Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Os arquétipos em "O Senhor dos Anéis" (nova edição)


por Arash Javanbakht MD 
Departamento da Vice-presidente para Pesquisa,
Universidade de Mashhad de Ciências Médicas, Irã.
E-mail: Javanbakht@mums.ac.ir, arjavanbakht@yahoo.com, 
(Artigo obtido no site http://www.cgjungpage.org/
traduzido e reproduzido com a autorização do autor
por Charles Alberto Resende - autor deste blog)
  
INTRODUÇÃO
Pode-se dizer que o primeiro cientista a chamar a atenção para o tema dos arquétipos no campo da ciência da psicologia foi Carl Gustav Jung. Ele empreendeu estudos muito abrangentes sobre os arquétipos não só em assuntos religiosos e mitológicos, como também nos sonhos. Os arquétipos são elementos permanentes e muito importantes da psique humana que podem ser encontrados em todas as nações, civilizações, e até mesmo em sociedades tribais primitivas de todos os tempos. De acordo com Jung, os arquétipos “não se difundem por toda parte mediante a simples tradição, linguagem e migração, mas ressurgem espontaneamente em qualquer tempo e lugar, sem a influência de uma transmissão externa” (JUNG, 2000, p. 90). Um arquétipo é um modelo universal ou predisposição a evidenciar certos pensamentos ou sentimentos (HYNAN, 2003), uma tendência não aprendida para experimentar coisas de um certo modo (BOEREE, 1997). Jung assinala que “‘Arquétipo’ é uma perífrase explicativa do eidoz platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. [...] O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta” (JUNG, 2000, p. 16-17). O arquétipo não é uma imagem, mas particularmente uma tendência para formar uma imagem de caráter típico; em outras palavras, um modelo mental tornado visível (GOODMAN and KEMENY in SENGE et al., 1994). Acredita-se que um arquétipo evoque emoções poderosas no leitor ou em espectadores porque desperta uma imagem primordial da memória inconsciente. É por isso que mitos, lendas, ou até mesmo filmes (como o Guerra nas Estrelas), baseados em arquétipos, podem atrair e excitar a atenção e os sentimentos dos leitores ou da audiência de forma tão intensa. Jung presumiu que é a parte inconsciente da psique humana que cria o enredo de um sonho, de uma lenda ou de um mito como uma representação dos elementos psíquicos e do processo de crescimento. De acordo com suas ideias, a psique humana expressa seu processo de crescimento e evolução de forma visível e compreensível para a mente consciente através de mitos e lendas.
Uma narrativa muito interessante, que é altamente arquetípica e simbólica, é a saga de O Senhor dos Anéis, objeto deste artigo. Através deste texto tentarei discutir muito brevemente o simbolismo dos quatro principais arquétipos – o Si-mesmo, o Herói, a Anima e a Sombra, como elementos da psique.

 O SI-MESMO (Gandalf, Elrond e Theoden)

Gandalf, o Mago: A história começa com a chegada de "Gandalf, o cinzento" como um símbolo do Si-mesmo que leva uma mensagem e diz a verdade sobre o anel. Da mesma maneira que em muitos outros mitos, este é o Si-mesmo que aparece no princípio por um curto espaço de tempo, instiga a jornada e convoca os Heróis para a busca. Então ele sai da presença dos Heróis e vai para o calabouço de Saruman, que seria um símbolo do Si-mesmo sombrio.
Então ele volta e conduz a Sociedade pela difícil expedição, guiando-a ao portão das minas de Moria. Aqui se percebe que ele possui um cristal em seu bastão que ilumina a escuridão de Moria, símbolo da abençoada luz do Si-mesmo narrada nas lendas.
Um episódio muito importante da saga com relação a Gandalf é a sua confrontação com o monstro Balrog, na escuridão das minas de Moria. É muito interessante perceber que o seu medo e resistência na escolha do caminho de viagem pelas minas representa o medo da psique inteira em se deparar com as dificuldades da viagem interna, pois o caminho do crescimento psíquico e da evolução passa por dores e sofrimento, e produz muitos perigos e infortúnios que envolvem a totalidade da psique. O Jung, em seu livro Psicologia e Alquimia, lembra que este medo instintivo da viagem deve-se ao perigo de desintegração que pode se abater sobre a totalidade da psique (JUNG, 1990c, p. 347). Ele cita um exemplo do Rosarium Philosophorum, que diz: “‘Nonnuli perierunt in opere nostro’ (Vários pereceram durante nossa obra)” (JUNG, 1990c, p. 159). Também há outras notas alquímicas sobre a dificuldade implacável do caminho. Porém, Gandalf precisa finalmente aceitar o seu destino.
Na escuridão de Moria, através das Sombras do inconsciente, a Sociedade encontra o monstro ígneo e tenebroso: Balrog. Essa fase representa uma parte da viagem psíquica pelas profundas trevas do inconsciente, assim como a descida de Jesus ao mundo dos mortos (o período de três dias antes da ressurreição – N.T.), Jonas no ventre do peixe, José no poço, e a viagem noturna de Hércules pelo mar escuro (BÍBLIA, 1985, e ALCORÃO, 1994). Aqui Gandalf tem que lutar com a criatura e acaba caindo no abismo, uma jornada pelo Hades ou inferno por aqueles que carecem de percorrer o caminho do desenvolvimento interior. É por intermédio desta queda profunda na escuridão do inconsciente, ao lutar com o fogo de Balrog, que Gandalf se purifica e evolui, transformando-se no “Gandalf, o Branco”. Isto remete aos comentários dos alquimistas antigos sobre a natureza purificadora e limpante do fogo (é necessário atravessar o fogo para ser purificado), assim como da descida de Jesus ao inferno (ou mundo dos mortos, isto é, Hades – N.T.) mencionada pelos Apóstolos. O Rei David escreveu: "pois é grande o teu amor para comigo: tiraste-me das profundezas do Xeol" (BÍBLIA, 1985, Salmos 83:13). Também está escrito no Santo Alcorão dos muçulmanos que “não haverá nenhum de vós que não tenha que passar por ele [inferno]. Este é um decreto que deve ser cumprido”. (ALCORÃO, 1994). Finalmente Gandalf derrota Balrog e eles caem nas pedras cobertas por neve branca (no filme) como outro sinal da vitória das forças da luz.
Depois de sua purificação e evolução, Gandalf aparece aos heróis Legolas, Aragorn e Gimli, analisados à frente, na floresta escura e desconhecida de Fangorn (ressurreição do Cristo, saída de Jonas da barriga do peixe). É um evento comum nos mitos o Si-mesmo aparecer em lugares como florestas ou litoral, símbolos do inconsciente. Jung alude a uma história do Alcorão em que o Moisés conheceu um homem sábio de Deus no litoral: “Moisés disse ao seu servo: eu não quero parar de caminhar, mesmo que tenha de viajar por oitenta anos até chegar ao lugar de encontro dos dois mares. Depois de alcançarem esse lugar, esqueceram o peixe que seguiu seu caminho por um canal até o mar. (...) E retrocederam pelo mesmo caminho que haviam seguido. Nele encontraram um dos nossos servos que havíamos dotado de graça e sabedoria” (ALCORÃO, 1994, v. 2200). Quando os Heróis arriscam-se, entrando na escuridão do inconsciente para resgatar as outras partes da psique – os Hobbits perdidos, eles se deparam com o Si-mesmo.
Outra tarefa de Gandalf é curar o rei doente de Edoras, Theoden, que será abordado como uma parte oculta do Si-mesmo ainda contaminada pela Sombra, envenenada por Sauron.
Um episódio muito importante em que Gandalf, o Branco, aparece como a parte principal do Si-mesmo, é quando as forças escuras, na batalha de Rohan, estão derrotando as forças da Luz. Como diz Jung, o Si-mesmo aparece e socorre a totalidade da psique nas dificuldades muito intensas, desfazendo situações psíquicas –  a luz aparece quando está muito escuro! “Et invenitur in omni loco et in quolibet tempore et apud omnem rem, cum inquistitio aggravat inquirentem” – Para desvendar todas as coisas, não importa em que ocasião, se perto ou longe, o uso da luz sempre pesará na pesquisa (N.T.) (Art, Aurif, II, p. 243).
Um ponto notável sobre o aparecimento de Gandalf naquela situação de dissolução da guerra é que ele vem atrás das forças da luz (Aragorn, Theoden, Legolas...) decidido a sair e a lutar até a morte: “Para a morte e para a glória!” Isso significa que, nas situações em que há suspensão do crescimento psíquico, o Si-mesmo aparece e ajuda quando não houver nenhuma outra esperança, a consciência (o Herói) correr risco de vida e se defrontar diretamente com a escuridão e o perigo. Evidencia a necessidade de uma decisão consciente ao se enfrentar uma dificuldade como uma condição para o Si-mesmo aparecer.
 Elrond, rei dos Elfos,: É um outro símbolo do Self, de natureza mágica (Elfo). Está mais relacionado a Arwen (discutida posteriormente) como símbolo da Anima, particularmente, do que com a consciência. Este fato faz o seu papel, como outro aspecto do Si-mesmo, diferente do papel de Gandalf, que tem mais contato com a parte consciente (os Heróis).
 Theoden, rei de Edoras,: Não é fácil retratá-lo como um símbolo do Si-mesmo, mas existem sinais que o indicam. Ele é o rei doente de Rohan, cuja mente estava perturbada e envenenada por Saruman, uma força da escuridão. Está na posição intermediária entre dois símbolos semelhantes: é um rei que teve um bom relacionamento pessoal com o Si-mesmo iluminado (Gandalf), porém sua mente foi encantada por Saruman, o Feiticeiro (que será comentado adiante como o Si-mesmo sombrio). Isto é, Theoden é um símbolo de uma parte encoberta do Si-mesmo que ainda está revestida pela Sombra. Representa o rei doente das histórias dos alquimistas, ou o príncipe entorpecido na escuridão do fundo do mar que pede ajuda, dizendo: “Aquele que me libertar das águas e me transferir para um estado seco, eu o cumularei de riquezas perpétuas” (JUNG, 1990c, p. 340). É como se Theoden fosse uma parte ainda obscura do Si-mesmo que será libertada dos efeitos lúgubres pela parte luminosa do Si-mesmo (Gandalf) com ajuda da consciência (Aragorn e outros).
Podemos encontrar outros símbolos do Si-mesmo na aventura, tais como a espada mágica dada a Frodo por Bilbo, que alarma Frodo do perigo por sua luz azul; ou a luz de “Earendil”, oferecida a Frodo por Galadriel, a rainha dos Elfos, com os dizeres: “Que esta possa ser uma luz para você nos lugares escuros, quando todas as outras luzes se apagarem”, que é uma definição exata para o Si-mesmo! Outro símbolo é o cristal que Gandalf porta em seu bastão para iluminar a escuridão de Moria. Como se sabe, é muito comum o Si-mesmo ser representado como luzes, pedras preciosas, bolas de cristal e espadas mágicas.
Outra aparição do Si-mesmo é quando Arwen, a princesa dos Elfos, segurando Frodo ferido, foge dos Cavaleiros Negros, que querem capturá-lo. Ela evoca um feitiço e o rio ataca os Cavaleiros Negros.
Finalmente,  o diabólico Saruman, o feiticeiro servo de Sauron, e sua bola de cristal "Palantir," exprimem símbolos da escuridão e do Si-mesmo sombrio, opostos ao Si-mesmo iluminado, analisados adiante.

O HERÓI (Frodo, Aragorn e Legolas)
Em quase todas as lendas, o papel do Herói é muito importante e necessário para superar as forças da escuridão (Sombra) com a orientação e o auxílio do Si-mesmo, assim como pela assistência e ajuda da Anima. Os heróis nesta narrativa personificam a parte consciente da psique.
Frodo Baggins: A tarefa de Frodo como o herói portador do anel é muito complexa. Ele não é tão poderoso e glorioso quanto os heróis comuns de outras sagas, mas como Galadriel, a rainha dos Elfos, diz: "Até mesmo a menor das pessoas pode mudar o curso do futuro". As fraquezas de Frodo o fazem muito semelhante aos autênticos heróis na psicologia (a consciência).
Frodo é um Hobbit e os Hobbits estão em um nível inferior em relação aos humanos e aos Elfos (outras partes da consciência), já que são mais medrosos e mais pacíficos, além de possuírem menos poder. São mais baixos que os outros, o que os coloca em contato mais íntimo com a terra (símbolo do inconsciente). Além disso, possuem orelhas pontudas, o que os coloca à margem do inconsciente. Em comparação com os homens, nunca usam sapatos e são mais baixos: portanto, são mais vinculados às partes mais primitivas da psique.
 Aragorn: É humano e muito mais semelhante aos heróis lendários do que Frodo. Mais forte e valente, está presente em todas as batalhas, indicando talvez a necessidade da ação da psique consciente em todas as lutas com a Sombra. O amor dele por Arwen, a princesa dos Elfos (como Anima), o faz ainda mais comparável a um herói típico. Humano, não possui poderes mágicos ou características dos outros companheiros, que são relacionados aos conteúdos do inconsciente; está mais ligado à realidade e possui faculdades mais reais. Tudo isso leva a supô-lo como a parte consciente mais pura da psique em contraste com Frodo e Legolas, que se encontram na fronteira entre a consciência e o inconsciente. Considerando-se que esteja completamente consciente, ele é o único que não se ajoelha perante Gandalf, o Branco, na floresta de Fangorn, quando ele, Gimli, o anão, e Legolas encontram Gandalf, o Branco, pela primeira vez.
 Legolas, o Elfo: Embora seja um Elfo, está mais ligado aos níveis superiores da consciência, ainda que na fronteira com o inconsciente, em comparação com Frodo, que já está mais conectado aos níveis inferiores e partes mais primitivas. Ambos estão conscientes, porém não tanto quanto Aragorn.
A visão muito aguda de Legolas e seus atributos élficos o colocam em uma situação intermediária entre a consciência de Aragorn e o Si-mesmo (Gandalf), como uma figura elevada e iluminada do inconsciente. Por outro lado, Frodo situa-se entre a consciência (Aragorn) e a Sombra, as partes mais instintivas da psique. Legolas nunca falha, mas Frodo algumas vezes quase rende-se à Sombra.
Estes três heróis retratam atributos abrangentes do Herói pelas suas conexões com a escuridão (Sombra) e a luz (Si-mesmo).
Gimli, o anão, não será analisado neste texto como outro membro da Sociedade, mas pode ser classificado em um nível inferior a Frodo. Os Dwarves são grandes mineiros que trabalham em minas sob o solo (inconsciente). Visto que os Dwarves são anões, que vivem e trabalham em minas subterrâneas, poderiam estar relacionados aos Cabiros do “Fausto”, de Goethe, que despertaram o interesse de Jung (1990c, p. 167).

ANIMA (Erwen e Galadriel)
A Anima está presente em quase todas as lendas e representa a identidade inconsciente da psique do homem. A Anima é o conjunto de traços de caráter feminino ocultos dentro do inconsciente do homem e supõe-se que livrar-se da escuridão da inconsciência seja uma tarefa do Herói consciente no processo de individuação. A Anima também ajuda e salva o Herói de muitas dificuldades, como vemos quando Arwen salva Frodo dos Cavaleiros Negros.
Serão discutidos aqui dois símbolos da Anima na história: Arwen e Galadriel, Elfos que representam o caráter inconsciente da Anima.
Arwen: Elfo bonita, apaixonada por Aragorn (o Herói). Este amor é o principal fundamento de quase todas as lendas e mitos, e representa a tendência dos dois lados da personalidade do homem de se unir, como uma afinidade instintiva de identificações conscientes e inconscientes.
Arwen também participa de uma parte muito difícil da história quando salva a porção mais inferior do Herói (Frodo) dos Cavaleiros Negros (Sombra) com a ajuda do Si-mesmo. Este aparece como a água do rio na forma de cavalos brancos que atacam os Cavaleiros Negros. Ela evoca e lança um feitiço, enquanto Aragorn (o Herói totalmente consciente) nada pôde fazer. Em outra ocasião, Elrond, o Elfo, cura Frodo.
Arwen é um Elfo e suas características misteriosas, sobrenaturais e poderes simbolizam sua conexão com o inconsciente e o Si-mesmo. Ela é um símbolo de Anima desenvolvido e purificado dos efeitos da Sombra.
Galadriel: Elfo avó de Arwen, está vinculada às camadas mais profundas do inconsciente, e talvez até ao chamado inconsciente coletivo por Jung.
Ostenta características especiais e poderes, como a habilidade de ler os pensamentos, e também possui um espelho que mostra o futuro e o passado. Estas qualidades a fazem, como Anima, mais voltada ao Si-mesmo do que Arwen.
Embora seja desenvolvida e associada ao Si-mesmo, ela ainda tem que lutar e resistir à Sombra na cena em que sente uma forte atração pelo diabólico anel na mão de Frodo; uma prova em que ela passa.

A SOMBRA (Sauron, Nazguls e Saruman)
Existem muitas criaturas do lado tenebroso da aventura. Algumas pertencem completamente ao grupo da Sombra, como Sauron e os Orcs, e algumas pertencem a outros arquétipos que são contaminados e corrompidos pela Sombra.
 Sauron: Corresponde à parte mais ínfima da Sombra; é o próprio Satanás. Considerando que Sauron pertence às partes mais abissais da Sombra inconsciente, é mais vago e desconhecido. Sauron rege todas as forças do lado escuro. Porém, desde que se situa nas profundezas do inconsciente, ele não tem nenhuma familiaridade com a consciência, e luta com os Heróis através de suas tropas, que já se encontram nas camadas mais superficiais da Sombra. Representa a mais intensa e diabólica ambição na história, que governa os outros elementos sombrios atuantes mais em contato e interação com a consciência.
Visto que constitui a parte mais abissal da Sombra (é preferível chamá-la de Sombra coletiva, o Satanás da religião e da mitologia), os aspectos conscientes (Aragorn, Frodo...) têm menos contato direto com ele no princípio e no meio da aventura. Antes de enfrentar Sauron, a consciência tem de resolver seus conflitos com as camadas mais superficiais da Sombra, mais acessíveis ao Herói (consciência), como os Orcs, a serpente que guarda o portão de Moria, etc.
Um aspecto muito importante de Sauron é o seu olho que vê quase tudo e todos os lugares, cada parte das profundezas sombrias da psique. Isto lembra um verso do Santo Alcorão que diz: “Ó filhos de Adão, não deixem que Satanás vos seduza [...] Ele e seus seguidores os espreitam, de onde não os vedes” (ALCORÃO, v. 981). Como Satanás, Sauron não pode obrigá-lo pela força, mas pode seduzi-lo e prejudicá-lo! “Se bem que não tivesse autoridade alguma sobre eles. Fizemos isto para certificar-Nos de quem, dentre eles, acreditava na outra vida e quem dela duvidava. Em verdade, teu Senhor é Guardião de tudo” (ALCORÃO, v. 3627).
Os Nove Espectros do Anel: Sua posição parece situar-se no nível sombrio mais profundo, logo após Sauron. Estes “Cavaleiros Negros”, também chamados Nazguls, usam togas pretas, outro indício da Sombra inconsciente, e são invisíveis, perceptíveis apenas por causa da roupa. Pelo fato de serem invisíveis, é possível que se achem mais inconscientes que os Orcs ou outros seres sombrios.
 Os Nazguls são os soldados pessoais de Sauron e situam-se no segundo nível, após ele. Montam cavalos negros ou criaturas aladas, semelhantes a dragões, e não caminham a pé. Isso revela a sua maior identidade com o sobrenatural (inconsciente) e com o poder.
Situam-se no limite entre o mundo material e o mundo imaterial sobrenatural. Parecem, por isso, situar-se na fronteira da Sombra inconsciente coletiva e da Sombra pessoal.
Os Nazguls têm olfato apurado e visão extremamente fraca. Isso representa sua associação com os elementos mais primitivos da psique.
 Saruman: É o feiticeiro branco corrompido pelas trevas. Como mago, teria que pertencer à Luz, mas é completamente devotado a Sauron. Isso torna sua figura um tanto mais complexa. Esta contradição leva à conclusão de que ele represente um Si-mesmo absolutamente sombrio.
Previamente foi indicada a situação de Theoden, o rei de Edoras, cuja mente foi enfeitiçada pelo lado escuro, encoberto e doente do Si-mesmo, da qual precisava se livrar. Saruman também foi corrompido pelas trevas, mas sua situação não teve retorno. Constitui um Si-mesmo inteiramente sinistro, sua outra face. O aspecto destrutivo do Si-mesmo é discutido por Jung (2001, p. 216).

A "Guardiã", Balrog, Orcs e Huruk-Hai
 Guardiã na Água: Esta serpente vive sob a água junto ao portão de Moria, onde a perigosa viagem pelas minas de Moria começa. O seu nome – "A Guardiã" – lembra mais uma vez daquele verso do Alcorão sobre Satanás. Embora faça parte da Sombra, sua existência é indispensável ao processo de crescimento evolutivo, porque quando a Sociedade percebe os perigos que a aguarda em Moria, ela decide retornar e parar o processo de crescimento. No entanto, a serpente guardiã bloqueia o caminho de volta, fazendo-a escapar para dentro de Moria, avançando na aventura inevitável. Está oculta nas águas do inconsciente e os heróis não devem despertar este nível mais superficial da Sombra agitando a água, pois seu despertar pode resultar em alcoolismo ou atividade sexual extrema da pessoa.
É interessante que esta serpente captura justamente Frodo que – como eu mencionei antes – é mais conectado às mais baixas e primitivas camadas da consciência, ao contrário de Aragorn e Legolas.
Balrog: Já falei sobre esta provação do Si-mesmo anteriormente. É significativo que esta criatura não seja capaz de falar (é uma das raras figuras sombrias que não fala). Essa condição de mudez insere Balrog nas camadas mais primitivas e básicas do inconsciente.
Orcs e Uruk-Hai: São os soldados representantes da Sombra. Estas criaturas entram em contato mais próximo com a parte consciente da psique (os Heróis) nas batalhas. Têm corpos físicos e são mais semelhantes aos homens e Elfos que os outros subtipos sombrios já discutidos, o que os classifica nos níveis superficiais da Sombra, no máximo em sua fronteira com a consciência. Eles até têm sangue como os humanos (que é preto e lembra o aspecto escuro do inconsciente). Constituem apetites e temores muito primitivos oriundos do mundo do inconsciente. Além disso, desde que são mais expostos à consciência e, por isso, mais conhecidos, compõem os elementos mais fracos da Sombra em relação ao poder dos Heróis. Um Herói pode matar um Orc ou um Uruk-Hai facilmente, mas o problema sobre estes instintos primitivos e medos é o grande número deles, contados aos milhares! É a sua abundância que torna a tarefa do Herói mais difícil.
Os Orcs, criações de Sauron, são mais fracos e também mais suscetíveis à Luz do Si-mesmo e da consciência, a qual os debilita.
Em comparação, os Uruk-Hai, criados por Saruman, são uma geração nova de Orcs, um resultado da parceria da Sombra (Sauron) com o Si-mesmo corrompido (Saruman). Esta amizade entre Sauron e Saruman, que propicia a geração dos Uruk-Hai, torna-os mais complexos e poderosos que os Orcs, e também resistentes à Luz!
A complexidade dos Uruk-Hai aumenta quando ouvimos Saruman dizer que são produzidos a partir de Elfos convertidos às trevas! Eles são Elfos torturados e decaídos conquistados nas batalhas com a Sombra e absorvidos por ela.
Finalmente, eles simbolizam a Sombra da escuridão (criados por Saruman, o Feiticeiro), superiores a quase todas as partes da psique, tais como o Si-mesmo, o Herói consciente (um dos Uruk-Hai mata Boromir, o Herói humano membro da Sociedade), e a Anima/Animus (Elfos degenerados transformados em demônios). A figura de Uruk-Hai pode representar o estado psicótico!
 Neste artigo os arquétipos psicológicos foram apresentados muito resumidamente, passo a passo, através da história de O Senhor dos Anéis. A presença destes arquétipos em quase todos os mitos deve-se a que eles, como elementos essenciais e principais da psique, refletem a sua interação e evolução na arte humana e em produtos mentais como histórias, mitos e filmes. A saga de O Senhor dos Anéis é uma história complexa e bem preparada onde se pode ver representados vários arquétipos humanos e seus graus de evolução psíquica. Uma característica especial dessa trama, comparada com muitas outras histórias mitológicas, é que Tolkien não ficou satisfeito com a criação de uma representação apenas para cada arquétipo. Pode-se encontrar seres distintos para as diferentes qualidades de cada arquétipo, o que a torna original. Também é possível se deparar com vários outros símbolos e aspectos de situações psíquicas e complexos ao longo da história.
Foram discutidos muito brevemente alguns dos arquétipos principais. Outros artigos e livros podem ser escritos sobre o simbolismo de outros arquétipos, complexos e estágios de evolução psíquica pelo processo de “atualização do Si-mesmo” ou individuação, na narrativa e no excelente filme de O Senhor dos Anéis. Várias questões devem ser levantadas com relação a um simbolismo mais detalhado: Sauron, Balrog, Saruman, Bilbo – outro Hobbit amigo de Frodo, Celebron – o Elfo, Elrond – o rei dos Elfos, Boromir – o humano membro da Sociedade que morre (seria ele o filho que é comido pelo rei pai nos livros alquímicos?), os Ents, e Gollum – a simpática criatura que caminha, ou melhor dizendo, rasteja, na fronteira entre a consciência e o inconsciente, assim como da Sombra e do Herói!
Os números também poderiam ser analisados: a quantidade dos membros da Sociedade, dos Cavaleiros Negros, dos reis, dos humanos, Elfos e Hobbits na Sociedade, etc.. Isso, sem dúvida, teria empolgado muito Jung.
 © Arash Javanbakht 2003.

REFERÊNCIAS NÃO CONSTANTES DA PÁGINA "REFERÊNCIAS"

ALCORÃO. Português. Alcorão. Tradução de Samir El Hayek. São Paulo: LCC Publicações Eletrônicas, 1994.
BOEREE, George. Introduction to C.G. Jung, Archetypes, 1997
Goodman and Kemeny in SENGE, Peter et al. The fifth discipline fieldbook: strategies and tools for building a learning organization. New York: Doubleday. (1994, p. 164)
HYNAN, Michael T. Course of Personality theories, Personality Theory 820.407 Se 001 Spring, 2003, Chapter 3, Jungian analysis, University of Wisconsin -Milwaukee.

Nenhum comentário: