domingo, 26 de junho de 2011

"Filhos da Light" lutam pela preservação da área onde sonharam

Notícia publicada na edição de 26/06/2011 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 004 do caderno E

Quem mora na região sabe muito bem o que quer dizer quando um conhecido fala que vai passear na Light. É assim que ficou conhecida a área da represa Itupararanga. Geralmente nos finais de semana muitas famílias vão para lá para nadar, pescar, fazer piquenique, andar de barco. Isso na área externa, nas proximidades da barragem, porque lá dentro é proibido. Conforme os técnicos, é por questão de segurança. Na verdade, já era assim antigamente, quando existia ali uma vila de trabalhadores. Eles, inclusive, sentiam como se morassem em um condomínio, porque para entrar só era permitido com autorização dos moradores, sendo necessário deixar o RG na portaria. O problema é que agora, mesmo aqueles que cresceram ali, não podem mais visitar o lugar que um dia foi sua casa. Detalhe é que a maioria das residências foi demolida pela CBA. Agora, reunidos, os "filhos da Light" lutam para tornar o espaço um patrimônio histórico e ecológico. O sonho é que ali seja um parque, aberto para visitação pública.
Toda essa mobilização começou em 2009, quando quatro amigos de infância se reencontraram por acaso, depois de 30 anos sem se ver. Decidiram criar um blog para reunir todo o pessoal. O jornalista Billy Viveiros assumiu o desafio e passou a postar informações na internet. Surpreso com o número de acessos e com o volume de material que conseguiu, precisou criar mais sites. Hoje são quatro, mas pelo primeiro (www.filhosdalight.zip.net) é possível ter acesso aos demais.


Naquele mesmo ano surgiu a Associação Filhos da Light, com o objetivo de estar cada vez melhor organizados na defesa de suas memórias, valores e direitos. Entre as principais metas do grupo está conseguir o tombamento da Vila da Light e obter o direito para visitação pública.
Billy Viveiros mora hoje em São Paulo e afirma que desde que deixou o local, há 30 anos, vem coletando informações sobre Itupararanga, que podem em breve render um livro. Conforme ele, nenhuma família reside mais no local. Billy lembra que havia cerca de 50 residências na vila dos funcionários distribuídas em quatro núcleos: Acampamento (maior número de residências e onde ficava uma espécie de centro do lugar); Balanço (outro agrupamento, com menos casas e topograficamente localizado num local mais alto, em relação ao Acampamento); Alto do Morro (no topo da montanha, meia dúzia de casas) e Represa (cerca de quatro casas para funcionários que trabalhavam junto à barragem). "Eu morava numa das casas do Acampamento, próximo da escola local. Morei lá de 1956 a 1971. Quando meu pai se aposentou, tivemos que devolver a casa à companhia, que na época era a Light", conta.
Para ele, foi um privilégio e sorte morar lá durante a administração da Light. "As casas eram constantemente cuidadas e restauradas pela empresa, por isso estavam sempre muito bem pintadas e zeladas. Depois da Light, as empresas que se seguiram (Eletropaulo e CBA) praticamente deixaram a manutenção das casas de lado, a ponto delas chegarem a ruir pela falta de cuidado."

Segredo de criança

 
Quando se fala na Vila da Light, somente quem morou lá sabe exatamente o que significa. Não apenas por estarem em meio à natureza e serem "donos" de uma cachoeira, mas também porque toda quinta-feira tinha cinema e os bailes realizados no clube eram com orquestra. A empresa ainda mantinha um time de futebol (o São Paulo Eletric Futebol Clube), formado por trabalhadores e seus filhos, que disputavam campeonatos. Andar de trólebus, era, na opinião das crianças, melhor que montanha russa. E as traquinagens, então, mantidas em segredo. Afinal, ali todos ajudavam a cuidar das crianças e o sermão poderia vir de 50 pais e 50 mães: seria muito para uma criança só. A grande preocupação dos adultos era a cachoeira.
Odécio de Oliveira tem hoje 60 anos de idade e nasceu na Light. Ele lembra que sua mãe "riscava" sua pele para descobrir se ele tinha ido na cachoeira. Como é negro, ele conta que se a apele ficasse branca, é porque tinha nadado. Nem por isso ele se intimidava. "A única coisa que os meninos faziam para os pais não perceberem, era nadar sem roupa", recorda.

A família de Odécio foi parar no local por causa de seu avô, Nabor José Rodrigues, que ajudou na construção da barragem. "Minha mãe conheceu meu pai lá, ele tinha ido a Itupararanga para trabalhar no trólebus", conta.
Como os pais só gastavam com a alimentação e roupa para os filhos, guardavam o dinheiro recebido da empresa para adquirir sua casa própria. A maioria conseguiu comprar casa antes de aposentar e foi se estabelecendo em Sorocaba e Votorantim. "Outra vantagem para quem trabalhou na empresa é que quando o funcionário aposentava, continuava com o mesmo piso", diz.
A vila tinha uma escola primária, até a quarta série. Para estudar os filhos até o colegial, os pais tinham condições de pagar escola particular. A maioria estudou no Ciências e Letras, conhecido hoje como Objetivo. Nos períodos de férias, julho e dezembro, os parentes passavam os 30 dias na casa dos moradores. "O que aconteceu é que iniciaram um processo de demolição das casas. Para a CBA não interessa mais a preservação do patrimônio histórico, as casas do Alto do Morro e do Balanço não existem mais. Minha tristeza é que as casas onde morei estão sendo destruídas", lamenta.

Odécio conta que a escola foi transformada num Centro de Convivência, uma espécie de escola modelo, que algumas vezes levam outras escolas para conhecer. "Hoje na extensão da Light tem casas de campo, verdadeiras mansões, com saídas para barco. E tem gente que paga R$ 500 por mês para deixar o barco lá. Nós desfrutamos de tudo de graça", observa.

 
Ele ainda lembra que o morro era cheio de pedras e uma vez aconteceu um acidente lá. "Em 1982 deu um super temporal que caiu uma pedra na venda, parece que tinha estourado uma tubulação, sorte que não tinha ninguém no local."

A dor de não poder visitar

 
Para Natalina de Castro, hoje com 63 anos, já foi uma fase muito difícil de sua vida ter de deixar a Vila da Light e pior está sendo agora, que não pode voltar, nem mesmo para uma rápida visita. "É muito doloroso", afirma. Assim como Odécio, ela também nasceu na Light. "Meu pai trabalhou lá durante 40 anos aí se aposentou. Eles precisavam de funcionários lá, pois se desse problema tinha de acordar de madrugada para resolver."

As casas eram excelentes e com amplo quintal. Todas as famílias tinham plantação. "Dava para plantar arroz, feijão, mandioca, milho. Era uma empresa multinacional e ao mesmo tempo um sítio."

Natalina morou em Itupararanga até os 22 anos e foi lá que conheceu o marido, que tinha ido trabalhar na Light. Quando mudou para Votorantim, achou tudo muito estranho. "Eu havia morado em um mundo à parte."
A tecnologia avançada para a época é outra coisa que admira. "A construção da barragem e da usina foi feita por engenheiros canadenses. E a tecnologia deles estava também nas casas, que contavam com água quente nas torneiras e chuveiro, a água era aquecida pelo fogão de lenha." Natalina afirma que cresceu na Usina sem saber o que tudo aquilo representava. "Tudo isso da importância daquele local descobri depois que saí de lá. A gente vivia ali dentro, como se sempre fosse assim, a gente convivia com aquilo, então pra nós era normal, pelo menos eu não sabia. Quando eu nasci já tinha a represa, e a função do meu pai era manter aquilo funcionando."

 
Magoada por destruírem a vila, principalmente a sua casa, para manter vivas suas lembranças, Natalina é autora de uma minissérie de 50 capítulos sobre Itupararanga, que pretende publicar em livro. Também tem seu próprio blog, com relatos mais pessoais (http://lembrancasdoquevivi.blogspot.com). "Através das minhas crônicas eu vou até lá, eu vivo aquele momento. Sei que não existe mais esse tipo de coisa e nunca mais vai ter no mundo algo assim."

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