MOTIVOS PARA RETUITAR E DIVULGAR BLOGS DE CONTOS

Em 2008, em Massachusetts, um homem retuitou o endereço de um blog de contos e, ao clicar em “tweet”, teve uma visão e acertou os números da loteria acumulada, vindo a receber o prêmio de milhões de dólares dias depois, em casa, sem sequer ter jogado. Em 2009, na pequena cidade de Morgantown, West Virginia (a terceira melhor cidade pequena dos Estados Unidos, segundo o livro “The New Rating Guide to Life in America’s Small Cities”), o jovem lenhador Ernest Stagliano compartilhou um blog de contos no Facebook (“Face”, como ele dizia) e foi nomeado cidadão benemérito de Morgantown, segundo dizem, com o mouse ainda na mão. No mesmo ano de 2009, mas já no segundo semestre, na distante cidade de Kirov, Rússia, uma mulher formulou um tweet sobre um blog de contos (em russo) e foi sorteada na promoção do posto de gasolina, ganhando imediatamente uma casa com vista para os montes Urais e um grande quintal com capacidade para até oito huskys siberianos (cães de trabalho, de porte médio, rápidos, ágeis, fluentes e graciosos em ação, segundo fontes fidedignas). Um mesmo homem, residente em local não divulgado, tuitou e compartilhou um blog de contos nos anos de 2009, 2011 e 2012 e encontrou um galeão afundado com tesouros incalculáveis, venceu uma prova de soletrar na TV e recebeu permissão do padre local para manter casamento ao mesmo tempo com três competidoras do concurso de Miss Universo – nenhuma vencedora, mas ainda assim, todas as três capazes de ficar bem tanto em trajes de noite quanto de biquini – sem que sua alma tivesse que arder no inferno por conta disso. Portanto, antes de sair tuitando ou compartilhando assuntos diversos, reflita: em seu lugar, o que Ernest Stagliano faria?

(Texto originalmente publicado em 2013).

DEUS NO TRÂNSITO

Saiu de casa atrasado. Tudo parado. Apelou para Deus.
_ Pô, Deus, bem no dia em que eu tô atrasado esse baita trânsito? Sacanagem.
_ Desculpe, eu não tava olhando.

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Achou estranho receber uma resposta, mas fingiu indiferença.
_ Ué, o Senhor não é aquele que era onisciente, onipresente e tal?
_ É, mas quando eu disse isso eram só dois, ficava mais fácil ver tudo. Além do mais, eu só falei para ver se eles se comportavam.
_ Não adiantou.
_ É, não mesmo…
_ Ô, Deuzinho, dá um jeito, vai. Meu chefe vai me matar se eu me atrasar de novo.
_ Não posso fazer nada, não é bom interferir.
_ Como não? Você pode tudo! Sei lá, faz uma ventania levar todos estes carros da minha frente!
_ Não dá, essas coisas não são assim. E depois eu acabaria levando o seu carro junto. Aos Meus olhos, vocês são todos iguais.
_ Que bonito…
_ Mais ou menos, é que olhando daqui do alto, parece um monte de pontinhos. Aliás, quem é que estava falando Comigo mesmo?
_ Aqui, no carro preto.
_ Ah, desculpe. Bom, resumindo: eu não posso ajudar.
_ Pô, Deus, quebra essa, vai. Afinal, eu sou Seu filho.
_ Nepotismo agora?
_ E porque não? O Senhor não é brasileiro?
Bufou, impaciente.
_ Tá bom, tá bom. Vira na primeira à direita aí.
_ Oba!
_ Isso, agora à esquerda.
_ Tá.
_ Direita ali e próxima à esquerda.
_ Que caminho tortuoso!
_ Os caminhos da fé são assim mesmo, meu filho.
_ Nossa, deu certo! Eu trabalho naquele prédio. O Senhor é melhor que taxista!
_ O que é isso… Eu não sei falar sobre tantos assuntos.
_ Então tá. A gente se vê.
_ Em breve.
_ Credo.
_ Brincadeira. Boa sorte lá, com o seu chefe.
_ Amém.
_ Amém? Como assim “amém”?
_ Ué, não é assim que se termina uma conversa com o Senhor?
_ Eu sei, eu sei, vocês sempre falam esse negócio de amém, mas Eu nunca entendi.
_ Acho que quer dizer “assim seja”, em latim.
_ Ah, então é isso? Vivendo e aprendendo. Eu sempre fui péssimo em latim.

ESQUECERAM UM CARA NA LUA

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Esqueceram um cara na lua. Na euforia da conquista espacial, a última equipe que passou por lá deixou um astronauta para trás. Eram tantas missões na época, a corrida espacial bombando, que ele nem esquentou a cabeça. Pensou: “daqui a pouco alguém vem me buscar”. Foi quando o presidente Nixon decretou o fim do projeto e a coisa complicou. Lá em cima, o homem traçava um plano de sobrevivência. Primeiro, encontrou um confortável trecho de terra – ou de Lua – entre o escaldante lado claro e o congelante lado escuro, e montou uma espécie de iglu, utilizando pequenos asteróides e areia. Água e comida não eram problema, tinha os bolsos cheios de comprimidos, daqueles com gosto de macarronada e suco de uva. O tempo foi passando, sua reserva de oxigênio acabando, e ele começou a ficar preocupado. Talvez não viesse ninguém. Revirando seu material de astronauta, ele encontrou uma garrafa vazia. Perfeito para um náufrago como ele, pensou. Escreveria um bilhete e mandaria para a Terra. Revirou os bolsos e toda celulose que achou foi a lista de compras que a mulher havia lhe deixado, coisas para comprar “na volta da Lua”. O verso do papelzinho teria que servir. Procurou a caneta, aquela famosa, que funciona até de cabeça para baixo. Por um momento, temeu que a tivesse esquecido com o astronauta com quem viera disputando jogo-da-velha no caminho, mas ela estava ali. Então redigiu o pedido de socorro, assinou, dobrou o papel, colocou-o dentro da garrafa e a arremessou com toda a força na direção do planeta azul. Era provável que se desintegrasse na reentrada da atmosfera ou que ficasse perdida no oceano para sempre, mas a esperança era o que lhe restava. E alguns comprimidos. Engoliu um de estrogonofe e tentou se acalmar. Suas chances eram mínimas, sabia, e ele nem tinha batata palha. Acontece que, algum tempo depois, eis que surge uma nave no horizonte. Seu plano insólito dera resultado, vieram buscá-lo! A espaçonave foi crescendo no céu e chegou bem perto dele. O homem conseguiu, inclusive, avistar um colega, pela janelinha. Um compartimento se abriu e despejou algo no solo. Então a nave, sem mais nem menos, fez a volta foi embora. O astronauta saiu correndo na direção do objeto largado e, meia hora depois (tente correr na Lua), encontrou uma sacola de supermercado. Dentro dela, os itens da lista de compras: ovo, cereal, leite, pão. Haviam encontrado a mensagem, de fato, mas leram o outro lado do papel. E ainda erraram a marca da margarina.

 

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INGREDIENTE SECRETO

Num dia qualquer, nenhuma data especial, ela preparou o jantar, montou a mesa mais bonita do que o de costume e chamou o marido.
_ Senta aí. Fiz uma receita nova.
Ele se animou.
_ Nova?
_ É um salmão, mas eu pus um ingrediente diferente.
_ Não conta. Deixa eu adivinhar.

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Estava excitado. A culinária era um dos últimos assuntos capazes de causar excitação naquela casa. Sentou-se e deu a primeira garfada. Mastigou lentamente, tentando extrair o máximo de eficiência de cada papila gustativa. Tinha uma expressão de sommelier.
_ Primeiramente (ele usava “primeiramente” quando o assunto era comida), está delicioso. Um primor.
_ Obrigada.
_ Tem mesmo um sabor especial aqui, alguma coisa que eu ainda não consegui identificar. Não é hortelã, é?
_ Não, não é hortelã.
_ Hum… Difícil, difícil…
Deu um gole no vinho. Provou mais um pedaço.
_ Muito bom… Alecrim, não é.
_ Não.
_ Já sei! – hesitou – Coentro!
_ Quase.
_ Não é coentro? Achei que tinha adivinhado.
_ Passou perto, passou perto.
Já havia abandonado completamente o risoto, que esfriava no prato. Seu interesse se resumia ao tal ingrediente, que passara a ser uma questão de honra desvendar.
_ Não é alcaparra, com certeza. Salsinha, também não. Nem cebolinha.
Ela parecia impaciente.
_ Come mais, que você descobre.
Encheu a boca com um pedaço enorme. Mastigou, mastigou, pensou, meditou, até que seus olhos brilharam. Sentiu a garganta se fechar. Falou com dificuldade, porém entusiasmado, enquanto começava a passar mal.
_ Já sei! Descobri!
_ Fala.
_ É cianureto! Cianureto!
_ Acertou!
_ Eureka! Eureka! – tossia, estava vermelho, a voz cada vez mais rouca.
_ Parabéns, você sempre foi bom nisso. Que paladar!
_ Cianureto! Claro, tão óbvio.
_ Fiquei com medo de colocar demais e estragar a receita.
_ Não, tá perfeito. Harmonioso. Combinando com o limão e a pimenta dedo-de-moça – tossiu mais.
_ Obrigada, obrigada.
Nesse momento ele já estava no chão, se contorcendo. Suas últimas palavras, que se esforçou ao máximo para conseguir pronunciar, foram:
_ Mas o risoto… Nem provei… O arroz passou do ponto!
Ela socava o defunto com força.
_ Canalha! Canalha!

APRESSADO

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– Francisco! Levanta! Vai se atrasar para o colégio, menina!
– Calma, mãe, já tô indo!
– Tá indo nada, levanta daí, Beatriz! Tó, veste logo essa cueca!
– Luíza! Vambora!
– Olha lá, moleque, teu pai já tá na porta gritando!
– Deixa eu lavar o rosto…
– Lava logo que você já tá atrasada, Eduardo. Cuidado pra não pisar nas suas bonecas.
– Joaquim! Tô saindo!
– Seu pai já ligou o carro. Vai, engole esse pão com manteiga, Gabi. Tá todo amarrotado…
– Até que enfim, hein, eu já tava indo embora.
– Ih, pai, vou ter que trocar de roupa…
– Mas porque, Arthur? Não viu que horas são?
– Desculpa, sujei a calça. Eu tô naqueles dias…
(Nona semana de gravidez. Nada definido. Nem o sexo, nem o nome).

OTORRINOLARINGOLOGISTA

_ Pai, quando eu crescer, quero ser otorrinolaringologista.
Ele tinha cinco anos. O pai foi pego de surpresa.
_ O quê?
_ Otorrinolaringologista. Médico de ouvido, nariz e garganta, pai.
_ Ah…

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Ficou preocupadíssimo. Não entendia o que aquilo queria dizer, mas tinha certeza de que não poderia ser bom. Uma criança daquela idade que queria ser tal coisa não estava certo. Colocou o filho na terapia. Mas, depois de algumas sessões, a psicóloga chamou o homem e foi incisiva.
_ O menino está ótimo. Melhor, impossível.
_ “Melhor impossível”? Ele tem a doença daquele cara do filme?
_ Não, é modo de dizer. O seu filho não tem nenhum problema.
_ Tem certeza, doutora?
_ Claro. É uma criança perfeitamente saudável. E me receitou um remedinho ótimo pra garganta.
Resignou-se. O jeito era esperar para ver no que dava. Se o menino cresceria como os outros ou se, esquisito daquele jeito, um dia viraria um psicopata assassino – estrangulador, provavelmente, dado o gosto que, desde cedo, demonstrava por gargantas. Por via das dúvidas, começou a dormir com a porta do quarto trancada.
Mas os anos se passaram, o menino virou adulto e a história provou que toda a preocupação era, afinal, infundada. Aquela mania de otorrinolaringologista foi completamente esquecida, era coisa de criança. O rapaz arranjou namorada, se formou, e acabou fazendo carreira num ramo totalmente diferente daquele tão incomum com que sonhara na infância. Acontece com muita gente, criança tem imaginação fértil. Thiaguinho, hoje em dia, trabalha na NASA, junto com seus outros colegas astronautas. Está mais feliz agora do que na época em que trabalhou no corpo de bombeiros, ou quando foi piloto de corridas, é verdade. Mas, secretamente, ainda olha fotos de endoscopia nasobucal na Internet, com lágrimas nos olhos.

A GRANDE MÃO

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Quatro meses e vinte e dois dias. Hoje, percebi algo de estranho na imensa mão que fala comigo diariamente, por cima do berço. Sei lá, tive a impressão de que a voz dela não parecia sair exatamente dela, mas devo estar enganada. Ando abusando da funchicórea. Quatro meses e vinte e oito dias. Aconteceu de novo. Desta vez foi pior. A boca da Mão parou de se mexer, mas a voz continuou saindo por alguns segundos. Não sei, sinto que algo não vai bem com ela. Cinco meses e seis dias. Hoje, descobri algo que mudou a minha vida: a voz que até então eu jurava ser da Mão, é, na verdade, o papai, falando de outro jeito, juntinho com os movimentos da Grande Mão. Não sei o que ele pretende com esta farsa, mas foi desmascarado. Bem que dizem que cinco meses é uma fase de grande amadurecimento. Só não entendi por que a Grande Mão compactua com isso, mas ainda vou descobrir.

CHEVETTE 86

O sinal fechou e ele parou a dois carros da faixa de pedestres. Como sempre acontece em São Paulo, vieram aquelas garotas com roupas engraçadas, entregando folhetos de imobiliária, normalmente com a foto de um casal feliz ou de uma personalidade como a Hebe. Não consigo entender por que alguém compraria um apartamento pela remota possibilidade de cruzar com a Hebe no elevador às sete da manhã, cheia de olheiras – se eu tivesse a intenção de comprar um, provavelmente isso me fizesse desistir.

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Eram três meninas naquele dia. Elas passaram pelo primeiro carro e deixaram três folhetos (cada uma deixou três). Fizeram o mesmo com o segundo motorista. O homem já tinha aberto um vão na janela e preparado um espacinho no saco de lixo pendurado no câmbio, desses que se ganha na lavagem, para receber a propaganda, mas as meninas olharam o carro e passaram direto para o de trás. Ele estava num Chevette 86 (modelo 87, diga-se). Não pretendia comprar apartamento nenhum, mas sentiu-se mal em não ter recebido os papeizinhos. Estava claro, as meninas haviam julgado: “esse não tem dinheiro para comprar um apartamento”. Não tinha o dinheiro, e gostava da Hebe, mas não engoliu a afronta. Se elas estivessem tão interessadas assim no negócio de vender apartamentos, não desperdiçariam folhetos deixando tantos em cada carro. O sinal abriu. Melhor assim, pelo menos não junta lixo no carro: “é pobre, mas é limpinho”. Andou mais uns quatro quarteirões e mais um sinal vermelho. E lá veio uma nova leva de meninas panfleteiras, enquanto algumas outras ficaram na calçada balançando bandeiras enormes com os nomes das construtoras, como se fosse haver um jogo de futebol entre as equipes dos escritórios concorrentes. Resolveu dar mais uma chance a elas, abriu novamente o vão na janela e ficou esperando. A primeira estava quase chegando, mas olhou o Chevettão, difarçou e passou para o carro de trás. O homem pensou em buzinar, em protesto. A segunda garota nem disfarçou, agiu como se ele não estivesse ali e foi direto para o automóvel de trás. Uma terceira olhou o carro de longe, mas ele já havia perdido as esperanças. Fechou o vidro e ficou lá dentro, de cara fechada, filosofando sobre como a humanidade era superficial, mesquinha e fútil. Pegou pesado mesmo. Mas eis que, quando menos esperava, ouviu uma batidinha no vidro. Lá estava a garota, papel em riste, oferecendo-o ao dono de um Chevette 86. Pela rapidez com que chegara, tinha inclusive dado preferência ao homem e seu carro de museu, pulando outros automóveis mais pomposos que estavam no seu caminho. Ele, que já estava irremediavelmente decepcionado com o ser humano, se comoveu com aquela atitude. Nem todo mundo julga os semelhantes superficialmente, foi o que concluiu, quase lacrimejando. Pegou, orgulhoso, os três ou quatro folhetos que a garota entregou e ia jogar no lixo imediatamente, como sempre fazia, mas sentiu-se na obrigação de dar pelo menos uma olhadinha daquela vez. Então pôde ler: “Troque já o seu carro! Superfeirão de automóveis neste sábado!”

ROMANCE

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Ele marcou um jantar inesperado, numa quarta-feira à noite. Pelo tom de voz ao telefone, não seria exatamente romântico. Mesmo assim, na hora marcada, ou uma meia horinha depois da hora marcada, ela apareceu linda, chamando a atenção dos outros clientes do restaurante. O garçom puxou a cadeira. Ela sentou-se, elegante. O marido já estava lá, suando (ele costumava suar muito), parecia nervoso. Sob a luz da vela ao centro da mesa, ela segurou a mão dele e disse:
– Desembucha, Paulo.
Ele limpou o suor no guardanapo de pano, olhou para os lados e pigarreou.
– Dessa vez você exagerou.
– O livro?
– Claro. O livro, essa droga desse livro.
– Eu sabia. Você está misturando as coisas, Paulo. Eu sou uma escritora, é a minha profissão, você sabe disso.
– Claro que eu sei, eu sempre admirei o seu talento, foi o que aproximou a gente.
– Então.
– Mas era bem diferente naquela época. Você escrevia contos eróticos, lembra? Aquilo, sim. Eu li um deles e pensei: “preciso conhecer essa mulher”.
– Qual foi mesmo?
– “Orgias na escada”.
– Era um conto romântico.
– Eu lia tudo o que você escrevia. Os textos eram picantes, sensuais, não tinha ninguém melhor do que você para descrever uma, uma…
– Paixão?
– Putaria.
– Agora é putaria? Antes você dizia que era arte…
– Mas é arte! Claro que é! O que seria da arte sem a putaria? Inclusive, depois de a gente se conhecer, os textos ficaram bem mais ricos. Você descrevia tudo o que a gente fazia, lembra? Teve aquele conto do metrô, o da obra abandonada, o do tanque do leão-marinho…
– Esse foi um dos melhores.
– Aquilo era um fetiche para mim, quando a gente transava era como se todos os seus leitores estivessem olhando. Aí veio o primeiro romance, uma obra-prima.
– “Meu marido insaciável”. Imaginei que você fosse gostar.
– E o seguinte, então: “Um verão em 69”.
– Nossas primeiras férias, em 1993.
– Depois vieram “Quanto mais, melhor”, “O que é possível no Kama Sutra”, “O martírio de um estrado”, tantos que eu nem lembro de todos. O nosso amor estava lá naquelas páginas, de verdade. Os gestos, os toques, os cheiros. Até que, de repente, você vem com aquele livro mentiroso…
– Você tem que entender, aquilo foi quando eu comecei a escrever ficção, eu expliquei isso na época. Era ficção!
– “Broxada em Marte”, Silvia? E desde quando marciano usa meias? Bem na hora do sexo?
– Eram quatro meias! Você nunca usou quatro meias!
– Daí para a frente foi só esculhambação. “O amor já foi melhor”.
– Era um livro filosófico.
– “Decepções amorosas de uma samambaia”. Samambaia! Você podia ter arranjado um disfarce melhor!
– Não era disfarce, era uma planta! Você é muito desconfiado!
– A planta era escritora!
– Mas ela era ruiva, eu sou morena! Não tem nada a ver!
– Eu relevei, aceitei seus argumentos por todos estes anos. Mas esse livro novo eu não vou aceitar!
– Por que não? Você não pode reprimir a arte!
– “O homem do membro pequeno”, não! Aí já é demais!
– É uma metáfora!
– Você não conseguiu me explicar essa metáfora até agora!
– É uma metáfora complexa, cada um entende o que quiser…
– Eu entendi muito bem. Dessa vez você subestimou a minha inteligência! E você que sempre disse que era de um tamanho bom… Eu quero o divórcio!
– Calma, vamos conversar!
– Nada disso! Eu não converso mais com você. Nem uma palavra. Senão depois vem o livro “O homem da conversa chata”. Chega! Acabou! Adeus!
Saiu irritado, esbarrando nos garçons. Ela ficou na mesa atônita, antes de tudo, surpresa com aquela reação. Não imaginava que algum dia o marido pudesse perceber as sutilezas da sua literatura. Pegou o telefone na bolsa e ligou para o seu editor, que era também um amigo.
– Hélio? É a Silvia. Meu marido pediu o divórcio.
– Por causa do livro?
– Foi.
– Eu imaginei que isso pudesse acontecer. Uma pena.
Um instante de silêncio nos dois lados da linha até que ela fala:
– Hélio, cancela o projeto.
– Como? Cancelar? Mas já está tudo encaminhado!
– Cancela. Agora.
– Pensa bem, Silvia! O seu marido já não pediu o divórcio? Para quê cancelar, então? Não vai adiantar nada!
– Eu sei, eu sei, não é isso. É que, depois do que aconteceu, eu prefiro publicar aquele outro, que eu escrevi antes, sabe? Agora dá.
– É verdade, aquele é até melhor do que o novo.
– Eu só quero fazer umas alteraçõezinhas, já faz algum tempo que ele foi escrito.
– E o que eu faço, então? Espero você mandar as mudanças?
– Espera. Por enquanto, já pode mudar o título.
– Por quê? Eu gostava tanto de “O amor e o vizinho”.
– Eu também gosto. Mas põe no plural.

CHÁ ENTRE AMIGOS

(Os nomes dos personagens são todos reais, colhidos em matérias de jornais, revistas e, claro, idôneos sites da internet, que ninguém é de ferro).

Bucetildes abriu a porta, arfante.
– Desculpe, pessoal. Meu ginecologista atrasou.
Hypotenusa Pereira reparou:
– Você tá toda molhada!
– É, peguei um pouco de chuva.
– Já vamos servir o chá – avisou Adolpho Hitler, sempre simpático, puxando uma cadeira para a colega.

Estavam todos ali, menos Antônio Dodói, que não apareceu nem mandou recado, mas ninguém comentou sobre o possível motivo de sua ausência. A conversa começou tímida, mas logo podiam-se ouvir as vozes ao longe. Falavam sobre os mais diversos assuntos e com tal empolgação que praticamente não tocaram no chá, que foi perdendo sua cauda de fumaça lentamente até ficar completamente gelado nas xícaras, como costumava acontecer. O chá era só pretexto. A certa altura, dona Mijardina entrou numa emocionada discussão sobre política com o senhor Jacinto Leite Aquino Rego que quase acabou em briga, mas que por sorte foi interrompida porque dona Mijardina precisou ir ao banheiro. Mijardina era uma otimista sobre o futuro do país, enquanto o senhor Jacinto era justamente o oposto e sempre fazia as piores previsões possíveis, no que era amplamente apoiado pelo colega Caio Pinto, outro notório desanimado. Papo vai, papo vem, mal notaram o tempo passar, mas ele passou e chegou a hora de se despedirem. O evento quase acabou em tragédia, quando Rolando Escadabaixo deu um tropeção ao descer os degraus da entrada, mas por sorte foi amparado a tempo por Um Dois Três de Oliveira Quatro, que demonstrou bastante preocupação com a integridade física do amigo. Estava tudo bem, Rolando garantiu. Haviam se passado duas horas e todos saiam revigorados e satisfeitos, já pensando na próxima reunião daquele querido grupo. Seria na casa de Adolpho Hitler, onde costumavam ser as melhores, dado o talento para anfitrião do agradável senhor.
Uma vez por mês, se reuniam para tomar chá, jogar conversa fora, e principalmente, desfrutar de duas horas completas – conforme combinado e, inclusive, registrado em documento escrito, lavrado em cartório – sem que ninguém fizesse nenhuma piadinha, comentário maldoso ou mesmo ironia velada sobre seus esquisitíssimos nomes e sobrenomes. Antes de sair, Chevrolet da Silva Ford perguntou se alguém queria carona e o senhor Etalívio, que estava a pé e de outra forma teria que andar quilômetros para chegar em casa, aceitou prontamente. Ufa, que sorte – pensou Etalívio, mas não falou, pois estavam na rua e ele não tinha certeza se as regras valiam da porta para fora.