Paulo Roberto de Almeida*
Discorrer sobre os chamados PIIGS da União Européia (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, esta na designação em inglês) obriga, antes de tudo, a uma primeira qualificação quanto à sigla: se trata de um acrônimo construído por algum jornalista branco europeu setentrional, ou algum economista loiro de olhos azuis, que, do alto de sua arrogância anglo-saxônica ou germânica, pretende dar lições de bom comportamento econômico aos primos irresponsáveis da vertente latina da Europa, ou mediterrânea (embora haja a “intrusão” no grupo de um primo setentrional, a Irlanda).
A expressão é claramente depreciativa e voluntariamente diminuidora da reputação financeira desses países bastante diferentes entre si, mas conjunturalmente unidos por uma situação de desequilíbrio (talvez temporário) nas contas públicas. Alguns fizeram por merecer, a Grécia e a Itália certamente, já que os dois países vinham incorrendo, de forma quase estrutural, em déficits orçamentários e em aumento da dívida pública por muito tempo, pagando hoje o preço por uma atitude pouco responsável. A Grécia fez pior: não apenas “viveu por conta” da boa reputação do euro, emprestando muito nos mercados, a taxas inferiores ao que permitiria sua situação fiscal pré-euro e a duvidosa solidez do antigo dracma, como maquiou deliberadamente a situação real das contas públicas, escondendo a magnitude dos déficits e o tamanho da dívida total. Ela merece sofrer o que está sofrendo, inclusive porque os gregos, proverbiais fraudadores do fisco nacional e apreciadores das facilidades dos empregos públicos, se acostumaram mal ao cobertor generoso das políticas comunitárias de transferências e de subsídios, num contexto financeiro em que existem pagadores líquidos – os alemães, por exemplo – e recebedores mal acostumados (eles mesmos, entre outros “folgados”).
Mas a Irlanda, a despeito de ter cometido alguns deslizes no sistema bancário e de ter prometido mais do que poderia oferecer a depositantes de outros países – garantias integrais sobre os depósitos e aplicações, por exemplo – não merece ser colocada no mesmo balaio de gastadores irresponsáveis, como os gregos e italianos. Nenhum dos dois países merecia estar na união monetária, justamente por não preencherem os critérios de Maastricht e por não terem apresentado garantias de que o fariam em tempo razoável. Foram admitidos mediante uma decisão política, apressadamente adotada, sem que os demais países examinassem a fundo suas situações fiscais, seus hábitos pouco recomendáveis, e exigissem os requerimentos de rigor que eles mesmos estabeleceram na cidade holandesa no começo dos anos 1990: déficit orçamentário de no máximo 3% do PIB e dívida pública de no máximo 60% do PIB. Nenhum dos dois atendia esse critério e a promessa de que o fariam foi de certa forma “construída” politicamente, em alguma dessas reuniões do Conselho Europeu em que todos querem sair bem na foto e nos comunicados finais, assegurando “sucesso pleno” na realização da agenda comunitária.
A Irlanda foi o país que, mais que qualquer outro na Europa, operou mudanças quase tão importantes quanto as que vem ocorrendo na China, e contemporaneamente ao grande país asiático, apenas não desfrutando de tanto “prestígio” por tratar-se de uma pequena economia, sem os impactos globais provocados pelo gigante da Ásia. No entanto, a Irlanda saiu dos últimos lugares na Europa, em termos de renda e competitividade, para ocupar os primeiros lugares em riqueza e inovação. Conhecida, no passado, apenas por exportar irlandeses pobres para os Estados Unidos, muitos analfabetos, vários beberrões e brigões, a Irlanda decidiu, no momento em que aderiu ao projeto comunitário da então Comunidade Econômica Européia, mudar radicalmente seu perfil social e suas capacitações humanas. Ela empreendeu um vigoroso processo de educação de sua mão-de-obra, reformou um Estado ineficiente e reduziu linearmente todos os impostos: com isso atraiu capitais e se transformou num dos maiores exportadores de bens de alta tecnologia. Pode-se chamá-la de mera Zona Franca, mas o fato é que, de caipira pobre do bloco, a Irlanda transformou os seus filhos em primos ricos da Europa, num “embaraço da riqueza” digno da Holanda no século 17 (vide Simon Schama, para uma descrição da sociedade que inventou a bolsa de futuros e os mercados financeiros modernos).
Diferente é também a situação de Espanha e Portugal, este bem mais limitado em termos de possibilidades produtivas e grande beneficiário das transferências comunitárias a título de equiparação de níveis de renda. A Espanha, mais do que disputar as generosidades setentrionais de modo unidirecional, soube transformar-se também de modo significativo: sob o comando de um socialista (apenas no nome), atraiu investimentos diretos, modernizou seu sistema financeiro e lançou-se à conquista de mercados e oportunidades para os seus próprios investimentos diretos.
Todos esses países, é verdade, defendem ardorosamente a “loucura agrícola comum”, a absurda política comunitária de proteção e subvenção do setor rural que obriga os consumidores europeus a pagar o dobro por sua alimentação, apenas para manter um punhado de gordos agricultores em suas pastagens bucólicas e campos rigorosamente cultivados a golpes de subsídios tão inúteis quanto danosos aos agricultores pobres do Terceiro Mundo. Mas alguns são mais “pecadores” do que outros, entre eles a Itália e a Grécia, justamente, dois países com setores públicos inchados, previdências falidas e um gosto pela irresponsabilidade orçamentária.
O que vai acontecer daqui para a frente? Difícil dizer, pois se o Conselho Europeu aplicasse as diretivas de Maastricht teria de excluir do clube do euro os gastadores irresponsáveis. O fato que é que tampouco os grandes países – Alemanha e França – estão se comportando como deveriam no plano fiscal, embora mantenham uma situação geral equilibrada, com desenvolvimentos futuros mais responsáveis. A Grécia vai sofrer um bocado, tanto quanto foi a sua irresponsabilidade no passado recente, e talvez até provoque a desgraça dos dois colegas ibéricos. Esse é o preço a pagar por viver de dinheiro alheio e não fazer as reformas que se impõem. Mais do que tudo, esta é também uma lição para o Brasil: trajetórias fiscais irresponsáveis levam, mais dia, menos dia, a noites de pesadelo e a meses (se não anos) de desespero (a Argentina que o diga). Que os deuses nos poupem da ira do Zeus moderno, o mercado financeiro internacional…
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*Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e Diplomata de carreira desde 1977.
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