A redução de efectivos da Administração Pública através da rescisão por mútuo acordo

O número de efectivos da Administração Pública fica periodicamente sob o escrutínio da opinião pública e suscita também periodicamente o anúncio de medidas políticas.

Não há Reforma Administrativa, Reforma da Administração Pública, Modernização da Administração Pública, Reforma do Estado que não inclua o tema. E quando a Reforma ou Modernização acaba por não “fazer sangue” é considerada uma reforma falhada e espera-se pela próxima.

Este tema levaria a tratar

– das causas da expansão, aparentemente contínua,  do número de efectivos da Administração Pública (Luís Fábrica, Presidente da Comissão que tratou do assunto em 2006  reconhece uma moderação na altura e denuncia uma retomada de crescimento posterior);

– das medidas de contenção ciclicamente  adoptadas, sempre ultrapassadas por admissões não autorizadas e também ciclicamente regularizadas por medidas extraordinárias;

– das medidas de gestão de efectivos que deixaram de ter colocação (em 1974 e 1976, organismos extintos e funcionalismo ultramarino, com criação do Quadro Geral de Adidos, em 1982, 1984 e 1992, excedentes, disponíveis, Quadro de Efectivos Interdepartamentais, desactivado na era Guterres e em 1999 com novo diploma, em 2002 Quadros de Supranumerários, em 2006 Mobilidade Especial) , com mecanismos de gestão que, reduzindo parte dos vencimentos das escassas centenas de funcionários colocados nessa situação os estigmatizam e tornam mais difícil a sua recolocação.

  João Paulo Santos  na sua  dissertação  para obtenção do grau de Mestre em Administração e Políticas Públicas  Emprego Público: da Estabilidade à Incerteza apresentada em 2003 no ISCTE ,  ilustra de forma elucidativa a dimensão do crescimento e a mecânica da regularização periódica de admissões.

Quando a crise apertou no final de 2010 Sócrates e Teixeira dos Santos, cujo segundo Programa de Governo declarou concluída a Modernização da Administração Pública optaram por cortar vencimentos e manter emprego, prometendo uma segunda fase do PRACE, que, demagogicamente, afirmavam só ir reduzir encargos de pessoal a nível das chefias. A troika acomodou esta estratégia, bem como a redução de pessoal de apenas 1 % ao ano na Administração Central, mas é evidente que a dimensão dos cortes orçamentais impostos em 2011 e previstos para 2012 obriga a cortar encargos com pessoal e não meros consumos intermédios.

Como ? De várias formas:

– reduzindo nos contratos a prazo (ver professores do basico e secundário e investigadores);

– pondo em causa contratos por tempo indeterminado que não tenham a protecção garantida aos ex-titulares de nomeação definitiva (ver assistentes e professores do ensino superior mais recentes) ;

–  alijando ex-titulares de nomeação para mobilidade especial, cedendo-os a privados que assumam as actividades, ou recorrendo à rescisão por mútuo acordo com compensação, aliás o único mecanismo de redução de efectivos  explicitado no Programa do Governo.  

A rescisão por mútuo acordo com compensação criou muito entusiasmo em 2004 na primeira Convenção do Compromisso Portugal onde se chegou a adiantar a possibilidade de rescindir 200 000 contratos (que na altura nem eram contratos mas, de modo geral, nomeações) . Depois tivemos as intervenções de Miguel Cadilhe propondo usar o ouro do Banco de Portugal para financiar as rescisões e Jacinto Nunes, ex-Governador do Banco de Portugal, explicando-lhe por que razão tal não podia ser.

Este PSD e este Governo estão mais próximos do Compromisso Portugal que o PSD e o Governo da altura. Mas será esta estratégia exequível ?

Julgo que não.

Em primeiro lugar, despejar algumas dezenas de milhares de actuais funcionários no mercado de trabalho é fazê-lo directamente para o desemprego, tanto mais que o sector empresarial privado continua a fazer o mesmo. Mas nas épocas de prosperidade ninguém se lembra de reduzir efectivos…

Em segundo lugar, é preciso perceber que os funcionários que poderão ser mais sensíveis à oferta são justamente os mais adaptáveis, os que já trabalharam no sector privado, ou seja, os que poderiam ter um papel dinamizador numa administração pública modernizada. É  certo que as chefias, por via da coaccção psicológica, poderão intimidar os funcionários com perfil menos dinâmico, e levá-los a desvincular-se mas esses serão também os que menos facilmente se poderão recolocar.

Se com as actuais condições legais de compensação, acolhidas tanto no Código do Trabalho como na Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, a rescisão por mútuo acordo poderia  atractiva não o será certamente nas condições previstas no Acordo com a troika. Será politicamente aceitável que as actuais condições  sejam retiradas à generalidade dos trabalhadores e mantidas para a função pública ? O mesmo se diga de outra medida de descongestionamento – a pre-aposentação, que chegou a figurar na lei da função pública mas por muitas razões deixou de ser aplicada no privado, e que, nas circunstâncias  actuais poderia ser aplicada. Mas ainda que o fosse,  a experiência das aposentações de 2008 e 2009 com perda de pensão, com posterior  proibição de acumulação de rendimentos e tributação pela chamada “contribuição extraordinária de solidariedade”, deu um sinal negativo.

O mais curioso é que, tendo a figura sido introduzida na legislação da função pública em 1982 que se saiba, nenhum funcionário se desvinculou por mútuo acordo com compensação.

Porque os funcionários não aderiram ? Não, porque os próprios Governos bloquearam a aplicação da legislação.

Num dos Governos da Aliança Democrática (PSD/CDS), o Decreto-Lei nº  167/82, de 10 de Maio, veio criar a figura:

Artigo 18.º
(Incentivos ao descongestionamento dos QEI)
1 – Em ordem a promover o descongestionamento dos QEI, designadamente no tocante aos funcionários e agentes titulares de categorias de difícil recolocação, a Administração poderá, mediante requerimento dos interessados e nas condições estabelecidas nos números seguintes, promover a sua desvinculação da função pública, através do pagamento de uma indemnização ou da atribuição de um subsídio às empresas privadas em sectores ou áreas prioritárias ou instituições privadas de solidariedade social que queiram integrar nos seus quadros os funcionários e agentes constituídos em excedentes.

2 – A indemnização a que se refere o número anterior corresponderá ao valor de 2 anos de vencimentos ou salários, diuturnidades e subsídio de Natal, sendo o respectivo pagamento suportado por verbas do orçamento do serviço gestor dos QEI.

3 – O subsídio previsto no mesmo n.º 1 prolongar-se-á por um período de 3 anos, correspondendo a 50%, 25% e 15% do vencimento base da categoria de que o excedente for titular, respectivamente no primeiro, segundo e terceiro anos de serviço na empresa empregadora, devendo esta para o efeito fazer prova de que mantém nos seus quadros, durante aquele período, o ex-funcionário ou agente.

4 – A definição dos sectores ou áreas prioritárias cujas empresas poderão beneficiar do subsídio mencionado no número anterior será feita por resolução do Conselho de Ministros.

5 – Os excedentes cuja desvinculação da função pública se faça nos termos deste artigo não poderão reingressar nela, ainda que em situação além dos quadros, antes de decorrido um prazo de 10 anos após a respectiva desvinculação.”

Dois anos depois o Governo do Bloco Central (PS/PSD) mantém-na.

Decreto-Lei 43/84, de 3 de Fevereiro

Artigo 14.º
(Incentivos ao descongestionamento dos quadros de efectivos interdepartamentais)

1 – Em ordem a promover o descongestionamento dos quadros de efectivos interdepartamentais (QEI), podem os membros do Governo em cada caso competentes, precedendo parecer da Secretaria de Estado da Administração Pública, conceder aos excedentes que o requeiram:

a) Desvinculação da função pública, mediante indemnização;
b) Aposentação voluntária;
c) Licença sem vencimento por tempo indeterminado.
2 – A constituição de qualquer das situações previstas no número anterior, relativamente a categorias ou carreiras que venham a ser abrangidas por diploma legal de descongestionamento, não carece de parecer da Secretaria de Estado da Administração Pública.

“Artigo 15.º
(Desvinculação da função pública mediante indemnização)
1 – Aos excedentes desvinculados da função pública, nos termos do artigo anterior, será paga uma indemnização de montante correspondente a 2 anos de vencimento, diuturnidades e subsídios de Natal e férias, reportados à categoria que detêm no quadro de efectivos interdepartamentais, a suportar por verbas dos orçamentos dos serviços responsáveis pela sua gestão administrativa.

2 – Os excedentes abrangidos por esta medida não poderão ser admitidos, a qualquer título, em serviços e organismos da administração central, regional e local antes de decorrido o prazo de 10 anos sobre a respectiva desvinculação.”

Contudo, o terceiro dos Governos Cavaco Silva (PSD sozinho) esvazia-a remetendo-a para diploma autónomo:

Decreto-Lei nº 247/92, de 7 de Novembro

“Artigo 6.º

Opção por medidas excepcionais de descongestionamento da função pública
1 – O pessoal considerado disponível nos termos do artigo 3.º e integrado nas categorias e carreiras a fixar por despacho do Ministro das Finanças poderá optar por uma das seguintes medidas excepcionais de descongestionamento da função pública:

a) Aposentação voluntária;
b) Pré-aposentação;
c) Desvinculação da função pública mediante indemnização;
d) Licença sem vencimento por tempo indeterminado.
2 – O despacho a que se refere o n.º 1 deverá fixar o período durante o qual podem ter lugar as opções ali referidas.

3 – A opção a que alude o n.º 1 será feita no prazo de 60 dias contado da data de afixação no respectivo serviço ou organismo da lista nominativa a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º ou da data da recepção do registo, no caso previsto na parte final do mesmo preceito.

……………………………………………………..

Artigo 9.º
Desvinculação da função pública mediante indemnização
O regime de desvinculação mediante indemnização será objecto de diploma autónomo, o qual terá em conta o estabelecido em regimes da mesma natureza, se os houver, para corpos especiais.”

Nem António Guterres / Jorge Coelho (PS), em 1999, nem Durão Barroso / Manuela Ferreira Leite (PDS/CDS), em 2002, a reactivam.

José Sócrates / Teixeira dos Santos (PS) voltam à técnica do diploma próprio, tanto na Lei da Mobilidade Especial

Lei 53/2006, de 7 de Dezembro

Artigo 42.º
Desvinculação voluntária
Nos termos previstos em diploma próprio, podem ser consideradas propostas de desvinculação voluntária de pessoal em situação de mobilidade especial mediante justa compensação

Como na Lei dos Vínculos, Carreiras e Remunerações

Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro

Artigo 32.º
Cessação da nomeação

  1. A nomeação definitiva cessa por:
    1. Conclusão sem sucesso do período experimental, nos termos dos n.os 8, 9 e 10 do artigo 12.º;
    2. Exoneração a pedido do trabalhador;
    3. Mútuo acordo entre a entidade empregadora pública e o trabalhador, mediante justa compensação;
    4. Aplicação de pena disciplinar expulsiva;
    5. Morte do trabalhador;
    6. Desligação do serviço para efeitos de aposentação.
  2. A exoneração referida na alínea b) do número anterior produz efeitos no 30.º dia a contar da data da apresentação do respectivo pedido, excepto quando a entidade empregadora pública e o trabalhador acordarem diferentemente.
  3. A causa de cessação referida na alínea c) do n.º 1 é regulamentada por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela Administração Pública com observância das seguintes regras:
    1. A compensação a atribuir ao trabalhador toma como referência a sua remuneração base mensal, sendo o respectivo montante aferido em função do número de anos completos, e com a respectiva proporção no caso de fracção de ano, de exercício de funções públicas;
    2. Tal causa gera a incapacidade do trabalhador para constituir uma relação de vinculação, a título de emprego público ou outro, com os órgãos e serviços aos quais a presente lei é aplicável e com entidades públicas empresariais, durante o número de meses igual ao dobro do número resultante da divisão do montante da compensação atribuída pelo da sua remuneração base mensal, calculado com aproximação por excesso (Redacção da alínea b) segundo a  L 64-A/2008, de 31-12)
  4. À cessação da nomeação transitória são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições adequadas do RCTFP relativas ao contrato a termo resolutivo, bem como a da alínea d) do n.º 1.”

A Portaria não chegou a ser publicada e não há notícias concretas de desvinculação contra indemnização.

Nada disto é muito auspicioso, e a não ser que o Programa de Governo contenha uma agenda escondida, parece estarmos ainda ao nível das propostas do Compromisso Portugal.

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Sobre ivogoncalves

71 anos Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia, Mestre em Administração e Políticas Públicas pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Doutor em Sociologia, especialidade de Sociologia Política, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Detém Diploma de Estudos Avançados (3º Ciclo) em História Moderna e Contemporânea da mesma instituição. Domínios de actividade profissional: Gestão Orçamental Pública, Auditoria e Fiscalização, Recuperação de Empresas como dirigente, técnico ou consultor e formador. Outros domínios de interesse: Sistemas de Informação. Docente do ensino superior de Setembro de 1976 a Maio de 1985 no Instituto Superior de Economia, e de Outubro de 1985 a Julho de 2010 no Instituto Superior de Gestão (integrado actualmente no Grupo Lusófona). Membro nº 15 da Ordem dos Economistas. Pertence ao Colégio de Economia Política e ao Colégio de Auditoria. Membro nº 1385 do Instituto Português de Auditoria Interna. Sócio nº 20831 da Sociedade de Geografia de Lisboa. Sócio nº 10 da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação. Sócio nº 84 do Institute of Public Policy.
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7 respostas a A redução de efectivos da Administração Pública através da rescisão por mútuo acordo

  1. isabel duarte diz:

    Todos sabem que há excesso mas pelo que me parece niguém sabe muito bem as medidas a tomar. Nehuma medida vai agradar a todos. A aposentação voluntária para quem tem mesmo mais de 55 anos é uma hipótese mas os cortes são tão exagerados que as pessoas recuam. Afinal fazendo as contas “nem é tanto como nos querem mostrar “porque um ministério deixa de pagar o vencimento pagando um outro muito menos pela posentação e o aposentado também ainda desconta. Apesar de tudo por alguns que se reformam ainda podem colocar desempregados. A aposentação aos 65 anos é um crime quando algumas forças deste País se podem retirar bem mais cedo (Procure e encontra). Não é possivel um País progredir quando tem nas suas fileiras pessoas com mais de 35/40 anos de Serviços estão fartas!A saida voluntária só serve mesmo para quem tem hipotese de outro sitio. Quem entrou para a FP era por estabilidade e regalias porque mesmo antes da crise os vencimentos eram maus mesmo para diferenciados. Licença sem vencimento é um “mito”. As Administrações deixam o pedido na gaveta. Alguém faça alguma coisa assim é mau e dificil lá irmos

  2. Pingback: Como Pedro Passos Coelho vê a Administração Pública | Comunicar

  3. maria silva diz:

    pois, é uma vergonha que o governo nos obrigue a trabalhar até aos 65 anos, esquecem que existem funcionários que começaram a trabalhar muito cedo, e sendo assim, irão para casa com quase 50 anos de serviço, além de se terem sujeitado a começar a trabalhar muito novos ainda têm que trabalhar mais tempo do que a maioria, o que é injusto, pois a reforma a que terão direito não será superior do que a reforma que virá a ser auferida por um individuo que vá para casa com os 36 anos de serviço e os 65 anos de idade, ou então se optar por ir mais cedo (menos de 65 anos mas com 36 de serviço), irão penalizados e não é pouco, é um caso para se pensar!

  4. paula soares diz:

    e então, o zé povinho é sempre o bombo da festa, enquanto temos que trabalhar até morrer, os senhores deputados apenas têm que “trabalhar” 12 (se não estou em erro) anos, e ainda levam a reforma por inteiro. e assim vai este país!!!!!!!!!!!!!!

  5. Boa tarde.
    Tenho uma dúvida e aqui a deixo para ver se me podem ajudar:
    No Programa de Rescisões por Mútuo Acordo no Estado, também podem pedir a rescisão os funcionários públicos que estão há anos com licença sem vencimento?

    Agradeço de antemão.
    Cumprimentos.

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