domingo, 20 de julho de 2008

CAPITAIS ESTRANGEIROS NA SAÚDE: Qual a Política da Constituição Brasileira?

Revista
JUST ET SOCIETATIS 
ISSN 1980 - 671X


Carlos Ari Sundfel e
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Pontifícia Católica de São Paulo, PUC.
Jacintho Arruda Câmara
Doutor e Mestre em Direito Pela Universidade Pontifícia Católica de são Paulo, PUC.
jacamara@terra.com.br

Resumo

O presente estudo busca delimitar o alcance da restrição à participação do capital estrangeiro no setor de saúde, imposta no art. 199, § 3º da Constituição Federal. Para tanto, faz-se uma interpretação do sentido da expressão “empresas ou capitais estrangeiros”, com base nos elementos conceituais presentes à época da Constituição de 1988. Com esse método, chega-se à conclusão de que, embora exista ainda hoje uma política de restrição à participação do capital estrangeiro no setor de saúde, essa restrição não é absoluta.

Palavras-chave: Serviço de Saúde. Capital estrangeiro. Política pública.

Resumen

El presente estudio busca demarcar el alcance de la restricción a la participación del capital extranjero en el sector de salud, impuesta en el artículo 199, §3º, de la Constitución Federal. Para tanto, se hace una interpretación del sentido de la expresión “empresas o capitales extranjeros”, con base en los elementos conceptuales presentes a la época de la Constitución de 1988. Con ese método, llegase a la conclusión de que, aunque exista aún hoy una política de restricción a la participación del capital extranjero en el sector de la salud, esa restricción no es absoluta. 

Palabras-Clave: Servicio de salud. Capital extranjero. Política pública.


1. Introdução

A Constituição de 1988 estabeleceu, em sua redação original, uma série de normas de proteção ao capital nacional. Fez isso inibindo, total ou parcialmente, a presença do capital estrangeiro em determinados segmentos da economia nacional. Para citar alguns exemplos, podemos lembrar das restrições existentes à participação estrangeira nos setores de mineração, telecomunicações, radiodifusão, petróleo e também na saúde. Essas restrições foram sendo retiradas do Texto Constitucional, uma a uma, por reformas realizadas a partir da segunda metade da Década de Noventa. Uma restrição, no entanto, permaneceu intocada: a que se fazia à participação de capital estrangeiro no setor de saúde.

Essa sobrevivente restrição ao capital estrangeiro suscita uma questão de inegável apelo prático: o capital estrangeiro está impedido de investir no segmento da saúde? Estrangeiros podem participar como controladores (ou mesmo como sócios minoritários) de empresas que desenvolvam atividades na área de saúde do País? Enfim, qual a política pública, constitucionalmente estabelecida, para regular a participação desses capitais no setor de saúde?

A questão levantada envolve a interpretação do dispositivo constitucional que veda expressamente a 

“participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país” (art. 199, § 3º da CF). Confira-se o artigo em comento:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
§ 3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.
§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.(BRASIL, Constituição Federal, 1988.

A vedação contida no Texto Constitucional é relativa. Apesar de, no início do dispositivo, fixar uma proibição, a regra é enfraquecida na parte final, ao se admitir que a legislação ordinária autorize a participação do capital estrangeiro no setor .

A lei que disciplina o Sistema Único de Saúde – SUS (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990) reproduz a restrição constitucional. Todavia, estabelece uma ressalva para “doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos”. Para tais exceções, no entanto, condiciona-se a implementação das medidas à autorização prévia do órgão de direção nacional do SUS. Confira-se o texto em referência:

Art. 23. É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, salvo através de doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos.

§ 1° Em qualquer caso é obrigatória a autorização do órgão de direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), submetendo-se a seu controle as atividades que forem desenvolvidas e os instrumentos que forem firmados.

§ 2° Excetuam-se do disposto neste artigo os serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social.(CARVALHO, 2001).

São essas as normas que tratam diretamente do tema. Há uma previsão constitucional que restringe, em princípio, a participação de empresas ou capitais estrangeiros no setor, admitindo, porém, que a lei ordinária a autorize. E há também norma legal tratando da matéria, que reproduz a vedação constitucional, admitindo, como exceção à regra constitucional, o recebimento de recursos provenientes do exterior em determinadas condições. Vejamos, pois, o alcance dessas normas, na definição de uma política pública para a participação do capital estrangeiro no setor.

2. A Restrição Constitucional ao Capital Estrangeiro na Saúde é apenas Relativa

Para saber até que ponto a Constituição veda a participação estrangeira no setor de saúde, o primeiro passo é definir precisamente o alcance da vedação lançada sobre a matéria. Ou seja, é preciso saber objetivamente o que foi proibido com a restrição imposta à participação “direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros” na assistência à saúde.

A resposta não se obtém da leitura isolada do dispositivo. Deveras, a definição de “empresas ou capitais estrangeiros” não vem dada no artigo constitucional em referência. Seu alcance, porém, pode ser obtido na própria Constituição Federal. É que, em sua redação original, a Constituição trazia uma série de normas voltadas à proteção das empresas nacionais. Numa delas figurava a definição de empresa brasileira e de empresa brasileira de capital nacional. Tais definições eram imprescindíveis para a aplicação das demais normas de proteção ao capital nacional, uma vez que apontavam quais seriam as empresas beneficiárias e, indiretamente, aquelas que poderiam se sujeitar a restrições decorrentes de sua origem ou da de seus acionistas. 

Mesmo que o artigo da Constituição que estabelecia tais definições tenha sido revogado, a aplicação de seus conceitos no presente caso persiste (merecendo, com isso, uma espécie de ultratividade). Isso porque somente será possível definir o correto alcance da norma em comento a partir dos conceitos fixados na redação original da Constituição, que, para esse fim específico, ainda sobrevivem.

O artigo em referência definia “empresa brasileira” e “empresa brasileira de capital nacional”. Confira-se o inteiro teor do art. 171 da Constituição Federal (revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995):

Art. 171. São consideradas:

I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;
II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

§ 1º A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;
b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.
§ 2º Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

Ao definir “empresa brasileira” e “empresa brasileira de capital nacional”, o referido dispositivo acabou também fixando os elementos necessários para se chegar à definição de outros dois conceitos: o de “empresa estrangeira” e o de “empresa brasileira de capital estrangeiro”.

Esses dois conceitos, extraíveis indiretamente do antigo art. 171 da Constituição Federal, são fundamentais para identificar o correto sentido do art. 199, § 3º. Isto porque, na norma criada para a proteção das empresas nacionais atuantes no setor de saúde, buscou-se impedir justamente a participação de “empresas ou capitais estrangeiros”, isto é, de “empresas estrangeiras” e de “empresas de capital estrangeiro”. Vamos, pois, ao conceito constitucional desses termos.

Como vimos, por “empresa brasileira” o constituinte definiu a empresa “constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país” (art. 171, I da CF, em sua redação original). Sendo assim, pode-se definir empresa estrangeira, também com base na Constituição de 1988, como a empresa constituída sob legislação de país estrangeiro ou que tenha sua sede e administração noutro país.

A definição de “empresa brasileira de capital nacional”, por sua vez, abrange empresas brasileiras, 

“cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades” (BRASIL, Constituição Federal, art. 171, II, em sua redação original).

Por oposição, é possível também extrair uma definição de empresa brasileira de capital estrangeiro. Tal categoria abrange as empresas brasileiras (isto é, as constituídas segundo as leis brasileiras e com sede e administração no País) com ou sem capital brasileiro minoritário, cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes fora do País (isto é, cujo capital votante seja majoritariamente estrangeiro).

Ao restringir o acesso ao setor de assistência à saúde às “empresas ou capitais estrangeiros”, o § 3º do art. 199 da CF reservou tal mercado às empresas brasileiras de capital nacional (aquelas cujo capital votante seja majoritariamente nacional). Chegou-se a tal resultado de maneira indireta, proibindo a participação, nesse mercado, de “empresas ou capitais estrangeiros”, ou seja, de empresas estrangeiras e de empresa que, apesar de brasileiras, sejam de capital estrangeiro. De maneira elíptica, a Constituição nesse ponto afastou do setor empresas estrangeiras e empresas brasileiras de capital estrangeiro (isto é, cujo capital votante seja majoritariamente estrangeiro).

Isto posto, chega-se à conclusão de que a vedação à participação de capital estrangeiro no setor de assistência à saúde não impede sua participação minoritária em empresas criadas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que sejam controladas, direta ou indiretamente, por pessoas físicas domiciliadas e residentes no País.

Dito de outro modo: a limitação de estrangeiros na saúde foi vinculada pela Constituição ao regime de proibição apenas relativa do art. 171 original.

Não teria subsistência — diante do regime introduzido na Constituição de 1988 — propor uma interpretação isolada e restritiva ao dispositivo em exame. Seria impróprio considerar, por exemplo, que a vedação à participação de “empresas ou capitais estrangeiros” fosse tomada como proibição a qualquer forma de participação de estrangeiros no capital de empresas brasileiras atuantes na assistência à saúde. Referida interpretação contrariaria diversos parâmetros fixados ao longo de toda a Constituição. Os exemplos colhidos de outros setores são úteis para demonstrar o quão desarrazoada seria tal compreensão.

Vale lembrar, de início, o regime original prescrito para os serviços de radiodifusão (também aplicável às empresas jornalísticas). A Constituição não tolerava qualquer participação de estrangeiros, mesmo minoritária, em empresas atuantes nesse setor. Para tanto, restringiu a titularidade direta ou indireta dessas empresas a cidadãos brasileiros (natos ou naturalizados há mais de dez anos), salvo o caso dos partidos políticos. Ressalte-se que para introduzir tamanha restrição a Constituição falou expressamente que a propriedade dessas empresas seria privativa de pessoas físicas brasileiras. Confira-se o dispositivo em referência, nos termos da redação original da Constituição de 1998 :

Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual.

§ 1º É vedada a participação de pessoa jurídica no capital social de empresa jornalística ou de radiodifusão, exceto a de partido político e de sociedades cujo capital pertença exclusiva e nominalmente a brasileiros.

§ 2º A participação referida no parágrafo anterior só se efetuará através de capital sem direito a voto e não poderá exceder a trinta por cento do capital social. (BRASIL, Emenda Constitucional, 2002, n. 36)

Essas regras criavam, portanto, proibição absoluta a que um cidadão estrangeiro participasse, mesmo minoritariamente, do capital das empresas jornalísticas ou de radiodifusão do Brasil. O modelo normativo era muito distinto do adotado no art. 199, que se conectou aos conceitos do art. 171, cuja função era criar uma proibição apenas relativa ao capital estrangeiro.

Outra mostra do mecanismo de proteção ao capital nacional empregado pela Constituição de 1988 se encontra no regime de exploração privada de recursos minerais. A Constituição impunha uma restrição rígida (isto é, não poderia ser afastada por decisão do legislador ordinário) à participação estrangeira no setor. Porém, mesmo com esse cuidado e considerando o histórico de preservação desses recursos até por questões de segurança nacional e de soberania, não houve proibição de estrangeiros figurarem, como minoritários, em empresas atuantes nesse segmento. Reservou-se o mercado para empresas brasileiras de capital nacional, o que comportava a presença minoritária (e sem controle efetivo) de investidores estrangeiros. Confira-se a disciplina do tema, antes de sua reformulação por Emenda Constitucional :

Art. 176. (...) § 1º - A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (BRASIL, Emenda Constitucional, 1995, n. 6)

Essa regra, que introduziu proibição apenas relativa ao capital estrangeiro, estava claramente conectada aos conceitos do art. 171 original da Constituição. Nisso se equipara à do setor de saúde, que também vinculou-se a esses conceitos e, assim, também é relativa, e não absoluta, como era a do art. 222 original da CF.

Para o setor de assistência à saúde, como foi visto, a Constituição lançou mão de outra formulação para criar barreiras à participação de estrangeiros.

O que chama a atenção, em primeiro lugar, é a flexibilidade (no que diz respeito à sua possibilidade de modificação) da dicção constitucional. Diferentemente dos outros setores, a Constituição não criou para a assistência à saúde uma norma rígida de proteção ao capital nacional. Em todos os outros segmentos objeto de proteção, o constituinte criou restrições ao capital internacional, que, para serem revistas, demandaram a edição de Emenda. Tratava-se, nesse sentido, de disposições rígidas. Nos serviços de saúde, a Constituição admite que a restrição seja afastada pelo legislador ordinário. A vedação imposta é flexível, pois se sujeita a mudanças por deliberação ordinária do Congresso Nacional (ou até mesmo por medida provisória).

Outra diferença está na própria forma textual de fixar a barreira. Nos demais exemplos, sempre que surgia a restrição à participação de estrangeiros, ela era construída pela forma positiva, isto é, reservando o setor para brasileiros (empresas ou pessoas físicas). Na saúde, de maneira isolada, o constituinte optou pela forma negativa. Proibiu-se a participação de estrangeiros.

Essa opção redacional tornou necessária a busca de outras normas constitucionais que definissem a abrangência da restrição imposta. Isso porque não havia na Constituição (como não há) uma definição direta do que seriam “empresas ou capitais estrangeiros”. Para extrair esse conceito foi necessário — como demonstrado acima — recorrer, por oposição, aos conceitos de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, estabelecidos no art. 171 da Constituição em sua versão original.

Esse recurso interpretativo se justifica. A vedação à participação de “empresas ou capitais estrangeiros” na assistência à saúde não pode ser lida fora de contexto, isto é, apartada do regime de proteção ao capital nacional que foi criado com a Constituição de 1988 (e que aos poucos foi perdendo espaço com constantes reformas). Na Constituição, o padrão conceitual empregado para definir barreiras ao capital estrangeiro baseou-se nas definições de empresa brasileira e de empresa brasileira de capital nacional (art. 171 da CF). Ao criar regra empregando os conceitos de empresa estrangeira e de empresa (brasileira) de capital estrangeiro, o art. 199, § 3º não poderia ter adotado outras definições que não as extraídas, por oposição, das referências constantes do art. 171 da Constituição Federal.

Vale salientar que o art. 171, mesmo revogado, continua sendo a fonte conceitual de onde se extrai o correto sentido na norma fixada no § 3º do art. 199. Deveras, ao ser editada, a vedação à participação de estrangeiros na assistência à saúde empregava como parâmetro o art. 171 e os conceitos (diretos e indiretos) nele embutidos. Como a revogação do art. 171 não afetou a vigência do § 3º do art. 199, este último dispositivo, apesar de anacrônico, continua a produzir os efeitos originalmente previstos para o setor de saúde. Assim, no setor de saúde, os antigos conceitos de empresa brasileira e de empresa brasileira de capital nacional continuam a ser empregados, de forma indireta, por força do art. 199, § 3º, que deles faz uso para afastar a participação majoritária de estrangeiros no capital de empresas brasileiras.

Por esse caminho (o único que a Constituição permite) se chega ao alcance preciso da restrição imposta pelo § 3º do art. 199. Ao excluir as “empresas ou capitais estrangeiros”, a regra reservou o setor (salvo exceção prevista em lei ordinária) às empresas brasileiras de capital nacional, isto é, aquelas cujo controle seja de brasileiros, ainda que contem com capital estrangeiro minoritário. A Constituição, portanto, vedou a participação de empresas estrangeiras e empresas (brasileiras) de capital estrangeiro. Admitiu-se, assim, a participação minoritária (e sem controle efetivo) de estrangeiros no capital de empresas brasileiras atuantes no setor de assistência à saúde.

Há também de se ressaltar o despropósito que seria imputar a tal regra o efeito de suprimir por completo a participação de capital estrangeiro do setor (mesmo que minoritária). O dispositivo, ao contrário de outros existentes à época da promulgação da Constituição de 1988, possui caráter flexível, por permitir sua modificação por mera lei ordinária. Seria incoerente impor regra de perfil tão rígido na Constituição e, ao mesmo tempo, permitir-se que mera lei ordinária (ou mesmo medida provisória) viesse a afastá-la. Ademais, no único exemplo constitucional no qual se via restrição tão abrangente (o setor de radiodifusão), a proibição era expressa, determinando que o capital de empresas jornalísticas e de radiodifusão pertencesse exclusivamente a brasileiros. Para o setor de saúde, como se viu, o constituinte foi muito mais brando (elemento revelador de que ditas normas não poderiam produzir efeitos semelhantes): de um lado, por impor restrição flexível (uma vez que pode ser afastada por lei ordinária), de outro, por não excluir toda e qualquer participação de estrangeiros (o que significaria admitir exclusivamente brasileiros no capital social dessas empresas, a exemplo do que o constituinte originário fez em relação a empresas jornalísticas e de radiodifusão).

Assim, conclui-se que a vedação em exame representa tão somente a proibição de que empresas estrangeiras assumam o controle efetivo de empresas atuantes na assistência à saúde. Noutros termos, usando as expressões consolidadas na Constituição de 1988, o referido setor, salvo nos casos previstos em lei, deve ser atendido por empresas privadas que se enquadrem no conceito de empresa brasileira de capital nacional (encampado no art. 171 da Constituição, em sua redação original

3. Inocuidade da Regra Instituída pela Lei do SUS

Como foi visto, a parte final do § 3º do art. 199 autoriza o legislador ordinário a, sempre que julgar conveniente, afastar a restrição à participação do capital estrangeiro .

A Lei 8.080/90, que disciplinou o Sistema Único de Saúde, na prática, manteve a restrição tal qual ela foi introduzida na Constituição. Isso porque, ao prever ressalvas, a lei mencionou apenas operações que sequer estavam abrangidas pela proibição constitucional. Explicamos.

A Constituição reservou as atividades de assistência à saúde para empresas criadas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País (empresas brasileiras) e que tiverem seu controle efetivo em mãos de pessoas residentes e domiciliadas no Brasil (empresas brasileiras de capital nacional). A vedação se restringe à participação majoritária de estrangeiros no capital social votante das empresas atuantes no setor. A proibição não diz respeito a operações de crédito, doações, colaboração técnica ou a qualquer forma de transferência de recursos provindos do exterior. A menção a “capitais”, constante do § 3º do art. 199, diz respeito ao capital social das empresas e não a recursos financeiros. Quis-se restringir a participação no setor de empresas estrangeiras e de empresas brasileiras de capital estrangeiro e não proibir que fossem aportados recursos financeiros (de qualquer origem) na assistência à saúde.

A Lei do SUS manteve a restrição tal qual ela foi redigida no Texto Constitucional, prevendo supostas ressalvas para “doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos” (art. 23 da Lei 8.080/90). As ressalvas simplesmente não fazem sentido. Isso porque a restrição constitucional, como visto, não diz respeito a quaisquer das atividades mencionadas na lei (doações, cooperação técnica, empréstimos ou financiamentos provindos do exterior).

A redação do dispositivo leva a crer que o legislador ordinário tomou a proibição constitucional como se esta atingisse o recebimento de quaisquer recursos do exterior e não o controle de estrangeiros sobre o capital de empresas atuantes no setor, que é o correto sentido da norma constitucional. Assim, a ressalva prevista mostra-se absolutamente inócua, pois libera algo que jamais fora proibido pela Constituição.

A inocuidade acompanha, naturalmente, as condições lançadas para a realização das citadas operações. Deveras, como não há proibição efetiva e válida imposta ao recebimento de doações, empréstimos, colaborações técnicas e financiamentos provindos do exterior, as condições impostas na Lei 8.080/90 para a realização dessas operações são absolutamente ineficazes.

Isto significa dizer que as entidades atuantes no setor não estão limitadas ao recebimento de doações de entidade internacional vinculada à ONU, podendo recebê-las de outras fontes estrangeiras. Também não é necessário, pelo mesmo motivo, que as operações de crédito, cooperações técnicas, financiamentos, sejam previamente aprovados pela autoridade nacional do SUS (art. 23, § 1º). As condicionantes não têm razão jurídica de prosperar, uma vez que as condutas supostamente excetuadas da vedação jamais foram atingidas por qualquer restrição constitucional.

Não bastasse isso, há de se considerar o caso de empresas desvinculadas do SUS, isto é, entidades que prestam apenas serviços privados de assistência à saúde. Mesmo que se entenda que a condição imposta pelo art. 23, § 1º da Lei 8.080/90 deve ser aplicada, apesar de sua incongruência em relação ao mandamento constitucional que deveria disciplinar, sua aplicabilidade jamais poderia se estender a entes que não integrem o Sistema Único de Saúde como prestadores, estatais ou não estatais, do serviço público de saúde. O controle quanto à entrada de recurso só faria algum sentido (se é que faria algum!) caso as entidades tomadoras dos empréstimos ou beneficiárias das doações ou colaborações fossem responsáveis pela prestação de serviços de saúde em regime público (integrassem o SUS). Nessas situações haveria pelo menos essa justificativa para a comunicação do tema à direção do SUS.

Todavia, seria um despropósito sujeitar operações de crédito realizadas por entes privados — que sequer complementam o SUS — à prévia deliberação de autoridades da área de saúde. Trata-se de assunto de exclusivo interesse privado, sobre o qual a autoridade de saúde não exerce influência e, por conseguinte, isenta-se de qualquer responsabilidade econômica. 

4. Conclusão
Tendo em vista tudo o que foi exposto, apontamos as seguintes diretrizes políticas fixadas pela Constituição Brasileira como restrição à participação do capital estrangeiro no setor de saúde:
a) A vedação ao capital estrangeiro no setor de assistência à saúde não impede sua participação minoritária em empresas criadas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que sejam controladas, direta ou indiretamente, por pessoas físicas domiciliadas e residentes no País. Ao restringir o acesso ao setor de assistência à saúde às “empresas ou capitais estrangeiros”, o § 3º do art. 199 da CF reservou tal mercado às empresas brasileiras de capital nacional. A proibição constitucional é apenas a que estrangeiros sejam majoritários no capital votante de empresas de assistência à saúde no Brasil.
b) A previsão contida na Lei 8.080/90 apenas reproduz a restrição constitucional aplicável à matéria. As supostas ressalvas constantes na parte final do dispositivo, por se referirem a condutas que não foram sequer atingidas pelo mandamento constitucional que se pretendia flexibilizar, não produzem efeitos jurídicos práticos. Não há razão jurídica, portanto, para que quaisquer das operações descritas na parte final do artigo (financiamento, empréstimos, cooperações técnicas provindas de estrangeiros) sujeitem-se ao crivo do órgão nacional de direção do SUS.

Referências

AFONSO DA SILVA, José. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil V.8. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.
CARVALHO, Guido Ivan de; SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: comentários à Lei Orgânica da Saúde (Leis nº 8.0.8/90 e nº 8.142/90). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2001.
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988 V. 4, São Paulo: Editora Saraiva, 1995.