quinta-feira, 18 de novembro de 2010

HIPERTEXTO DO ROMANCE AQUELE UM




Foi, sim senhor, patrão, padrinho, padrasto, acho que até um pai meio às avessas. Aquele sim era do Nordeste! Era nordestino. Nordestino-sertanejo, cabra, cabra-da-peste. Acho que do Ceará, Pernambuco e Paraíba desse-mundo-velho-sertão-de-Deus. Sertão-agreste. Sertão-jagunço, sertão caatinga, sertão-cangaço. Sertão-de-rio-córrego-e-mata-rala, sertão-de-serra-alta-caminho-de-pedra-espinho-e-precipícío. Serra-espinhaço. Lá as serras eram espinhaço! Aquele sim, eu sei que era um sertanejo. Em tudo e por tudo era um sertanejo-cabra. E por isso ele parecia com o Diabo. Quer dizer, eu mesmo não achava. Um diabo-louro, um diabo-meio-velho, um diabo já meio gasto. Quer dizer, eu mesmo não achava. Mas daí veio o meu primeiro apelido. Também me chamaram moleque-do-diabo. Afilhado eu era. Isso eu era: afilhado. Mas, do Diabo? Bem, meu padrinho era so¬rumbático. Isso ele era. Macambúzio: pensava no âmago e vivia com os olhos meio convertidos para dentro. Gostava de viver escondido. Por isso também surgiram muitas lendas. Muitas conversas. Quando eu montava enforquilhado num jacaré, com os dedos fincados nos olhos do bicho e corria em riba d'água, diziam que era ele que tinha me ensinado. Pura mentirice, meu padrinho não sabia nada disso. Não sabia nem nadar, quem-dirá montar em fera anfíbia e correr na flor da água. Mas o pessoal inventava. Diziam também que era ele que me curava: curava contra cobra, contra febre e curava pra arrumar mulher só de pisar no rastro. Até pra ser feliz na caça e na pesca diziam que era ele que me curava. Mas não era nada disso. A minha cura contra cobra, feita na aldeia dos pretos, levava erva, reza e muita benzição de canto e dança. Toda festa de Santo António, meu pai me levava pró Pacoval. Lá eu era rezado e curado em três dias e três noites pelos pretos: me davam pra beber uma porção de beberagens. Eu gostava porque tinha cachaça e travo de fruta agreste. Batiam tambor e chocalhos em danças e rezas no terreiro e no meio do mato. Eram rezas que eles tinham trazido da África. Pelas rezas, pelas danças e pelas curas, parece que a África era maior e mais longe que o Nordeste. As fazendas de onde os negros tinham fu¬gido há muito tempo ficavam também em paragens muito desertas. Os remédios dos pretos - o senhor pensa - eram afamados. Vinha gente de muito longe pra comprar só essas beberagens: pra qualquer cobra, podia ser a mais venenosa. Eles chamavam as cobras de cipó, cipó-cobra, cipó-serpente. Mas curavam mordida de qualquer bicho, tanto fosse da água, da terra, ou do vento. Servia até pra veneno de jaquiranambóia, peixe-voador-devorador que voava rente à água muito baixo. O povo dizia que eu tinha sido mordido de jaquiranambóia e tinha ficado morto-morto. Achavam que a bruxaria de meu padrinho é que havia me curado. Eu sabia que era o remédio dos pretos. Abaixo de Deus e Santo António, as rezas e as beberagens me deixaram são e salvo. Outros assim mordidos de jaquiranambóia tinham morrido em cima do rastro. Ninguém, a não ser eu, ainda vivia es¬capado pra contar lambança. Veneno de jaquiranambóia diz'que não tem cura. Quem é mordido por essa cobra-inseto morre espumando sangue pela boca. Espoca sangue pelos zolhos e por todos os buracos. Jaquiranambóia é peixe-cobra-meio-inseto, cobra-piranha-meio-pássaro, pássaro-cobra-piranha-meio-ave, cobra-gafanhoto-meio-peixe, traíra-avoante-meio-mariposa-d'água, cobra-piranha-meio-borboleta. A que eu vi, parece que voava. Saía d'água voando feito mariposa quando se gera do fundo: só de um salto. Só que a jaquirana é maior que um besouro mamangaua e tem um rabo que encolhe e estica conforme o bote. Peixe-cobra-meio-cigarra, o senhor pensa? Quando salta, morde o sujeito pelo ar, pelo faro, pelo cheiro, pela sombra, pelo vento. É um silvo e um assopro que arrepia a gente. Piraracuarabóia, trairambóia, são peixes-cobras maiores, que mordem e tiram o pedaço. Mas o veneno não entra no sangue pelas veias, só dum asso¬pro. E pra todos esses bichos eu era curado. Aí já diziam que eu tinha o corpo-fechado até pras mortes. Só porque eu era afilhado-do-diabo. Eu também meio acreditava. Até pra remédios fortes eu era curado. Podia beber cupaíba, andiroba, querosene, tintura de jucá, leite de sucuba, vinho de paricá, sumo de ervas do fundo do rio ou de dentro da mata. Tanto fosse remédio mais forte como bebida mais indigesta, não me acontecia nada. Cachaça então, eu abusava. Bebia cachaça com leite, com manga, com açaí, com vinho de pariri, com tarubá, com tucupi, com vinho de tucumã e até com sumo de pimenta malagueta. Eu gostava de cachaça mas era com vinho de taperebá, com vinho de jenipapo, genipaquina, penipacana, genipaúba. Geni–caiu-do-céu-papu. Genipapu. Um dia bebi cachaça até com o remédio de cobra, tomei o maior porre com o tal remédio dos pretos. Acho que fiquei curado-pra-toda-vida e pra-toda-morte. Meu padrinho é que levava a fama de ter parte com o Diabo. E eu era por isso seu afilhado: Afilhado-do-Diabo. 


Na cura contra a febre, acho que meu padrinho tinha tomado parte. Não sei se com suas rezas de resmungos e silêncios ou com alguma coisa que ele tenha colocado escondido nalguma água. Ele possuía quengos. Febre, febre de malária, eu já sofria desde muito antes, acho que até desde criança. Mas, maligna, a terçã maligna, foi a única febre que me derrubou no fundo duma rede que fiquei lá embaixo. Meu padrinho não deixou que me dessem remédio de far-mácia. Meu pai, dessa feita também não conseguiu nada com os pretos. Se fosse mordida de cobra ou outro bicho venenoso, eles curavam. Mas pra febre, cezão, maleita, terçã, terçã maligna, as rezas que eles tinham trazido da África paresque eram fracas. E carapanã não é inseto? E a febre não vem da mordida dessa praga? Por que o remédio dos pretos não curava? Por via das dúvidas, bebi o remédio dos pretos reforçado com cachaça. Depois, minha mãe misturou com andiroba, cupaíba, quina e pião-roxo. Mas a febre cada vez mais alteava. Com a febre alta, vinha o frio medonho, o frio cansaço. O amargo terrível na boca, a se¬cura da garganta e a dor dolorida nos ossos. Vinha também, ao mesmo tempo, a vontade de cagar, mijar e vomitar. A urina ardia como fogo e as tripas se enrolavam em nós tão doídos que não saía nada, nem por cima, nem por baixo. Ficava no corpo uma ânsia de tudo. Quando a febre injetava o fogo pelas veias, o frio sacudia de tremor todos os ossos. Os nervos tiniam como cipó-ferro, cipó-aço, vara-verde-na-corredeira, açaí-tocado-por-puraqué, galho-boiando-no-remanso. Febre-e-frio, frio-e-febre, tremor dos diachos. Dor desde as pontas dos cabelos até as pontas dos dedos: dor-fria, dor-quente, dor-seca, dor-cansaço. Uma dor fina, aguda, no fio do espinhaço. A sede era tanta que a água perdia o gosto. O ar ficava tão pesado que paresque estava cheio de mor¬maço. Aí vinha a vontade de dormir com os olhos abertos. Os olhos ardiam contra a menor claridade. Vinha então a vontade de morrer por não ter mais vontade. A febre alta subia então toda pra cabeça. Meu padrinho Possidônio che¬gou na beira da minha rede já montado a cavalo. Era um cavalo preto preto. Inquieto e arisco animal contido só na minha ânsia. Pelos olhos do cavalo o mundo se furava em mil distâncias. Minha rede tinha viradozinho logo em égua branca. Só que meu padrinho estava todo apetrechado: de chapéu de couro com espelhos e pedras reluzentes. Reparei que tudo no meu padrinho era de couro, couro cru bem vivo quase chegando pra vermelho. Era o couro cru das roupas e os metais luzentes das armas. Todas as armas: rifle, facão, revólver, cartucheira a tiracolo e cinto cheio de bala. E eu na minha égua branca quase montado em pêlo. Não, minto! Eu só estava nu sem camisa, mas tinha um cinturão de balata com um terçado 128, Sim, uma calça tingidazinha de muruxi e jenipapo.


O mundo todo estava ali aberto na nossa frente: onda-rio-estrada; rio-no-céu-estrada-n'água; estrada-por-cima-de-rio; rio-por-baixo-de-estrada; mata-virando-onda; onda-viran-do-nuvem. Céu misturado em caminhos correntes pela água. Caminhos pelo meio da mata entrando pelas nuvens. Nuvens altas. Água e águas. Árvores e árvores. Nuvens e nuvens. Remansos de estradas. Estradas corredias. Corredeiras de estradas, águas bravias. Vento, muito vento. Vento levantando terra-folha-e-água. Remoinho, remoinho n'água. Nem começo nem fim de tudo. Viagem começada de febre agoniosa em distâncias de vento forte. Vento frio de morte. Distâncias mal-assombradas. Distâncias de quem nunca veio e de quem nunca tinha ido dantes. Altos e baixos. Meu padrinho firme no seu cavalo negro, armado até os dentes. Ora corria, ora andava, ora voava. Eu, na minha égua branca levando meu terçado 128, era um rei. Começamos enfrentando as cores mais bravias. As armas do meu padrinho nada podiam contra as cores que medravam. Eu, com meu terçado 128, ainda podia dividir os galhos. Cortava folhas enormes, cipós moventes e terríveis raízes flutuantes. Fazia atalhos. Conforme as cores, meu terçado luzia e reluzia ao vento. E cortava espaço e tempo. Atalhava as sombras antes de se transformarem em cores vivas. Os verdes dessa batalha tomavam as formas mais horríveis. Verde-ficando-negro; verde-ficando-roxo; verde-fícando-vivo-como-sangue; verde-ficando-sombra-como-a-morte; verde-queimando-como-fogo-entrando-pelos-olhos. O verde-febre, febre alta, não é como o verde-foIha, o verde-água, o verde-terra, o verde-sombra, o verde-mata; é verde-quente-em-ar-tremeluzente, verde-corrente-de-corrente-elétrica, verde-relâmpago-de-raio; verde-fervura-passando-pelo-músculo, verde-queimando-como-fogo-ardente, ver¬de-ardente-como-luz-queimante-entrando-pelos-olhos; verde-vidro-refletindo-sol-em-brasa, verde-em-água-fervente-passando-pra-fumaça; verde-duro-e-liso-como-limo-e-aço; verde-enchendo-todo-espaço; verde-frio-como-pedra-negra, verde-frío-como-febre-alta; verde-como-carga-elétrica-passando-pelos-nervos, verde-cortante-como-carga-e-raío; verde-sombra-envolvendo-tudo; verde-negro-como-dor-nos-ossos.

Não fosse o meu terçado 128, meu padrinho tinha se perdido logo no meio dos primeiros verdes. O cavalo negro paresque não sabia pisar em sombras. Tropeçava nos verdes como em tocos e barrancos. Ficava tremendo nas patas traseiras: só, diante do verde-vento. Farejava verdes por todos os lados. Escorregava e quase caía no verde-limo, mas parava no verde-espaço. Não fosse meu terçado 128 - o senhor pensa - tínhamos ficado no meio da viagem. Tive que batalhar com todas as cores de tocaia. Principalmente o verde-febre-alta. Mas abri caminhos por todas as tonalidades. Cortei os verdes mais vivos que brotavam da terra. Derrubei muitas vezes os verdes de muitas nuvens. Só mesmo o meu terçado podia cortar o verde que corria pelo fio do vento. Fiz do trançado verde uma porção de estradas. Abri caminho no verde-labirinto.

Quando meu padrinho montado no cavalo negro se viu livre daquela teia, tufou o peito e ficou de novo orgulhoso na sua sela. O verde ali, sim, era verde! O cavalo negro também voltou a ser negro como dantes. E meu padrinho montado em arreios reluzentes tornou a ficar em armas. De repente tudo era um campo. Aí meu padrinho podia enfrentar qualquer batalha. Estava como no Nordeste: em campo raso. Em campo aberto, seu cavalo negro dava saltos. Enquanto o cavalo negro do meu padrinho corria, a minha égua branca farejava. Como o verde não tinha horizonte, surgiu na nossa frente a própria imensidade. A cor brotava. Depois era um enxame. A cor voava. Eram muitas cores, cores de milhares e milhares. Assim de longe paresque eram borboletas. Formavam aves. Formavam nuvens. E cobriam todo o verde do campo aberto, que o cavalo do meu padrinho não sabia se andava ou se voava. Meu padrinho, aí, puxou por todas as armas. A única arma que funcionou mesmo foi a cartucheira que espalhou chumbo por todos os lados. Tivemos que caminhar naquele campo até que as borboletas escureceram todas as cores. O verde imenso e sem horizonte tornou-se noite. Fiquei dentro de um frio medonho que tive de me enroscar por dentro. Me enrolei em mim mesmo por muitas voltas. Enquanto a febre me queimava pelas veias me perdi do meu padrinho naquele escuro espaço. Será que eu variava? Quando pensei que ainda estava segurando a varanda da rede, já era a crina da égua branca. Aí eu furava o escuro só com os olhos. Enxerguei de novo a mata. Meu padrinho estava diante de algum perigo. Podia ver logo pelo cavalo: empinava toda aquela cor negra pesando só em cima daquelas duas patas. E relinchava acho que de medo diante dum fantasma. Mas não era fantasma não, era uma sombra. Digo que era sombra porque as cores do bicho não apareciam vivas. Era um bicho. Um bicho ou era aparição de alma? Boto encantado ou cobra-grande? Matinta-pereira? Turupari-taraca? Será? Mapinguari é que não era. Uma sombra. No princípio, era uma sombra. Mas depois, as cores grelaram em raízes. E o verde do horizonte se encheu de imensas árvores. De repente nós estávamos de novo no meio da floresta. E o bicho aí apareceu num galho. Um galho podre. Um galho seco. Como não tinha mais campo, meu padrinho ficou apavorado. Desceu do cavalo e puxou todas as armas. Larguei também a minha égua branca. O galho seco - o senhor pensa - era uma enorme cobra. Eu e meu padrinho estávamos sendo atraídos pelos enormes olhos da maldita. Não adiantava correr atrás das árvores pra sair do círculo de atração da cobra-grande. De trás de uma sapupema, meu padrinho deu um tiro de cartucheira. Grelaram na mesma hora as sete cores do arco-íris. Era um bicho de sete cabeças. Meu padrinho puxou o rifle. Esgotou toda a munição sem poder fazer a mira. Puxou o revólver, puxou o punhal e por último a peixeira. Nem conseguiu aluir o bicho. Se não fosse o meu terçado 128, o meu padrinho tinha sido engulido. Quando eu vi que as armas do meu padrinho não serviam para matar aquele bicho, puxei o meu terçado 128. Era mesmo um bicho de sete cabeças. Ou era a morte? A morte não é uma caveira armada de foice? Caveira branca com manto preto e foice afiada no vento? Quem foi que disse? Caveira com foice? Foice, nunca que é arma pró meu terçado 128. Minha única arma era o meu terçado. Antes da morte sempre apareciam os pecados. Sete pecados. Não, não era a morte. Paresque a vida, a vida de sete cabeças. Ou era a cabeça das sete vidas? Ou era o caminho das sete cores? Ou eram as cores de sete estradas? Ou eram as sete cores dos sete pecados nas setes estradas?



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