POLO, Leonardo. La Persona Humana y su Crecimiento. Pamplona: Eunsa, 1996. pp. 197ss.
Traduzido do original espanhol por Fernando Ricardo Salles.

A verdade como inspiração

O encontro com a verdade começa a partir de uma busca que não se sabe ao certo como dirigir. Essa procura vai mais além daquilo que é proposto no diálogo platônico Menon, que trata da origem das idéias. Entretanto, a verdade é mais do que idéia. Por isso não basta simplesmente estabelecer se a idéia é ou não verdadeira, no sentido moderno de verificação. Isso não faz nenhuma referência ao encontro pessoal com a verdade.

Distingo o significado das seguintes expressões: 1) inteirar-se (estar informado);  2)  entender;  3)  encontrar-se com a verdade. “Inteirar-se” refere-se a receber uma informação que o entendimento não chega a tomar como própria. Costuma-se dizer que para aprender uma técnica basta “estar informado sobre ela”, aplicando a técnica inventada por outros, sem a assimilação que haveria se a entendêssemos, isto é: sem envolver aquela peculiar mobilização da inteligência que propriamente chamamos “entender”. Além do mais, mesmo aquilo que já “foi entendido” pode (ou não) aparecer sob a luz de um “encontro com a verdade”.

Desse modo, ao se entender um teorema matemático, poder-se-ia acrescentar o “cair na conta” de que nele a verdade saiu ao meu encontro. Que alguém repare, ao entender um teorema, que está se encontrando com a verdade não é um assunto simplesmente da inteligência, mas da pessoa. A pessoa não se limita a entender. Mais do que isso: está referida à verdade, de acordo com uma procura orientada a encontrar-se com ela. Não cabe dirigir logicamente essa busca, pois ela surge de um tipo de encontro que é impossível sem a liberdade pessoal.

O encontro com a verdade transforma-se num ponto de partida. A verdade encontrada dispara um processo interior justamente por ser uma fonte de inspiração que a pessoa antes não possuía. O caráter súbito desse encontro traz consigo novidade. Essa novidade ganha corpo à medida em que a conduta do sujeito vai ficando integrada pelo encontro, e também ganhando impulso a partir dele.

À essa substituição da simples motivação pelo encontro com a verdade, pode-se dar o nome de enamoramento (apaixonar-se). Apaixonar-se traz consigo a aparição de atos de homenagem à verdade — e só a ela — que antes não se podiam exercer ou expressar de modo algum. Platão fala do amor como desejo de gerar na beleza; mas é algo mais: a verdade é o contexto do enamoramento.

Isso talvez tenha algo a ver com experiência artística, mas não com a deliberação, dominada como está pela razão prática. O artista constrói uma obra bela não por deliberação, mas por inspiração, cujo suporte pessoal obedece não àquilo que se chama motivação, mas a um nítido antecedente seu: o encontro com a verdade. Desse encontro sai a centelha em virtude da qual o homem então atua. O que há de pessoal na própria inspiração são energias impregnadas de verdade, energias cujo valor gerador a própria verdade desenvolve.

A verdade sai ao meu encontro e eu a integro. Não me limito a assistir à sua aparição, porque não é um simples espetáculo. Integrar a verdade é assimilá-la de acordo comigo, pois quem põe a assimilação é o ser pessoal.

A expressão que vem depois costuma ter um forte componente simbólico, e isso por duas razões: primeiro, porque o impulso das atividades inspiradas não é inteiramente realizador; e depois porque a verdade que me sai ao encontro não é a verdade inteira. O símbolo é aquilo se faz nessas condições, isto é: remeter, orientar na direção de uma verdade que ainda não me saiu ao encontro, partindo de uma verdade não operada por completo.

Contudo, a liberdade da pessoa, sem que se esgote, já se pôs em movimento ao se somar à verdade. A esse acrescentar-se inspirado dou o nome de “caráter de mais”. Ser-mais equivale a ser pessoa. A liberdade pessoal é-mais: não se reduz a ser uma simples propriedade da vontade prática. A liberdade pessoal é inseparável da inspiração.

Embora a conduta prática exija deliberação, meios adequados, etc., a pessoa não se limita a isso. Ao inspirar-se no encontro com a verdade, a liberdade pessoal dispõe — opera — o canto à verdade. A conduta própria é elevada a essa obra, consiste nela; a obra é, assim, manifestação. Nesse sentido, é inventiva, contanto que seja mantida sua relação com a verdade encontrada.

Como já disse, o componente simbólico é inerente à obra feita, a não ser que essa obra seja perfeita, o que é impossível para o homem. No entanto, a inspiração exclui a dúvida prévia quanto ao acerto. A constatação do erro é indício de que a obra feita não é completa, mas não justifica o medo à incerteza, pelo contrário: leva ao empenho em se corrigir, para poder continuar a indagação esperançosa.

A criatividade livre acrescenta. De modo que, se ela fica insatisfeita, tenta outra vez. Trata-se de um transcender que a verdade me diz quando eu a descubro. A obra tem valor em si mesma, porque a verdade que saiu ao encontro desperta no homem energias adormecidas, que então saltam à arena.

Contudo, o acordo entre a liberdade pessoal e a verdade é suscetível de aprofundamento. Além do mais, a pessoa deve aprender a controlar sua capacidade operacional. Essa aprendizagem reside especialmente nos hábitos.

A liberdade “por motivos suficientes” não está afinal bem pensada, porque o motivo está governado por aquilo que se pretende conseguir, que por sua vez é algo bem distinto (é de outra ordem) do próprio motivo. Quando se trata de uma obra artística, porém, a sua novidade, o seu valor respectivo àquilo que a antecede, encontra-se na obra feita, como um desenvolvimento pessoal da verdade encontrada.

Valha o seguinte exemplo: é possível ter um motivo para satisfazer a fome. Mas a ação de satisfazer a fome não se parece com a fome. Aquilo que satisfaz a fome não é produzido pela fome. Uma coisa é diferente da outra. Ao contrário, a criatividade do sujeito radica no trans-encontro. No caso da fome não há propriamente um encontro: o que há é uma sensação que busca o que a satisfaz, e apaga-se ao consegui-lo.

Encontrar a verdade, insisto, não é terminal; pelo contrário: desperta uma inspiração. Enquanto a fome é coisa de necessitar, no encontro com a verdade há um transcender-se na obra. Aqui funciona a própria capacidade: ali, o necessitar. Sempre que há valores úteis no antecedente motivacional, exige-se uma satisfação terminal. No encontro, pelo contrário, deve-se falar de gozo: uma situação de sobreabundância, que talvez não seja suficiente, mas em todo caso não é necessitante.

O que move no encontro com a verdade é generosidade pura. É óbvio que não cabe generosidade sem liberdade. Por sua vez, a generosidade é coerente com a verdade encontrada, merecedora da homenagem sincera por parte da pessoa. A verdade encontrada há de desdobrar-se no âmbito pessoal, e esse desdobramento constitui a homenagem. Como a pessoa é mais do que um mero ser recuperante, o encontro não é uma imanentização ou complementação: corresponde-se com o excessus; é superabundância pessoal.

A verdade é um transcendental metafísico. Para referi-la ao homem é preciso transcendê-la, de acordo com os transcendentais antropológicos. A verdade nesse contexto não é uma mera cópia, ou reflexo, ou adequatio. O reflexo é repetição do que se viu, mera reduplicação do antecedente. Em vez disso, a verdade é transcendida: permite e exige uma expansão, pois transmigra ao próprio homem, indo mais além da verdade formalmente considerada. Em vez de efeito conseqüente, torna-se inspiração.

Tomás de Aquino refere-se a vários sentidos da verdade: o primeiro é aquele segundo o qual verum in esse fundatur, esse causat veritatem intellectus; o segundo sentido é a verdade no entendimento, como adequação, que seria a verdade formalmente considerada; o terceiro, que ele denomina efeito conseqüente, é a verdade como manifestação ou locução.

A verdade formalmente considerada, cujo estatuto é lógico, não é a verdade como princípio: o princípio da verdade é o ser. Por isso Tomás de Aquino não está de acordo com Santo Agostinho, que define a verdade como id quod est: isso não é a verdade, mas sua causa, porque a verdade como tal está no entendimento. Mas depois disso o entendimento dá um passo a mais e manifesta a verdade: é a locutio intellectus. O transcendental antropológico estabelece como sentido eminente da verdade esse último, em tanto que expressivo da verdade encontrada.

O encontro com a verdade é operativo, tira fruto da verdade encontrada; veritatem facientes in caritate, diz São Paulo. Essa operatividade, embora não tenha lugar sem a verdade, é dada pela liberdade. A razão não está acima da liberdade, mas é a liberdade que se encarrega da verdade.

Então não cabe que a verdade tenha um caráter terminativo, mas sim que dê passagem ao canto: a pessoa pode cantar a verdade, e quando a canta, a transfigura em canto. A verdade adquire assim um caráter ofertante, donal, que é impossível de completar-se se não existe outra pessoa. Esse caráter, no caso do homem, pode ser chamado de coexistência.

É preciso, portanto, que haja uma abertura. Aquele que tenha uma forte inspiração não necessita obedecer sempre a motivos, e dessa maneira é mais livre do que quando age devido a eles. De modo algum estou defendendo que a liberdade consista em espontaneidade ou irracionalidade. O que estou querendo dizer é, pelo contrário, que há uma sobreabundância a priori da liberdade.

Por isso, não se trata somente de buscar a verdade, mas de realizar-se a partir dela, de acordo com o caráter efusivo do ser humano e com a índole donante ou transcendental da liberdade. Se o homem não tivesse um caráter efusivo, encontrar a verdade seria estéril, pois a verdade está destinada: não se paralisa quando a encontramos.

Quando alguém encontra sua vocação deve vivê-la, e ao vivê-la a verdade decola a partir do seu encontro. Hegel aspira a uma espécie de contemplação terminativa da verdade, e estabelece uma equivalência entre a verdade e a sua contemplação especulativa. Hegel não sabe cantar. Fica aquém: primeiro, porque a verdade não é o primeiro, e segundo, porque a verdade não é o último.

A liberdade vista assim é muito mais séria do que uma simples interrupção do agir, porque nesse caso se passa a outra coisa. Mas aqui não há um passar a outra coisa, mas iniciar uma atividade livre. A alegria do encontro manifesta o caráter de ato da liberdade. A alegria está justificada por esse encontro.

Em suma: há um terceiro sentido da verdade, além do ontológico e do lógico. É um sentido pós-racional, ou mais do que racional, porque se acrescenta ao racional. No entanto, ocorre que não podemos expressar inteiramente a verdade encontrada, e por isso digo que as nossas obras têm um valor simbólico. Trata-se de um sentido diferente do êxito pragmático.

Portanto, a verdade formal não é o sentido mais alto da verdade. A lógica formal é estéril na medida em que é um processo quase mecânico. Na lógica não há encontro com a verdade. A verdade lógica é uma verdade sem medula, que não inspira. O sentido formal da verdade estabelece o seu estatuto no conhecimento, e, por assim dizer, aí o deixa, em seu “ser conhecida”. Mas ser encontrada é mais do que ser conhecida; e esse “mais” não ocorre de costas para a liberdade. Para a liberdade, a verdade é inspiração.

No entanto, posto que o homem é livre, pode acontecer que mesmo encontrando-se com a verdade ele se desvie dela, sem tirar dela inspiração. Nesse mesmo instante a verdade se trunca, fica morta, não se transforma em canto. Paralelamente, a liberdade pessoal fica inédita.

Quem afirma que a verdade não existe, não é livre, porque a verdade só sai ao encontro de um ser livre. Se não existisse a liberdade, não teria sentido encontrar a verdade. “A verdade vos fará livres”. Mas então a adequação está transcendida. “A verdade vos fará livres”: isso deve entender-se também no sentido do desenvolvimento da liberdade como condição prévia para o encontro com a verdade. Um encontro que não se esgota em si mesmo, mas que se desvela em liberdade.

Santo Agostinho diz que cantar é orar duas vezes, porque era um grande amante da verdade. A verdade da ciência moderna é uma verdade aplicável, uma verdade da qual se tira algum resultado. Ficar só nesse sentido da verdade acaba sendo muito pobre. Para um sujeito livre a verdade é mais: não é só descer rumo a suas aplicações, mas ascender até a verdade cantada. O canto é a audição da verdade, de acordo com a sua própria índole. Insisto: somente um ser pessoal é capaz disso.

Na verdade o homem inteiro vibra. É isso que cantam os Salmos. Por isso costumo dizer que o encontro é uma trombada. Quando a verdade é encontrada por um ser livre, tem lugar o enamoramento. A liberdade leva a verdade para mais além, em virtude da inspiração apaixonada. Na pessoa, a verdade e o amor estão unidos antes mesmo de sua diferenciação em faculdades distintas (inteligência e vontade).

A verdade no homem é indissoluvelmente amor, superabundância: não um simples remédio de que se carece. Rilke o diz: o homem está mais além de todo fim. Não se pode dizer que aquilo que segue a verdade não seja verdade. Toda profundidade do espírito se desabrocha no canto, e sem verdade é impossível cantar.

Portanto, não é verdade que diante da verdade só caiba deter-se. Isso é conseqüência da perspectiva subjetivo-objetualista derivada do afã de certeza cartesiano. Submeter a verdade ao critério de certeza constitui um erro. O erro não é senão uma paralisação da verdade. Se o cogito-sum é o princípio da filosofia então, em virtude desse princípio, só valem as idéias claras e distintas. Mas a verdade não está destinada a aquietar a suspeita ou a dúvida, mas a mobilizar.

Com a assistência do Espírito Santo, posso cantar inclusive a verdade divina, embora todos os meus cantos fiquem aquém. “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Não há verdade sem caminho, e não há verdade fora da vida. O caminho é percorrido pela liberdade com a verdade. No Céu deve acontecer algo parecido, porque não me parece acertado conceber a bem-aventurança como um marasmo tedioso. No Apocalipse, o canto é manifesto.

Por sua vez, a liberdade equívoca ou caprichosa carece de inspiração. Quando só se admitem pequenas verdades, sem considerar a verdade transcendental, isso revela o desejo de construir a própria vida com um alcance muito curto. Há então uma limitação no sentido da liberdade: uma liberdade desorientada. No entanto a liberdade por si mesma não está desorientada, pois é precisamente um espaço de inspiração.

Negar o espaço de inspiração equivale a sustentar que não faz falta nada que inspire. Mas esse espaço é a trombada, do ponto de vista do sujeito. Se a liberdade for entendida como espontaneidade, a força da verdade acaba tornando-se terminativa. Se a verdade é o resultado da minha liberdade, então a verdade se auto-define e se fecha. Mas a verdade não é o último, nem o primeiro, mas o segundo.

Se a liberdade se entende como espontaneidade, a verdade é sua formalização ou determinação terminal. A verdade entendida ao modo moderno elimina a inspiração. E se não se leva em conta a verdade, a vida se torna átona, anestesiada, inercial.

O mal é falta de inspiração. O mal não é criado: é falta de coragem. O ato mau é sinal de liberdade, mas a liberdade no ato mau não acrescenta nada: sucumbe nele. O mal não inspira, não é fecundo. O sinal da verdade é a alegria. Toda visão pessimista, preocupada, procede de que aquilo que estava aberto ao olhar se escureceu. Pelo contrário, a alegria se manifesta na luz do olhar. A alegria é um acréscimo que a pessoa põe no seu encontro com a verdade. E a inspiração livre é fecunda.