Páginas

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Interrogatório do réu nos processos de competência originária dos tribunais: conservadorismo judicial e prejuízo à ampla defesa.

As reformas de 2008 buscaram aprofundar no CPP o sistema acusatório previsto na CF/88, bem como garantir a efetiva possibilidade de defesa. Para isso, passou-se a exigir que a oitiva de testemunhas seja feita diretamente pelas partes (art. 212 do CPP), admitiu-se a possibilidade de absolvição sumária (art. 397) após o oferecimento da resposta à acusação (art. 396-A) e determinou-se que o interrogatório do réu fosse o último ato da fase de instrução, antecedendo às alegações finais e à sentença, como determina o art. 400 do CPP. Essas, entre outras medidas, buscaram, enfim, dar mais garantias àquele que é submetido ao processo penal.
Diante do profundo quadro de mudanças, o art. 394, §4º, do CPP passou a determinar que as disposições dos artigos 395 a 398 do aplicar-se-iam a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados pelo estatuto processual penal. Ou seja, o Legislador estendeu os casos de rejeição da denúncia, a resposta à acusação e as hipóteses de absolvição sumária a todos os procedimentos que tramitem perante juízos singulares.
Não bastasse isso, o art. 394, §5º, do CPP passou a afirmar que as normas do procedimento ordinário devem ser aplicadas subsidiariamente aos procedimentos especiais, ao procedimento sumário e ao sumaríssimo.
Diante desse panorama, uma interpretação meramente literal pode levar à conclusão de que os institutos que não foram generalizados pela cláusula genérica do art. 394, 4º, do CPP não se aplicarão a outros procedimentos, se lá estiverem previstos de forma expressa.
É o que aconteceria com a inversão da ordem de interrogatório do réu. Havendo procedimento que preveja expressamente que o ato será realizado no início do processo, e, considerando que o instituto não foi generalizado a outros procedimentos pelo art. 394, §4º, a conclusão seria no sentido de que o interrogatório não pode ser deslocado para o final da fase de instrução.
E foi com base nessa interpretação meramente literal que o STJ indeferiu pedido feito pela defesa de réu submetido a processo de competência originária de Tribunal de Justiça, para que fosse ouvido novamente, agora ao final da fase instrutória.
Eis o julgado da 5ª turma, constante do informativo 467:

O paciente é detentor do foro privilegiado por prerrogativa de função (prefeito) e, por isso, encontra-se processado sob o rito da Lei n. 8.038/1990, pela prática de gestão temerária. Dessa forma, logo se percebe tratar de procedimento especial em relação ao comum ordinário previsto no CPP, cujas regras, em razão do princípio da especialidade, devem ser afastadas na hipótese. Não se olvida que o § 5º do art. 394 do CPP traz a ressalva de aplicar-se subsidiariamente o rito ordinário nos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo nos casos em que há omissões ou lacunas; contudo, quanto aos arts. 395 a 397 do CPP, por exemplo, alguns doutrinadores entendem que eles somente podem incidir no primeiro grau, não atingindo os procedimentos de competência originária dos tribunais. Na hipótese, busca-se novo interrogatório do paciente, agora ao final da instrução processual, tal qual determina o art. 400 do CPP. Sucede que o art. 7º da Lei n. 8.038/1990 prevê momento específico para a inquirição do réu (após o recebimento da denúncia ou queixa) e, constatado não haver quanto a isso lacuna ou omissão nessa lei especial, não há falar em aplicação do mencionado artigo do CPP. Mesmo que se admitisse a incidência do art. 400 do CPP à hipótese, anote-se que o réu foi ouvido antes da vigência da Lei n. 11.719/2008, que trouxe o interrogatório do réu como o último ato da instrução e, como consabido, não é possível a aplicação retroativa dessa norma de caráter procedimental. Precedente citado: HC 152.456-SP, DJe 31/5/2010. HC 121.171-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 22/3/2011. (grifos nossos)

A decisão, a nosso ver, peca por se prender exclusivamente à interpretação literal da legislação processual.
Com efeito, quando a lei 8.038/90 foi editada tinha ela um claro objetivo: garantir maior proteção àqueles que serão submetidos ao processo penal, tendo em vista a relevância do cargo que ocupam, para garantir-lhes maior independência e segurança no exercício de suas funções. Esse, aliás, é o principal fundamento para a existência do foro por prerrogativa de função, vulgarmente chamado de foro privilegiado.
Tanto é assim que a lei 8.038/90 assegura ao acusado o oferecimento de defesa prévia (art. 4º) e a faculdade de sustentar oralmente seus argumentos perante o Tribunal (art. 6º), antes deste iniciar o julgamento sobre o recebimento ou não da acusação.
A manter-se a decisão do STJ, a lei que tinha por finalidade trazer maior resguardo ao réu acabará por colocá-lo em situação pior daquele que é sujeito ao procedimento ordinário do CPP, a ponto de se concluir que, para gozar do gozar do direito de ser ouvido ao final do processo,  o detentor de cargo com prerrogativa de função deverá renunciar ao mandato!
É preciso reconhecer, então, no caso, a existência de uma lacuna ontológica.
Com efeito, já explicava Maria Helena Diniz[1], que há três tipos de lacunas: as normativas, as ontológicas e as axiológicas. As lacunas normativas ocorrem naqueles casos nos quais não há norma regulando a situação fática analisada. Já as lacunas axiológicas surgem quando há normas regulando a situação, mas não correspondem ao processo dos fatos sociais, que acabam por alijar a norma, tornando-a contrária à sua finalidade precípua. Por fim, há lacuna axiológica quando a aplicação da norma ao caso cria uma situação injusta.
Em outras palavras, é preciso admitir que a estipulação do interrogatório do réu no início do processo não mais se coaduna com a evolução social, que enxerga na sua realização ao final da instrução como a maneira mais efetiva de se garantir a ampla defesa. Tanto é assim que essa passou a ser a regra geral, aquilo que ordinariamente acontece.
Dessa forma, admitindo-se a lacuna, poder-se-á aplicar o art. 394,§5º, ou seja, estará admitida a realização do interrogatório do réu ao final do processo.
Por fim, há tempos a doutrina mais abalizada critica o entendimento embasado no art. 2º do CPP, segundo o qual a norma processual, ainda que mais benéfica, não retroagiria para beneficiar o réu, tendo em vista que, não há como pensar o direito penal desvinculado do processo penal e vice-versa.
É o que afirmava Paulo Queiroz e Antônio Vieira[2]:

“sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu (...) terá aplicação efetivamente retroativa. E aqui se diz retroativa advertindo-se que, nestes casos, não deverá haver tão somente a sua aplicação imediata, respeitando-se os atos validamente praticados, mas até mesmo a renovação de determinados atos processuais, a depender da fase em que o processo se achar. Neste exato sentido, ressalta Binder, tendo como premissa um modelo processual onde seja vedado ao réu consultar seu advogado antes de ser interrogado e a entrada em vigor durante o processo de norma que lhe assegure tal prerrogativa, que ‘esse acusado teria direito à renovação do ato já realizado para completá-lo de acordo com as novas normas, que dão maiores garantias. E seria o segundo depoimento — não o primeiro — que teria valor’”.
“Assim deveria também ocorrer com os processos ainda não sentenciados, por exemplo, quando da entrada em vigor da Lei nº 10.792/2003, que ajustou o procedimento do interrogatório ao sistema constitucional, exigindo a presença do defensor, assegurando a entrevista prévia entre este e o acusado, permitindo as reperguntas, etc., impondo-se a renovação do ato, mesmo que praticado em consonância com o modelo vigente à época de sua realização”.

Sendo assim, deve-se oportunizar àqueles que ainda não tiveram sentença prolatada a oportunidade de ser ouvido, mesmo que o ato já tenha sido realizado no início da instrução.


[1]DINIZ , Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do Direito.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 437.
[2] QUEIROZ, Paulo de Souza, VIEIRA, Antonio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.143, p. 14-17, out. 2004.

Nenhum comentário:

Postar um comentário