Caminhos perigosos – entrevista René Ariel Dotti

fevereiro 14, 2011 at 9:42 am Deixe um comentário

Autor do projeto da Nova Lei de Imprensa, o advogado René Ariel Dotti fala sobre a cobertura da mídia e a tentativa de setores do governo de exercer o “controle social dos meios de comunicação”

Por Rafael Gregorio (Publicado na revista Getulio nº 23)
Fotos Jefferson Dias

O homem que se apresenta na sala de reuniões em um hotel na região da Avenida Paulista onde acontece o 16° Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) o faz com sutileza, a mesma que dará o tom da próxima hora e meia de conversa. A fala mansa e tranquila, carregada no sotaque cantado do Paraná, vocaliza pensamentos concatenados que parecem a todo instante desafiar o improviso – um bate-papo com ares de ensaio. Democrata até no espinhoso terreno do futebol – Coritiba e Palmeiras dividem espaço no coração –, este advogado curitibano com mais de meio século de experiência só levanta a voz uma vez: quando o assunto é a censura à liberdade de imprensa.

René Ariel Dotti construiu sua reputação nos conturbados anos 60 e 70 representando perseguidos políticos da ditadura militar e atuando junto a entidades de resistência ao regime. Nos anos 80, integrou as comissões de reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal. Desde 1981, é professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná. Antes, foi ator – chegou a formar uma companhia com o amigo Ari Fontoura – e durante cinco anos trabalhou na redação do Diário do Paraná. A experiência jornalística inseriu a comunicação social em sua biografia. Décadas mais tarde, lideraria o anteprojeto da Nova Lei de Imprensa. A seguir, os melhores momentos de sua conversa com Getulio sobre o papel da mídia, seus limites e exageros e as recentes investidas da República contra a liberdade de expressão. Para ele, “O controle social dos meios de comunicação é eufemismo para a censura”.

O senhor falou ontem sobre liberdade de imprensa e censura judicial no painel do 16° Seminário Internacional.

René Ariel Dotti Preferi abordar o tema a partir de casos concretos, como as censuras ao jornal O Estado de S. Paulo, proibido de veicular notícias sobre Fernando Sarney há mais de um ano, à Folha de S.Paulo, no caso dos processos movidos pela Igreja Universal do Reino de Deus, em 2008, e a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que recentemente proibiu uma reportagem da revista Veja.

John Adams, presidente dos Estados Unidos de 1797 a 1801, previu que, no futuro, a regulamentação da imprensa seria “o problema mais importante, difícil e perigoso que os homens letrados teriam que resolver”. O que o senhor diz?

René Dotti A liberdade de informação se desdobra em três aspectos: a) o direito de informar, característico de quem produz ou retransmite informação; b) o direito de ser informado: receber informação sobre a epidemia de gripe, a situação das estradas, a segurança pública; c) o direito de procurar o local e a fonte da informação. Ligar o rádio, comprar um jornal. No conflito que existe entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade, deve prevalecer sempre o interesse público. A vida privada de um administrador público interessa sim, na medida em que evidencie atitudes incompatíveis com a dignidade do cargo, como a embriaguez. É uma presunção limitada a certas figuras como políticos, administradores, artistas, que em alguns casos até renunciam à intimidade em nome de visibilidade. Por mais audacioso ou imoral que seja o texto ou a obra, nunca devem ser censurados. Nós temos exemplos históricos. Nos séculos XVII e XVIII, estátuas sofreram mutilações contra os órgãos genitais, censuras que ficarão registradas para sempre. Outro exemplo de preconceito foi o trabalho da Inquisição contra a tese de Galileu Galilei de que a terra se move em torno do sol. A Igreja considerava isso uma heresia, pois segundo a opinião científica da época a terra era imóvel e estática, suportada por grandes colunas, e o sol é quem dava a volta em torno dela. Galilei foi obrigado a negar sua tese de joelhos para não ser queimado, mas reza a lenda que, ao fazê-lo, disse baixinho: “E pur si muove” (ou seja, mas ela se move). Uma ilustração da resistência do homem contra a intolerância.

O Senhor identifica este tipo de ação hoje no Brasil?

René Dotti Com certeza. Têm ocorrido com frequência em decisões judiciais. A mais flagrante é a censura ao Estadão, porque pretendia noticiar um fato verdadeiro, comprometedor, um crime de sonegação de parente de um político poderoso. Uma censura incompatível com a Constituição Federal. A demora no julgamento também é gravíssima. A Emenda Constitucional n. 45/04 garante a todos a razoável duração do processo, e os tribunais não estão cumprindo. É impossível admitir que um caso tão simples demore tanto. Não há o que pensar: ou existe liberdade de informar ou não. É uma urgência mais relevante do que a dos casos de prisão ou de pessoas idosas. Estas são garantias individuais, enquanto a liberdade de imprensa atinge toda uma generalidade.

Algumas iniciativas do poder público têm despertado questões sobre o controle da imprensa. Qual a sua opinião? Deve existir uma monitoração?

René Dotti Durante os anos 60 e 70, na ditadura militar, os intelectuais se aliaram às três entidades civis que lutavam contra a ditadura: CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Juntos, almejavam um Estado Democrático de Direito. Ele veio em 1985, com a posse de Sarney – ainda que esperássemos Tancredo Neves. Daí em diante, não se pode falar em ausência de liberdade. Entretanto, temos visto caminhos perigosos para a liberdade de informação. Um deles é a tentativa de setores do governo Lula de desenvolver um chamado “controle social dos meios de comunicação”. Considero isso um eufemismo, uma expressão dulcificada que esconde a censura. Numa democracia, a liberdade de informação é um valor essencial. Como já foi dito muito bem, informação é poder. Político, econômico, artístico, jornalístico. Nenhum poder pode ser exercido sem informação. Por isso vejo com preocupação essa persistência do Partido dos Trabalhadores em trair princípios constitucionais. Devo dizer isto claramente, porque não é a primeira vez. Antes mesmo do 3o Programa Nacional de Direitos Humanos (2009), houve tentativas de controlar a liberdade de expressão.

Precisamos de lei específica para isso?

René Dotti Sou favorável a uma Lei de Imprensa, na medida em que as atividades dos meios de comunicação são diferentes das outras. Há peculiaridades como o sigilo da fonte, a escusa de consciência, a proteção contra penas de prisão. Acho que foi muito equivocada a posição dos jornalistas contrários à antiga Lei de Imprensa, pelo simples argumento de que era uma lei da ditadura. Nos anos 60 e 70 nasceram diplomas como a Ação Popular, a Emenda do divórcio, até então um dogma, a Lei de Execução Penal, a lei de Ação de Alimentos, e principalmente, uma lei do Abuso de Autoridade, de 1965, pleno governo Castello Branco. Isso tudo foi ignorado diante do argumento antiditadura. Pois bem, os jornalistas perderam. O STF, na decisão que revogou a Lei de Imprensa em 30 de abril de 2009, gerou um vazio legislativo e abriu as portas à censura. Porque quando as infrações são julgadas com base nos Códigos Civil e Penal, as consequências são muito mais graves. O prazo de prescrição é maior, a pena de multa tem outros parâmetros. Certas multas já vêm confirmando a tese de censura indireta.

Qual o status desta Nova Lei de Imprensa, de cujo projeto o senhor fez parte? Que caminho seguirá?

René Dotti Foi um anteprojeto apresentado pela OAB em 1991, infelizmente paralisado no Senado. Muita coisa que está ali pode servir ao que se espera de uma lei neste sentido. Presido na OAB uma Comissão Nacional de Defesa da República e da Cidadania, que está propondo dois grandes projetos. Um é que os advogados devam colaborar nas eleições, como uma espécie de observatório, orientando a população sobre voto e abuso de poder. Um projeto de efeito imediato. E há outro, de longo prazo, para que todos os cursos de Direito e de Jornalismo tenham a disciplina “Teoria e Prática Eleitoral”. O jornalista cada vez mais é um intérprete da sociedade, e a política é, sem dúvida, uma ciência fundamental para a República. O sistema eleitoral atual é uma verdadeira usina de corrupção. O deputado federal, para se eleger, precisa de uma fortuna que pessoalmente não tem. Então, firma compromissos com seus financiadores. Esta não é uma liberdade que interesse.

O senhor acredita em um “direito à privacidade judicial”, para resguardar de coberturas intrusivas de crimes, como o sequestro de Eloá Pimentel, que se tornou num show de televisão?

René Dotti A imprensa não pode deixar de informar, mas sempre conforme o interesse social do fato. Naquele caso, tanto o Ministério Público quanto a Polícia Militar e o Judiciário deveriam ter assessorias de comunicação, desenvolvidas por jornalistas, que dariam a informação sobre a existência do crime e as medidas que estavam sendo tomadas, e só. Isso é o que a sociedade precisa saber. Ela não precisa nem pode ser induzida a efeitos espetaculosos e uma antiética epidemia de medo. Este tipo de cobertura também inviabiliza um julgamento imparcial, como ocorreu no caso Nardoni.

O julgamento não foi isento?

René Dotti Não foi e deveria ser anulado. O que se viu foi a queima de fogos de artifício, uma manifestação de barbárie, incompatível com a civilização. A TV Globo, por exemplo, interrompeu uma transmissão ao vivo de futebol para mostrar a chegada de um laudo da perícia técnica no inquérito. Aí está a marca do sensacionalismo e do abuso. É lamentável que não haja, neste momento, ferramentas judiciais para responsabilizar a emissora. Existem tipos de alienação que não são puníveis, pois fazem parte, digamos, da ilusão e da fantasia da vida, como as novelas. Manifestações até da liberdade das pessoas de serem loucas à sua maneira. Mas conduzir a sociedade a um clima de terror pelo uso da tragédia é uma ofensa clara à Constituição.

Como o senhor vê o envolvimento de operadores do Direito com a mídia, como promotores de justiça que dão entrevistas?

René Dotti Vejo isso como desvio da função. A própria designação já diz: o promotor é de justiça, não de acusação. Deve pedir a absolvição e até habeas corpus, caso lhe pareça, e não pode ser refém da convicção inicial sobre um crime. O problema é que quando ele se lança publicamente, se torna refém do que projetou. A imprensa não irá ouvi-lo sobre chances de absolvição. Vai ouvir, sim, o “Paladino da Justiça”. Uma espécie de catarse na população, que dorme tranquila por ter um acusador. É inadmissível que promotor ou juiz dêem entrevistas sobre casos em que atuam. Isso os torna irremediavelmente suspeitos. Insisto que as instituições devem ter assessorias de comunicação para informar, no lugar do responsável. A pessoa será sempre seduzida pela vaidade, e a notícia virá para a imprensa distorcida, premeditada. Além disso, as coberturas policiais são responsáveis pela difusão de uma concepção equivocada sobre direitos humanos.

O ministro Joaquim Barbosa se envolveu numa polêmica ao ser fotografado em bares num final de semana em Brasília, estando afastado do trabalho por licença médica. Ele condenou a imprensa alegando privacidade. O ministro tem razão?

René Dotti Não, por um motivo: se estivesse cumprindo com seu dever funcional, esta seria uma notícia abusiva. Mas como a reportagem o flagrou vestindo esporte, forte e de aparência saudável, bebendo cerveja, quando está recebendo salário sem trabalhar, a informação tem inteira procedência. É uma notícia de interesse público.

Em um artigo chamado “O Sonho Acordado”, a escritora argentina Beatriz Sarlo descreve o caso de um jovem que se entrega ao vivo num programa de TV, em vez de ir à polícia. Para ela, a TV usa o crime como espetáculo, explora a vingança e impõe uma presunção de veracidade, tornando-se mais confiável que o tribunal. Isso se aplica à nossa realidade?

René Dotti Certamente. A televisão chegou a um estágio comparável à figura lendária do oráculo, que as pessoas procuravam para saber qual a ordem da divindade no dia. Deixou de ser um instrumento de comunicação e aprimoramento do homem e da sociedade, para atender baixos fins de lucro. Mas o fenômeno é mundial. Acho que ainda levará muito tempo para corrigirmos isto e os veículos voltarem a servir a motivos nobres, como o lazer. Como Secretário de Cultura do Paraná, participei de uma equipe que esteve no Congresso durante a Assembléia Constituinte. Uma das disposições aprovadas foi reivindicação nossa: que a rádio e a tele difusão deveriam ter programas regionais, com interesses locais. Só se vê isso no esporte e nas informações policiais. A arte e a cultura são massificadas, dominadas pelas grandes emissoras dos grandes centros. A globalização tem vantagens indiscutíveis, mas cobra um preço alto ao estabelecer padrões opressivos.

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