março 31, 2004

Entrevista a António Lobo Antunes, por Alexandra Lucas Coelho

30 de Janeiro de 2000, revista Pública, suplemento do jornal Público

(...)
- Quem são os grandes romancistas que temos ?
- Não temos romancistas, mas temos poetas.
- Não temos nenhum romancista?
- Temos poucos. Normalmente os prosadores novos que vou ler... aquilo é tudo tão mau... Há uma rapariga que me parece ter muito talento, Ana Teresa Pereira, há um rapaz de que vi o manuscrito, não sei se está publicado, Alexandre Andrade, que me parece muito bom, há uma rapariga, Margarida Vale de Gato que me parece ter muito talento... Mas de uma forma geral desiludo-me.
- A Agustina diz que temos vários prosadores e não temos um único poeta no século XX.
- Isso é uma das boutades dela.
- Quem são os poetas de que gosta?
- Tantos... O Pessoa está muito sobrevalorizado... O Alberto Caeiro acho muito fraco, algum Ricardo Reis, algum Álvaro de Campos eu gosto, a prosa acho miserável.
- “O Livro do Desassossego”?
- Acho uma porcaria. Vamos falar de poetas vivos: o Cesariny é um grande poeta, o Eugénio é um grande poeta...
- A Sofia, o Herberto?
[encolhe os ombros, franze a cara]. (...)


post enviado pelo Luís

março 25, 2004

Espaço de discussão, permuta e enriquecimento


No seguimento dos comentários do Luís a um dos útimos posts informamos o seguinte:
estamos inteiramente de acordo que este espaço deva ser de discussão, permuta e enriquecimento e não apenas de divulgação. Para isso tentamos contribuir com textos nossos, vamos atrás dos links deixados pela Ana nas suas crónicas, mas a maior parte das vezes limitamo-nos apenas a copiar as mesmas crónicas das páginas do jornal Público. Talvez por falta de tempo, talvez por sermos só dois. A comunidade de pessoas que se referiu a este blog, que lê a Ana, que gosta do que ela escreve, é muito maior, sabemos disso. A todas as pessoas que nos contactam sugerimos sempre que participem, que este blog deve ser feito da opinião de todos. Não é um blog feito pela autora (como tantos outros autores fazem...) mas para a autora.
Sendo assim criámos um e-mail para que possam enviar os textos que entenderem (criticas, opiniões, sugestões, links, etc.) e serem publicados aqui. Uma forma fácil e eficaz de interacção. Pensamos que um forum se tornaria mais pesado e complicado.

Escrevam para orostodedeus

Discutam, permutem, enriqueçam-nos!

março 19, 2004

Tonino Guerra




Ana, seria esta a disposição dos livros?


post enviado por Inês Barros

março 08, 2004

Os Homens, Os Animais e Os Anjos


Jornal Público, 06 de Março de 2004
Ana Teresa Pereira

"Os Primeiros Encontros" de Arseni Tarkovski começa assim: "Cada momento passado juntos / Era uma celebração, uma Epifania, / Nós os dois sozinhos no mundo. / Tu, tão audaz, mais leve que uma asa, / Descias numa vertigem a escada / A dois e dois, arrastando-me / Através de húmidos lilases, aos teus domínios / Do outro lado, passando o espelho." Este é um dos poemas que podemos ouvir no filme "Nostalghia" de Andrei Tarkovski, na voz do poeta, seu pai. Em português encontra-se no livro "8 Ícones" numa tradução de Paulo da Costa Domingos (Assírio & Alvim). Lembro-me de versos soltos do poeta: "e em Junho havia tantos lilases / que o brilho do mundo se fez turquesa", "como se abre um caderno, eu estudei a erva / a erva tornava-se flauta para cantar", "por ti, que me foste tirada, que de noite / choravas por mim, num simples / vestido negro", "procuro na alba os teus ténues traços / Lembro-me de tudo. Vingar-me-ei.", "a morte imprime o seu selo sobre todas as coisas"... E de imagens do filme: Gorchakov encosta-se a um espelho, as duas gotas de azeite transformam-se numa só, os pássaros saem do ventre de Nossa Senhora do Parto, o escritor olha-se ao espelho e vê o rosto do louco, Domenico chama pelo cão porque tem medo de estar sozinho, Gorchakov atravessa a piscina com uma vela acesa na mão. As palavras de Domenico junto à piscina: "nunca te esqueças do que Ele disse a Santa Catarina, tu és aquela que não é, Eu sou Aquele que é".

Há uma poesia, um cinema, uma pintura que são um itinerário místico. Tonino Guerra trabalhou com Tarkovski no argumento de "Nostalghia". No seu livro "O Mel", o Canto Dezasseis remete para o filme, há um homem que tenta atravessar a água com uma vela acesa na mão. Disponho os livros dele ao acaso sobre a mesa e os desenhos das capas (que me lembram um pouco os de Paul Klee) transformam-se num desenho só, sempre diferente, sempre misterioso, igrejas, peixes, pássaros. No argumento de "Nostalghia" havia um anjo, no filme só ficou o movimento da asa, e uma pena que esvoaça. Em "Histórias para uma Noite de Calmaria" um dos contos mais enigmáticos chama-se "Dois estranhos de olhos claros", começa em Veneza, e penso que ainda não terminou. No livro de Mário Rui de Oliveira, "Bairro Judaico", há um anjo na capa, um anjo das ruínas de Erculano, em Nápoles. Um anjo esquecido, talvez.

Mário Rui de Oliveira nasceu em Braga no mês de Abril de 1973. Vive em Roma, e é o tradutor de "Histórias para Uma Noite de Calmaria" e "O Mel" de Tonino Guerra (Assírio & Alvim). (Fico à espera das traduções de "Il Vecchio com un Piede in Oriente", "Il Viaggio", "La Capanna", "L'Orto d'Eliseo", "I Cento Ucelli".) O seu primeiro livro, "O vento da noite" (Assírio & Alvim), tinha um prefácio de Eugénio de Andrade, que falava da presença de Deus naqueles textos: "Esta vizinhança de Deus sente-se logo ao abrir o livro, porque desde os sinos do primeiro poema somos convocados a entrar num espaço como que sagrado, pois mesmo sem tocarem, os pássaros cantam dentro deles". É um espaço sagrado. Como no texto que se chama "Ícone": "Que suplicam de nós os olhos onde descansa o esplendor? Que silenciosos anjos guiam rebanhos em seus cabelos? Por engano floresce, tão solitário, o matinal afago? A beleza deste rosto reclama a maior consolação. Um só lençol envolve o mundo, de safiras e de sangue." Um espaço sagrado onde alguém anda de autocarro, de olhos cerrados, até se perder. Ou segura uma chávena de café, "ninguém como ele conhece os segredos que se agarram a um casual café". Ou lê Clarice Lispector e Jean Genet. Ou olha para uma escultura de Alberto Giacometti e para telas de Rothko. "Mark Rothko": "Mede a tapeçaria como quem entra no santuário e quebra o espelho de uma ausência. Suas cores são um milagre. De púrpura violácia, de púrpura escarlate, de púrpura carmesim. Assim o manto do seu encontro. Feito de romãs e sinos de oiro. Da matéria dos holocaustos."

O segundo livro chama-se "Bairro Judaico" e tem um anjo na capa, um anjo esquecido. É belo e terrível, como um anjo de Rilke. "Logo atrás de ti": "Esta dor não passa quando adormeço / chora ao pé de mim / irremediável // alguém nos toca o ombro e / damos por nós mais sozinhos // o meu lugar na morte / é junto da janela / logo atrás de ti." Nestes poemas surgem as flores, as que nos comovem (as flores brandas de Março ou talvez ainda as frésias que procuramos pela cidade inteira) e as que não nos comovem (as que crescem fora da estação), os cães, os cavalos, as fotografias de Francesca Woodman (o seu corpo nu, as enguias e os limões, "on being an angel"), Louise Bourgeois (o seu rosto de mensageiro, o seu sonho de corpos e aranhas), uma canção dos The Smiths ("I never never want to go home / because I havent got one / I havent got one"), "Os Quatrocentos Golpes" de Truffaut, a paixão de Simone Weil (amar Deus sem consolação), a cerimónia de Cristina Campo, o desejo de San Juan de la Cruz, o Deus vivo, um ícone e a música de Pergolesi, um personagem de Tonino Guerra, rosas, árvores, insectos, pássaros, destroços, a morada em Paris de Giacometti, de Cézanne e de Van Gogh, as plantas que Laertes ofereceu a Ulisses, um bairro judaico, e "Jerusalém": "Também assim os versos / caem perto do que esquecemos e arrastam / a mil anos de distância / esta espécie de uivo / este grito de veludo escondido em nós / desde que os glaciares derreteram // nossas mãos / assemelham-se tanto a cidades destruídas // Jerusalém, meu coração".

Lembro-me de uma entrevista em que Tonino Guerra pedia a Tarkovski para lhe contar a última cena de "Stalker", como se ele fosse cego. E às vezes é tão difícil encontrar as palavras para falar de algo que existe com muita força. Como "Bairro Judaico", que pode facilmente tornar-se um dos livros da vida de alguém. No final de "Nostalghia", pouco antes de imolar-se pelo fogo (a paixão pelo fogo encontra-se em Tarkovski, em Giacometti, em Tonino Guerra, em Mário Rui de Oliveira), Domenico diz: "ouve, é a voz da natureza, é a voz de Deus". E por algum motivo me lembro dessas palavras quando folheio este livro.

"Bairro Judaico", Mário Rui de Oliveira, Assírio & Alvim

A Quatro Mãos-Sábado, 06 de Março de 2004

O Santuário dos Pensamentos
Ana Teresa Pereira

No livro "Il vecchio con un piede in Oriente", Tonino Guerra fala-nos de uma das suas viagens à Rússia, de um passeio com Paradjanov, à procura de igrejas abandonadas. De vez em quando surpreendiam-se ao encontrar velas acesas nos muros em ruínas. Entraram numa igreja escura, que tinha nas paredes frescos mais ou menos destruídos pela humidade. Um grande S. Jorge, montado num cavalo branco, dava o golpe mortal no dragão. Na escuridão imóvel da igreja algo aconteceu. Por uma fissura da parede entrava um pouco de luz branca. E nessa luz um ramo de nogueira foi agitado pelo vento. As sombras deslocaram-se, o dragão contorceu-se de dor, e Paradjanov começou a dançar porque o movimento também o contagiava. E de repente parou, dominado por um pensamento, que disse em voz alta: "a morte é uma dança imóvel". O mesmo Paradjanov que numa cama de hospital explicou a Tonino como através da morte de uma cor ia descrever no seu filme a morte de uma mulher; o que contava que as camponesas da Ucrânia bordavam ao luar as suas camisas delicadas; e que ficou com os olhos cheios de lágrimas quando Tonino afirmou perante um grupo de cineastas que o filme "A lenda da fortaleza de Suram" era uma obra-prima. É nesse livro que está "Il cacciatore cieco", um dos contos mais belos que já li, e a história daquele conde que se enamorou de uma princesa representada num fresco do seu castelo, e por causa desse amor encontrou a morte.

Tenho aqui a fotografia da capela dedicada a Tarkovski, feita por Tonino; lembro-me de "Il libro delle chiese abbandonate" (e como é bela a capa do livro, um pastel do autor, como são belas todas as capas destes livros). Há uma pequena igreja abandonada, sem tecto, dentro da qual cresce uma cerejeira. Em Abril surgem as flores, depois os frutos, que são comidos pelos melros e pelos pássaros selvagens. Quando alguém entra naquele espaço e reza, e uma das folhas cai, a graça é concedida. Mas Andrei Tarkovski, que tinha um pedido muito grande a fazer, passou ali em Novembro, e as folhas já tinham caído todas. Tarkovski e Tonino Guerra trabalharam juntos no argumento de "Nostalghia". Há poucos meses Tonino disse-me para rever o filme, porque tinha a ver com a nossa história, e com o fresco que ele encontrou num mosteiro da Rússia, o fresco no qual os anjos desdobravam os céus no princípio dos tempos.

Nunca conheci outro escritor que dedicasse um livro a um rio. "Il Viaggio" é um longo e belo poema, há momentos, gestos, cheiros que me são familiares, o mar escondido pela neblina, o homem que segura longamente um seixo na mão, o cheiro da lúcia-lima; há também uma igreja abandonada, onde ardem restos de velas, e um velho padre põe comida e água nos nichos das paredes, para que os pássaros se reúnam ali ao anoitecer. E sempre aquele olhar, e sempre aquele amor, pelas pessoas, as pedras, os sinos, os animais, os pássaros, a água, os anjos; há pessoas que se enamoram da fachada de uma igreja (e pode ser um amor feliz), de uma cerejeira, de um cão azul, dos quadros de um pintor pouco conhecido, dos filmes de um cineasta que passou muito tempo na prisão, dos filmes de um cineasta que morreu antes do pai, de um homem que ao fim de setenta anos ainda sente o mesmo prazer ao afundar as mãos na terra para tirar as batatas.

E depois lembro-me de como ele começou por ser uma personagem num dos meus livros, e de quando falámos um com o outro, e de como entrei nos seus sonhos (nos seus pesadelos), e do fresco que ele viu num velho mosteiro da Rússia, e daquela noite de tempestade em que ele parecia falar uma outra língua. E nada do que nós escrevemos me parece tão estranho como a nossa história.