Origem e evolução dos animais – parte 3

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Nesta série de posts que tenho feito sobre a origem e evolução dos animais já abordei as origens dos animais no seio dos eucariontes, e descrevi brevemente quais são os primeiros grupos divergentes da grande árvore evolutiva deste familiar mas muitas vezes bizarro grupo dos metazoários. No entanto, estes grupos que falei anteriormente, que incluem as mais conhecidas esponjas, cnidários e ctenóforos, e seres estranhos como Trichoplax ou os Myxozoa, apenas arranham toda a diversidade de animais que conhecemos hoje em dia. Esta diversidade concentra-se nos dois grandes grupos de animais com simetria bilateral, os deuterostómios (Deuterostomia) e os protostómios (Protostomia); tal como vimos anteriormente, existem alguns animais (acelomorfos e possivelmente os myxozoários) que, sendo Bilateria, divergem antes desta dicotomia – por isso diferenciamos entre um grupo maior Bilateria, que inclui esses grupos e os Eubilateria, ou “verdadeiros Bilateria”, esse sim o grupo caracterizado pela grande dicotomia da simetria bilateral.

Uma proposta de filogenia para os animais; é preciso ter sempre em atenção que estes diagramas por vezes dão uma ideia errada de "direccionalidade" de evolução: por exemplo, se nós fôssemos coanoflagelados, os Metazoa estariam na base da nossa árvore evolutiva. A ordem de divergência desta árvore não está em perfeito acordo com a filogenia que menciono no texto, mas duvido que haja duas filogenias que concordem completamente entre si! - Fonte: Halanych (2004)

Mas o que está na base desta dicotomia? A resposta encontra-se no diferente desenvolvimento embrionário em ambos os grupos: entre as diferenças tradicionais encontramos a forma como as divisões celulares iniciais se processam, a forma como o celoma (a cavidade interna onde os órgãos estão alojados) se origina a partir da mesoderme, e o destino do blastoporo (a formação do tubo digestivo primitivo, o arquenteron, inicia-se com a formação do blastoporo, que nos protostómios será a futura boca, enquanto que nos deuterostómios será o futuro ânus).

Diferenças no desenvolvimento embrionários de protostómios e deuterostómios - Fonte: Penn State University

O aparecimento em si do celoma, anteriormente um caracter muito importante, deixou de ter tanta relevância no contexto do aparecimento das características dos animais bilaterados quando se constatou que surgiu de forma independente nos dois ramos dos Bilateria. Aliás, muitos dos animais anteriormente considerados bilaterados sem celoma, e por isso mais primitivos (os acelomados), são na realidade Protostómios, que não têm celoma porque o perderam no decurso da sua evolução. Outro caracter controverso é a origem da mesoderme, dado que há autores que defendem uma origem independente da mesoderme destes dois grupos. Mas como conciliar com a presumível mesoderme dos ctenóforos?

Relações evolutivas entre os principais grupos de deuterostómios - Fonte: Swalla & Smith (2008)

Deixando-nos de problemáticas bilaterianas, passemos aos deuterostómios! Como para os restantes animais, as suas origens mais profundas no tempo permanecem misteriosas. O uso de relógios moleculares para descobrir a época de aparecimento deste grupo aponta para um aparecimento há cerca de 896 milhões de anos (Ma), embora os fósseis mais antigos de animais bilaterados não tenham mais de 580 Ma; outros estudos que geram datas mais concordantes com o registo fóssil carecem de algum rigor metodológico, por isso a questão está ainda em aberto. Um possível ancestral dos deuterostómios é desconhecido, e nenhum fóssil foi conclusivamente interpretado como um deuterostómio que não pertencesse aos grande grupos actuais.

Esses grupos actuais dividem-se em dois grandes ramos: Ambulacraria e Chordata (com um terceiro e enigmático grupo, Xenoturbella, provável parente dos Ambulacraria). Os Ambulacraria incluem os hemicordados (Hemichordata), que antes se pensavam ser parentes mais próximos dos cordados, e os equinodermes (Echinodermata), que incluem as estrelas-do-mar, ouriços, pepinos-do-mar, crinóides e outros habitantes dos mares. O facto de os hemicordados terem algumas características em comum com os cordados apoia a noção de que os equinodermes são deuterostómios com um grande conjunto de características muito modificadas em relação ao ancestral comum dos deuterostómios.

A visão tradicional da evolução dos cordados: o adquirir de capacidade reprodutora por larvas de tunicados tornaria possível o caminho até aos primeiros vertebrados - Fonte: http://www.mun.ca/biology/scarr/Garstang_Hypothesis.html

Nós, humanos e outros vertebrados, somos cordados, juntamente com os nossos parentes urocordados (Urochordata) e cefalocordados (Cephalochordata), também conhecidos como tunicados e anfioxos, respectivamente. A história tradicional do nosso parentesco com estes seres ia um pouco assim: o grupo mais primitivo são os tunicados, que na fase adulta têm um corpo séssil coberto por uma túnica, e que passam a vida a filtrar a água do mar em busca de partículas para se alimentarem. As suas larvas, ao contrário do adulto, são móveis, nadando para se dispersarem, e possuem uma estrutura ausente em todos os outros animais não-cordados, o notocórdio, um tubo de tecido fibroso que dá suporte ao corpo e ajuda na locomoção. Havendo pressão evolutiva para esta larva adquirir meios de reprodução, sem necessitar da fase adulta, poderia evoluir um novo grupo de animais, móveis, com notocórdio. Este passo parece perfeitamente bem adaptado à existência de animais como os anfioxos – estes parecem pequenos peixes em miniatura, e sem vértebras, e poderiam ser representantes do tipo de animais que teriam sido os antepassados dos vertebrados.

No entanto, evidências recentes sugerem que na realidade os parentes mais próximos dos vertebrados serão os tunicados, o que vira a história um pouco ao contrário! Se os anfioxos são o primeiro grupo a divergir, então as características típicas dos cordados como o notocórdio, características musculares, a presença de cauda ou uma faringe filtradora já estavam presentes no antepassado de todos os cordados, e as características estranhas dos tunicados não são primitivas, mas sim bastante derivadas – para todos os efeitos, os tunicados adquiriram durante a sua evolução uma estranha fase adulta!

 

Uma bonita foto de família dos deuterostómios e da sua diversidade: a) Xenoturbella; b) hemicordado; c) equinoderme; d) vertebrado (ave); e) vertebrado (mamífero); f) tunicado; g) anfioxo

Para concluir, voltando-nos para o passado, vestígios fósseis inequívocos de deuterostómios surgem apenas após o início do Câmbrico (540 Ma), quando já são abundantes: os hemicordados estão muito bem representados pelos graptólitos, animais coloniais  já extintos; os primeiros equinodermes são os carpóides (já extintos) e os crinóides. Embora seja sempre complicado analisar fósseis de corpo mole, há registos convincentes que também no Câmbrico já existiriam tunicados com a sua morfologia actual, e os cefalocordados estão representados pelo muito famoso Pikaia gracilens. Do ramo dos vertebrados, para além dos primeiros peixes couraçados e conodontes, há vestígios câmbricos de animais com morfologia ainda mais primitiva, como Haikouichtys e Myllokunmingia. Os crípticos Xenoturbella, de corpo mole, não deixaram qualquer vestígio fóssil que alguma vez tenhamos encontrado…

 

No próximo post: muitos mais grupos dos que eu tenho tempo para falar!

 

Origem e evolução dos animais – Parte 1

Origem e evolução dos animais – Parte 2

Origem e evolução dos animais – Parte 3

Origem e evolução dos animais – Parte 4

 

Referências

Blair, J. & Blair Hedges, S. (2005). Molecular Phylogeny and Divergence Times of Deuterostome Animals Molecular Biology and Evolution, 22 (11), 2275-2284 DOI: 10.1093/molbev/msi225

– Brusca, R. C., and G. J. Brusca (2003). Invertebrates. Second edition. Sinauer Associates, Inc., Sunderland, MA

Halanych, K. (2004). The new view of animal phylogeny Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics, 35 (1), 229-256 DOI: 10.1146/annurev.ecolsys.35.112202.130124

Swalla, B., & Smith, A. (2008). Deciphering deuterostome phylogeny: molecular, morphological and palaeontological perspectives Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 363 (1496), 1557-1568 DOI: 10.1098/rstb.2007.2246

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