terça-feira, 19 de junho de 2012

Resenha: Ilha das Flores



Ilha das Flores -1989
Direção: Jorge Furtado.
Roteiro: Jorge Furtado.
Categoria: Documentário

     Este documentário mostra o cotidiano de habitantes da Ilha das Flores: um lixão na cidade de Porto Alegre - RS.
      Vencedor de nove prêmios no Festival de Gramado (1989), ganhador do Urso de Prata do festival de Berlim (1991). O filme usa linguagem onde denotamos extrema ação, conceituação e abordagem cheia de referências cíclicas, mostrando a forma subumana que habitantes do lixão se encontravam.
     Quando em exibição livre, alguns expectadores sentem-se incomodados com o estilo da técnica narrativa e acabam por atribuir um caráter infantil a forma de comunicação deste curta. Não fosse uma tônica bem humorada que pontua e faz contraponto entre imagens e o texto narrativo em si, a aceitabilidade desta obra estaria comprometida. O que beneficia "Ilha das Flores" e o torna atrativo a vários públicos é a sua curta duração, trazendo o expectador rapidamente para o núcleo polêmico da discussão filosófico-social da humanidade. Ainda assim, o filme é cheio de lacunas, que deverão ser preenchidas com as devidas associações ontológicas, além da busca por solução para a problematização da conceituação de "Liberdade".
     Bem no início, o filme delimita o universo em que a narrativa transcorre. Quando a frase "Deus não existe." surge, temos certeza de uma abordagem crítica à religiosidade. Diria que não só existe uma margem aos questionamentos às Teogonias, mas uma ênfase aos aspectos políticos, econômicos e sociais que envolvem as personagens. isto se torna marcante quando, no decorrer da película, a exposição objetiva nos guia para a ciência das injustiças humanas geradas pela influência das várias esferas de atuação dos homens.
     Numa conferência em 11 de maio de 1996, Carls Sagan falou dos seus pensamentos sobre a histórica fotografia do Planeta Terra, obtida a partir da Voyager I, quando a sonda estava a 6,4 bilhões de quilômetros de distância: "Para mim, acentua a nossa responsabilidade para nos portarmos mais amavelmente uns para com os outros, e para protegermos e acarinharmos o ponto azul pálido, o único lar que tenhamos conhecido." [1]. Sagan tem a opinião de que a pequenez do homem não é suficiente para aplacar sua arrogância que acaba gerando situação de autodestruição da humanidade. E não haverá intervenção externa que possa nos salvar. Os homens é que precisam aceitar a condição de mantenedores da própria humanidade. 
     Com a determinação que circunscreve a ação, teremos a disposição a interpretação geográfica, moral, ética, econômica, política e até religiosa. Quando o filme nos mostra o lugar onde ocorre a história, temos linguagem moderna, dado seu aspecto científico: as coordenadas geográficas.Isto nos oferece noções de exatidão e precisão. Descrevendo os personagens envolvidos com pouca personalização, sempre apontando caráter humano mais generalistas. 
O que percebemos é o uso bastante recorrente da corporeidade, que se apoia na ideia física do existir, através da manifestação biológica dos seres. Tal recurso cartesiano imprime ao curta um aspecto mais formal. Uma vez revestido com esta defesa de modelo conceitual, ao final oferece-se como instrumento objetivo para futuras discussões em seu conteúdo e não em sua forma.
Obviamente o filme não se constitui essencialmente "universal" em seu conteúdo narrativo. Fato este que é compensado com a extrema ação de conceituar os elementos expostos. Isto possibilita tornar maior, o horizonte de audiência potencial, passível de ser afetado com a proposta do diretor. 
O que permeia "Ilha das Flores" é o tom irônico da ideia da superioridade humana. Isto fica muito evidente quando o texto insiste em nos informar que os aspectos principais que tornam os humanos distintos dos outros seres são as presenças do "telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor". Estes aspectos de diferenciação entre humanos e demais animais se encaixam na categoria Corporeidade e as derivações que se seguem, tangenciam as categorias de Alteridade, Transcendência e Subjetividade. 
Após a apresentação do cenário complexo e humanos simplificados, o expectador passa a receber explicações sobre os elementos que brotam com extrema velocidade. É importante ressaltar aqui que a estrutura do filme sugere que este expectador não seja humano. Um extraterrestre, talvez.
        A constante conceituação presente em todo o tempo nos ajuda a perceber o campo semântico empregado por Jorge Furtado, útil para as definições de "dinheiro" e "propriedade-dono".     
        A "bondade" que o dono dos porcos tem em permitir que cada grupo de humanos permaneça, por 300 segundos, dentro de seu terreno, para escolha de material de origem orgânica, surge porque seus porcos já tiveram vez naquela tarefa.
         A obtenção de bens está ligada a troca de valores, mais exatamente, dinheiro. Tal prática se tornou acessível com a liberação do lucro na Idade Moderna. Se o problema das mulheres e crianças da Ilha das Flores fosse somente a falta de dinheiro, isto as colocaria em pé de igualdade com os porcos, visto que eles também não possuem este bem. Lembremos, no entanto, que é a "falta de dono" que faz a diferença neste e em muitos outros casos.
          O "dono dos porcos" é o cuidador dos porcos. Ele provê abrigo e alimentos selecionados. Assim, os humanos, que não possuem dono, na verdade não possuem cuidador. É a ligação com a frase inicial: Deus não existe. Desta forma, sem alguém para prover abrigo e alimentos para os humanos da Ilha das Flores, estes se situam depois dos porcos, na hierarquia de prioridade de escolha de alimentos.Acabamos então por aceitar que, a diferenciação biológica que os humanos possuem não é capaz de lhes dar supremacia sobre os porcos do lixão.
       Quando o conflito está exposto, a linguagem do filme migra para aspectos mais subjetivos. A Liberdade aparece como um novo fator de diferenciação entre homens e demais seres.
Entendo por liberdade, a capacidade que os humanos tem de se descondicionar, em contracorrente aos instintos ou ao peso do modelo social. mas como esta liberdade individual permeia cada componente da humanidade, isto a invalida como diferencial interno. As tensões sociais surgem apoiadas na disputa pela Liberdade, sim. Mas tal alcance é expandido ou retraído conforme os elementos de suporte para cada pessoa. Tais elementos são manifestações de Poder.
 Ao final, o filme assume um caráter poético complementando o clima clássico e heróico do tema que ouvimos ainda na abertura: trecho da Ópera Il Guarany, de Carlos Gomes. Reafirmado no pensamento de Cecília Meireles, que é trecho do texto Romanceiro da Inconfidência: "Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!"




O bardo cantará cinco canções sobre este vídeo.

            
           

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