segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL: ENTIDADES PÚBLICAS NÃO-ESTATAIS

Revista
JUS ET SOCIETATIS
ISSN 1980 - 671X

Carlos Ari Sundfeld
Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da PUC/SP e da Escola de Direito da FGV/SP
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp
Advogado


Jacintho Arruda Câmara
Professor de Direito Administrativo da Universidade Potiguar – UnP
Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da PUC/SP
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP
Advogado

RESUMO

O presente estudo aborda a tormentosa questão referente ao regime jurídico aplicável aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas. A dúvida fundamental que envolve o tema é saber se tais entidades se submetem ás exigências e restrições peculiares ao regime jurídico aplicável à Administração Pública, tais como a necessidade de realizar concurso público, de licitar, a proibição de acumulação de postos de trabalho (cargo, emprego ou funão), sujeição à fiscalização do Tribunal de Contas, entre outras.


RESUMEN

Este estudio aborda la cuestión de la aplicación del regimen jurídico a los consejos de fiscalización de profesiones reguladas. La pregunta clave que se hace es si tales entidades están sometidas a las exigencias y restricciones peculiares al regimen jurídico aplicable a la administración pública, tales como la necesidade de realizar concurso público, de licitación, la prohibición de acumulación de postos de trabajo (cargos, empleo o función), sujeto a revisión del Tribunal de Cuentas, entre otros.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda a tormentosa questão referente ao regime jurídico aplicável aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas. A dúvida fundamental que envolve o tema é saber se tais entidades se submetem às exigências e restrições peculiares ao regime jurídico aplicável à Administração Pública, tais como a necessidade de realizar concurso público, de licitar, a proibição de acumulação de postos de trabalho (cargo, emprego ou função), sujeição à fiscalização do Tribunal de Contas, entre outras.

É possível adiantar, desde logo, que o enfrentamento desse tema exige basicamente a interpretação das normas constitucionais e legais incidentes sobre tais entidades. A resposta para tal questão depende do posicionamento que se tenha a propósito da natureza jurídica das entidades coorporativas responsáveis pela fiscalização de profissões regulamentadas. Se forem tidas como entidades integrantes da Administração, não haverá como negar aplicação às regras do regime jurídico administrativo, arroladas em sua maioria no art. 37, da Constituição Federal. Se não o forem, porém, tornar-se-á inevitável reconhecer a inaplicabilidade das citadas regras. Para tanto, todavia, seria ainda necessário demonstrar que tal exigência não precisa ser observada em função de outros preceitos de ordem pública aplicáveis a tais entidades.

Para contribuir com esse debate, lançaremos já no início desse estudo uma proposta de classificação dessas entidades. Imaginamos que a adequada classificação jurídica dos referidos entes pode ser uma importante ferramenta para aferir se determinada regra deve ou não ser a eles estendida. Para demonstrar a utilidade da classificação, demonstraremos sua aplicação em relação a uma das exigências da Administração cuja aplicação às entidades de fiscalização profissional é debatida: a necessidade de contratar funcionários por intermédio de concurso público. Após essa demonstração, faremos ainda uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal a Federal a respeito da matéria, após a Constituição de 1988. Por fim, reuniremos as principais conclusões obtidas no presente estudo.

2. NATUREZA JURÍDICA DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS
 

A discussão em torno da natureza jurídica dos conselhos profissionais não é nova. É daquelas questões que dividem opiniões na doutrina e jurisprudência.
De um lado, estão aqueles que atribuem aos conselhos uma natureza jurídica autárquica e, por isso, os consideram integrantes da Administração Pública. Os mais significativos argumentos empregados para a defesa desse ponto de vista são os seguintes: os conselhos profissionais são criados por lei; muitos receberam personalidade jurídica de autarquia por expressa definição legal; recebem recursos provindos de contribuições compulsórias, os quais, por esta razão, são classificados como públicos; gozam de imunidade de impostos; exercem poder de autoridade, como ocorre na aplicação de sanções, na verificação das condições individuais para o exercício profissional e assim por diante.
 
De outro lado, há os que defendem que referidos entes são entidades de direito privado. A tese apresenta como principal fundamento a inaplicabilidade a esses conselhos de uma série de regras típicas do regime público. Os argumentos empregados nesse caso são os seguintes: os recursos destinados às entidades de fiscalização profissional são oriundos de contribuições pagas pela própria categoria, não lhes sendo destinados recursos orçamentários; suas despesas não são ordenadas pela lei orçamentária anual; seus dirigentes não são nomeados pelo Chefe do Executivo; os postos de trabalho das entidades não precisam ser criados por lei; não há influência da Administração Pública nas decisões das entidades corporativas, entre outros.
 

Os argumentos lançados de lado a lado são verdadeiros. Existem características nas entidades de fiscalização profissional que as aproxima do regime jurídico de direito público, bem como existem elementos que as diferencia das demais entidades que integram a Administração.

Na maioria das vezes, todavia, o intérprete destaca apenas um dos perfis presentes nas corporações de fiscalização profissional, esquecendo-se do antagonista. Os que defendem sua natureza estatal, sublinham elementos que as aproxima de um regime jurídico de direito público, sem considerar várias regras típicas deste regime que a elas não são aplicáveis. De outro lado também é possível notar a mesma parcialidade. Para afirmar que as corporações seriam entidades privadas, suas diferenças com as entidades que integram a Administração são destacadas, omitindo-se, porém, as características de direito público que as afastam das pessoas tipicamente privadas.

Tanto uma posição como a outra peca por omissão, ao desconsiderar, cada uma a seu modo, parte relevante do regime jurídico das entidades incumbidas de fiscalizar o exercício de profissões regulamentadas. É inadequado defender o enquadramento dessas pessoas jurídicas entre as entidades que compõem a Administração Pública, uma vez que várias das regras que disciplinam a Administração não lhes são aplicáveis. Também seria impreciso classificá-los como entes privados, pois, desde a sua origem (são criados por lei), apresentam características incompatíveis com a natureza jurídica tipicamente privada.
 

Para classificar tais entidades de modo adequado é necessário considerar todas as suas características. O equívoco que se observa em boa parte das propostas de interpretação está em privilegiar um tipo de característica em detrimento de outro. Como não se encontra, entre as categorias tradicionais de classificação, um modelo que apresente as peculiaridades das entidades de fiscalização profissional, acaba-se estabelecendo uma dicotomia, na qual só restaria como opção enquadrá-las como parte da Administração indireta ou como entidade privada.

A superação desse impasse se dá com a separação de duas realidades distintas: a natureza pública, de um lado, e a estatal, de outro. Todavia, por vezes esta distinção é esquecida. De um modo geral se pretende vincular a natureza de direito público à estrutura burocrática que integra o Estado. A premissa da qual se parte é a de que, por ser público, o ente também seria, necessariamente, estatal. A recíproca também é tida como verdadeira. Desta outra forma entende-se que se não for estatal, o ente só poderia ostentar natureza jurídica de direito privado.
 

Acontece que não há relação necessária entre possuir natureza de direito público e integrar a estrutura estatal. Deveras, não é todo ente estatal que apresenta regime jurídico de direito público, bem como não é necessário que todo ente público faça parte da estrutura estatal.

As empresas estatais (empresas públicas ou sociedades de economia mista), por exemplo, apesar de integrarem a Administração, possuem natureza jurídica de direito privado. São empresas e, como tais, são constituídas sob a égide do direito privado. É óbvio que, com isso, não se está afirmando que seu regime jurídico seja absolutamente imune às normas de direito público. Sua natureza estatal atrai a incidência de diversas regras de direito público (como a obrigatoriedade de realizar concurso, de fazer licitação, sujeição à fiscalização de Tribunais de Contas, entre outras). Apesar disso, não se nega a natureza privada de tais figuras.

A legislação também pode criar, desde que tenha motivo razoável para fazê-lo, uma entidade com natureza jurídica de direito público, sem que a torne parte integrante da Administração. Nestas hipóteses o ente seria público, mas não seria estatal .
 
A hipótese só não seria juridicamente viável se houvesse supressão de participação da Administração Pública sobre segmento reservado ao Estado. Deveras, se o legislador, de forma injustificável, pura e simplesmente reduzisse o papel reservado à Administração Pública, utilizando como artifício a criação de entes alheios à estrutura estatal, acabaria por contrariar o princípio constitucional que prevê a harmonia e a independência dos Poderes do Estado.
 

Existem limites, portanto, a essa faculdade de criar entes públicos alheios à organização administrativa estatal. Foge ao objeto do presente estudo traçar abstratamente quais seriam esses limites . Porém, é possível afirmar que, em relação às entidades de fiscalização profissional, tanto existem razões para afastar a participação estatal, como para atribuir natureza pública a tais entes.

Referidas entidades são públicas por determinação da própria lei que as instituiu. A razão para atribuir esse regime jurídico é fácil de identificar. Algumas das funções para as quais essas entidades foram criadas envolvem o exercício de poder de autoridade, atributo típico de Poder Público. Tais competências dizem respeito, por exemplo, à habilitação de pessoas para o exercício profissional, à edição de regulamentos sobre práticas profissionais, à aplicação de sanções disciplinares, entre outras .
 

Prerrogativas e sujeições tipicamente públicas também lhes foram atribuídas. As entidades são autorizadas por lei a cobrar anuidades de seus membros, podendo, no caso de inadimplência, lançar mão de execução fiscal; gozam de imunidade de impostos; sujeitam-se a controle do Tribunal de Contas, para citar alguns exemplos de aplicação mais freqüente e incontroversa do regime jurídico de direito público.

Nada disso, porém, significa dizer que as entidades de fiscalização profissional foram tratadas por lei como parte integrante da Administração. Muito pelo contrário. Acompanhando uma tendência presente no direito comparado, a regulação das atividades profissionais no Brasil foi atribuída a entidades de caráter corporativo, com personalidade de direito público, mas visivelmente destacadas da estrutura burocrática estatal.
 

O legislador optou por não submeter a disciplina das diversas profissões regulamentadas à interferência da Administração Pública. Ao adotar esse modelo de regulação, o legislador prestigia inclusive uma antiga diretriz presente nas Constituições brasileiras, que é a de assegurar a liberdade de exercício profissional. Para as profissões de maior interesse social, a lei cria um sistema de regulamentação do exercício da atividade, mas preserva a autonomia da classe, transferindo a aplicação dos ditames legais à própria categoria e não ao Estado .
 

A lei fixa as regras gerais de atuação dos médicos, advogados, dentistas, engenheiros, farmacêuticos, etc., mas a fiscalização sobre o cumprimento dessas normas, bem como sua regulamentação, não foram atribuídas a ente estatal. Foram criadas estruturas com perfil corporativo, de natureza pública, para desempenhar tais funções.

A exclusão dessas entidades corporativas da estrutura estatal se mostra evidente . Diversas características que lhes foram atribuídas atestam a inexistência de vínculo entre a estrutura burocrática do Estado (Administração Pública) e tais organismos de fiscalização profissional.

Uma das mais relevantes diz respeito ao sistema concebido para a escolha dos dirigentes. Não há qualquer participação do Estado na definição dos membros que irão compor a direção desses organismos de fiscalização profissional. A escolha é, por definição legal, atribuída à própria categoria a ser regulada e deve recair, necessariamente, sobre seus membros. Ao contrário do que ocorre na Administração indireta, o Estado (seja Executivo ou Legislativo) não interfere na indicação dos dirigentes. Não existe, também, qualquer mecanismo que permita à Administração centralizada destituir esses dirigentes. Há, portanto, completa independência funcional em relação à Administração Pública .
 

Outra característica marcante da autonomia das corporações de fiscalização profissional envolve suas receitas. Há previsão legal instituindo a cobrança de anuidade dos profissionais em favor da entidade. É comum, inclusive, a previsão expressa do direito dessas entidades se valerem do processo de execução fiscal para viabilizar a cobrança de tais valores. Tais características fazem com que essas receitas sejam consideradas públicas.
 

Todavia, o fato de parte das receitas das entidades de fiscalização profissional ser considerada pública não identifica plenamente seu regime jurídico com o aplicável às receitas de entidades que integram a Administração. Os entes corporativos fazem jus apenas a esse tipo de receita pública, cuja incidência se restringe aos membros da própria corporação. Os entes que compõem a Administração Pública, além das receitas autônomas que lhes sejam atribuídas especificamente pela lei de criação, podem ainda contar, a cada ano, com destinação de recursos provindos das diversas fontes arrecadadoras do Estado (inclusive derivadas de impostos). Basta que, para tanto, haja previsão na lei orçamentária. Nada disso se concebe em relação às entidades corporativas de fiscalização profissional. Não há destinação de recursos de origem estatal a tais entidades. Essas entidades, noutras palavras, não dependem do orçamento público. Aliás, suas receitas e despesas não são inseridas na lei orçamentária anual, como são as referentes às entidades que integram a Administração direta ou autárquica.
 

Ainda é possível apontar mais uma marcante diferença de regime jurídico entre as corporações de fiscalização profissional e as entidades que compõem a Administração Pública. Trata-se da necessidade de lei para a criação de postos de trabalho. No caso de Administração direta ou autárquica, a Constituição impõe a necessidade de lei, de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, para viabilizar a criação de cargos e empregos (art. 61, § 1.º, II, “a”). Tal exigência não se aplica às entidades de fiscalização profissional. Deveras, não haveria o menor cabimento em se imaginar o Chefe do Executivo e o Legislativo deliberando sobre o número de postos de trabalho e a remuneração dos funcionários dessas corporações.

Todas essas diferenças de regime jurídico retratam uma realidade que o mero senso comum já identifica. Quem se depara com uma entidade de fiscalização profissional (OAB, CRM, CREA, CRF, etc.) não reconhece nelas a figura do Estado e sim a de uma corporação incumbida da regulação da respectiva categoria profissional. Ou seja, a OAB não é confundida com o Estado, nela se enxerga uma entidade que congrega os responsáveis pela regulação do exercício da advocacia; o CREA encarna engenheiros e arquitetos; o CRF, os farmacêuticos; e assim por diante. Não se constata perfil de órgão estatal, identificado com a Administração Pública, em qualquer desses entes.

Diante disso, é de se concluir que as entidades de fiscalização das profissões regulamentadas, apesar de apresentarem personalidade de direito público, não se confundem com entes da Administração. Para sintetizar sua natureza jurídica numa única expressão, seria possível classificá-las como entes públicos não-estatais.

3. ANÁLISE DO DEVER DE REALIZAR CONCURSO PÚBLICO
 
A discussão em torno da natureza jurídica das corporações de fiscalização de profissões regulamentadas não é apenas uma questão acadêmica. Muito ao contrário. Trata-se da base teórica a partir da qual poderão ser solucionadas diversas dúvidas a respeito de aspectos rotineiros da atuação das referidas entidades.
 
Identificar a natureza jurídica destes entes ajuda na elucidação de dúvidas sobre a aplicabilidade de diversas regras previstas no Texto Constitucional. Demonstrou-se no tópico anterior que seria incorreta a interpretação segundo a qual as corporações incumbidas por lei de fiscalizar o exercício de profissões possuem perfil estatal, principalmente se, com isso, apresentar-se como objetivo apenas defender a aplicação integral a esses entes das normas de direito administrativo previstas na Constituição. Do mesmo modo seria incorreto classificar os aludidos entes como privados, apenas para sustentar que sobre eles não incide qualquer regra de direito público.

A generalização, num sentido ou noutro, produz conclusões incorretas, uma vez que os organismos em exame foram criados com um perfil jurídico híbrido, congregando, simultaneamente, natureza pública e não-estatal. Uma determinada norma de direito administrativo poderá incidir sobre os entes corporativos devido a sua natureza pública. Outras não incidem porque tais entes não integram a Administração.
 
Para definir se uma regra deve ser aplicada ou não, mostra-se necessário, nesse contexto, descobrir se ela foi criada com o intuito de vincular a atuação de qualquer entidade que esteja imbuída de munus público ou se sua aplicação só se justifica se o sujeito for integrante da estrutura estatal (isto é, se for parte da Administração).

Seguindo essa orientação, vejamos como classificar o dever de realizar concurso público, previsto no art. 37, II da Constituição Federal. O referido dispositivo assim dispõe:
 

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

Percebe-se, em primeiro lugar, que o dispositivo em tela buscou atingir os entes integrantes da Administração Pública. Sujeitar-se-á às prescrições do art. 37 qualquer ente que faça parte da organização administrativa, eis que o dispositivo se destina especificamente à “administração pública direta ou indireta”. Não é relevante para a norma saber se a entidade é de direito público ou de direito privado. Ela incidirá se o ente for estatal, isto é, se for integrante da Administração Pública.
 

Prova disto está na incidência dessas regras sobre as empresas estatais exploradoras de atividade econômica. Mesmo sendo elas pessoas jurídicas de direito privado e sujeitas ao regime jurídico aplicável às empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas, tem-se como incontroverso o dever de tais empresas efetuarem concurso público . Pessoas de direito privado, portanto, desde que façam parte da Administração, estão obrigadas a realizar concurso.

Adotando-se essa mesma lógica de interpretação do dispositivo, portanto, não será correto estender a referida exigência a pessoas que não integram a Administração Pública. Entidades com personalidade jurídica de direito público, desde que não sejam integrantes da Administração, estão fora do alcance do referido dispositivo constitucional, ou seja, não são obrigadas a contratar pessoal mediante concurso público.
Esta interpretação foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em recente acórdão no qual decidiu pela inaplicabilidade à Ordem dos Advogados do Brasil – OAB do dever de realizar concurso público . O principal fundamento utilizado foi justamente o de que a OAB — assim como os demais conselhos de fiscalização profissional — não integra a Administração Pública e, por isso, não está obrigada a realizar concurso.
O fato de os conselhos profissionais serem entidades públicas, portanto, não os obriga a realizar concurso. A regra do concurso foi introduzida na Constituição para ser aplicada em relação à Administração, ou seja, a entes estatais. Não visa a disciplinar a atuação de entidades distintas do Estado.
Essa interpretação não priva os conselhos profissionais de uma regra benéfica (que seria a exigência de concurso) em troca de liberdade. Não é nada disso. O concurso, que em relação à Administração busca atingir relevantes finalidades, pode não apresentar a mesma serventia se aplicado aos conselhos profissionais.
O concurso apresenta como uma de suas mais relevantes funções evitar que a estrutura do Estado seja totalmente assumida por quem exerça o governo. É o procedimento que permite a criação de uma equipe profissional de trabalhadores que servirão ao Estado e não aos governantes. Seus benefícios são evidentes e, mesmo que represente custos elevados, sua implementação se justifica em virtude do valor institucional a ser preservado. O concurso, nessa linha, constitui um importante instrumento de preservação da democracia no exercício da função administrativa.
Nada disso se faz presente na realidade dos conselhos profissionais. Em primeiro lugar, é importante destacar a diferença de estrutura entre referidas entidades de índole corporativa e o aparelho burocrático do Estado. Os conselhos profissionais são normalmente divididos por unidade da federação, constituindo-se cada uma dessas unidades de estrutura física e de pessoal compatível com as atividades e o número de profissionais a ela vinculados. Em muitos casos, conselhos regionais funcionam com uma estrutura mínima. São pequenos escritórios, com reduzido número de funcionários ocupando funções de apoio e secretariado. A realização de concurso, em tais situações, seria economicamente inviável, em função dos altos custos referentes a publicações, elaboração e correção de provas. Essa realidade é incomparável com a existente na Administração, onde existem inúmeros postos de trabalho a ocupar, a maioria deles para o exercício de funções típicas de Estado.

Também é importante notar que, nos conselhos profissionais, as funções mais relevantes são exercidas de maneira honorífica, pelos próprios membros da corporação. Não há vínculo remunerado entre a entidade e quem exerce as funções públicas propriamente ditas. O trabalho remunerado normalmente só ocorre nas funções meramente de apoio (como as de secretariado, contabilidade, segurança, limpeza, informática, etc.). As deliberações referentes à regulação do exercício profissional ficam a cargo das diretorias dos conselhos ou de comissões específicas, órgãos que são integralmente compostos por membros da categoria, que não percebem remuneração. O processo de escolha desses membros, por sua vez, não deixa de ser democrático, pois tais agentes são eleitos por seus pares ou, quando menos, são nomeados pela diretoria eleita.
 

A Administração Pública, diferentemente, mantém vínculos profissionais com a maioria dos seus servidores. Funções de alta relevância são atribuídas a servidores profissionais, que mantém vínculo perene com a Administração. Nesse outro contexto, aí sim, mostra-se útil a realização de concurso, propiciando que tais postos de trabalho sejam ocupados por pessoas escolhidas por intermédio de um procedimento democrático, livre de influências que poderiam prejudicar o adequado exercício da função pública.
 
Há de se concluir, por tudo isso, que a exigência de concurso, contida no art. 37, II da Constituição Federal, é aplicável apenas às entidades que façam parte da Administração. Os conselhos profissionais não integram a Administração Pública e, por isso, não estão obrigados a contratar pessoal por intermédio do referido procedimento. Essa é, inclusive, a posição adotada em recente acórdão do STF, que enfrentou diretamente essa discussão ao decidir pela inaplicabilidade à OAB do dever de realizar concurso público.
 
4. ANÁLISE DA POSIÇÃO DO STF SOBRE A MATÉRIA
 
Nos últimos tempos, uma determinada decisão do STF a respeito do regime jurídico aplicável ao Conselho Federal de Odontologia passou a ser vista como marco de uma jurisprudência do STF sobre a matéria. Para muitos, com esse julgado o STF pacificou a discussão sobre o tema, definindo que seria aplicável ao Conselho de Odontologia — e, por extensão, às demais entidades de fiscalização profissional — todo o regime jurídico típico da Administração Pública.

Foi esta, por exemplo, a orientação adotada pelo Tribunal de Contas da União. Em recomendações feitas a entidades corporativas de fiscalização profissional sugere-se a realização de concurso, admitindo-se, porém, a preservação dos contratos firmados até 18 de maio de 2001 . Nesta data foi publicada decisão do STF envolvendo o Conselho Federal de Odontologia (MS n.º 21.797-9) que, na visão do TCU, serviria de marco definidor da obrigatoriedade de tais conselhos realizarem concurso público.
 

O Ministério Público da União e o Ministério Público do Trabalho também adotaram, em algumas oportunidades, postura semelhante à do TCU. Isso ocorreu na celebração de Termos de Ajustamento de Conduta com conselhos profissionais, por intermédio dos quais se obteve o compromisso das entidades realizarem concurso, mas se aceita a preservação das contratações realizadas sem concurso até a data do citado julgado do STF envolvendo o Conselho Federal de Odontologia.

Todavia, ao contrário do que afirmam o TCU em suas recomendações e o Ministério Público nos citados Termos de Ajustamento de Conduta, a decisão do STF envolvendo o Conselho Federal de Odontologia não põe termo à controvérsia a respeito da obrigatoriedade de tais conselhos realizarem concurso.
Deveras, o referido acórdão foi proferido no julgamento de mandado de segurança que buscava anular decisão do TCU que determinara a devolução de valores pagos como diárias aos dirigentes da entidade e estabelecera a recomendação de que a entidade viesse a adotar o regime jurídico único a seus servidores, nos termos da Lei 8.112/90. Na ação, o Conselho Federal de Odontologia pediu que fosse declarada a incompetência do TCU para fiscalizar suas contas, tornando sem efeito, por conseqüência, a recomendação para adoção do regime jurídico único dos servidores da União e a determinação de devolução de parte dos valores das diárias pagas a seus dirigentes.

O STF negou provimento ao Mandado de Segurança decidindo, em primeiro lugar, que o TCU era competente para fiscalizar as contas da entidade, uma vez que ela recebia recursos públicos, na forma das contribuições dos profissionais que integram a categoria. Diante disso, seria legítimo ao TCU controlar os gastos realizados com diárias pagas aos dirigentes da entidade.
Todavia, no tocante à aplicação do regime jurídico único (ponto que, no caso, mais interessa), o Supremo, por maioria, não conheceu da ação, isto é, não examinou o seu mérito. A maioria do STF entendeu que, como no caso houve apenas uma recomendação do TCU, não estaria caracterizado o abuso de autoridade ou a lesão a direito do impetrante que justificasse a impetração do mandamus. Ou seja, naquela oportunidade o STF não se pronunciou acerca da extensão às entidades corporativas de fiscalização profissional do regime jurídico instituído pela Lei 8.112/90.
O STF tanto não fixou posição a respeito da matéria no referido julgado do Conselho Federal de Odontologia que, recentemente, decidiu pela inaplicabilidade da exigência de concurso a outra entidade corporativa incumbida de fiscalização de profissão regulamentada (a OAB). A decisão ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.026/DF, que teve como relator o Ministro Eros Grau (j. em 8 de junho de 2006). Na oportunidade, “o Tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado, por entender que, em razão de a OAB não integrar a Administração Pública, não se haveria de exigir a regra do concurso público” .
Assim, há de se concluir que não existe, até o momento, uma exigência de realizar concurso público decorrente de postura jurisprudencial ou, muito menos, de aplicar indiscriminadamente o regime jurídico de Administração Pública às entidades corporativas de fiscalização profissional. Em suma, não há, até o momento, decisão de instância superior que possa ser adotada como parâmetro a exigir tal sujeição.
5. CONCLUSÃO
Tendo por base tudo o que foi exposto, apresentamos as seguintes conclusões acerca da natureza jurídica das entidades corporativas de fiscalização profissional, bem como ao regime jurídico a elas aplicável:

01.    As entidades corporativas incumbidas por lei da fiscalização de profissões regulamentadas receberam personalidade jurídica de direito público, mas não integram a estrutura do Estado. Apresentam, portanto, natureza jurídica de entidade pública não-estatal.

02.  Nessa condição, possuem um regime jurídico de natureza híbrida. São a elas aplicáveis as regras constitucionais que derivam da sua natureza pública (como a sujeição ao controle do Tribunal de Contas e a imunidade de impostos), mas não se lhes aplica as regras cujo objetivo é disciplinar a atuação dos entes do Estado.
 
03.    É o que ocorre, por exemplo, com o dever de realizar concurso público para a contratação de pessoal. O dever de realizar concurso foi previsto constitucionalmente apenas para entidades integrantes da Administração Pública, ou seja, para pessoas que façam parte da estrutura do Estado. Tal dever, no entanto, não se estende a entidades corporativas de fiscalização profissional, posto que não integram a Administração Pública.
 
04.    O Supremo Tribunal Federal não possui jurisprudência que imponha a aplicação indiscriminada do regime jurídico de Administração Pública às entidades corporativas de fiscalização profissional. Não se pode tomar como marco jurisprudencial sobre a matéria o julgado do STF envolvendo o Conselho Federal de Odontologia, publicado em 2001. Em primeiro lugar, referido acórdão não decidiu sobre a matéria em exame, qual seja, a necessidade de os Conselhos Profissionais se submeterem ao regime jurídico de Administração Pública. Depois, o próprio STF, em julgamento mais recente, que versa especificamente sobre a aplicação do concurso em entidade corporativa de regulação profissional (a OAB), decidiu pela inaplicabilidade da exigência (ADI 3.026/DF, rel. Min. Eros Grau, julgado em 08/06/2006). Assim, não há, até o momento, decisão de instância superior que possa ser adotada como parâmetro a exigir tal sujeição.


Referências

MOREIRA, Vital. Auto-Regulação Profissional e Administração Pública. Almedina, Coimbra, 1997.
LOMBARTE, Artemi Rallo. La Constitucionalidad de las Administraciones Independientes. Tecnos, Madrid, 2002.