William Wilson: estudo de simbolos conectados a dupla personalidade do protagonista

Versão final: publicado em Novembro de 2008, João Pessoa

A dupla personalidade como simbólico em William Wilson, de Edgar Allan Poe

Miquéias dos Santos Vitorino[1]
(apresentado no evento CCHLA Conhecimento em Debate: 100 anos da morte de Machado de Assis)

Resumo
Este trabalho apresenta a relevância dos elementos simbólicos que dão sustentação à dupla personalidade no conto em William Wilson, de Edgar Allan Poe, contista e crítico literário norte-americano, também um dos inauguradores da teoria literária moderna. Nossa leitura do conto vai se amparar na presença de alguns elementos simbólicos, que se referem à construção de um duplo que alicerça todo o enredo.

Abstract
This present essay demonstrates the relevance of symbolic elements which hold an idea of double personality inside the short story William Wilson, by Edgar Allan Poe, North American writer and literature criticizer, also one of the inaugurators of modern literature theory. Our reading of this short story is based on the presence of some symbolic elements referent to a construction of a double that sustains the whole plot.

Palavras-chave: conto; Edgar Allan Poe; simbolismo.

Edgar Allan Poe (1809 – 1849) é considerado um dos maiores ficcionistas de todos os tempos e um dos inauguradores da narrativa breve contemporânea. Foi também crítico e teórico literário, escrevendo textos de importante valor crítico–teórico e de teor sarcástico, porém com brilhante engenho. Destacou-se principalmente escrevendo contos e ensaios sobre a literatura norte-americana de sua época, tendo com uma de suas mais importantes influências o contista Nathaniel Hawthorne (1804 – 1864).
Os contos de Poe são de estilo gótico, envolvendo uma atmosfera de suspense/terror e com a presença de elementos fantásticos (muito característicos no século XIX na literatura norte-americana, principalmente em Nathaniel Hawthorne e Washington Irving). Entre tantas características marcantes dos contos de Poe, há elementos que são deveras representativos e que sugerem não somente símbolos aleatórios, mas símbolos com significados abrangentes ao próprio conteúdo e/ou tema do conto. As narrativas breves de Edgar Allan Poe possuem características peculiares: cada componente constituinte da estrutura do conto (personagens, ambientes, narração, simbolismos etc.) faz com que a atmosfera da narrativa possua um teor de obscuridade, de mistério, de nebulosidade, o que possibilita a inserção de elementos de literatura fantástica, o que confirma Roberts[2] no seguinte trecho, em que ele escreve sobre este conto: “Poe’s multitude of details are spell-binding and create a complete unity of effect for this tale.”[3] Com relação a fantástico, o que vem a ser isso? “O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário”[4], segundo Todorov, embora a literatura não exija verossimilhança. Numa breve definição, a literatura fantástica pode ser entendida como a literatura que lida com o sobrenatural, seja este estranho ou maravilhoso, usando os termos utilizados por Todorov em sua obra Introdução a Literatura Fantástica[5].
O conto William Wilson (1839) é exemplar para ilustrar o papel dos elementos simbólicos presentes nas narrativas breves de Poe, por isso é o corpus deste trabalho. Através de análises contextuais será possível atribuir aos símbolos deste conto de Poe significação, não no sentido de um verbete de dicionário, mas uma abordagem instigante que pretende enriquecer a análise literária deste texto.
William Wilson é um conto narrado em primeira pessoa, pelo protagonista. William Wilson é um jovem perturbado desde a infância por alguém que tenta usurpar sua identidade. Na primeira escola, William Wilson teve seu primeiro encontro com um colega que, segundo ele, lhe copia todas as suas características, tais como: silhueta, altura, modo de vestir, modo de andar, a voz (exceto por um “defeito de elocução”: o seu colega não era capaz de erguer a voz acima do volume de um sussurro). No decorrer da convivência, o protagonista descobre que este outro estudante tem seu mesmo nome e que nasceram “exatamente” no mesmo dia. Após a descoberta destas “coincidências”, William Wilson passa a ser atormentado pela presença do suposto “impostor”, antes colega e que depois se tornou um rival. O desempenho de William Wilson em relação aos seus colegas de classe era nitidamente melhor, até a chegada do rival, como podemos conferir no trecho a seguir:

Na verdade, o ardor, o entusiasmo, a autoridade inerente a meu caráter logo me tornaram uma personalidade notável entre meus colegas, e através de uma gradação lenta, mas segura, me conferiram uma ascendência entre todos os que não era mais velhos do que eu, com uma única exceção. Esta exceção era a pessoa de um estudante que, embora não fosse nem de longe meu parente, trazia o mesmo nome e sobrenome que eu ostentava ..(POE, 2003, p.122)

O narrador admite que o rival aparentava ser notado apenas por ele e era ignorado pelos seus outros colegas. Daí por diante, William Wilson passaria a ser perseguido por este indivíduo misterioso que tentava roubar-lhe a identidade: na escola de Eton, nas suas viagens pela Europa continental, para onde quer que ele fosse, o seu rival lá estaria. Finalmente, em Roma, depois de alguns anos de perseguição e numa ocasião de baile de máscaras de carnaval, William Wilson é abordado pelo seu sósia perseguidor e resolve dar cabo de seu rival.
Antes de descrever alguns dos símbolos presentes no conto de Poe, se faz necessário explicitar a importância desta análise dos símbolos. Em primeiro lugar, o leitor irá se deparar com descrições e objetos que compõem o cenário e a atmosfera do conto, que são intrinsecamente relacionados ao tema e conteúdo do texto, numa relação metalingüística, ou seja, esses elementos estarão sempre dialogando com o texto, significando bem mais que o sentido literal sentido permite. Esses elementos não são escolhidos aleatoriamente, mas eles contribuem para uma maior e melhor interpretação do enredo, permitindo uma leitura mais acurada da narrativa. Em segundo lugar, a leitura que este trabalho pretende realizar limitar-se-á a análise de símbolos mais próximos das culturas ocidentais e cristãs. Em ultimo lugar, este trabalho visa contribuir com releituras do conto em questão via a análise da força do simbólico presente no texto.
O primeiro elemento que deve ser observado é o nome do protagonista, que é próprio título do conto. William Wilson não é o verdadeiro nome do protagonista, mas segundo o narrador (o próprio William Wilson), seu pseudônimo não é muito diferente do nome verdadeiro como está citado no texto desta forma: “… nesta narrativa designei a mim mesmo sob o nome de William Wilson, um título fictício que não é muito diferente do real”[6]. O nome completo “William Wilson”, se dividido, poderá tomar a seguinte forma: WILL I AM WIL SON – o que poderia ser “I am Will, Will’s son”, que, traduzindo, seria “Eu sou Will, filho de Will”. Há alguns aspectos a considerar em relação ao nome do protagonista. Primeiro: sobre o duplo sentido do nome, porque alguns nomes de origem de anglo-germânicas designam o sufixo ‘son’ para indicar relação familiar de pai e filho no nome de alguém, o que neste caso Wilson significaria filho/descendente de Will, assim como em outros nomes como Anderson, Johannson, Johnson e outros nomes de mesma origem; segundo: “Will” poderia significar também “herança”, cuja interpretação seria William Wilson como filho e herdeiro do caráter de seu pai, no momento em que o narrador cita: “… na primeira infância, já dava evidências de que havia herdado plenamente o caráter familiar.[7]” O pai de William Wilson também não tem o seu nome na íntegra citado na estória, mas que se supõe que seja similar a William Wilson em alguns aspectos. Esta questão da herança familiar de William Wilson é constantemente citada por ele próprio em seu relato, por isso deve-se considerar também essa hipótese de interpretação deste nome. Quando analisamos a sonoridade do nome do protagonista, note que as primeiras sílabas de seu nome são semelhantes, como que “espelhadas” ou duplicadas: Will iam Wil son.
A neblina, um dos elementos que fazem parte da descrição do meio em que William Wilson está inserido, traz ao leitor um clima de obscuridade, de mistério. A névoa ou neblina simbolizam, segundo o Dicionário de Símbolos de Udo Becker[8], indeterminação, dúvida, e transição de um estado para outro, o que adiciona ao discurso ficcional uma atmosfera de mistério e uma expectativa de mudança no destino do protagonista.
O elemento mais intrigante e chave para este o conto é o espelho, que aparece apenas no final da estória. William Wilson é abordado, durante um baile de máscaras em Roma, pelo seu sósia fantasmagórico e aquele resolve exterminá-lo para livrar-se da incessante e incômoda presença do rival. Tomado de forte ira, William leva o rival para um local mais reservado e escuro e lá desfere repetidos golpes com uma espada. Num determinado momento após o acontecimento, William Wilson desviou o olhar e notou uma grande peça na sala, era um espelho. O espelho, segundo Udo Becker[9], representa uma a reprodução da auto-imagem, da reflexão e do pensamento. O espelho também simboliza auto-conhecimento, consciência, verdade e clareza. Considerando todas estas possibilidades interpretativas constantes no dicionário de símbolos, a trama torna-se ainda mais significativa quando esses significados contaminam, positivamente, o enredo.

O breve momento em que desviara os olhos tinha sido suficiente para produzir, segundo me pareceu, uma mudança completa na disposição do lado mais distante da peça. Um grande espelho, ou pelo menos foi essa a impressão que tive a princípio, aprisionado na confusão que me dominava, erguia-se agora onde nenhum estivera antes; (POE, 2003, p.144)

A máscara aparece, também no fim do conto, como um adereço carnavalesco. Porém, assim como o espelho, ela nos remete a pensar sobre algo que a máscara simboliza: a identidade. A máscara pode representar dois opostos: realce/evidência ou um objeto que serve para ocultar a identidade do portador. O Dicionário de Símbolos de Chavalier e Gheerbrant afirma que a máscara tem várias funções e significados[10]. No caso da máscara carnavalesca, ela pode ter um duplo significado: ou representa uma ocultação da verdadeira identidade do portador, artificializando o rosto, ou então o representa o portador de forma cômica, irônica ou exagerada. Na festa carnavalesca, a máscara tem uma função distinta das demais máscaras (como a de teatro, de rituais e etc.) que seria não de evidenciar, mas de manter uma identidade distanciada do real. Considerando essa a função da máscara, podemos associar ao conto, de forma que a máscara se torne mais significativa, o que podemos observar nos momentos finais da estória, onde William Wilson vê a máscara do seu oponente no chão, junto aos outros adereços e logo mais uma “revelação” do sósia. A queda/retirada da máscara sugere algo significativo, pois cria uma expectativa de revelação. Junto à máscara caída do sósia de Wilson estava um manto, que, embora aparente ser um simples adereço sem importância de ser citado, carrega um significado que complementa o conjunto de elementos simbólicos, isto é, a máscara e o espelho. O manto, segundo Chavalier e Gheerbrant, “é um símbolo de metamorfoses por efeito de artifícios humanos e das personalidades diversas que um homem pode assumir.[11]

Foi isso que me pareceu, mas de fato não era. Era meu antagonista – era Wilson, que agora se erguia diante de mim em sua agonia de morte. Sua máscara e seu manto estavam caídos onde os jogara sobre o assoalho. Não havia um único fio em seu vestuário, nem um só traço em todas as feições sulcadas e singulares de seu semblante que não fossem, com a identidade mais absoluta, exatamente os meus! (POE, 2003, p.145)

Unindo o manto, como representação de disfarce e de ocultação da forma e do rosto, à máscara, que tem uma representação semelhante, e ao espelho, que indica auto-conhecimento, clareza e verdade, temos em William Wilson uma rede de símbolos coesos, expandindo as possibilidades interpretativas do conflito do protagonista, criando a tensão textual no limite da unidade de efeito, propugnada por Edgar Allan Poe enquanto teórico da criação ficcional[12].
Embora haja outras possibilidades nas releituras de William Wilson, espero que este trabalho contribua com algumas leituras através da análise dos símbolos presentes no texto, referentes ao próprio tema e conteúdo do conto. Vimos, na nossa perspectiva, que essas releituras são muito importantes no que diz respeito à interpretação do texto, pois os símbolos enriquecem o texto ficcional através de significados não literais, mas muito sutis nas suas representações. Outras leituras são possíveis também, dependendo da maneira como a leitura do conto é realizada e da perspectiva do leitor.

Referências

BECKER, U. Dicionário de símbolos. Trad. Edwino Royer. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 1999.

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

POE, Edgar Allan. William Wilson. In__ A carta roubada e outras histórias de crime e mistério. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 115-145

POE, E. A. William Wilson. The Literature Network. 1839. http://www.online-literature.com/poe/47/ (acesso em 04 de 08 de 2008).

POE. E.A. Twice Told-Tales by Nathaniel Hawthorne: a reviwed. In: BRADLEY at all. The American tradition in literature. V.1. New York: W.W. Norton, 1974. p. 872-878.

ROBERTS, J. L. Poe’s short stories: notes. Lincoln, Cliffs, 1998.

TODOROV, T. Introdução a literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3ªed. São Paulo: Perspectiva, 2007

[1] Acadêmico do curso de licenciatura plena em Letras – vernácula e estrangeira (inglês) da UFPB. Este ensaio originou-se a partir das discussões e leituras durante as aulas da disciplina Literatura Norte-Americana I, ministrada pela professora Nadilza B. Moreira, professora do Departamento de Linguas Estrangeiras Modernas.
[2] ROBERTS, J. L. Poe’s short stories: notes. Lincoln, Cliffs. p.59.
[3] Pode assim ser traduzido: a riqueza em detalhes em Poe [obra] é coberta de encanto e cria uma completa unidade de efeito para este conto [William Wilson].
[4] TODOROV, T. Introdução a literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3ªed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 31.
[5] IDEM
[6] POE, Edgar Allan. William Wilson. In__ A carta roubada e outras histórias de crime e mistério. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2003. p.122
[7] IDEM. p.116.
[8] BECKER, 1999, p.199.
[9] BECKER, 1999, p.102.
[10] CHEVALIER, 1998, p.595-598
[11] CHEVALIER, 1998, p.598.
[12] Sobre a unidade de efeito em contos, proposta de Poe na teoria literária consultar o artigo: POE. E.A. Twice Told-Tales by Nathaniel Hawthorne: a reviwed. In: BRADLEY at all. The American tradition in literature. V.1. New York: W.W. Norton, 1974. p. 872-878.

Sobre miqueiasvitorino

Graduado em Letras (PT-IN) pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre em Linguística Aplicada pelo Proling/UFPB, membro do Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT), professor da rede estadual de ensino do estado da Paraíba (SEEPB) e tutor à distância da UFPB Virtual, na disciplina de Semântica da Língua Portuguesa.
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