quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Multa Astreintes - Particularidades, Controvérsias e Conclusões

A idéia que temos então, como conclusão, é de que as sanções diárias devem ser previamente assentidas e somente podem ser instituídas e aplicadas nos termos das leis. É axiomático a obediência à principiologia de legalidade. Neste pormenor, as multas diárias encontram guarida expressa no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo no CPC, no CDC, além da legislação esparsa.

Salientamos que há dificuldades para o Estado exercer a sua função jurisdicional e delimitar a aplicação das sanções, tanto no âmbito administrativo, quanto no penal. Sendo assim, ampliando nossa discussão, apontamos no sentido compulsório de que as penalidades, inclusive as administrativas, conquanto aplicadas pelo Poder Executivo, devem estar estipuladas prévia e necessariamente em lei.

Assim, no recente racionamento de energia elétrica, tivemos no Brasil, com a imposição de multas generalizadas ao povo, coibindo o consumo de energia (justamente através das astreintes) um aspecto singular: a necessidade premente e circunstancial de controlar o consumo através de medidas provisórias, a nosso ver, em princípio, adequadas seja administrativa, seja juridicamente. No entanto, no caso em pauta, vivenciou-se, concomitantemente, uma total ausência de legitimidade, fundamento axiológico de validade e eficácia das normas jurídicas. Tal contexto era fato de evidente responsabilização objetiva de gestores públicos, porquanto desviaram, ou no mínimo, negligenciaram recursos de manutenção e incremento do sistema elétrico nacional.

Deste modo, o consumo de energia, por si só, nunca representou prática de conduta ilícita, mas, houve previsão de que seu consumo acima de certos limites fora desacato às normas públicas, fato que ensejara a aplicação de penalidade, in casu, multa cuja natureza jurídica era cominatória ou astreintes.

A ilicitude não advém do consumo, mas do não atendimento à redução deste. Sendo assim, por exemplo, consumir energia, acima de um limite, pôde ensejar a imposição de multa, que teve como objetivo induzir a um fazer (reduzir o consumo) ou a um a não-fazer (não elevar o consumo).

Em termos estritos de direito a questão revelou-se interessantíssima. As multas astreintes foram impostas com essência e caráter de retributividade, induzindo, pois, a observância de um determinado modo de agir, em nome do interesse público. A limitação dos valores punitivos (que em tese seriam ilimitados e de índole discricionária do administrador público) foi estabelecida como uma espécie de mea culpa de fraqueza e reconhecimento do poder judiciário da ilegitimidade do fato gerador (provocador) do "apagão". Demonstrou-se, infelizmente, a falta de independência e de compromisso tanto do Poder Judiciário, como do próprio Ministério Público, na obtenção dos ressarcimentos e responsabilizações cabíveis.

No Brasil, conforme já se apresentou, por um lado, percebe-se a índole de persuasão das astreintes que objetivam compelir a execução obrigacional; de outro, ou seja, na sua aplicação, nota-se sua contradição. Fundamentemos: em princípio não há limitação para a fixação de multa, e sua imposição deve ser de valor elevado, para que iniba o devedor com intenção de descumprir a obrigação e sensibilizá-lo de que é muito mais vantajoso cumpri-la do que pagar a respectiva pena pecuniária.

Neste ponto de vista, a ‘ilimitação’ da multa nada tem a ver com o enriquecimento ilícito do credor, porque não se trata de contraprestação de obrigação, nem tem caráter reparatório. Possui sim um emblemático interesse de consecução de obrigações pactuadas e/ou determinadas legal e judicialmente, preservando e valorizando, destarte, a estabilidade, a eficácia e o caráter cogente do ordenamento jurídico.

"A lei processual civil não estabeleceu limites à fixação de pena pecuniária por dia de atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Impossibilidade de aplicação analógica do art. 920 do CC". (Ac. Da 3a. T. do STJ, de 23.09.91, no R. Esp. nº 8.065-SP, Rel. Min. Cláudio Santos; DJU, 23.09.91, p.13.080)

No entretanto, parcela significativa da doutrina e da própria jurisprudência entendem que ela não pode ultrapassar o valor da causa, porque isto poderia implicar enriquecimento injusto do credor. Trata-se de uma mitigação contraditória. Lança-se-nos como uma espécie de "multa aparência" ou "multa susto" que visa fazer com que o devedor não descumpra o acordado ou preceituado. Mas, paradoxalmente, incorpora-se um contrapeso de difícil explicação: o entendimento de uma multa além do valor da causa como concretizador de enriquecimento sem causa. Admitindo-se, retroativamente, vinculação ou dependência da multa à obrigação dita principal. Em similitude à multa moratória (limite de 10% do valor da causa de acordo com o Dec. Lei n. 58/37 e o Decreto n. 22.626/33 que combate a usura. O próprio Código de Defesa do Consumidor limita a cláusula penal moratória a 2% em contratos sob sua égide).

Deixando transparecer assim, que na inviabilização da execução específica esta se converteria automaticamente em perdas e danos, convertendo as astreintes, desafortunadamente, em autêntica simulação.

Por vezes, obrigações serão submetidas às astreintes mas, mesmo assim, não serão cumpridas – e, por conseguinte, já consumadas, ou seja, obrigações que conformam verdadeiros títulos de crédito – tornar-se-ão astronômicas, forçando o magistrado, no caso concreto, a viabilizá-las, impondo cláusulas como a "rebus sic stantibus", ou propondo acordos entre as partes quase que ‘compulsoriamente’, ou ainda, diminuindo ex officio o quantum debetur, a fim de evitar o pretenso enriquecimento sem causa; contradizendo a liquidez e executoriedade da dívida, a independência e o extremismo próprios deste tipo de sanção, em grave detrimento à credibilidade e à segurança jurídico-institucional.

Desta sorte, visando evitar tal infortúnio vexatório, deve o juiz, sempre, sopesar os valores a serem indicados às multas cominatórias tendo em mente dois princípios: o de intimidar o devedor ao cumprimento da obrigação (e da própria ordem judicial emanada) sem divorciar-se de sua viabilidade executiva posterior, para que numa eventual desobediência, evitem injustiças, constrangimentos e anarquizações (sentimento de descrédito e impotência do credor e do magistrado diante de um sistema inoperante).

"A multa na obrigação de fazer se destina a coagir o devedor da obrigação ao seu cumprimento, certo que a stipulatio poenae não se reveste de caráter aere perennius, transmudando-se em fonte inesgotável de ganho sem justa causa, tanto mais quando não tem natureza reparatória" (RT 685/200).

"A pena imposta tem por objetivo um desideratum: coagir o obrigado a cumprir o preceito, não tendo fim em si mesma; ora, se se mostra inviável esta concretização, não há porque persistir na cominação. Como proclamavam os antigos romanos, que em brocardos latinos refletiam o esplendor de sua genialidade no campo jurídico: "ad impossabilia nemo tenetur" (RT 685/201)

Em decorrência dos diversos enfoques sob os quais podem ser interpretadas a natureza jurídica das sanções diárias, assim como das circunstâncias políticas, sociais e econômicas que influenciam ou contaminam intensa e assistematicamente o ordenamento jurídico nacional, corrompendo o instituto e mesmo a sua própria credibilidade; afora questões de âmbito prático-financeiro, percebemos, como corolário, uma doutrina e uma jurisprudência vacilantes.

A execução nos Juizados Especiais Cíveis, fora o comentário antes delineado (cf. nota 1), promove mais uma majoração à aplicação das multas astreintes: sua utilização nas obrigações de dar. A Lei nº 9.099, de 26.9.95, que disciplinou os Juizados Especiais Cíveis, destinados a conciliar, processar, julgar e executar as causas cíveis de menor complexidade, sob os critérios da informalidade e celeridade, inspirando-se nos arts. 644 e 645 do CPC, ampliou, portanto, a aplicação do regime das astreintes. Estendeu-as às obrigações de dar e entregar, in litteris:

"Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:

Omissis (...)

V - nos casos de obrigação de entregar, de fazer, ou de não-fazer, o Juiz, na sentença ou na fase de execução, cominará multa diária, arbitrada de acordo com as condições econômicas do devedor, para a hipótese de inadimplemento. Não cumprida a obrigação, o credor poderá requerer a elevação da multa ou a transformação da condenação em perdas e danos, que o Juiz de imediato arbitrará, seguindo-se a execução por quantia certa, incluída a multa vencida de obrigação de dar, quando evidenciada a malícia do devedor na execução do julgado;

VI - na obrigação de fazer, o Juiz pode determinar o cumprimento por outrem, fixado o valor que o devedor deve depositar para as despesas, sob pena de multa diária."

A obrigação de dar ou entregar tem por interesse uma coisa, que pode ser objeto de execução direta, específica, ou através da própria coisa, que é subtraída do devedor, à força ou não, mas, sem ofensa à sua pessoa, liberdade ou dignidade.

O mesmo não ocorre com a obrigação de fazer ou de não-fazer, que não podem ser exigidas mediante coação física sobre o devedor e, por isso, incidem na regra "nemo cogi ad factum", resolvendo-se em perdas e danos ou execução indireta. Mas, como apontamos, a jurisprudência francesa inovou, instituindo um meio de coação moral (não física) sobre o devedor, através das astreintes ou penas diárias, a fim de vencer a resistência dos inadimplentes.

O instituto das ‘astreintes’ difundiu-se sobremodo no direito comparado: além da França, a Itália e a Alemanha são exemplos representativos bem sucedidos de aplicação deste mecanismo. Aliás, o próprio direito processual brasileiro anterior já admitia esse regime para a execução das obrigações de fazer e não-fazer, tanto que instituiu um procedimento especial para abrigar tais pretensões: ação cominatória, art. 302, XII do CPC/39. E, com base nesse dispositivo, foi elaborada a Súmula nº 500 do STF, segundo a qual "não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar." E não cabe porque a obrigação de dar pode ser exigida ‘manu militari’ sem ofensa à pessoa do devedor (pela subtração da coisa e entrega ao credor).

O novo Código Processual, entretanto, suprimiu o procedimento especial cominatório, mas não excluiu o procedimento ordinário ou sumário para a execução das obrigações de fazer e não-fazer, com suporte nos arts. 287, 461, 644 e 645, conforme declinado.

Deve-se explicitar que a Lei de Defesa do Consumidor concede tutela específica, inclusive liminar, para execução das obrigações de fazer e não-fazer, inclusive pela cominação de multa diária ex officio e outras medidas drásticas de compulsão (Lei nº 8.078/90, art. 84). Este sistema veio a ser transplantado para o art. 461 do CPC pela Lei nº 8.952, de 13.12.94.

Sabe-se que nos Juizados Especiais, o processo orienta-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade etc (cf. art. 2º da Lei nº 9.099/95); por outro lado, a execução específica para entrega de coisa concretiza-se com o ‘mandado de busca e apreensão da coisa móvel’ ou de ‘imissão na posse do imóvel’, (cf. art. 625 do CPC), exigindo procedimentos burocráticos incompatíveis com o novo rito especial de pequenas causas. Donde a opção pela auto-execução, através da coação moral mediante cominação de multa diária pela inobservância do preceito, seja de dar, fazer ou não-fazer. Neste âmbito uma parte relutante da doutrina entende as ‘astreintes’ limitadas ao máximo valor de alçada, ou seja, 40 salários mínimos. Mas podemos refutar esse limite sob, pelo menos, dois aspectos:

a)Pragmático, pois sua limitação seria um convite à inadimplência;

b)Legal. O inciso II do § 1º do artigo 3º da Lei 9.099/95 impõe o limite de quarenta salários mínimos aos títulos extrajudiciais. Mas o inciso I do mesmo dispositivo não impõe qualquer limite aos títulos judiciais; silêncio intencionalmente dirigido à ilimitação. Mostra-se-nos, em princípio, a melhor interpretação (lógica e sistemática) que se pode fazer do § 1º em questão.

Hoje o valor ‘indefinido’ e ‘ilimitado’ das multas diárias são previstas, p.e, no Enunciado nº 12.2, do III Encontro de Juízes dos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro, publicado no D.O., Parte III, em 16.11.99, através do Aviso nº 56, que dispõe: "A multa cominatória, cabível apenas nas ações e execuções que versem sobre o descumprimento de obrigação de fazer, não fazer e entrega de coisa certa, não sofre limitação de qualquer espécie em seu valor total, devendo ser estabelecida em valor fixo e diário, contado o prazo inicial a partir do descumprimento do preceito cominatório".

Nesta direção orientam-se as turmas recursais dos Juizados Especiais fluminenses, a exemplo das ementas a seguir:

"Eis que a multa cominatória fixada para obrigar o devedor a cumprir obrigação de fazer infungível tem natureza jurídica diferente da cláusula penal e da multa moratória, que encontram seus limites fixados na lei... O juiz somente poderá rever o valor da cominação se, e somente se, em face da cláusula "rebus sic stantibus", alterarem-se de modo significativo e imprevisível as condições do pacto. Do contrário, é de ser mantido o valor da multa, que só chegou a patamares elevados, em função da inércia habitual da empresa (1999.700.004893-2, juíza-rel. Teresa Cristina Gaulia)".

" Omissis (...) A multa cominatória não está limitada ao teto insculpido no inciso I do art. 3º da Lei 9.099/95, posto que tal entendimento viria a beneficiar a inércia e a omissão do devedor da obrigação de fazer, obrigação de fazer esta que no caso presente é infungível, só podendo ser cumprida pela própria ré. A multa cominatória tem função de fazer cumprir a ordem judicial, que cairia no vazio caso a mesma fosse reduzida, como pretendeu a r. Sentença (1999.700.005849-4, julgado em 09/12/1999)".

Cabe esclarecer, por fim, que diante de obrigações personalíssimas nas quais só o devedor pode cumprir; não interessa a ninguém sua conversão em perdas e danos, opção facultada exclusivamente aos credores, pelos artigos 633 e 461, parágrafo 1º, do CPC. Há mesmo que se impor pesadas multas, para compelir os devedores a cumprirem no vencimento as obrigações que lhes ordenarem a Justiça, evitando-se o desleixo e o descrédito institucional.

Surge, agora, outra inovação (na realidade, um alongamento): o preceito cominatório ou regime das astreintes, também cabíveis para a execução das obrigações de dar, entregar ou restituir, não somente circunscritas aos Juizados Especiais, mas a todo o Judiciário. E a razão é de ordem prática: a efetividade processual. É uma resposta tecnojurídica, isto é, uma mudança (ou evolução) das técnicas de direito positivo, em função das transformações sociais e da massificação das relações jurídicas vivenciadas na atualidade.

Uma opção que se nos apresenta útil e não propugna por maiores mudanças ou investimentos e que permitiria uma significativa melhora na qualidade e na concretização das decisões é o de, por um lado, dar-se, reconhecidamente, ao Poder Judiciário a competência in concretumpara avaliar, sopesar e aplicar as normas, os princípios e os valores envolvidos. Exigindo-se-lhe, em contrapartida, maior harmonia entre a imposição da multa cognitiva e a austeridade na sua aplicação (execução), evitando sua ridicularização. O caráter imperativo das astreintes é latente, porém não pode servir para provocar transformações radicais, mormente se motivada (ou ao menos explicada) a desobediência. De outro lado, não vemos como permitir e continuar no emprego de um instituto simulado.

É justo para os casos de notório equívoco ou vacilação inexplicável por parte da magistratura, p.e., na consecução do instituto das astreintes e que venham a provocar danos desnecessários às partes ou a terceiros, que se demandaria automática responsabilização (civil) por parte do Estado aos lesados, vinculando-se, de algum modo, os responsáveis - ainda que magistrados – regressivamente – recompondo-se assim, se fosse o caso, o Estado pela incoerência, a desídia e/ou a discrepância absurdas cometidas por seus agentes contra terceiros. Note-se, ademais, que não estamos adentrando na esfera de fundamentação ou convencimento do juiz, mas sim, de estabilidade dos processos judiciais. Com este sistema entendemos poder, ao menos, minimizar decisões extremadas: tanto exorbitantes quanto ínfimas, garantindo, assim, efetividade e segurança à demanda (processual e materialmente falando) e, ainda, aos próprios institutos jurídicos em estudo.

Enfim, a transferência e, por conseqüência, a total responsabilização do Judiciário nas imposições e execuções de casos reais a serem submetidos às denominadas multas diárias (astreintes) parece-nos um meio viabilizador de evolução do direito positivo. Haverão os tribunais de se munir de ponderações normativo-valorativas, sempre e rigorosamente motivadas, devendo trazer segurança e sentido a um instituto por demais flutuante no País, e que vem provocando descrédito e antinomias para o ordenamento, para as instituições e, principalmente, para as gentes brasileiras.

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