Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte II

Assinatura avançada no Registro de Imóveis

Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I)[1], agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis.

Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos “atos de transferência e de registro de bens imóveis” (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020)[2]; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos.

Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis[3]. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria.

Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres – que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por mera averbação , poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de “envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet”, nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da Lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da Lei 14.382/2022).

Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes.

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Assinaturas eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I

Breves anotações e sugestões para sua regulamentação

A Corregedoria Nacional de Justiça acha-se debruçada sobre o desafio de regulamentar a Lei 14.382/2022. Ainda recentemente, o Sr. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou o Provimento CN-CNJ 139/2023, de 1º de fevereiro, que instituiu as regras basais do SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos[1].

Entre os assuntos que certamente entrarão no radar do órgão, acha-se a utilização das assinaturas eletrônicas no processo registral imobiliário. Tema de capital importância para os cartórios brasileiros, as assinaturas eletrônicas são instrumentos e ferramentas que vão aptificar os agentes a interagir na infovia de interoperabilidade do SERP e dos Operadores Nacionais das várias especialidades.

Lembremo-nos de que o tema não interessa tão somente na perspectiva do funcionamento do SERP, mas abrange, naturalmente, a gestão documental a cargo dos próprios cartórios. Documentos, livros, registros, inscrições etc., acolhidos, produzidos e mantidos na própria serventia, devem submeter-se a rígida codificação e enquadrarem-se em tabelas de temporalidade[2].

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SERP – havia uma pedra no caminho

O Congresso Nacional acabou por derrubar alguns vetos de dispositivos da Lei 14.382/2022. Entre outros, já apontados e comentados[1], gostaria de chamar a atenção, especificamente, para a derrubada do veto ao seguinte dispositivo da Lei:

“Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei.

§ 1º ……………………………………………………………………………………………………………….

III – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis deverão, obrigatoriamente, ser acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples, exceto se apresentados por tabelião de notas, hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria”.

O inciso foi promulgado, nos termos do § 5º do art. 66 da Constituição Federal, e se acha agora em pleno vigor.

Geleia geral notarial e registral

Já havia me dedicado ao tema aziago da substituição dos títulos, em sentido material e formal, por meras notícias digitais (notes), afeiçoadas a sistemas de registração alienígenas. Sobre a substituição paradigmática do sistema de registro de direitos pelo de registração por mera indicação, remeto o leitor aos argumentos já expendidos anteriormente[2]. A derrubada do veto introduz um novo elemento que haverá de render algumas discussões, razão pela qual retorno ao tema.

O notário ganhou uma atribuição heterodoxa: arquivamento de instrumentos particulares em suas “pastas próprias”, seja lá o que isto queira significar em tempos de digitalização. O tabelião de notas possivelmente concorrerá com o SERP neste mister, a fiar-se no disposto no inc. VIII do art. 3º da Lei 14.382/2022, alçados, ambos, a uma espécie de ente para-registral[3].

Entretanto, o notário ganha uma atribuição ainda mais inusitada: recebido o instrumento e arquivado em suas “pastas próprias”, dele expedirá (ou concertará) o extrato, que se torna, assim, uma espécie de traslado do documento por ele arquivado. De outra forma, terá sentido que receba o instrumento, arquivando-o em suas pastas, e acate o extrato elaborado por terceiros? Como estará seguro de que este não se acha em descompasso com o instrumento contratual?

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Um fantasma que ri

Ermitânio Prado fica passado nos finais de anos. Fui visitá-lo na antevéspera. A cidade está vazia, há um quê de nostálgico e triste no ar. O Velho foi ao parque e ali fuma, solitário.

– Tudo há de passar muito bem passado, escriba. A manhã de um novo tempo há de nascer e de nós, meu caro, não restará mais do que a roupa amarfanhada deitada sobre a cadeira vazia….

Estava triste. Disse-me que sempre foi assim, desde criança, quando já não esperava o seu Papai Noel que havia partido aos quatro anos de idade.

– No final de ano sou como um fantasma que ri!, disse o Velho, entre uma baforada e outra de um genuíno Cohiba Medio Siglo. “Sinal dos tempos”… Fuma um charuto, diz, “antes que me proíbam de fumar e de pensar”. É um humor mofino, certamente.

A aposentadoria compulsória e o peso da irrelevância

O café sempre lhe é servido na biblioteca – Biblioteca Medicina Animæ – onde o Velho Oficial se encontra enfurnado todas as manhãs quando a empregada chega para arrumação. Ele sempre se acha ali, dobrado sobre algum livro desencravado das entranhas ensombradas do apartamento art déco da Avenida São Luís

O quadro nunca se modificou desde sua aposentadoria compulsória. Cofia a barba, inclina-se sobre o texto, passa o indicador lentamente na folha aberta – como se o dedo o guiasse por sendas para sempre perdidas. Olha para o alto, toma um trago e queda-se extático. Deposita suavemente a xícara e se inclina com reverência sobre o livro e uma nova cena se inaugura. São como cortinas que se abrem e fecham, num espetáculo cujo enredo somente ele é capaz de apreender e apreciar. Penso que ninguém mais transita por aquelas alamedas vazias e acidentadas.

Ultimamente, vejo-o abichornado. Implica com detalhes, se aborrece com besteiras, irrita-se por somenos, diz que “anda à matroca, sem rei, nem roque”. Agora deu para reclamar dos gonzos da porta, “rangem de modo pavoroso – est diabolus in musica…”, ranzinza.

O que mais o perturba, entretanto, é o fato de que as letras parecem se apagar dos álbuns. “Esfumam-se, confundem os meus olhos”, diz com tristeza. “O vigoroso almagre de iluminuras empalidece em ocres desmaiados; derrui-se o cólofon sobre si mesmo, o cedilha tropeça, os travessões interditam, os tipos fundem-se e enleiam as serifas aos borrões…”.

Na última quinta-feira eu o encontrei empunhando uma velha lupa toda adornada de madrepérola e prata. Esventrava o trato de um robusto livro. Ao me ver, mostra-me com gáudio: “Autêntica Fabergé… Pertenceu ao Grande Visconde de Porto Seguro”. E logo retorna o ramerrão: “as letras se arredam dos fólios, abrem-se avenidas de alvuras onde pululam fragmentos de chumbo e cinza, restos de histórias para sempre esquecidas. “Eis que as gloriosas colunas da civilização se precipitam e jazem no abismo informacional. Dataísmo, escriba, é o maldito Dataísmo!”, diz enfurecido, para logo emendar: “estilhas de sentidos, dados que se combinam em nuvens abscônditas. Note, caro amanuense, Deus não joga dados com a máquina”. Irrita-se. Acentua-se a rosácea no rosto vincado. Cofia a barba alvejada. Acalma-se. Suspira profundamente. Silencia. Parece conformar-se, como o náufrago na praia deserta, o caminhante no fim do caminho.

Os livros são para ele os “lindes extremos postos à barbárie”. Pergunto-me: o Velho registrador investiga o quê? O que busca no labirinto já sem entradas, nem saídas? Quedo-me em silêncio, observo a veneração devotada aos alfarrábios gentios. O que busca nesta altura da vida? O que anela a boa alma que outrora fora conhecido como maior estudioso de história dos tabeliados medievais?

Foram-se os belos restaurantes da cidade, deitaram-se os bulevares aformoseados de resedás e jacarandás, perderam-se na memória paulistana as casas de chá, as sapatarias e chapelarias da Quintino, os pãezinhos da Santa Teresa… Resiste ainda a Igreja das Almas, onde os paulistanos oferecem sua memória em sacrifício piedoso aos bons santos. “Eles que a registrem em seus eternos livros de registro!”, resmunga consolado.

Parece que finalmente a modernidade o apaga. Alveiam-se os contornos do ancião e de seus livros empoeirados. Ele já se vê como numa velha fotografia a apagar-se, esboroando-se entre os cochilos que demoram. Pinça aqui e acolá um provérbio, um brocardo latino (que já ninguém atina o significado), vocaliza-os, invectivando a choldra alienada. “Bilontras! Azevieiros!”.

Dr. Ermitânio Prado, registrador, ancião letrado, aposentado compulsoriamente, advogado retirado. Eis o lente que sucumbe sob as próprias cãs e suporta o peso da irrelevância. Dele pouco se diz, mas todo o referido é verdade e dou fé.

SERP – Andaimaria de isopor e plástico

Ao depor o imperador Rômulo Augusto, em 476, Odoacro pôs fim ao Império Romano do Ocidente e se tornou o primeiro dos reis bárbaros de Roma.

Desci a Consolação na manhã fria desta primavera atípica de São Paulo. Queria visitar o Dr. Ermitânio Prado logo cedo e com ele tomar um bom café da manhã.

Enquanto descia, pensava na família do meu amigo. Não sei de seus pais, nem de seus filhos, já nem sei de outros amigos que porventura possa ter.

“Os filhos foram à forra”, diz, “soltos num mundo feito de estupidez e picho nos ombros e nos monumentos”.

Penso sempre na biografia deste homem que o tempo curva num delicado descenso honroso e gentil. O Velho jamais revela algo de si mesmo, de sua estirpe, de sua grei. Sei que é descendente de Eduardo Prado, de quem certamente herdou o talento para a diatribe. Um “homem contra um regime”, como alguém já escreveu a respeito de um grande brasileiro.

Vinha entretido com as mesmas ideias, refletindo sobre a conveniência e oportunidade de escrever uma pequena obra crítica sobre o “moderno” SERP, ora em fase de regulamentação. Causa-me perplexidade o fato de que se possa destruir uma extraordinária obra do gênio humano – como é o sistema notarial e registral brasileiro –, substituindo-a por uma “disforme andaimaria de isopor e plástico”. Lembrei-me de ter dito por aí que seus arautos se pavoneiam de ter ornado a vetusta LRP com contas de acrílico, cerzidas na marmórea tessitura normativa de um monumento erigido ainda no século XIX. “Flores de plásticos numa selva tropical”, concluí.

De corvo pennas pavonis inveniente… Diz rindo, sempre mordaz, o Velho.

Disforme andaimaria de isopor e plástico. É assim que o Dr. Ermitânio se refere às modernosas reformas encetadas pelo “gênio liberto de uma garrafa maldita”, criticando a deslatinização do notariado e do registro público brasileiros, reverberando as acertadas nótulas críticas que colheu do nosso Paysan de l’Andorre a propósito do tempo presente.

Acheguei-me e o aroma do café escapava pelas frestas das janelas que dão para a varanda espaçosa. Meus pensamentos se esvaíram imediatamente e uma sensação prazerosa invadiu-me a alma. “Não é o elixir de um Ibicaba, Escriba, mas confortemo-nos com um bom espresso”, foi logo dizendo e dispondo os acepipes especialmente preparados para o nosso encontro de todas as quintas. A conversa reata o fio de meus pensamentos e de tantos outros colóquios travados entre nós. Confidencio-lhe a intenção de escrever um livro sobre a Lei 14.382/2022, suas virtudes e defeitos.

– Escriba, veja bem. Fomos capazes de destruir, numa patranhada revolucionária, a história ininterrupta de nove séculos, pondo abaixo a única antiguidade americana[1]. Estas reformas registrais serão tão firmes quanto a perna fina e a bunda seca do Marechal…

Rimos de rebentar as ilhargas, o Velho e eu.

– Sim, Dr. Ermitânio, compreendo a analogia com a patuscada republicana. De igual maneira, todos nós assistimos bestializados à apressurada fundação de entidade corporativa… Ele me interrompe:

– …fruto acidental de coito intercrural! Era preciso vocalizar o mantra economicista da nouvelle vague registral. O ente espectral tomou forma na Internet antes de sua consagração num livro de Registro Público… Nihil est in intellectu quod non prius in sensu, atalha o velho com seu risinho mofador.

Confesso que hesito diante do argumento de que, afinal, nada se poderia fazer, senão aderir servilmente à onda avassaladora que partia do ventre da Nomenklatura financista de turno. A simples revogação da LRP seria atitude mais honesta em face da adoção despudorada das novas matrizes que orientaram confessadamente a reforma.

– Escriba, pense bem. Sempre haverá um Augústulo que se apequena diante de um Odoacro. Aquele se prestará à perfeita representação da inevitabilidade do destino de homens fúteis, refestelados pela prebenda generosa. Já o hérulo acabará por vencer e ser conduzido por uma cultura a que já não pode senão assimilar. Assim é o declínio das grandes instituições; podem soçobrar em face da ignorância ativa de uns poucos e o opróbrio de tantos, como na tragédia, entretanto, Roma æterna est!

Apercebo-me quando o Velho se apoquenta. Digo-lhe que dos escombros desta reforma aziaga haverá de brotar afinal uma flor…

– C´est la fleur du mal! – vocifera. A reforma é fruto de uma figueira estéril. Não torna a água à fonte, nem o perfume ao frasco…

Desvio o rumo da conversa. Falo do Tio Jacaré, dou notícias do front, falo dos concursos, recursos e de outras barbaridades. E demos muitas risadas inspirados por um bom digestivo.


Nota

[1] A passagem era deliciosamente mordaz e eu lhe perguntei a fonte. Ele não hesitou. Trata-se de célebre passagem de Capistrano de Abreu que se acha à p. 341 do seu Eduardo Prado in Ensaios e Estudos (Crítica e História) – 1ª série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931.

Tio Jaca e a neblina do Éden

– “Notou?” – dispara o Tio Jaca empertigado na sua Bergère, crivando seus olhos sanpaku em mim. Sempre me incomodo com isso, ele sabe. E logo emenda:

– “Provavelmente, não. Já passou…” diz, desviando o rosto vincado pelo tempo. Aponta o queixo para algum ponto do quintal (onde não se vê mais do que uma penca de hibiscos) e insiste enigmaticamente: – “Notou?”.

Abre-se um silêncio solene na tarde radiosa da Casa Amarela. Ao fundo da edícula, onde mora, alguns micos se dependuram na pitangueira e nos espiam curiosos.

Já lhes contei alhures sobre o Tio Jaca, o Velho Tio Jacaré, irmão de minha mãe, solteirão convicto, “filho do Tempo”, como diz. Um tempo de que já não nos lembramos… “e nem falta nos faz!” – emendo. Paro e estremeço com a própria conclusão. “Andamos esquecidos”, tento desculpar-me por uma falta presumida. O Tio não liga. Projeta-se na chaise. Está onde sempre esteve. Olha-me pelas lentes embaciadas que magnificam seus olhos lacrimosos. O homem fartou-se do olhar, logo se vê. Às vezes fecha os olhos cinzas e os cílios vibram feito antenas tremebundas – “para perceber a substância das coisas”, diz, sorrindo.

– “O passado nos escapa”, ele retoma provocativamente. “Que tal os novos enciclopedistas, hein? hein?”, projeta o queixo prógnato como se desferisse golpes no ar. “A choldra avança sobre a Wikipédia, legiões de idiotas reescrevem-na furiosamente, editam o ditado de turno com as tintas do dia. Lilliputeanos afanosos, tarefeiros sem virtudes, nem caráter. Votam convictos, amanuenses devotados à grei difusa e incaracterística. Vivem no fluxo, na vaza informacional, sem nós, nem asperezas, sem dúvidas, nem certezas, sem partidas, nem chegadas. Sem origem, nem destino”.

Novo silêncio. De repente, dispara:

– “Notou? Provavelmente, não… Já passou”, retoma o mote. Toma fôlego – “jornais já não são da sua própria opinião, notas e notícias esfumam-se no écran caleidoscópico, proclamam um silêncio cerzido de algaravias. Maldita selva de papagaios!”.

Passamos algum tempo em silêncio, acariciados pela brisa outonal.

– “Esquizoarquia, nubilopáticos. Latrarquia sancionada sob estolas e cifra canônica. Peiratocratas e outros salteadores de fina estampa. Instauramos a fractarquia entre os fraternos. Dividir por zero – eis a dieta da modernidade!”, sentencia grandiloquente. Tio Jaca mete-se a fuçar nos dicionários esquecidos e parece não encontrar as palavras certas. Não satisfeito, diz que esventra os vocábulos, secciona-os, junta tudo e cozinha. “A comistão semântica é fruto de alquimia de todas as gramáticas…”.

Parece que desembesta na ladeira da loucura, o Tio Jaca.

– “Rizoma digital que se espraia na nuvem. Ali grassa a desgraçada condensação das massas na obnubilação social. Eis o homunculus digital, fruto demoníaco da subversão do fogo sagrado. O Homem desaparece às vistas do Homem e eis que surge, entre nós, o Super-Homem, sem memória e sem caráter, sem passado, nem futuro. Um homem intransitivo, transumano, cravado na Sé, feito Golem redivivo que se basta e pronto! Fulminadas as esperanças, as promessas são enterradas no sal. Os homens serão banidos da pólis e encarcerados em simulacros do real, condenados à infinita repetição de prazeres, tragédias, volúpias e vícios da modernidade…”. Tudo embalado em belas narrativas, logo intuo o sentido da prosa.

O Tio vê que me aflijo. Verdade é que não tanto pelo que diz, mas pelo que revela de si mesmo. Tenta me confortar. Cofia os bigodinhos e diz com um sorriso irônico: “Tudo é feito para o seu próprio bem. Calma. Confie”. E recita um poemeto (acho que de sua própria lavra):

“Viva no contratempo e
oiça o silêncio
acima, abaixo, entre
(notas estridentes).

Guarde o sorriso nos dentes,
o instante entrementes.
Honre seus entes
de ontem, de antes e de sempre.

Seja substancial.
Como o lençol no varal,
o sol no quintal,
no mar, o sal”.

Instrumento particular. Título inscritível – certidão de RTD.

Dando seguimento aos debates técnicos e práticos da nossa Oficina Notarial e Registral (Migalhas Notariais e Registrais), apresento-lhes um caso interessante de apresentação a registro de título consistente de certidão expedida pelo Registro de Títulos e Documentos de instrumento particular ali registrado.

O assunto não é exatamente inédito. Há precedentes que apontam a uma orientação já pacificada no âmbito da justiça registral. O que chama a atenção, na verdade, é a viragem representada pela reforma da Lei de Registros Públicos pelo advento da Lei 14.382/2022. Como veremos mais à frente, o novo marco legal pode levar a uma rediscussão dos temas postos na dúvida suscitada, afinal julgada procedente, razão pela qual a veiculo por aqui.

Vamos ao caso concreto.

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Maria Helena Leonel Gandolfo

Revisitando as galerias de fotos do nosso IRIB, os rostos de tantos amigos e amigas passam rapidamente, como num flash animado por quadros complexos e inextrincáveis – conexões que se formam numa espécie de mosaico existencial. Com quantas pessoas cruzamos no curso de nossas vidas? Quantas delas nos marcam de modo indelével? Os encontros e desencontros são um mistério profundo que não nos é dado conhecer.

Nesta manhã fria penso que a vida é efêmera. As situações, cenários, rostos que se desenharam nesta longa jornada vão se esmaecendo e nos fica um sentimento de profunda e inconsolável solidão. Voltamo-nos para o passado, como quem busca dar sentido ao presente e nos fortalecer para os desafios do futuro. Lembro-me do Elvino, do Jether, do Carvalhaes, do Oliveira Pena, do Albergaria, do Fioranti… Tantos nomes, tantos lugares, tantos textos… tudo passa dançando na memória e no écran do meu computador, veloz, fugaz.

Lembro-me bem de Maria Helena figurando de modo indisputável nos encontros do IRIB. Acho que a primeira vez que nos cruzamos foi em Fortaleza, em 1996 (ou terá sido em Belo Horizonte, em 1997?). Eu estava animado com o admirável mundo novo da informática registral. Ela demonstrava interesse na matéria.

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Consolidação de Normas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo – 1972

No ano de 1972 ingressava na atividade registral no Primeiro Cartório de Registro de Imóveis e Anexos de São Bernardo do Campo, então a cargo do registrador José Cândido Baleeiro. Ingressei como auxiliar atuando nos anexos – Cartório do Juri, Menores e Corregedoria Permanente.

Mais tarde, com a oficialização dos anexos, fui integrado no Registro de Imóveis da comarca. Lembro-me que havia no cartório uma edição que hoje disponibilizo aos leitores da Kollemata.

Era um livro bem acabado e que representava o resultado de árduo trabalho empreendido pelo desembargador José Carlos Ferreira de Oliveira, mas, principalmente pelo magistrado Mohamed Amaro — “afeito a estudos dessa natureza e dotado de espírito de pesquisa”, como se lê no prefácio abaixo. 

Esta obra é rara e se encontra, aqui e acolá, nas velhas serventias. À medida que novo registradores se apresentam, mais e mais esse material é relegado como antiqualhas. 

Um amigo, hoje desembargador, disse certa feita a meu respeito: “é o maior especialista em direito revogado do país!”. Ri da observação. Talvez tenha razão. Sou, afinal, um mero historiador distraído:

“Dependendo da sorte, meu caro leitor, pode calhar de ser o outro – esse que amanhece ao meu lado, obstinado, impaciente, azafamado pelas urgências e solicitudes esquecidas. Um historiador, portanto! 

Não se iluda! Sou qualquer um, na infinita certeza de que tudo calha num fato” [Observatório do Registro].

Deixo aqui consignadas estas poucas linhas como quem lança uma mensagem na garrafa. Alguém há de lê-las um dia, quem sabe? 

SÉRGIO JACOMINO.

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