segunda-feira, 6 de junho de 2011

Lili e a reunião do Conselho

Lili acorda com as galinhas, literalmente. Ainda não saiu da cama e já pinga urina até à casa-de-banho. Quando acerta na tampa da sanita pragueja, sacode-se como pode e limpa a tampa com a mão que a seguir esfrega nas ceroulas. Não há tempo para banhos que não estamos em dia de festa, tira a ramela dos olhos com a ponta da unha mindinha, roça o dedo nos interiores de alças picotados e toca de vestir a camisa de serviço há já pelo menos uma semana. Seguem-se as calças, as botas e de passagem pela cozinha leva a mão à fruteira e de um único ronco traga uma maçã.
Espreguiça-se cá fora com os primeiros raios de sol. O dia apetece-lhe no campo e Lili é homem de lavoura farta com casa de criação de galinhas a porcos. Não há rendimento que lhe escape, desde o grão de terra para a sementeira à extracção de terras para a construção. Adepto da máxima “do Pó vieste ao Pó tornarás”, e pelo meio as notas com que se trocam umas e outras terras!
São seis da matina e Lili já manobra o tractor. Três horas passadas e esfregada a manga da camisa para limpar o suor da testa bule para o prostíbulo que se chega a hora de meretriz.
Lili é uma velha prostituta sabida e manhosa. Sabe da vida sem segredos e assobia-lhe como um pássaro.
Lili merecia as unhas pintadas de vermelho roídas pelos dentes, o baton desafinado nos lábios e o risco torto nos olhos de Mao Tse Tung mas Lili já não se pinta, nem se mascara, a idade trouxe-lhe a segurança das suas imperfeições e já ninguém lhe compra o corpo só os favores da sua influência pessoal.
Entra no carro e carrega com força no acelerador (foi a administração que o comprou) e os postes que se arredem e as estradas que se quedem que Lili está com pressa.
Chegado ao edifício magno da Fazenda Pública Lili entra desenxabido cuspindo perdigotos em forma de bons dias. Aproveita para passar nas nalgas de umas quantas que lhe correm à frente e segue para o Gabinete.
Os dentes ralos na boca dançam de alegria no brilho dos olhos pequenos feitos pela pinga. O cão de Lili segue-lhe o cheiro ao longe e o único exercício diário é o de lhe abanar o rabo latindo estridente ao seu encontro.
É que Lili como qualquer velha solitária tem um cão. O cão é o diabo mas tem nome de anjo e quem lhe conhece o latir sabe que ladra a quem passa ao pé do dono mas só morde a quem lhe der de comer. O cão de Lili se não fosse um cão era uma puta. O cão de Lili afia o dente nos queixumes e na maledicência de uma velha coscuvilheira e dizem que é cursado em pinotes e malabarismos e não se coíbe de trazer o anel na pata direita.
Lili mal se senta põe o cão ao colo que imediatamente lhe lambe as mãos ainda impregnadas de chichi matinal, e este finge que gosta para logo vomitar a uma esquina o dono que lhe sobe pelas entranhas e de seguida se encher de perfume.
O cão de Lili chama-se “Lambe Coisos” e vive cheio de honrarias. Lili farta-se de gabar o bicho que até lhe ladra mais fino ao assobio. Deu-lhe gala de secretária pessoal, computador por conta da administração, telemóvel e umas maçarocas por fora para uma qualquer extravagância.
Lili tem dias de verdadeira loucura com “Lambe Coisos”, rebolam-se no chão fingem que ora ladram e falam e trocam ideias sobre patifarias. Quem visse “Lambe Coisos” e o dono não saberiam quem era quem. “Lambe Coisos” só veste burberrys em contradição insanável com o dono, mas Lili sabe que assim recai sobre “Lambe Coisos” todas as suspeições e que pensam que é “Lambe Coisos” que se enche por conta da administração.
“Lambe Coisos” é gordo como o dono e já não faz pinotes que a barriga da fartura não o deixa senão viver de acrobacias antigas. È esperto como um alho e só tem faro para dinheiro. Se tivesse mesmo de ser deixava-se sodomizar pelo dono por conta de meia dúzia de notas. Mas nem se pense que “lambe Coisos” é cão de pedigree pois pese embora o aspecto engalanado é um rafeiro de linhagem desconhecida que se safa pela esperteza saloia.
Lili começa o dia aconselhando-se com “Lambe Coisos” que nunca o contraria. É que hoje há reunião do conselho e a oposição gosta de preservar o estilo e ainda que combinadas as questões Lili tem de fazer um esforço para se mostrar iludidamente indignado. Enfim, uma fantochada que os rigores da lei exigem e que os parvos que ele governa gostam que se mantenha. A democracia é a última das ilusões e Lili sabe-o melhor que ninguém.
A reunião do Conselho mastiga-se a custo como uma película gasta. Lili encontra-se sentado a par com os seus: a Senhora de Calcutá, porta-se sempre bem e é politicamente correcta, não se lhe conhecem torpores de actos a linguagem. Segue-se a dos limões, camponesa abastada que se move bem nas entranhas da política e que lhe pode por a mão aos fundilhos se as coisas não lhe correrem de feição, foi uma escolha imposta mas acertada. Consta que tem feitio de carpa e boca de tubarão e temem-lhe a sorte os que lhe caem no colo. Para compor o ramalhete venha de lá um homem de corpo, bonacheirão e panascento gosta de festas de bon vivant mas não se lhe conhecem feitos de malvadez.
Com tudo isto está Lili bem rodeado, a estes mete-os ele na cova de um dente se bem que já estariam por si de qualquer maneira, e pisca o olho em sinal de regozijo interior.
A oposição não lhe traz moléstia ao corpo, tudo boa gente, não fosse por ter mesmo de ser assim, até eram da sua posição.
O governo da cidade faz-se sempre por bom porto e nem lhe falem em bom porto que lhe chega sempre à memória Vigo e as festas de putaria ao vivo que por lá faz de vez em quando por conta de uns patrocinadores.
Mas vamos ao que interessa,
A oposição hoje vai-lhe perguntar pelo saneamento básico que é aliás a única questão que lhe põem há pelo menos dez anos. Mas Lili faz-se sempre “de novas” como se apanhado de surpresa fosse e responde titubeante de palavras e pausas mais que decoradas. Desta vez é que é, até já pediu mais um empréstimo para fazer face às despesas é que isto da merda tem muito que se lhe diga. Não é pegar e por no saco (como o dinheiro) mete uma série de burocracias e equipamentos que se têm de fazer.
 - É de lei diz Lili. E os equipamentos têm de ter acoplados umas tubagens para a merda seguir para onde deve.
E ainda mais, - as ETAR’s ou como se diz, que não fosse os do ambiente o terem advertido que tinha de fazer um buraco para enterrar nem ele adivinhava. Os que mandam lá de cima é só complicações são desconfiados andam-lhe sempre com inquietações, não fosse ele rijo estava "quilhado". Sem mais!
Lili é contra a corrupção e enche a boca para apontar o dedo aos de lá de cima que desconfia que lhe andam a fazer concorrência desleal na questão dos terrenos urbanos e por isso se zanga e colérico pragueja contra essa corja de bandidos que se querem vir encher no concelho. Mas Lili é pela ordem e pelos bons costumes, não tivesse sido desafiado pela que hoje é sua mulher e o seminário estava-lhe por certo. Quem lhe conhece o carácter não lhe desconfiava o destino.
Lili acaba sempre exausto estas reuniões, como qualquer actor que se leve a sério. Já é a quinquagésima vez que representa este acto, não há corpo que aguente! Ufa!
Mas correu tudo bem e nem foram precisos improvisos, os do seu lado votaram todos a favor e a oposição para não parecer muito mal abstiveram-se. Venha de lá então mais umas maçarocas para o saneamento que o banco empresta. Os próximos da administração que paguem e não haverá troika que os guarde nem santinha no altar que lhes valha, estão fucked!
Chega-se a hora do almoço e bora lá de encher o bandulho que já lhe sobe a água na boca pelo conduto. Como não pode ser leitão todos os dias faz-se ao escorrido que também é preciso saber entremear. Quer seja peixe ou carne arrota sempre a vinho no final, é da sua constituição, ainda era gaiato e magro como uma empa de feijões e tudo o que se lhe fazia à boca era benzido e asseado para no fim se arrotar.
É que os gazes fazem mal ao corpo, são tóxicos e é preciso eliminar os "resídios" assevera Lili.
E como Lili leva tudo isto muito a sério... ai do grão de pó que se lhe atravesse à frente!!

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