Melhor é não ir em modas

10 05 2007

“A moda é feita para passar de moda.”
Coco Chanel

M.Hermann era alguém a quem as modas pouco impressionavam. Não havia nelas nada que lhe importasse. Queixava-se da dificuldade em as acompanhar. Preferia por isso o passado que, inevitavelmente, permanecia sem mudar pelo que era mais fácil de seguir.
Talvez por isso ou por algo semelhante ou, pelo menos, aproximado M. Hermann vestia-se de uma forma estranha, pelo menos para a maioria das pessoas (maioritariamente mais influenciadas pela moda do que ele, inábil para lidar com a sua periodicidade fugaz).
Uma observação mais atenta permitia, todavia, perceber que não havia, porém, nada de bizarro na forma de M. Hermann se vestir. Ela era, simplesmente, desactualizada.
M. Hermann vestia-se como em épocas anteriores à sua, o que lhe dava um ar desfasado mas não estranho, uma vez que não usava nenhuma forma anormal de vestuário (como uso de peças invulgares, aberrantes ou ridículas), apenas inapropriada temporalmente. Vestia-se anacronicamente. E nisso não há estranheza.
Certo dia M. Hermann resolveu comprar uns sapatos novos para substituir uns do início do século XX completamente desgastados, de que até ali não se conseguira desfazer.
Dirigiu-se a uma loja de moda especializada em calçado, uma vez que a sapataria da sua rua não lhe dava garantias de conseguir o que pretendia: outros sapatos do início do século XX.
A loja era construída com base nos pressupostos de venda do século XXI, respeitando por isso as preferências desse século ainda acabado de estrear. Estava situada numa rua, também, especializada nessa área. Encontrava-se dividida em átrios (norte, sul, este, oeste), áreas (A, B, C até Z) – agrupadas por géneros de calçado, modelos, marcas, tamanhos, cores, por sexo, estação e idade – pisos (num total de quinze), estantes (cinquenta mil) e gavetas (seiscentas mil).
Todo o edifício era administrado por duzentos e um funcionários que zelavam pelos interesses da administração, clientes e associados.
Mal entrou, M. Hermann dirigiu-se ao funcionário responsável pelo átrio 1A questionando-o quanto ao sítio onde poderia encontrar uns sapatos para si.
Depois de lhe perguntar pelo número, marca, tipo, material e fim que iriam ter os sapatos, o funcionário resolveu encaminhá-lo para o colega que aconselhava os compradores na demanda do calçado ideal. Este, depois de analisar o seu pé, facultou-lhe mostruários, fez-lhe sugestões e tudo parecia bem encaminhado até que tudo se complicou quando M. Hermann disse que desejava uns sapatos do início do século XX, o que chocava com a política da empresa exclusivamente vocacionada para calçado do século XXI. Resolvido a demover M. Hermann do seu gosto por sapatos do início do século XX (completamente fora de moda e autênticos objectos de colecção), pelo telefone o funcionário que o atendia chamou um companheiro, habilitado especialmente para casos em que o freguês era imune a modismos, para lhe apresentar argumentos que o fizessem perceber a importância da moda na vida das pessoas. Sem ter conhecimento de nada, M. Hermann pensou ao ver o sujeito ao telefone que ele tentava encontrar nos armazéns da loja o modelo pretendido. Percebeu pelo que se seguiu que não. Ao chegar junto de M. Hermann o indivíduo habilitado especialmente para casos em que o cliente era isento de modismos, responsável pelo piso 10, apresentou-se e cumprimentou-o. Não havendo informações concretas acerca da conversa dos dois sabe-se que estiveram juntos não mais do que seis minutos. Sobre o que falaram podemos apenas especular. No entanto, M. Hermann continuou a desejar os mesmos sapatos por isso não é difícil perceber o que sucedeu. O sujeito voltou para o piso 10 com o problema por resolver.
Provavelmente enviado pelo sujeito habilitado especialmente para casos em que o freguês era imune a modismos, outro indivíduo acercou-se de M. Hermann para o convidar a visitar a loja na esperança de que ele encontrasse outro modelo que lhe interessasse. M. Hermann viu cerca de trinta e cinco modelos de sapatos, de formatos, tonalidades e estilos distintos. Nenhum lhe agradou.
Contactado pelo funcionário com quem M. Hermann visitou o estabelecimento outro indivíduo (responsável pela área C do piso 7) aproximou-se de M. Hermann para lhe perguntar se, uma vez que não gostava de nenhum dos sapatos da loja, estaria interessado em que lhe fizessem uma cópia exacta dos que possuía, respeitando técnicas, materiais e desenho da altura. M. Hermann que, entretanto, se resignara, à evidência de que nunca iria encontrar sapatos iguais aos seus ficou exultante com aquela possibilidade e concordou de imediato. Um problema se colocava, porém, os sapatos teriam de ficar na loja para fazer medições, apurar metodologias, tudo o que conduzisse a uma réplica exacta. M. Hermann viu-se, assim, forçado a utilizar uns sapatos que a loja disponibilizava para situações como a dele, uma vez que não podia ir descalço para casa. Olhou desconfiado para os sapatos que o funcionário responsável pela área W do piso 3 lhe entregara como substitutos. Ao sair da loja reparou que os sapatos eram bem mais confortáveis do que os seus. A cor, também, não lhe desagradava. Ía até bem com o que trazia vestido. Várias pessoas conhecidas que se cruzaram com ele elogiaram-lhe a troca estranhando a inovação. Mal chegou a casa M. Hermann telefonou para a loja e falou com o responsável pelas reproduções de modelos indisponíveis na loja, a trabalhar no piso 13. Anulou a encomenda. No dia seguinte pagou os sapatos do século XXI que levara emprestados com que ficou. Desde esse dia nunca mais deixou de os usar. O respeito das tendências exige alguns sacrifícios. Os sapatos caíram em desuso volvidos dois meses. M. Hermann andava finalmente na moda.