A PARTICIPAÇÃO DO REGISTRADOR

 

 

Sabe-se que dentre os meios hoje identificados como sendo os mais praticados pelos loteadores irregulares encontram-se os seguintes: loteamento instituído como condomínio especial de casas regulado pela Lei 4.591/64 (venda de frações ideais e demarcação informal de lotes entre os condôminos, sem a necessária edificação das casas pelo loteador); loteamento instituído como condomínio tradicional do Código Civil (elevado número de condôminos, com as vendas dos lotes mascaradas por vendas de frações ideais ínfimas); loteamento instituído mediante formação de associações ou clubes ( aquisição do imóvel por uma pessoa jurídica com as vendas dos lotes feitas sob a denominação de cessão de cotas); desdobro de loteamentos aprovados (fracionamentos sucessivos dos lotes, para que o empreendimento possa ter um número de lotes superior ao aprovado).

É sabido que o registrador exerce função administrativa delegada fiscalizada pelo Poder Judiciário. Se assim é, em uma primeira leitura, tem-se que no exercício de função administrativa, não poderia o registrador exorbitar de suas funções para perquirir acerca de questões de fato estranhas ao título levado à registro. Assim, por exemplo, se uma determinada gleba é adquirida por centenas de condôminos, mediante sucessivas escrituras públicas alienando ínfimas frações ideais, mesmo estando evidentes os indícios de fraude para a constituição de um loteamento irregular, nada caberia ao registrador fazer, exceto proceder ao registro dos títulos.  Essa é a conclusão até o momento aceita como sendo a correta, visto que com arrimo no aforismo quod non est in titulo, non est in mundo. 

Ao nosso sentir, porém, faz-se necessária uma revisão desse conceito. O direito não está na alcatifa do imobilismo. O interesse público reclama por uma maior participação do registrador na defesa dos variados interesses coletivos protegidos pela Lei do Parcelamento, visto ser ele quase sempre o primeiro agente público a tomar ciência do nascimento da tentativa de fraude. Não existe, assim, qualquer argumento válido que possa cercear o esforço do registrador de negar colaboração aos negócios inválidos, até porque o título registrado traz presunção de legalidade, dando azo para que o adquirente do lote possa ser lesado em sua boa-fé com facilidade.

Como cediço, o registrador não é mero depositário de títulos, pois exerce função pública delegada (art. 236 da C.F), de natureza tipicamente estatal, por isso que seus atos são dotados de fé pública (art. 3° da Lei n° 8.935/94), com presunção de veracidade e legitimidade (R. Ext. n° 212.724-8/MG, STF, Rel. Min. Maurício Corrêa). Lembre-se que os serviços concernentes aos registros públicos são estabelecidos para garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (art. 1° da Lei n° 8.035/94). De outro giro, observa-se que a fraude à lei é causa de nulidade do registro (arts. 82 e 145 do Código Civil), podendo ser alegada por qualquer interessado (art. 146 do Código Civil), por isso que, quando provada, deve ser conhecida pelo juiz corregedor independentemente de ação direta, mesmo no exercício de atividade administrativa de policiar os registros (art. 214 da Lei n° 6015/73 e art. 146 do C.C.).

Acrescente-se que o E. Superior Tribunal de Justiça recentemente adotou o entendimento de que a venda de fração ideal para transferência de lote certo e determinado, sem o regular parcelamento, deve ser proibida pelo juiz corregedor, sem a prévia oitiva do proprietário, “porque só ordenou o que o Oficial do Cartório já estava obrigado a fazer” (RO 9.876/SP, Rel. Min. Ari Pargendler), consagrando, assim, o dever do registrador agir de ofício nessas hipóteses.

Pelo exposto, entendemos ser possível ao registrador, ao perceber indícios nítidos de tentativa de fraude à lei dos parcelamentos no título levado à registro, fazer exigência para que o proprietário forneça todos os documentos necessários ao registro de loteamentos, principalmente a cópia do ato de aprovação do loteamento e o comprovante do termo de verificação pelo Município (com fulcro no art. 18 da Lei n° 6.766/79), suscitando dúvida ao juiz corregedor em havendo resistência no cumprimento de sua exigência.

Deverá, ainda, o registrador encaminhar comunicação à Prefeitura do pedido de registro de título contendo indícios de fraude à Lei dos Loteamentos, solicitando o fornecimento de informações no prazo de 15 dias. Afinal, antes de registrar um loteamento comprovadamente aprovado pelo Poder Público, está o registrador obrigado a comunicar à Prefeitura sobre o pedido de registro, para que a mesma possa impugná-lo no prazo de 15 dias (art. 19, caput - devendo, ainda, enviar nova comunicação à Prefeitura após o registro - § 5°). Se essas medidas acutelatórias são exigidas do registrador na hipótese de pedido de registro de loteamento previamente aprovado pelo Poder Público, por razões ainda maiores estará o registrador autorizado a comunicar previamente ao Município da existência de pedido de registro de título com fortes indícios de fraude à lei do parcelamento, mesmo estando o registrador no exercício de função administrativa.

Assim agindo, estará o registrador provocando o Município a exercer o seu dever-poder de polícia das construções. Ressalte-se que a atividade do Município de impedir o uso ilegal do solo é vinculada, sendo clara a legitimidade passiva do Município omisso nas ações civis públicas que visem a reparação civil e a regularização dos referidos loteamentos, segundo a interpretação do art. 40 da Lei n° 6.766/79 que vem sendo emprestada pelo E. Superior Tribunal de Justiça (R.Esp 124.714/SP, Rel. Min. Peçanha Martins; R.Esp 194.732/SP, Rel. Min. José Delgado).

 

Rio de Janeiro, 12 de Dezembro de 2000.

 

 

NORVAL CAMPOS VALERIO