sábado, 13 de setembro de 2008

MONTEIRO, Benedicto. O Carro dos Milagres. - Conto O PRECIPÍCIO

O PRECIPÍCIO







Me alembro como se fosse hoje. Meu pai montava o Precipício e caminhava poucos metros à minha frente rumo ao Juquiri. Era um cavalo fogoso — o senhor pensa — garanhão cioso, preto, retinto, pelo lustroso, pescoço fino e pajurebas crinas que tinham a mesma dança da canarana batida pelo vento. Assim ele ia...


Meu pai só montava aquele cavalo pra evitar que ficasse folgado demais. Sempre ele dizia: cavalo folgado, cria maranha de jogador. Mas o Precipício como pai-dégua, era só mesmo pra reproduzir. Tinha que dar conta daquele enorme lote de éguas e poltras que ele sozinho guiava pelos campos. Campo varja, no verão, só tem mesmo uma sendinha estreita deixada pelos próprios animais. O resto é capim alto, capim fechado, canarana braba e puro murizal. Assim mesmo havia pedaços que até a sendinha desaparecia de vez: ficava só mesmo o espaço entre nós. Nessas horas o silencio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. Às vezes, levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrás. Eu achava que não havia melhor momento pra nossa conversa. Mas só pensava: falar, quem disse? Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava no caminho, toda a minha força de pensamento. Aí o silêncio criava aqueles tantos mundos entre dois homens de parelhas juntas. Entre dois homens emparelhados no campo, sempre o silêncio aumenta por demais. O espaço vago, nem me atrevia a quebrar tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crença. Trato sem escrita e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu só podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos pensamentos, havia só a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando bruscamente a entrada dum igapó. Mas o campo sempre continuava. Depois da mata, depois duma baixa, depois dum igarapé, o campo sempre continuava.


Geralmente a única palavra que meu pai me dirigia era uma ordem: grita, Miguel! Aí então, meu pensamento voava. Punha o dedo no ouvido e começava a vaquejada. Conto misturado: grito-meio-toada, querendo por-força ser canção. Eu sabia que o gado todo escutava dentro da mata o som da minha voz. Tomara que o senhor visse a tarde de verão! Meu pai silencioso ia na frente e eu atrás. Eu cantava mas então sem destino. O gado ouvia mas porque o vento levava a vaquejada. Com-pouco, ao longe, eu vi o gado sair. Os magotes tomavam o rumo do rodei que começava a aparecer. A tarde nessa hora, já tinha uma revolta triste que se entranhava nas cores do entardecer. O ar também asfixiava a gente com tanta calmaria. Só o céu com umas poucas nuvens esgarçadas, estava limpo, claro e azul. — Grita, Miguel! — talvez meu pai gostasse de ouvir gritar. Vaquejada sem destino — o senhor pensa —para o campo, para o gado, pra ele mesmo e para o céu. O gado “das Ciganas” que era o mais certo de rodeio, me ouvia e punha logo a cara de fora. Mas eu continuava a cantar. Isto eu acho que meu pai apreciava.


Quando chegamos na malhada, quase todo o gado estava lá. Meu pai, silencioso, examinava as rezes. Precipício, irrequieto, não parava um só instante. Era até um despropósito: me dava ate uma cuira ver o cavalo fogoso. Se fosse eu, já tinha dado uma sova de muxinga naquele cavalo maranhento.


Na falta de conversa eu sempre dizia coisas pra o gado. Como não me atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. — Essa malhada grande ta redonda, com-pouco vai parir. — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. — Não vai deixar o teu filho na mata, bicha danada. — Meu pai também jogava sal para os animais.


— Pai, ta faltando o lote do Jaburuzinho.


— Na certa a filha da Mimosa já pariu.


— O senhor quer que eu vá dar uma busca?


Joguei o resto do sal que trazia na garupa e soltei o cavalo no rumo de Jaburu. O sol estava quase mordendo a ponta da mata. Eu precisava reunir o gado antes do anoitecer. Parei o galope e comecei novamente a vaquejada, esperando que o gado botasse a cara fora do igapó. Cantei mais uma arrancada e depois meti o cavalo na mata. Fui dar com o magote amoitado em baixo dum catauari. Quando bisparam a minha presença, foi como se tivesse visto o Diabo: saltaram todos de uma só vez. Só percebi o barulho dos ramos e cipós quebrados. Dei fé também que era inútil tentar sozinho aquela empreitada. Antes que eu me virasse, ouvi ainda longe, o resfolegar do Precipício: meu pai sabia que eu estava precisando de ajuda. Será que o Precipício ia deixar a gente ao menos combinar as coisas? Tínhamos que acertar tudo antes de meter o cavalo no gado. Me alembro como se fosse hoje: era bem na frente da mata do Jaburuzinho. O campo que restava pra carreira era todo cheio de troncos e buracos. O Precipício vinha correndo: meu pai teso na sela, deixava que o cavalo mordendo o freio, comesse a distancia. De longe notei logo que estava zangado. — Cavalo velho estava com o Diabo. Jeito dele quando o lote fica preso. Só sossega quando chega no meio das águas. Papai precisava acabar com essa maranha do Precipício. Cavalo folgado é sempre nisso que dá. Ainda gritei pro velho:


— Castigue esse merda com a espora. Temos que tirar o gado antes da noite.


— A novilha arisca está no meio do magote?


— Pois se é ela a testeira dos velhacos.


— Então vamos arrancar essa canalha.


Dizendo isto, meu pai correu pra cercar o lote na cabeceira do lago. Em pouco tempo topamos as rezes escabriadas e em dois arrancos conseguimos tirar o lote pra fora do igapó. Em campo limpo — tomara o senhor visse — ficaram desnorteadas. A novilha com cria nova, essa fazia maior força pra voltar. Por várias vezes ela escapava do magote e o bezerrinho novo ainda atrapalhava mais a vaquejada.


— Pega o bezerrinho e vê se ela te acompanha.


Executei a ordem e esperei a negaça da velhaca. Mas ela estava mesmo arisca. Não se importava nem com o filho nem com nada. Imitei a boca do bezerro pra ver se ela parava. Mas ela, com a orelha impinada e o chifre em pé, cada vez mais se distanciava.


Só vi o salto que o Precipício deu atrás da desgraçada. Fiquei meio parado olhando a corrida do pai-dégua. Mas a bicha cada vez mais se distanciava. Senti de longe que meu pai não estava dominando a rédea do cavalo: ele paresque até cerrado e já se aproximava da mata do Jaburu. Larguei o bezerro e corri pra prestar um adjutório. Meu pai estava lutando mais com o Precipício que coma novilha, que queria-porque-queria escapulir.


Não tive tempo nem de chegar na capoeira quando vi meu pai arrastado pelo chão. Toda a descarga de um raio percorreu meu corpo num segundo. Espanquei o meu cavalo, que correndo o mais possível, parecia amarrado no capim. Queria que o pobre corresse o impossível, contanto que eu pudesse chegar ao menos perto para socorrer. Propositadamente o sol tinha se escondido. Incendiava o âmago da mata e borrifava de sangue todo o campo-verde-meio-cinza. Cada galho ou pedaço de barro que saltava do caminho, eu tinha a impressão que era um pedaço do corpo de meu pai.


O Precipício era uma visão dos Diabos: mais negro, mais possante, mais suado, mais lustroso, que até o suor brilhava. Corria desembestado farejando o vento. E meu pai era apenasmente um vulto que as vezes se confundia com o cerrado mais baixo. Só aparecia que ainda estava vivo, quando o cavalo maldito parava de farejar o rumo. Rumo? Que rumo? O desgraçado saltava relinchando e jogando as patas dianteiras querendo até trepar no ar.


Em pouco tempo alcancei o Precipício. Meu pai estava preso mas ainda vivo. Vivia com uma corda de couro entaniçada num dos pés. Me alembrei logo do meu terçado 128 e tive que me aproximar com jeito naquela corrida louca. Queria ao menos cortar a corda sem ferir meu pai. Mas nem lhe conto: só consegui vibrar dois golpes que atingiram em cheio o animal. Houve então a tal da desgraçada porfia: às vezes eu me aproximava, mas às vezes eu me distanciava muito mais. Faltava apenas cortar uma volta e talvez pudesse salvar a vida do meu pai.


Quando dei por mim, já estava com a mata no meu rosto: Precipício tinha entrado no igapó. Fiquei por muito tempo estirado no chão. Acho que quase morto. Depois, pouco a pouco voltei aos meus sentidos. Já era noite. No escuro, só senti a presença do meu cavalo. Ele estava firme do meu lado. Acho que um baque na testa tinha me arrancado da sela. Por cima de nós, a negra noite da mata feita só de galhos. Agarrei logo o cabresto do Castanho e fiquei tateando a redondeza. Queria ao menos encontrar o corpo do velho. Às vezes eu me abraçava com um tajá no escuro; às vezes metia meu braço num monte de folhas secas; me enganava com raízes; apalpava troncos e galhos, em busca do corpo de meu pai. Os cipós que roçavam minhas mãos, pareciam pedaços de corda, corda de couro. Não existia mais o gado; não existiam os sapos, as cobras, os pirilampos. A noite inteira escondia em silêncio o corpo de meu pai.


Continuei apalpando no escuro por muito tempo: em linha reta, em linha curva, em círculo, em busca alucinada. Como cego, tintiando no negro mais negro, senti alguma coisa mole embaixo dos meus pés. Tentei então reconhecer com as mãos o que pisava: afundei meus braços na lama do igapó. Mas pensei que fosse sangue. Não sei porque eu pensei que fosse sangue. A escuridão que me cercava, fechava o mundo até para os meus pensamentos. Um escuro assim no mato e dentro da gente, é pior que um rio sem margem, pior que um poço sem fundo. Faz a gente descer em negras profundidades.


Uns baques surdos, no chão de barro, estremeceram o silêncio na escuridão. Foi aí que eu ouvi o relincho do Precipício no fundo daquela noite. O relinchar daquele cavalo naquela mata escura — tomara o senhor escutasse — soava como uma voz assassina de animal. Caminhei no rumo e tropecei logo na volta de uma corda. Tateando, tateando, encontrei o corpo de meu pai. Tinha esperança que ele ainda estivesse vivo. Mas as minhas mãos encontraram o sangue coalhado e a frieza de seu corpo dividido em pedaços. Mesmo no escuro baixei o ouvido no rumo do coração: acho que há muito tempo que ele devia ter estourado. Foi então que a noite ficou tão dura e tão pesada, que esperei o desabamento do mundo sobre mim. Depois esperei o sepultamento da floresta. Depois esperei uma lágrima para meus olhos. Depois esperei um eco de tudo aquilo reboando na escuridão.


Vieram os pirilampos povoar meus pensamentos. Foram as primeiras brechas naquele desconforme escuro. Depois, paresque de dentro da terra, os grilos, os sapos, as corujas quebraram também o silêncio daquela morte. Só aí eu senti o vento soprar de leve esfriando o suor e o sangue da minha testa. Havia sangue coalhado em minhas mãos. Procurei mais uma vez o terçado na bainha. Tinha largado quem sabe por onde o meu 128.


Precipício dava patadas no tronco de uma árvore. E relinchava abrindo uma brecha naquele negrume. Queria cavar buraco maior naquele silêncio. Lágrima nenhuma tinha chegado para meus olhos. Meu terçado devia ter ficado enterrado na lama. Será que o meu 128 tinha se perdido no campo? Na Mata? A noite pesava. A noite pesava tanto que os carapanãs caiam como farinha sobre meu rosto. Mas eu precisava arrancar dali o corpo de meu pai. A corda paresque estava toda entaniçada. Devia ter alguma volta até rasgado o corpo desconjuntado. As dobras retezadas nas árvores estavam duras como aço. Só um cavalo, só um cavalo assassino podia arrebentar. Procurei o galho mais perto e comecei a lambar o Precipício. Queria que ele mesmo arrebentasse a maldita corda. Queira que ele mesmo arrebentasse. Mas também o que eu queria era maltratar o criminoso. O cavalo negro na noite negra dava saltos. Estremecia toda a mata. Cavava a terra e relinchava. Relinchava e cavava a terra. Redobrei a força das lambadas mas senti logo a falta do meu terçado 128. Uma vergastada zuniu: foi uma lambada que me golpeou aqui pela altura do meu peito. Fedeu relho queimado em madeira verde-negra. Caí por cima de galho e raízes. Ouvi se distanciando um galope de galhos quebrados: era o Precipício. Solto no campo devia correr no rumo das suas éguas. Precipício voltava. Precipício voava.


Levei muito tempo pra arrancar o corpo de meu pai daquele entaniçado de cordas. A noite misturava corda, galhos e cipós. Foi com grande sacrifício — o senhor pensa — que coloquei na sela o monte de cadáver. Mas o mais difícil foi na hora de montar. Puxei o meu Castanho fora da mata, montei na garupa segurando o corpo e comecei a andar vagarosamente. Va-ga-ro-sa-men-te. O campo estava escuro e silencioso. O murizal batia na altura do meu peito. Desconjuntado sobre a sela o corpo balançava. Foi a viagem mais longa no negrume mais triste. O silêncio era como um breu.


Levei sem falar horas e horas. Nenhuma lágrima veio aliviar a secura dos meus olhos. Apenas uma raiva surda e muda sufocava a minha garganta. Até as coisas menos importantes tinham ficado minhas inimigas.


Me alembro como se fosse hoje da minha chegada na porteira com o corpo do velho nos braços. A lamparina paresque nem queria alumiar o rosto todo deformado, tanto que o vento não deixava a chama parar um só instante.


Já não consigo lembrar das coisas que falei. Só sei que não consenti que levassem o corpo do velho pra cidade. Finquei o pé, gritei, e não levaram. Se levassem — o senhor pensa — seria numa rede pindurada numa vara. Depois aquele balanço penoso até o cemitério. As caras das pessoas saindo pelas portas; as conversas dos vizinhos nas janelas. — Coitado, morreu de impaludismo... Era por demais odioso pensar num enterro desses para o velho.


Meu pai passou a vida toda reclamando só contra o molhado. Não, não era contra a água, a chuva, a correnteza, o lago, o rio e o longe mar. Não, não podia ser contra o mar que era de outras redondezas. Não senhor, era apenas contra o molhado. Eu sei, eu sei que ele amava a chuva, porque eu via nos seus olhos a alegria de ver a água escorrendo, banhando as árvores, caindo sobre a mata, crivando o rio de pingos e respingos, descendo as ribanceiras. Ele gostava da chuva, porque ele entendia o barulho de conversa que ela fazia nas barracas de palha. A chuva tem uma cantiga antiga de enganar o sol; de misturar o dia com a noite; e de ensinar o pobre adormecer com fome. A chuva tem uma conversa-fiada-tecida-na-palha que até é doce de se escutar...


Meu pai sempre dizia, quando queria se referir às coisas tristes da vida, impossíveis de resolver e difíceis de se arranjar: é mesmo que chover no molhado. Odiava o molhado. Não, não era contra a água — tanto que ela descesse do céu como borbulhasse da terra — contanto que não escorresse dos alagados. Até gostava de ficar horas e horas na canoa esperando o peixe boiar. Gostava de presenciar o dia nascendo do fundo, boiando das dobras da maresia que o ventinho da manhã fazia no igarapé. Acompanhava o caminho do sol só pela cor das águas. As nuvens do seu céu, andavam sempre misturadas com as borbulhas dos peixes, com as flores das plantas ou com as sombras dos capins. Pra ele não tinha céu azul nem nuvem branca: o céu era cor das águas e as nuvens tomavam a forma das ondas do rio. Nuvens verdes, ele só enxergava nuvens verdes. Meu pai imbirrava mesmo contra o molhado. Não suportava levantar de manhã e pisar no barro molhado, tanto a água fosse de orvalho como de chuva torrencial.


Ele se queixava que a pescaria tinha consumido toda a sua mocidade no molhado. Por isso ele dizia: água que não corre, mata. Não gostava de água parada mesmo que fosse pendente da pétala de uma flor. Isso, porque o orvalho também molhava. Molhava o rosto, quando entrava de manhã cedo na mata; molhava as calças, no campo batendo de leve no capim. Reumatismo e impaludismo, vinham das águas que molhavam. Não senhor, não vinha das águas que corriam, nem das águas que nasciam; vinham das águas que molhavam. Como enterrar meu pai na restinga de Catauari? Naquela hora que o corpo estava seco e desconjuntado em cima do jirau? Como? Como depositar o pobre numa terra úmida que a maré com certeza ia molhar? Eu bem que sabia o tempo que levava pra chegar na terra-firme. Depois que tinha que procurar o lugar-próprio que desse pr’uma sepultura seca, digna do meu pai. Por léguas e léguas as águas se espalhavam; por léguas e léguas os rios dividiam aquelas terras. Mais por perto — o senhor pensa — só existia mesmo o cemitério da cidade. Mas pra enterrar na cidade, ia balançar na rede, despachar no cartório por tintas e papéis. Mas como provar que meu pai estava morto, se nem nascido ele era dentro da lei? Na cidade também havia o empecilho dos documentos. Documentos de vida, documentos de morte e documentos do enterro de pobre do interior. Assim tinha que ser. Queiram logo saber do atestado de óbito. Óbito, sim senhor: sem esse papel meu pai não podia ser enterrado no cemitério da cidade. Além da desconforme distância, ainda havia essa exigência dos papéis. Só restava mesmo a restinga do Catauari. Mas ali na varja, era mesmo que entregar o corpo de meu pai ao inferno do molhado. As águas quando chegavam, invadiam tudo, cobriam tudo, molhavam tudo. Só mesmo se arranjasse uma sepultura num galho de pau.


Morrer, meu pai havia morrido conforme o seu desejo: completamente fora dágua: salvo do molhado. É verdade, que arrastado pelo campo, o corpo ficou dividido em pedaços. Porque, é como eu lhe conto; ele tinha deixado de ser pescador pra ser vaqueiro, só por causa da forma de morrer. Ele possuía um verdadeiro pavor de morrer como afogado. As raras vezes que falava, era pra pedir a Deus que não deixasse ele morrer por dentro dágua. Não queria aparecer inchado, de bubuia, roído de piranha, com as entranhas devoradas pelos peixes, ao sabor da maré.


Naquela hora, o enterro não dependia mais dele. Lutar ele tinha lutado, eu era testemunha, a única testemunha. Agora era enterrar com ele também a minha viagem. Enterrar naquela restinga os desejos de virar-mundo, correr-terra, sentar-praça e tudo mais. Já que ia ficar, e pra não morrer atolado no barro, nem morrer arrastado e despedaçado como meu pai, devia de virar cabra-da-peste e afilhado do Diabo.


Naquela tarde, diz’que era apenas um passeio de despedida... última olhadela no campo, derradeira carreira no gado e última vaquejada. Depois era capaz o apito de lancha; mais tarde o apito de fábrica, o barulho de trem, buzina de automóvel, corneta de quartel. Mas ali, mesmo com a morte de meu pai, tinha se enterrado também a estória de sentar-praça, descer-rio, subir-a-serra, encontrar-o-mar e voltar um dia feito cidadão. Foi aí que eu senti mesmo a falta do velho, mesmo com aquele silêncio que tanto me aborrecia e que eu tanto condenava; mesmo com aquela moleza de corpo fugindo da água e cambaleando e escorregando no molhado. É que eu vi meu pai morrer lutando com a terra e se misturando com as paragens. Quando a noite caiu devagarinho, e vi o corpo arrastado pelo cavalo negro, dei mais valor praquele silêncio. Suas unhas, com certeza, ficaram cravadas na terra; pedaços do corpo espalhados no chão; sangue misturado com a lama; dedos crispados arranhando a terra como gadanhos. E o silêncio. Tomara o senhor escutasse, o silêncio colossal.


Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai, pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente. Naquela hora, fiquei com a cabeça meio tonteada. Mas os meus pés se cravaram mais no barro como raízes. Minha mãe, coitada, precisava naquela hora, mais de mim do que a pátria. E isso me deu um arranco pra brigar. Brigar com a terra: mais com a terra do que com água e a mata. Precisava era dar uma lição naquele assassino de animal. Não, não haverá de ter silêncio. Senti então uma vontade louca de gritar. Gritar pro-outro-lado. O senhor sabe o que é gritar pro-outro-lado? É gritar na beira de um rio largo; no meio de um campo vasto e deserto; na frente de uma grande mata virgem. Acho que é muito mais triste que chorar. Não, não importava que escutassem... não importava que o grito chegasse. A indecisão também pode ser a hora de resistir. Quando dei fé, meu pensamento não andava: tinha parado na palavra resistir. Aí eu vi que a noite era negra negra mesmo cada vez mais.


A lamparina da cozinha estava acesa. E tinha uma vela alumiando o corpo e o quadro de São Sebastião. Dei um salto do tronco do apuizeiro: o curral do gado estava aberto. Precipício tinha pulado a trincheira e estava solto entre as éguas. Paresque o diabo tomou conta do meu corpo. Peguei a minha corda no cabide, pra laçar aquele — com perdão da palavra — aquele filho duma égua. Não sei em que tempo lacei, encabrestei e estava montado em pelo no pai-dégua. Quando dei fé de mim, estava no campo aberto pronto pra correr. Era noite e eu corria. O escuro emaranhava tudo: toiças, baixas, atalhos, caminhos. Não havia estradas. O Precipício voava. Corre, cavalo do Diabo. Me jogava no chão, cavalo filho da puta. Eu lambava e ele pulava. Corria e pulava. Eu e ele sem destino. Eu lambava e ele corria. O campo era sem limites. Só a linhazinha mais escura da mata é que dividia ao longe a imensidade. Dentro da mata, mais negro devia ser o igapó. Mas o campo continuava. Baixas, tesos, lagos, restingas, caminhos, atalhos, eram uma noite só.


Alguém tinha ateado fogo na restinga do Catauari. Na certa algum vaqueiro descuidado ou algum procurador de ovos de tracajá. Incendiavam o campo pra achar ovos, pra pegar bandos de marrecas e as vezes só mesmo por malvadeza de incendiar. Com uma ponta de cigarro num capim seco e numa noite quente, o fogo se alastra. As labaredas nasciam do barro por puro encante. Pensei até que estavam queimando a terra pra sepultura do meu pai. Mas quem ia queimar a terra, que ia queimar a terra? Não se podia saber naquela hora porque o Precipício não parava. Meus braços e pés também não paravam. As esporas na barriga já sangravam e o Precipício voava. Eu lambava o Precipício e as labaredas aumentavam. Com-pouco estávamos num cerco de fogo que vinha não sei de que lugar. O campo clareava. O campo clareava mais e mais. Corre, cavalo filho da puta. Não tinha jogado na terra o corpo do meu pai? Queimar a cara até as crinas, será que bastava? Precisava entrar no inferno com as quatro patas incendiadas. Precisava fazer aquelas crinas negras virarem labaredas. Precisava atear fogo no pelo; pelo em fogo feito tocha viva. Em tocha viva voltar pra suas éguas. Em tocha viva incendiar todo o curral. Mas enquanto não queimava, eu lambava o cavalo filha da puta e corria pelo campo com medo que meu coração também estourasse. E que fosse arrastado nas patas como bagaço, como sombra, como cinza. As patas incendiadas devorando o campo, a tocha viva devorando a noite. Mas lhe juro que naquela hora fiquei com medo que o fogo murchasse; que o fogo apagasse engulido pelo barro, que a noite negra invadisse todo o espaço; que o triste negro tomasse conta do mundo. Fiquei com medo que meu coração estourasse. Mas tive que fazer aquele puto daquele cavalo assassino ajoelhar. Podia ser que meu coração espalhado em estilhaços, virasse estrelas-pirilampos. Podia ser que ele virasse em línguas de fogo, douradas borboletas, flor em chama, asas de sangue ou chuva de vagalumes. Podia ser que ele até ficasse dividido, esmigalhado, feito barro, feito terra, feito fogo em flor, feito lama... mas eu tive que fazer aquele puto daquele cavalo assassino pedir perdão de joelho no campo incendiado.











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MONTEIRO, Benedicto. O Carro dos Milagres. 5. ed. Rio de Janeiro: PLG-Comunicação, 1980. p. 51-60.

3 comentários:

Bernard Freire disse...

O jeito de ser, fazia com varias vezes ficasse refletindo entre si,
parecia ser uma grande jornada.
Não sei bem ao certo onde possa ter chegado.

WANDA MONTEIRO disse...

Bernard.. li seu perfil.. a vida humana -de fato é ilusória-.. é um processo meramente mental.

wanda monteiro

Mariana Felinto disse...

Obrigada pela leitura =)