sábado, 27 de fevereiro de 2010

As Colisões dos Direitos Fundamentais e a Ponderação

Em um final de semana desses, me deparei com uma situação fática, que muito me interessou: um texto do Blog do Professor George Marmelstein Lima, que trata sobre ponderação. Vamos a ele:

O grande problema da ponderação, enquanto técnica de decisão para solucionar as colisões de direitos fundamentais, é que ela vai gerar o seguinte paradoxo: fatalmente, o juiz terá que descumprir a Constituição, total ou parcialmente!

Não há como fugir disso. Alguns tentam camuflar o descumprimento com argumentos “linguísticos”, mas no fundo vai ser sempre isso: uma norma da Constituição terá que ceder em favor de outra mais importante.

Por exemplo, quando se defende que a liberdade religiosa não justifica o sacrifício de vidas humanas, o que se deseja dizer é que a vida vale mais do que a religião. Sacrifica-se o direito de religião em favor do direito à vida. Quer queira quer não queira a liberdade religiosa está indo para o inferno… (trocadilho fraco, não?)

Vejamos a seguir um caso que dificilmente poderia ser resolvido sem pondereção. Ei-lo:

A Constituição estabelece que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI, da CF/88).
O Supremo Tribunal Federal tem interpretado essa norma de maneira praticamente absoluta. Ele não admite ponderações. Quando muito se admite a utilização da prova ilícita para inocentar, nunca para condenar.
Nesse sentido, vale transcrever esse interessante voto do Min. Sepúlveda Pertence:
“Não contesto a relatividade dos direitos e garantias individuais, sujeitos a restrições na estrita medida da necessidade, em caso de conflito com outros interesses fundamentais igualmente tutelados pela Constituição.
Por isso, igualmente não nego, em linha de princípio, a legitimidade do apelo ao critério da proporcionalidade para solver a colisão entre valores constitucionais.
Posto não ignore a autoridade do entendimento contrário, resisto, no entanto, a admitir que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes.
É que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou – em prejuízo, se necessário, da eficácia da persecução criminal – pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita
”. (STF, HC 79.512, Rel.: Min. Sepúlveda Pertence, j. 16/12/1999)

Para verificar se esse entendimento do Supremo Tribunal Federal está correto, vale analisar um caso bastante interessante.

Digamos que um marido ciumento, desconfiado de sua mulher, resolva contratar um detetive particular para saber se está sendo traído. O detetive, utilizando de expediente ilegal, grampeia o telefone celular da esposa de seu cliente. No meio das escutas gravadas ilicitamente, o marido descobre que, além de estar sendo traído, a mulher também costuma ministrar medicamentos pesados (“Lexotan”) para forçar as suas filhas dormirem enquanto ela se diverte com seu amante. Isso é realizado com certa freqüência, sendo que, nas gravações, a mulher não demonstra nenhum remorso em relação a isso.

O marido fica indignado e apresenta as provas ao ministério público. O ministério público denuncia a esposa.

Essa gravação ilegal pode ser utilizada para condenar a esposa ou o amante?

Esse exemplo se baseou em um caso real. No referido caso, que chegou até o Superior Tribunal de Justiça, a prova não foi aceita para condenar a mulher. Confira a ementa:

“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. ESCUTA TELEFONICA. GRAVAÇÃO FEITA POR MARIDO TRAIDO. DESENTRANHAMENTO DA PROVA REQUERIDO PELA ESPOSA: VIABILIDADE, UMA VEZ QUE SE TRATA DE PROVA ILEGALMENTE OBTIDA, COM VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE INDIVIDUAL. RECURSO ORDINARIO PROVIDO.
I – A impetrante/recorrente tinha marido, duas filhas menores e um amante médico. Quando o esposo viajava, para facilitar seu relacionamento espúrio, ela ministrava “lexotan” às meninas. O marido, já suspeitoso, gravou a conversa telefônica entre sua mulher e o amante. A esposa foi penalmente denunciada (tóxico). Ajuizou, então, ação de mandado de segurança, instando no desentranhamento da decodificação da fita magnética.
II – Embora esta Turma já se tenha manifestado pela relatividade do inciso XII (última parte) do art. 5. da CF/1988 (HC 3.982/RJ, rel. Min. Adhemar Maciel, DJU de 26/02/1996), no caso concreto o marido não poderia ter gravado a conversa a arrepio de seu cônjuge. Ainda que impulsionado por motivo relevante, acabou por violar a intimidade individual de sua esposa, direito garantido constitucionalmente (art. 5., X). (…)” (STJ, RMS 5352/GO, relator para acórdão Min. Adhemar Maciel, j. 27/5/1996).

Até aí, a decisão está coerente com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embora talvez fosse possível, já nessa hipótese, pensar em uma ponderação.

No entanto, para tornar a discussão ainda mais interessante, continuo com o mesmo exemplo, mas criando uma situação hipotética.

Digamos que o mesmo marido ingresse com uma ação cível, em uma vara de família, tentando obter a guarda das crianças. Na sua petição, ele junta as gravações ilegais demonstrando que a mulher efetivamente ministrava “Lexotan” às meninas. Essas são as únicas provas que ele conseguiu coletar. Ninguém quis testemunhar contra a mulher.

Para justificar a utilização das provas ilícitas, o marido invocou o artigo 227 da Constituição que estabelece:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A mulher, por sua vez, argumentou que a interceptação clandestina fere o artigo 5, inc. XII, da CF/88:
“XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Alegou, ainda, que a intercepção clandestina é, inclusive, crime punido pela legislação penal:
“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa” (Lei 9.296/96).

De acordo com os argumentos da mulher, se fosse aceita a prova obtida mediante a prática de um ilícito, de nada adiantaria a garantia prevista na Constituição e estariam abertas as portas para aceitar, por exemplo, a confissão mediante tortura ou outras barbaridades.

Sendo assim, questiona-se: você sendo o juiz de família competente pela decisão sobre a guarda das crianças aproveitaria esse material para tomar uma decisão contra a mãe? Qual o valor, no caso concreto, mais importante: a proteção das crianças, com absoluta prioridade (art. 227) ou a proibição de utilização da prova ilícita (art. 5º, inc. LVI)?
Como resolver esse conflito sem descumprir a Constituição?

Opinião pessoal sobre o caso:
No caso em epígrafe, as crianças são as vitimas! Não há como se falar em "garantia da inviolabilidade de sigilo" frente ao direito/dever dos pais em "prioritariamente" garantir a saúde das crianças. Observa-se que a escuta não autorizada não causa danos (apesar de ter realmente ocorrido!) à garantia individual da mulher, visto que em momento algum a mesma tenha sido questionada pela conduta adulterina. Exclusivamente, ao que parece, observa-se apenas o fato do bem estar dos filhos. Assim, minha sentença: as crianças passam para a guarda do pai!

Nenhum comentário: