30.5.07

Barriga de cerveja



A indústria de bebida alcoólica no Brasil, especialmente a de cerveja, tem se valido sistemática e vergonhosamente das técnicas de manipulação da propaganda, utilizadas pela publicidade, para sustentar uma verdadeira campanha de embebedamento de toda uma geração de jovens do país, com foco nos rapazes de 13 a 25 anos. É toda uma legião de crianças, adolescentes e jovens adultos apresentando sinais precoces de dependência do álcool – exatamente a camada mais vulnerável e maleável à influência da propaganda.
Não precisa nem ser verão – aqui pelos lados do Sudeste e do Sul, para não mencionar o sempre verão de outras regiões do país – para flagrar bares vendendo bebida alcoólica para crianças e adolescentes sem nenhum constrangimento, sem nenhuma fiscalização, muitas vezes nas proximidades e mesmo nas portas de escolas e universidades. Casos clássicos em São Paulo: os arredores do colégio e cursinho Etapa, na estação Ana Rosa do metrô, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), bem como da Universidade Presbiteriana Mackenzie são regiões coalhadas de bares e botecos por todos os lados. Em vez de livros, muita cerveja. Em vez de bancos nas bibliotecas, cadeiras ao redor de mesas nas calçadas, lotadas de jovens de “porre” ou de “pileque”, erguendo copos como quem ergue troféus.
A campanha publicitária maciça e persistente intensifica-se no verão. Veiculada principalmente pelos canais de televisão, uma guerra surda vai opondo as diversas marcas de cerveja que associam ad nauseam a imagem do consumo dessa bebida à aquisição de uma mulher “boa”, “gostosa”, “redonda”, “bonita” etc. As propagandas são de uma manipulação tão descarada que andam agora usando como símbolos de homens bem-sucedidos no consumo de cerveja (e na conseqüente aquisição de uma mulher “boa”) sujeitos barrigudos e mesmo com histórico de alcoolismo comprovado!
Na propaganda da cerveja Antarctica, por exemplo, o garoto-propaganda é o ator Bussunda, um tanto obeso e barrigudo, sim, mas feliz porque tem uma mulher tão “boa” quanto a cerveja que deformou o corpo dele. No comercial da Brahma, o herói é o cantor Zeca Pagodinho, o qual já teria sido internado mais de uma vez por excesso de consumo de álcool e outras complicações.Num anúncio da cerveja Kaiser, a mensagem transmitida diz que, se a pessoa “vier” (o slogan é “vem, vem”) a consumir a cerveja, ganha uma mulher “loirinha, de biquíni, com piercing no umbigo”, o estereótipo da adolescente feminina tão cobiçada pelos rapazes. Faz alguns meses que um episódio relacionado à ascendência devastadora da propaganda sobre as mentalidades jovens me impressionou. Por ocasião da campanha da Schincariol, cujo slogan era “Experimenta”, tive oportunidade de testemunhar um grupo de meninas indo a um baile à fantasia fantasiadas de garrafa de cerveja. A parte de trás do short que usavam estampava, em letras grandes: “Experimenta”! Diante disso, para que serve a frase inócua – “aprecie com moderação” – que “regulamenta” os tais anúncios de cerveja? Que regulamentação é essa? Por que não proíbem de vez os anúncios como proibiram os de cigarro? Existe um mal pior entre o fumo e o álcool?Eis aí a cilada em que vai caindo ingenuamente toda uma geração. Uma das técnicas da lavagem cerebral praticada pelos publicitários no caso dos anúncios de cerveja pode ser chamada de “enquadramento coercivo”, como definem alguns estudiosos dos processos de manipulação empregados pela propaganda. “O enquadramento coercivo”, afirma Philippe Breton, citando Robert-Vincent Joule e Jean-Léon Beauvois, “é uma das formas mais manipulatórias de intervenção na mensagem destinada a convencer. Resulta, verdadeiramente, de uma estratégia destinada a enganar o receptor e que, como não é instantânea – pois funciona em dois tempos –, implica da parte do manipulador uma clara consciência daquilo que faz. Tecnicamente, esse tipo de enquadramento consiste em obter que o auditório adira a uma opinião ou adote um comportamento que não levanta nenhum problema de aceitação (no caso do anúncio de cerveja, conseguir uma mulher maravilhosa). Mas a aceitação dessa opinião ou desse comportamento serve depois de ponto de apoio eficaz para obter anuência a uma segunda opinião – aquela que, na realidade, interessa ao manipulador (no caso do anúncio, fazer com que o receptor da mensagem confunda a aquisição da mulher com o consumo de cerveja). Desse modo, a primeira aquiescência, sem conseqüências, acarreta como que automaticamente – mas, de fato, com uma fortíssima violência subjacente – a segunda, muito mais comprometedora. (...) O enquadramento coercivo ‘é uma tecnologia comportamental’ em que o manipulador efetua um ‘rodeio’ destinado a ‘obter, antes de tudo, um comportamento ou uma decisão que para ele tem apenas interesse como preparação para outras. Essa manipulação não pode, pois, deixar de ser deliberada’. Consiste, portanto, em criar uma situação em que uma primeira decisão leva o indivíduo a cair numa cilada (embriagar-se).”A propaganda só não diz aquilo que é verdadeiro no que se refere ao consumo da cerveja: que ela faz crescer um aleijão de barriga nos homens, além de provocar outros males gravíssimos – desgasta o organismo, altera a mente; compromete a disposição para o trabalho, gera desemprego, violência, acidentes de trânsito; causa todo tipo de doença, lesões no estômago, esôfago, pâncreas, fígado, entre outros. Para não falar da desgraceira que o consumo de álcool estimulado pela indústria da publicidade instaura em milhares de famílias, transformando em alcoólatras – ou “alcoolistas”, como se diz hoje – principalmente pais de família das classes baixas.
Não é à toa que a carreira de publicidade e propaganda é das mais disputadas nos vestibulares do país: é uma das mais bem pagas, os publicitários ganham da mídia tufos de dinheiro para inventar os comerciais que envenenam jovens e pais de família, gente que vive num mundo de ilusão e distorção de valores. A mídia paga alto para os publicitários terem menos conflito moral, menos vergonha dessa profissão que não deixa de estar a serviço da consciente ou deliberada degradação dos valores humanos.
(FELINTO, Marilene)

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