiro é acusado de usar um “tom nacionalista para rechaçar as críticas internacionais a uma politica ecocida e etnocida”.
Tais acusações foram consideradas inacreditáveis pelo embaixador do Brasil no México, José Guilherme Merchior.Em sua resposta oficial, Merchior afirma que “o documento é simplesmente inaceitável”, e disse esperar que, “sem esse tom panfletário e demagógico, o grupo dos 100 possa, em breve, abordar objetivamente a questão amazônica”.
No Rio, a jornalista e escritora Eva Bán declarou que “infelizmente, o meu instinto de repórter experiente estava certo”. Referiu-se a uma nota por ela assinada ao lado de um poema – As Queimadas, também de sua autoria, no n.12 do Correio do Ilac, órgão do Instituto Latino-Americano de Cultura. “Isso, algumas semanas antes do assassinato de Chico Mendes, que provocou a tempestade desabada através da imprensa européia e norte-americana sobre a política ambiental brasileira, culminando com a eclosão de um movimento ensaiado há quase duas décadas, no exterior, visando à internacionalização da Amazônia”.
Falei disso, em poucas e boas tintas, no Correio do Ilac, bem antes de começar toda esta barafunda nacional e internacional em torno do assunto, disse Eva Bán, acrescentando: “Discursos, artigos, mentiras e desmentidos transformaram-se, agora, numa montanha de confusão total. A verdade é que nós, brasileiros, temos o direito de reclamar, xingar, brigar com os que devastam nossa Natureza.Mas os estrangeiros, que deixem fora daqui suas mãozinhas quentes de cobiça”
Eva Bán, que é delegada no Brasil da Associação Internacional de Jornalistas, sendo, ainda, membro fundadora do Instituto Latino-Americanode Cultura, disse mais:
- Acho que todas as outras nações que praticamente acabaram com a maior parte da Nave Espacial-Terra deveriam pagar uma espécie de pedágio mensal (ou anual, adiantado!) como reconhecimento pela nossa gentileza de ainda termos conservado uma fonte de oxigênio sem a qual todas elas já teriam morrido asfixiadas. Aí teremos dinheiro para pagar guardas florestais em quantidade e qualidade. Mas, enquanto esta utopia não vier, continuemos lutando com o que temos, gritando bem alto: “Abaixo as queimadas, os assassinatos, a destruição e a irresponsabilidade criminosa de autoridades coniventes”.
Em princìpios dos anos 70 Eva Bán encontrava-se nos EUA como correspondente dos Diários Associados, do Brasil. Por essa época, ela afirma ter escutado, “com estes ouvidos que os vermes irão comer, grandes banqueiros e capitalistas declararem em Nova Iorque que a internacionalização da Amazônia era necessária, “e eu, obrigada a assistir e escutar coisas idiotas, deste tipo”.
Não é por outra razão que Eva Bán tem suas dúvidas “de que a destruição em Goiás, Amazonas, etc., seja só de origem nacional” Antes de Chico Mendes tombar, ela escrevia no Correio do Ilac que “as queimadas trarão um efeito perigoso para a nossa soberania como nação”. E que, “se isto não parar urgentemente, um dia acordaremos com tropas estrangeiras ocupando Goiás, Amazonas etc. para salvar o clima e a sobrevivência da espécie humana”. E completava: “que meu instinto e senso de análise de repórter experiente estejam errados”. (AFP/OFLU) *O Fluminense, 12 abril de 1989

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O fio da droga I

O fio da droga (1)
-- I --

Quem pervagar as sombras da II Guerra Mundial estará, certamente, informado da Operação Husky (Brutamontes) ou Lucky: assim identificada por ter tido como patrono Salvatore Lucky Luciano, que pelo menos até começos de 1943, nos Estados Unidos, cumpria pena equivalente a prisão perpétua, logo reduzida para 9 anos e 6 meses, resultante de 32 condenações. O abrandamento destas pela Justiça americana se deveu a que Lucky Luciano, que mesmo encarcerado não perdera a condição de rei da Máfia nova-iorquino-siciliana, participou decisivamente, embora de longe, já em confortáveis aposentos da penitenciária de Great Meadows, da campanha na Sicília, Itália.
Em outras palavras, aceitando um acordo proposto pelos serviços secretos da U.S. Navy através de Moisés Polakoff, famoso advogado de mafiosos, então contratado por clientes legais para estabelecer os primeiros contatos, Lucky Luciano acabou por emitir mensagens aos “notáveis” de Villalba, aldeia a 60 km de Palermo. Na forma de um lenço amarelo, de seda, com a inicial L, empacotado, que caiu atado a um minipáraquedas próximo à residência de Calogero Vizzini, o dom Calo, um dos chefões da Máfia villalbesa. E o lenço amarelo funcionou como luz verde para o desembarque de tropas aliadas na Sicília Central e Ocidental, em meados de julho de 1943.
A estratégia fora traçada durante reunião da Força 141, em Argel, no quarto nº 141 do luxuoso e tropicalesco Hotel Saint-Georges, sob a direção do major-general inglês C.H. Gairdner, tendo a operação sido decidida em Casablanca de 19 a 23 de janeiro, escolhido o general Eisenhower para comandá-la; ele se encontrava, na época, em campanha na Tunísia.
A Máfia siciliana abriu de muito bom grado os caminhos da Itália para as forças aliadas, enquanto a União Soviética, contando apenas com suas próprias forças, enfrentava estoicamente a marcha nazista.
A “Honrosa Sociedade” engajara-se na guerra. Em troca de liberdade para Lucky Luciano e de vista grossa da Justiça americana ao tráfico de drogas, dentro de seus limites, e atiividades paralelas. Com efeito, em 9 de fevereiro de 1946 os EUA devolviam a Lucky sua cidadania, e ele foi recebido na Itália com fogos, banda de música e calorosos discursos de boas-vindas. Pôde dedicar-se ao ramo até janeiro de 1962, quando morreu, como um “anjo”, em Nápoles, cercado de irmãos da Cosa Nostra.
Este pode ser o fio da meada do narcotráfico nas Américas, a levar política e vingativamente à prisão o general Manuel Antonio Noriega, sob as mesmas acusações imputadas ao general Omar Torrijos Herrera (1929-81), vitimado em acidente aéreo presumivelmente provocado pela CIA, inscrito na História centro-americana como um de seus heróis. Com a diferença de que Noriega foi contratado por George Bush quando o atual presidente dos EUA(2) era diretor da CIA, para missões ultra-secretas na América Central, inclusive de envolvimento tático com o narcotráfico. A isto se poderia chamar de Plano Medellín, uma Operação Lucky às avessas. Ou estilizada.
O teatro de guerra, agora, é a América Central, especialmente ou por enquanto a Colômbia e seu prolongamento natural, o Panamá. Noriega teria traído o código da
“Honrosa Sociedade” do Pentágono a partir do momento em que deu sua guinada nacionalista, seguindo o exemplo de Torrijos: o Panamá para os panamenhos. E eis, também, a razão por que os EUA são os maiores fabricantes de cocaína no mundo.



(1) Ultima Hora, pág.4, UH opinião, 11 de janeiro de 1990
(2) George Bush, pai, governa os EUA de 1989 a 1993, sucedendo-o Bill Clinton, mantido no poder até 2001, em dois mandatos.

O fio da droga II

O fio da droga (1)


-- II --

A Máfia se plantou nos Estados Unidos ainda no século XIX, lá conhecida, por essa época, como Mão Negra. Em 1891, cinco mafiosos trancafiados em Nova Orleans, por quase terem tomado o governo local após eliminar o chefe de polícia, foram retirados da cadeia por populares revoltados com as penas leves que lhes haviam sido impostas, num julgamento em que a maioria do corpo de jurados parecera ligada àquela organização, e linchados. Entretanto, sem a carga de ódio da Ku-Klux-Klan aos negros.
É verdade que o sistema norte-americano está de certo modo calcado na Ku-Klux-Klan, quanto ao tratamento de “seres inferiores” dispensado aos mestiços da América Latina e o Caribe, mas foi a Máfia que lhe serviu de lente de aumento para suas intervenções imperialistas, sem que se esqueça a matriz realmente histórica: a Inglaterra; aliás, tão racista que, ao contrário da Espanha, da França e de Portugal, evitou a miscigenação no tempo das colonizações.
Sem nenhuma margem de erro, pode-se afirmar que os sucessivos governos dos EUA, sejam os do Partido Republicano ou do Democrata, até nossos dias, conduziram sua política externa inspirados na maneira de agir da Máfia, que encontrou solo fértil para propagar-se rapidamente, no estilo dos grandes monopólios, pelas principais cidades da poderosa nação do Norte. Americanizando-se, ao ponto de ensinar economia de mercado aos próprios homens da lei expansionista. Conservando apenas os termos do juramento original para cada novo membro:
“Juro, perante Deus, que prestarei assistência aos meus irmãos em dificuldade, mesmo com o risco de minha própria vida,. Juro que vingarei o mal causado a meus irmãos como se o fosse a mim mesmo. Juro que não pedirei auxílio à polícia, nem a nenhuma outra entidade civil. Juro que não divulgarei, em qualquer circunstância, os nomes de meus irmãos. Juro que executarei todas as ordens do Conselho dos Amigos sem perguntar a razão. Aceito que todo irmão que desobedecer a esta lei seja punido com a morte. Em nome do Santo, cuja imagem reguei com o meu sangue, juro tudo isto. Amém”.
Salvatore Lucky Luciano, o mafioso que em 1943, na 2ª Guerra Mundial, abriu as portas da Sicília às tropas anglo-norte-americanas, passara galhardamente por aquela prova: preso, nenhuma forma de interrogatório policial fizera com que apontasse qualquer de seus “irmãos” ou locais em que operavam. Por isso mesmo, dele se socorreram os EUA para o desembarque seguro na Itália, com toda a cobertura da Cosa Nostra nativa, e Lucky virou herói de guerra secreta.
A partir daí, a Máfia, ou Mão Negra, pôde consolidar posições dentro dos Estados Unidos. O tráfico e o consumo de entorpecentes começaram a fazer parte do american way of life, para exportação, num estereótipo que causaria inveja a Al Capone com os seus negócios de alta rotatividade e rentabilidade nos anos 20, os anos dourados do gangsterismo em Chicago, em Nova Iorque. Al Capone não era dos quadros da Máfia, porém absorvera-lhe os métodos, tal como fariam as próprias autoridades estadunidenses com relação à América Latina e outras regiões vulneráveis do planeta. Admitindo-se agora a inclusão, quem sabe, também do Leste europeu.
O neo-colonialismo não vacila em utilizar expedientes, os mais condenáveis, para alicerçar seus domínios no Hemisfério Sul, notadamente na América Central, a única parte de toda a região que tem oferecido alguma resistência. E a droga é o pano de fundo para novas encenações imperialistas. A reação enérgica da Colômbia ao bloqueio ensaiado pelos EUA em águas do Caribe não demoverá o governo Bush de seus planos belicistas contra a Nicarágua.


(1) Ultima Hora, UH opinião, p.4, 19 de janeiro de1990