29 de fevereiro de 2008

O dever, a moral e o direito na perspectiva de I. Kant (III)

(Continuação da postagem anterior.)

A LEI MORAL

O paradigma estampado por Kant no que diz respeito ao comportamento humano é o seu imperativo categórico -- uma lei moral que é incondicional situada na consciência humana; é ela quem determinará o certo e o errado. Para ilustrar melhor o que dissemos, atentemos para o que C. Helferich diz sobre isso:

A obrigação de agir eticamente [...] mesmo em desacordo com a própria sensibilidade [a natureza em nós -- 'o patife interior'], tem um caráter incondicional. Kant chama essa instância de lei moral. Ela se manifesta como uma ordem dentro de nós. A obediência à lei moral é um dever incondicional. Nessa obediência reside, no entanto, toda dignidade do homem! O dever de seguir a lei moral é base e garantia de sua liberdade!(30)

Seu célebre imperativo categórico é assim formulado: "Age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza."(31)

Percebe-se, portanto, que "agir moralmente é cumprir com seu dever 'sem esperar resultado'"(32). Assim, "devo agir, portanto, de tal modo que aquilo que considero correto possa ser válido ao mesmo tempo para todos os outros"(33). Conforme o imperativo categórico, é impossível que um político minta, mesmo que sua mentira seja para uma boa intenção. A mentira(34) não pode tornar-se princípio de uma legislação universal.

Patente está que a ética kantiana é a ética do dever pelo dever. Ela não vislumbra resultados e nem recompensas, pois a vontade em seu móbil deve estar submetida à lei moral, cravada na consciência do homem.

MORAL E DIREITO

O pensamento jurídico de Kant está concretizado na Metafísica dos Costumes. Assim, de antemão, é necessário a princípio reconhecer, com base na Metafísica dos Costumes, os dois tipos de legislação que atuam sobre o homem, cônscio de sua liberdade: a legislação interna, circunscrita à ética e ao foro íntimo e a legislação externa, que se prende à regulação que uma pessoa exerce sobre a outra. A primeira aponta-nos para o plano da Moral, norteada pela autonomia da vontade e a segunda para o Direito, aqui não basta somente agir, prioritariamente, através da vontade, além disso, será necessário que a ação esteja de acordo com a norma, se assim não for, as sanções recairão sobre o agente violador. O desfecho que se dá, é: a Moral está para a autonomia, assim como o Direito está para heteronomia.

Assim, em Kant, os limites do Direito estão reduzidos ao campo externo das relações entre os homens. Então,

quando a Moral diz "não mates", não precisa de qualquer outra justificação. O próprio imperativo moral basta-se a si mesmo [...] Os preceitos autônomos, que se bastam a si mesmos, por conterem em si próprios a sua finalidade, são preceitos morais.

Já não acontece o mesmo com os preceitos jurídicos. O Direito é eminantemente [sic] técnico e instrumental. Toda norma jurídica é instrumento de fins [...] sua finalidade é a segurança geral, a ordem pública, a coexistência harmônica das liberdades, etc.(35)

Identifica-se, aqui, nas palavras de Reale que o Direito, como instrumento utilizado para evidenciar a legalidade, objetiva garantir a liberdade entre os homens. Se esta liberdade é vítima de transgressão, a função de coercitividade do Direito virá a lume, com o intuito de preservá-la. Aliás, em A Paz perpetua, o Direito terá a função de garantir coexistência pacífica entre os homens. Nesse mesmo sentido, Bittar e Almeida expõe a diferença entre moralidade e juridicidade: "aí vai a grande diferença entre moralidade e juridicidade de uma ação [...], a moralidade pressupõe autonomia, liberdade, dever e auto-convencimento; a juridicidade pressupõe coercitividade"(36).

Em suma, "ninguém tem o direito de fazer o que deseja, exceto quanto deseja fazer o que é direito"(37).

CONCLUSÃO

A Filosofia de Kant é um manancial inesgotável. Sua obra de difícil intelecção perpassa pelos mais diversos ramos do conhecimento, inclusive o Direito. Kant por meio do criticismo tentou solucionar o problema do conhecimento, através de uma síntese entre racionalismo e empirismo. Sua solução abriu ainda mais a problemática da epistemologia e da metafísica. No campo jurídico, sob influência de Thomasius, estabeleceu um paralelo entre Moral e Direito, tendo como fundamento deontológico uma ética do dever, onde a liberdade é assegurada na observância da conformidade com a máxima do imperativo categórico. Enquanto a Moral exige uma legislação interna e autônoma, em que a liberdade e o dever se entrelaçam, o Direito, por sua vez, exige o cumprimento de legislações externas, e para tal dispõe da coação para fazer valer a ação legal.

O sistema filosófico-jurídico kantiano tem seu cerne no universalismo de seu imperativo categórico, determinado pela razão prática.

O supra-sumo do pensamento de Kant está no seu encantamento, que Reale, magistralmente, interpreta: "o dever impõe-se a nosso espírito com o mesmo esplendor com que contemplamos nos céus as estrelas. 'Há duas coisas que me deslumbram, dizia Kant, 'as estrelas no exterior, e o imperativo do dever, a "boa vontade", no plano da consciência'"(38).

Nas palavras do próprio Kant, literalmente, lemos: "Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e crescentes, quanto mais freqüência e aplicação delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim, e a lei moral em mim"(39).

(30) Op. cit., p. 251.
(31) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 52, gf. do autor.
(32) COMTE-SPONVILLE, André. Op. cit., p. 41
(33) HELFERICH, Christoph. Op. cit., p. 252
(34) Kant abordou o tema em seu texto "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade". Aqui Kant afirma: "É um dever dizer a verdade" (Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade, p. 123).
(35) REALE, Miguel. Op. cit., p. 660.
(36) Curso de filosofia do direito, p. 278.
(37) Fonte desconhecida.
(38) Op. cit., p. 660.
(39) Crítica da razão prática, p. 172, gf. do autor.

BIBLIOGRAFIA

BITTAR, Eduardo C. Bianca; ALMEIDA, G. Assis. de. Curso de filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
COMTE-SPONVILLE, André; DELUMEAU, Jean; FARGE, Arlette. A mais bela história da felicidade. Trad. Edgar A. Carvalho; Maria P. Bosco. Rio de Janeiro: Diefel, 2006.
COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos. Trad. Maurício Waldman; Bia costa. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
DURANT, Will. A história da filosofia. Trad. Luiz C. N. Silva. Rio de Janeiro: Nova cultural, 1996. (Col. Os Pensadores)
HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luiz S. Repa; Maria E. Heider; R. Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João V. G. Cuter. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2005.
_____. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2005.
_____. Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005.
LEITE, Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. Petrópolis. RJ: Vozes, 2007.
MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia -- lições preliminares. Trad. Guilhermo de la C. Coronado. 8. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1930.
NADER, Paulo. Filosofia do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
REZENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia. 13. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.


2 comentários:

Káh disse...

Pô Ms. o que é que tá havendo com esse seu blog hein?


:(

Káh disse...
Este comentário foi removido pelo autor.