Matéria negra

Não percebo quase nada de astronomia ou física, mas adorei esta explicação sobre matéria negra!

Dark Matters from PHD Comics on Vimeo.

Autores: Daniel Whiteson, Jonathan Feng e Jorge Cham (animação)

Fonte: PhD Comics

A grande extinção do final do Pérmico – parte 3

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Os factores de stress ambiental do final do Pérmico, como a subida dos níveis de dióxido de carbono (CO2) atmosférico, aquecimento global, acidificação dos oceanos, anóxia, libertação de hidratos de metano, produção de compostos de enxofre tóxicos e destruição da camada de ozono criaram condições adversas o suficiente para levar à maior extinção em massa conhecida, estimando-se que cerca de 90% dos animais marinhos e 70% dos vertebrados terrestres se extinguiram. No entanto, olhamos para a Natureza que nos rodeia hoje em dia e dificilmente adivinharíamos que um cenário tão dantesco alguma vez ocorreu – esse é o grande testemunho da capacidade que a Vida tem para recuperar de épocas de crise, mesmo das mais violentas. A recuperação da grande extinção do Pérmico, durante o período Triássico, foi no entanto longe de fácil!

A recuperação de uma extinção em massa pode ser vista em parte como semelhante ao processo de sucessão ecológica, considerando-se como ecossistema recuperado aquele que é estável, embora a sua composição após uma extinção em massa tenda a ser bastante diferente relativamente à original. Tal como na sucessão ecológica, há organismos sobreviventes que aproveitam a falta de competição para se expandirem significativamente, e tal aconteceu no início do Triássico: o dicinodonte Lystrosaurus, já presente no final do Pérmico, torna-se de súbito extremamente abundante em todo o mundo, correspondendo a cerca de 90% de todos os fósseis de vertebrados terrestres. Os bivalves, sobretudo os do género Claraia, tornam-se muito abundantes no mar, substituindo os antes dominantes braquiópodes. Os poucos organismos do Triássico inicial são geralmente animais pequenos, o que sugere que o menor tamanho poderá ter sido um factor que ajudou à sobrevivência.

Lystrosaurus, Lystrosaurus, Lystrosaurus, Lystrosaurus... a monotonia do início do Triássico - Fonte: John Sibbick

Estes foram sendo gradualmente substituídos por espécies maiores à medida que as comunidades se foram diversificando de novo.  Esta diversificação foi bastante lenta no entanto, e só no Triássico Superior, 30 Ma após o final do Pérmico, é que as comunidades de vertebrados terrestres apresentavam uma diversidade semelhante à anterior à extinção.

A questão da recuperação das comunidades vegetais é controverso. Uma das características da extinção do Pérmico é o aparecimento de um pico de esporos de fungos nos estratos correspondentes à época da extinção (quase 100% do total de vestígios de esporos e pólen, comparado com 10% comparado com os níveis pré e pós-extinção); estes corresponderiam aos sobreviventes da devastação, que começaram o processo de degradação de matéria morta e colonizaram o terreno desocupado, à semelhança do que acontece hoje em dia em locais devastados por erupções vulcânicas. No entanto, esta interpretação não reúne consenso, e em vários locais do mundo há vestígios de outros possíveis colonizadores primários, como musgos ou fetos.

Um representante actual do género Isoetes. "Fetos" como este dominaram a paisagem pós-Pérmico - Fonte: Gulf South Research Corporation

O padrão de extinção e recuperação observados nas comunidades vegetais preservadas no Sul da China apontam para uma situação bastante diferente da indicada pela extinção dos animais e pelo suposto pico de abundância de fungos. O declínio foi muito mais prolongado, tendo começado antes do fim do Pérmico e só terminado no Triássico Médio, numa duração de 23 Ma; em contrapartida, este declínio menos abrupto, e com flutuações no nível de extinção, sugere que as comunidades vegetais terrestres sofreram um grande evento de modificação na sua estrutura, ao invés de uma verdadeira extinção em massa.

No meio dos registos de seres vivos mais visíveis surgem evidências do registo sedimentar que organismos mais pequenos também sofreram uma grande influência da extinção do Pérmico. Formações microbianas como os estromatólitos e trombólitos, bastante características de mares muito mais antigos do Proterozóico, tornam-se de novo bastante comuns no Triássico inicial, associados a novos eventos de anóxia.

O facto de a Vida ter eventualmente recuperado, mesmo que lentamente, da extinção do Pérmico demonstra que quando o principal causador de mudanças ambientais deixa de estar activo, neste caso o grande vulcanismo dos traps da Sibéria, as condições ambientais acabam por estabilizar e permitir que os seres vivos se adaptem e diversifiquem, reocupando os nichos ecológicos deixados vagos. A extinção do Pérmico permitiu que novos grupos ocupassem os nichos mais visíveis, e embora não tivesse sido directamente responsável, levou a que se criassem condições para surgirem os dinossauros, o grupo de vertebrados terrestres dominante durante a era Mesozóica que começou no Triássico.

Algumas espécies ainda dadas como criticamente ameaçadas, como o Saola (Pseudoryx nghetinhensis) podem já estar extintas - Fonte: WWF

Como referi no primeiro post desta série, fala-se muito de uma possível 6ª grande extinção, causada pela nossa espécie, que estará agora a decorrer. No meio de tanto debate e incerteza sobre os reais efeitos que as nossas acções sobre o ambiente causam, é aconselhável dar uma olhadela ao passado para tentar perceber o que é que o futuro nos pode trazer.

Cálculos que comparam a magnitude e ritmo de extinção de vertebrados actuais com as cinco extinções em massa do passado revelam que, se considerarmos que as espécies actualmente ameaçadas se extinguirão num prazo de 100 anos, teremos uma extinção da magnitude de uma extinção em massa dentro de 240-540 anos; mesmo se formos mais conservadores e assumirmos um ritmo menor de extinção, assumindo que só as espécies criticamente ameaçadas se extingam nos próximos 100 anos (o que ao ritmo actual é bastante provável), podemos ter uma extinção em massa dentro de 890-2300 anos.

A principal alteração causada pelas erupções siberianas foi o aumento muito rápido dos níveis de CO2 na atmosfera e oceanos, que levou à acidificação dos oceanos e contribuiu para o agravamento das condições de anóxia nestes. Para além disso, o CO2 levou a um aumento de temperatura, devido à formação de um efeito de estufa, que levou à libertação de hidratos de metano dos fundos oceânicos, que por sua vez aumentaram ainda mais o efeito de estufa… Este aumento dos níveis de CO2 foi problemático porque a velocidade de adição deste à atmosfera ultrapassou a capacidade normal que o nosso planeta tem de o reciclar. E se tomarmos em consideração que estamos a adicionar anualmente cerca de 7 mil milhões de toneladas (7 Gt) de carbono à atmosfera, quando o ritmo calculado para o final do Pérmico era de 0,018 Gt por ano…

Por um lado, temos que ter em atenção que o contexto histórico é completamente diferente. Quando os traps da Sibéria se formaram o mundo já estava em prolongado aquecimento, os níveis de CO2 atmosféricos já eram muito altos e a circulação das correntes oceânicas estava já bastante afectada. Por outro, o ritmo a que estamos a provocar estas alterações é bastante mais rápido que o ritmo a que as alterações se deram no Pérmico, e mesmo que a queima de combustíveis fósseis e libertação de CO2 para a atmosfera cesse a médio prazo, este ficará durante muitos anos na atmosfera, aquecendo o planeta, pondo também em risco a libertação das extensas reservas de metano acumuladas no fundo do oceano.

O aumento recente da temperatura associada com o aumento de concentração de CO2 na atmosfera - Fonte: Michael Ernst

O registo geológico oferece-nos uma janela priveligiada para o passado, e dá-nos boas pistas para percebermos como o mundo poderá evoluir se seguirmos o nosso caminho de exploração descontrolada dos recursos naturais. No entanto, não é uma bola de cristal, e embora muitos dos processos de degradação ambiental sejam semelhantes, o motor dessa mudança é completamente diferente, o que torna as previsões difíceis.

E como diz o paleontólogo britânico Michael J. Benton no seu livro sobre a extinção do Pérmico (“When Life Nearly Died“), mesmo que não tenhamos níveis de extinção semelhantes aos das grandes extinções do passado, isso dificilmente será razão para nos congratularmos…

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A grande extinção do final do Pérmico – parte 1

A grande extinção do final do Pérmico – parte 2

A grande extinção do final do Pérmico – parte 3

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Referências

Barnosky AD, Matzke N, Tomiya S, Wogan GO, Swartz B, Quental TB, Marshall C, McGuire JL, Lindsey EL, Maguire KC, Mersey B, & Ferrer EA (2011). Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived? Nature, 471 (7336), 51-7 PMID: 21368823 (link)

Benton, M., & Twitchett, R.J. (2003). How to kill (almost) all life: the end-Permian extinction event Trends in Ecology & Evolution, 18 (7), 358-365 DOI: 10.1016/S0169-5347(03)00093-4 (link)

Sahney, S., & Benton, M. (2008). Recovery from the most profound mass extinction of all time Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 275 (1636), 759-765 DOI: 10.1098/rspb.2007.1370 (link)

Saunders, A., & Reichow, M. (2009). The Siberian Traps and the End-Permian mass extinction: a critical review Chinese Science Bulletin, 54 (1), 20-37 DOI: 10.1007/s11434-008-0543-7 (link)

– Wignall, P (2008) The End-Permian crisis, aftermath and subsequent recovery , In: Okada; H; Mawatari; F, S; Suzuki; N; Gautam; P (Ed) Origin and Evolution of Natural Diversity, 21st Century for Neo-Science of Natural History , Hokkaido University, pp.43-48 (link)

– Xiong, C. & Wang, Q. (2011) Permian–Triassic land-plant diversity in South China: Was there a mass extinction at the Permian/Triassic boundary? Paleobiology, 37(1), 2011, pp. 157–167 (link)

A grande extinção do final do Pérmico – parte 2

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Com tantas alterações ambientais no final do Pérmico, há 251 milhões de anos (Ma), não admira que a vida estivesse no limbo – ao aumento prolongado e constante da temperatura global, acidificação do oceano, estagnação das correntes oceânicas e anóxia até em águas superficiais, as erupções prolongadas dos traps da Sibéria trouxeram episódios repetidos e curtos de grande arrefecimento, destruição da camada de ozono e libertação de compostos tóxicos como hidratos de metano e compostos de enxofre.

Causas e efeitos das graves alterações ambientais no final do Pérmico - Fonte: Saunders & Reichow 2009

A reconstrução do impacto que estas alterações tiveram na Vida está dependente da qualidade do registo fóssil, e só recentemente, nos anos 1990, se começaram a encontrar jazidas com um registo relativamente completo das porções final e média do Pérmico. Estas indicam que a extinção do Pérmico não foi um evento único, concentrado na sua parte final há 251 Ma, mas que consistiu de uma série de pulsos de extinção. A primeira fase, conhecida como a “Extinção de Olson” (o hiato do registo fóssil foi identificado pela primeira vez pelo paleontólogo Everett Olson), deu-se no início do Pérmico Médio (há 270 Ma), o Guadalupiano, e caracterizou-se pela extinção de dois terços dos vertebrados terrestres. As comunidades recuperaram com alguma rapidez, mas sem atingir os níveis anteriores até que se deu uma segunda fase de extinção, conhecida como o evento do final da Guadalupiano, há 260 Ma. A natureza deste evento ainda não está bem esclarecida, com alguns autores a defenderem que foi um evento catastrófico que eliminou mais de 50% dos invertebrados marinhos, e outros a afirmarem que consistiu na gradual perda de biodiversidade que decorreu desde essa época até ao final do Pérmico. De qualquer forma, não parecem haver grandes dúvidas que no final do Pérmico deu-se o grande evento de extinção. A análise de comunidades de animais marinhos revela que aproximadamente 80-90% de todas as espécies desapareceram, enquanto que em terra 70% dos vertebrados terrestres não passaram a fronteira.

Para além da perda de diversidade, outros indicadores de grandes perturbações de biodiversidade incluem o tamanho reduzido dos animais que sobreviveram, falta de vestígios de actividade de animais do fundo do mar e depósitos sedimentares sem vestígios orgânicos como carvões ou restos de recifes.

Uma outra maneira de olhar para esta extinção é analisar as consequências fisiológicas dos factores de stress sobre os organismos. Estas podem ser inferidas pela análise de características morfológicas directamente relacionadas com a fisiologia, e pela comparação com organismos actuais.

O pano de fundo das alterações ambientais, o aumento de temperatura, tem consequências fisiológicas e comportamentais conhecidas em muitos organismos, como a alteração das épocas de reprodução, mecanismos de determinação sexual ou o próprio metabolismo básico.

A acidificação dos oceanos afectou sobretudo os animais com esqueletos carbonatados, como os braquiópodes - Fonte: Mark Wilson (http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Wilson44691)

O aumento do nível de dióxido de carbono (CO2) teve consequências na fisiologia dos organismos aquáticos, algo verificado experimentalmente mesmo para níveis relativamente baixos de concentração de CO2 – se a perda de viabilidade de organismos se mantiver pequena mas constante ao longo de gerações é suficiente para, em poucos séculos, ter consequências catastróficas para populações de muitas espécies. O aumento de CO2 nas águas, e consequente acidificação destas, é um grande entrave à formação de esqueletos carbonatados, presentes em muitos grupos marinhos como equinodermes, moluscos, corais e braquiópodes, e o registo fóssil mostra que estes foram os mais afectados pela extinção em massa – o aumento de CO2 pode ter actuado como principal factor de selectividade na extinção dos animais marinhos.

Em ambiente terrestre, embora as plantas possam em parte beneficiar do aumento de CO2 para a fotossíntese, ele causa um aumento da acidificação do solo.

No mundo actual, condições de anóxia prolongada conseguem matar todos os animais marinhos, logo os animais que sobreviveram às condições de anóxia no Pérmico foram os poucos que conseguiram refúgio em águas com teores de oxigénio aceitáveis. É interessante verificar que uma perda de habitat de 90% normalmente está correlacionada com a extinção de 50% das espécies, por isso uma taxa de extinção próxima de 90% no Pérmico implica que apenas uma porção muito reduzida de habitat ficou disponível. As condições de anóxia também beneficiam produtores primários com capacidade de fixação de azoto, como as cianobactérias, em detrimento de algas, e esta alteração na composição do fitoplâncton marinho foi mais um stress para os organismos aquáticos

A bactéria actual Desulfonema limicola, uma bactéria redutora de enxofre característica de águas anóxicas - Fonte: MicrobeWiki (http://microbewiki.kenyon.edu/index.php/Desulfonema_limicola)

Como já vimos anteriormente, estas condições de anóxia levaram à proliferação de bactérias redutoras de enxofre, evidenciado pela preservação de altos teores de compostos de enxofre tóxicos como o ácido sulfídrico (H2S), que impedem a actividade respiratória das células eucarióticas. Embora haja organismos com níveis variáveis de tolerância, esta nunca é total, pelo que os níveis anormalmente elevados de H2S que escaparam para a atmosfera, pelo menos centenas de vezes superiores aos actuais, foram mortais para uma percentagem considerável dos seres vivos terrestres.

Os gorgonópsidos (como este Dinogorgon rubidgei), grandes predadores do Pérmico, desapareceram no final deste período - Fonte: Dmitry Bogdanov (http://commons.wikimedia.org/wiki/Creator:Dmitry_Bogdanov)

Todas estas evidências sugerem que houve uma actuação concertada, sinergística, de todas estas causas que levaram à maior crise de biodiversidade que conhecemos, e que levou à extinção de uma grande parte dos invertebrados marinhos (incluindo as trilobites, os escorpiões-marinhos, graptólitos e uma grande parte dos braquiópodes, moluscos e equinodermes), várias ordens de insectos terrestres, a dois terços das famílias de vertebrados terrestres e que levou à substituição da flora dominante.

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No próximo post: a recuperação dos ecossistemas após a extinção e (agora sim!) as lições que podemos tirar para a nossa situação actual

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A grande extinção do final do Pérmico – parte 1

A grande extinção do final do Pérmico – parte 2

A grande extinção do final do Pérmico – parte 3

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Referências

Clapham, M., Shen, S., & Bottjer, D. (2009). The double mass extinction revisited: reassessing the severity, selectivity, and causes of the end-Guadalupian biotic crisis (Late Permian) Paleobiology, 35 (1), 32-50 DOI: 10.1666/08033.1 (link)

KNOLL, A., BAMBACH, R., PAYNE, J., PRUSS, S., & FISCHER, W. (2007). Paleophysiology and end-Permian mass extinction Earth and Planetary Science Letters, 256 (3-4), 295-313 DOI: 10.1016/j.epsl.2007.02.018 (link)

Sahney, S., & Benton, M. (2008). Recovery from the most profound mass extinction of all time Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 275 (1636), 759-765 DOI: 10.1098/rspb.2007.1370 (link)

Saunders, A., & Reichow, M. (2009). The Siberian Traps and the End-Permian mass extinction: a critical review Chinese Science Bulletin, 54 (1), 20-37 DOI: 10.1007/s11434-008-0543-7 (link)

A grande extinção do final do Pérmico – parte 1

ResearchBlogging.org

Nos dias que correm ouvimos falar muito da grande perda de biodiversidade a que se assiste nos dias de hoje, motivada especialmente pela destruição de habitat, alterações climáticas, introdução de espécies invasoras e sobre-exploração de recursos causados pela actividade humana. Se o ritmo a que esta perda está a decorrer actualmente se mantiver, espera-se que estejamos a enfrentar uma nova extinção em massa – estes são eventos na história da Terra caracterizados pela perda de uma porção significativa da biodiversidade num curto espaço de tempo geológico. Estes eventos são raros, pois embora seja normal que espécies se extingam, surgem constantemente novas espécies. Cálculos recentes indicam que, ao ritmo actual de extinção, poderemos ter níveis comparáveis a outras extinções em massa em menos de 15 000 anos (perspectivas conservadoras!), e tão cedo quanto algumas centenas de anos! O ritmo de extinção poderá até ser superior ao registado em qualquer uma das grandes extinções do passado.

The Big Five - as cinco grandes extinções em massa, assinaladas neste gráfico que mostra o número de famílias conhecidas para uma determinada época (note-se que conhecem-se muito mais famílias actuais que pré-históricas, pois muitas não ficam preservadas). A perda de biodiversidade no final do Pérmico é notável! - Fonte: Metcalfe & Isozaki 2009 (http://ea.c.u-tokyo.ac.jp/earth/Members/Isozaki/09JAES-preface.pdf)

Caso isto ocorra, não será algo de completamente novo na história do nosso planeta, embora a causa de extinção (expansão humana não controlada) seja diferente. Desde que temos um registo fóssil razoavelmente completo, desde o início do Câmbrico, há 540 milhões de anos atrás (Ma), ocorreram apenas cinco destes eventos, no final dos períodos Ordovícico (443 Ma), Devónico (359 Ma), Pérmico (251 Ma), Triásico (200 Ma) e Cretácico (65 Ma). Destes, o mais destrutivo foi a extinção em massa do final do Pérmico, durante o qual mais de 90% de todas as espécies podem se ter extinguido, mudando todo o percurso evolutivo da Vida. Que aconteceu nesta época que causasse tamanha catástrofe? E que lições podemos retirar dela?

Representação paleogeográfica do final do Pérmico. As posição dos continentes está assinalada a verde, a localização da província vulcânica da Sibéria a vermelho e, numerados, locais onde se encontraram vestígios geológicos da transição Pérmico-Triásico (a fronteira P-T)- Fonte: Saunders & Reichow (2009)

No final do Pérmico a maioria das massas continentais encontravam-se juntas, formando o supercontinente Pangea, que era rodeado pelo grande oceano Pantalassa. Embora com flutuações, a tendência climática durante o Pérmico foi de aquecimento global, em grande parte resultado do aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera – os níveis no final do Pérmico eram 5 a 10 vezes superiores aos do início do período, uns 50 Ma antes (que por sua vez eram semelhantes aos valores de CO2 antes da revolução industrial). Estes níveis corresponderiam a pelo menos 3000 biliões de toneladas (Gt) de carbono sob a forma de CO2 na atmosfera (o nível actual é de cerca de 800 Gt, e na atmosfera pré-industrial seriam cerca de 600 Gt).

Este aumento de CO2 teria sido causado pela diminuição de fenómenos de meteorização (alterações físicas e químicas sofridas pelas rochas), maior aridez e aumento de fenómenos de vulcanismo no Norte da Pangea; na parte final do Pérmico acresceriam ainda fenómenos de vulcanismo basáltico extenso, que formariam grandes planícies vulcânicas (os chamados “traps)” na região de Emeishan (China) e Sibéria (Rússia).

O aumento de CO2 levaria por sua vez ao degelo de calotes polares, aumento de temperatura na atmosfera e oceano e acidificação das águas, e estes processos causariam alterações na circulação oceânica, diminuindo a circulação e mistura de águas. Estes processos já estariam a decorrer no final do Pérmico quando se deram os fenómenos de vulcanismo que formaram os traps da Sibéria, mas estes últimos teriam contribuído de forma significativa para o aumento da temperatura global, actuando de forma conjunta com as alterações prévias. Estes eventos vulcânicos, cuja origem é ainda incerta, levaram à deposição de um volume de 3 milhões de km cúbicos de basalto, durante um período provavelmente inferior a 1 Ma – estima-se que as erupções duraram 600 000 anos. Isto é equivalente à emissão de 12000 a 18000 Gt de carbono para a atmosfera, durante um período de 1 Ma – isto implica um ritmo de emissão de carbono de 0,018 Gt por ano, em contraste com as 7 Gt por ano que ocorrem actualmente devido à queima de combustíveis fósseis!

Afloramento da parte inferior dos traps siberianos, a província basáltica que se formou após longas erupções no final do Pérmico - Fonte: Siberian Traps Expedition 2009 (http://siberia2009.wordpress.com/)

Outros gases vulcânicos, capazes de causar arrefecimentos significativos na atmosfera (como compostos de enxofre) e perda da camada de ozono (halogénios) imediatamente após uma erupção, também poderiam ter sido expelidos. Num mundo adaptado a um crescente aquecimento, a existência de algumas estações extremas com frios intensos significava mais um factor de stress para os seres vivos. Estes períodos frios seguir-se-iam imediatamente após as erupções e consequente libertação de compostos de enxofre, mas como estes se degradam rapidamente na atmosfera (cerca de um ano), não afectariam o padrão geral de aquecimento causado pelo CO2. Associado ao arrefecimento teria acontecido uma diminuição da luz disponível para as plantas, comprometendo a fotossíntese. A destruição da camada de ozono pelos halogénios causaria um aumento de raios ultravioleta, aumentando os riscos de mutações nos seres vivos.

O aquecimento global que se verificou no final do Pérmico, juntamente com a estagnação das correntes oceânicas e redução de fotossíntese levaram ao outro grande causador de extinções neste mundo cada vez menos habitável – anóxia. O oxigénio é essencial para uma fatia substancial dos seres vivos, sobretudo para os maiores e mais visíveis, os eucariontes (nos quais incluímos plantas, animais, fungos…), e por isso ambientes aquáticos com pouco oxigénio possuem pouca diversidade. Evidências recolhidas em rochas da fronteira Pérmico-Triásico demonstram que condições com pouco oxigénio eram prevalentes nos oceanos desta época: disoxia (pouco oxigénio dissolvido), anóxia (ausência de oxigénio dissolvido) e mesmo euxinia (presença de enxofre reduzido). Actualmente isto só acontece em condições muito específicas, e até os fundos oceânicos são geralmente bem oxigenados. Em condições de anóxia, a maioria do corpo de água fica sem oxigénio dissolvido, excepto para as camadas superficiais em contacto com a atmosfera. Dados isotópicos revelam que o oceano do final do Pérmico possuía um número anormal de enxofre reduzido, evidência de actividade de bactérias anaeróbicas redutoras de enxofre em águas superficiais. Este enxofre seria reduzido formando pirite ou ácido sulfídrico (H2S), este um gás bastante tóxico que poderia ter sido libertado para a atmosfera.

Existem também evidências de uma grande libertação de hidrato de metano, um gás que pode causar um aumento do efeito de estufa, contribuindo também para o aquecimento global. Este não teria sido no entanto determinante, pois a sua libertação, por aquecimento de sedimentos dos fundos oceânicos, deu-se numa altura em que a grande extinção já estaria a decorrer. No entanto, teria sido sem dúvida mais um importante factor a afectar o clima.

Para terminar, de referir que até ao momento ainda não se encontraram evidência claras de algum impacto significativo de um corpo extra-terrestre para o final do Pérmico. Desde que essa explicação se tornou a explicação provável para a extinção em massa do final do Cretácico, que matou os dinossauros não-avianos, muitos autores têm procurado aplicar essa mesma explicação para as outras extinções em massa, incluindo a do Pérmico, mas as evidências de materiais extra-terrestres encontradas para o final do período têm sido criticadas.

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Na próxima parte: o impacto da extinção em massa nos seres vivos e perspectivas sobre a extinção causada pela nossa espécie

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A grande extinção do final do Pérmico – parte 1

A grande extinção do final do Pérmico – parte 2

A grande extinção do final do Pérmico – parte 3

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Referências

Barnosky AD, Matzke N, Tomiya S, Wogan GO, Swartz B, Quental TB, Marshall C, McGuire JL, Lindsey EL, Maguire KC, Mersey B, & Ferrer EA (2011). Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived? Nature, 471 (7336), 51-7 PMID: 21368823 (link)

KNOLL, A., BAMBACH, R., PAYNE, J., PRUSS, S., & FISCHER, W. (2007). Paleophysiology and end-Permian mass extinction Earth and Planetary Science Letters, 256 (3-4), 295-313 DOI: 10.1016/j.epsl.2007.02.018 (link)

Saunders, A., & Reichow, M. (2009). The Siberian Traps and the End-Permian mass extinction: a critical review Chinese Science Bulletin, 54 (1), 20-37 DOI: 10.1007/s11434-008-0543-7 (link)

Tordo-zornal: diferentes predadores, diferentes defesas

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O tordo-zornal (Turdus pilaris) é uma espécie menos conhecida de tordo, parente do melro (Turdus merula) e do tordo-comum (Turdus philomelos), que em Portugal aparece só nos meses mais frios (Outubro a Março), vindo de países do Norte da Europa. Na Primavera e Verão volta a migrar para esses países, onde nidifica.

Os ninhos de tordo-zornal, que podem ser solitários ou inserir-se numa colónia, são muitas vezes alvo de predação por parte de corvídeos (como corvos ou gralhas) ou mustelídeos (doninhas e parentes). Os tipos de predadores predominantes num local são determinantes para escolher a forma como as aves se agrupam e comportam durante a nidificação, segundo um estudo realizado pelo ornitólogo Olav Hogstad em 2003, numa floresta de bétulas em Budal, na Noruega.

Tordo-zornal (Turdus pilaris) - Fonte: Estormiz (http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Estormiz/Birds)

O ninho desta espécie, em forma de taça, é construído na ramificação entre o tronco principal e um ramo, entre 1,5 a 5 metros do solo, e é bastante visível, podendo facilmente ser detectado pelos seus predadores avianos e mamíferos – estes conseguem trepar às árvores para chegar ao ninho. A experiência de Hogstad consistiu em registar o comportamento defensivo de tordos-zornais na fase final da incubação, ao ser-lhes colocado à beira do ninho bonecos de gralha-cinzente (Corvus cornix) e arminho (Mustela erminea).

As experiências mostram comportamentos diferentes consoante o predador: o boneco de gralha-cinzenta foi atacado muito mais activamente pelos tordos do que o boneco do arminho, e os próprios movimentos dos tordos quando estavam no ninho eram mais discretos quando o arminho estava nas proximidades. Isto muda, no entanto, quando tanto o arminho como a gralha estão muito próximos do ninho – nesse caso ambos são ferozmente atacados pelo tordo-zornal.

Predadores do tordo-zornal no estudo de Olav Hogstad: a gralha-cinzenta (Corvus cornix) e o arminho (Mustela erminea) - Fontes: Mindaugas Urbonas e Steve Hillebrand

Os comportamento defensivos foram divididos em três classes: 1) abandonar o ninho silenciosamente, e só dar o alarme quando bastante afastados do ninho; 2) abandonar o ninho silenciosamente, vocalizando persistentemente a 15 metros do ninho; 3) atacar o predador, muitas vezes defecando nele. Os resultados demonstram que, quando o predador é um corvídeo, como a gralha, os tordos-zornais adoptam mais frequentemente a estratégia 3, mais ofensiva. Quando o predador é um mustelídeo, como o arminho, o tordo adopta quase sempre as estratégias 1 e 2, para tentar atrair o predador para longe do ninho, e só quando o arminho está a 1 metro é que os tordos têm mais tendência para o atacar (mas nunca tanto como para a gralha).

Também se registou o tempo que o tordo-zornal leva para voltar ao ninho após o predador ser removido, e demonstrou-se que demora mais tempo a voltar no caso do arminho (3 a 10 minutos, contra 1 a 4 minutos no caso da gralha).

(David Attenborough explica como o tordo-zornal usa as fezes para se defender de um corvídeo, neste caso o corvo Corvus corax. Infelizmente a BBC não deixa incorporar o vídeo no post, por isso tem que ser visto no YouTube)

Estes comportamentos mais tímidos contra o arminho estão relacionados com as estratégias que o tordo-zornal usa para se defender. Esta ave é conhecida por atacar os corvídeos defecando neles – as fezes mancham a plumagem e fazem com que perca a capacidade de isolamento térmico, uma das suas principais funções, deixando a ave predadora vulnerável; isto já não será problemático para a pelagem dos mamíferos. Para além disso há o problema de, ao contrário das aves, os mustelídeos serem animais essencialmente nocturnos, pelo que o ataque aos mustelídeos e o uso de fezes é mais complicado.

Enquanto que os tordos se conseguem defender mais eficazmente contra os corvídeos usando o ataque, para os mustelídeos a defesa passa por uma mudança de hábitos – nos locais onde predominam mustelídeos como predadores, os tordos-zornais têm tendência a fazer ninhos solitários. Se os ninhos estivessem em colónias, era muito mais fácil a estes mamíferos predarem todos os ninhos. O comportamento mais tímido frente ao arminho também se explica porque, embora os corvídeos sejam essencialmente predadores dos ovos, os mustelídeos, mais discretos, podem também caçar os próprios tordos adultos. Quando um corvídeo aparece o tordo-zornal tem muito menos perigos se for agressivo, pois não é atacado e consegue perceber para onde o corvídeo foge; é muito mais difícil ter a certeza onde está o discreto mustelídeo, e ele pode mesmo apanhar o tordo desprevenido e fazer dele o almoço!

Referências

Hogstad, O. (2004). Nest defence strategies in the fieldfare Turdus pilaris: the response on an avian and a mammalian predator Ardea, 92 (1), 79-84 (link)

Ciência Simples

Convido todos os visitantes deste blog a conhecer o projecto-irmão do Histórias da Vida e da Terra no Facebook: Ciência Simples.

O objectivo é, pelo menos uma vez por dia, encontrar um artigo científico, recente ou não, e explicá-lo em linguagem correcta, concisa e simples, utilizando o limite de 420 caracteres imposto pelo Facebook para actualizações de estado. Isto virá sempre acompanhado de uma ligação, não para um site de notícias de ciência, mas para o artigo original – assim se fará a ponte entre a breve descrição do conhecimento científico e o trabalho original, sem intermediários.

Porque a ciência não precisa de ser sempre complicada!

Imagem do dia – Asteraceae

Foto (c) Pedro Andrade

As asteráceas (Asteraceae, por vezes também designadas Compositae) são uma família de plantas com flor (angiospérmicas) muito diversa, distribuída mundialmente. A maioria das espécies não ultrapassa o porte herbáceo.

A característica mais conhecida das plantas desta família é a “flor”, na realidade uma inflorescência constituída geralmente por um grande número de flores; nas asteráceas a inflorescência é um capítulo, um tipo de inflorescência em que as flores individuais se inserem num receptáculo mais-ou-menos horizontal comum a todas elas. Esta morfologia apresenta vantagens evolutivas na medida em que permite uma maior superfície floral para atrair animais polinizadores, ao mesmo tempo que mantém os óvulos e as sementes de cada flor separadas, mais protegidos de predadores.

Referências

– Ingrouille, M., Eddie, B., 2006. Plants: Evolution and Diversity. Cambridge Univ.Press, New York, 440 pp.

– Panero, Jose L. and Bonnie S. Crozier (2008) Asteraceae. Sunflowers, daisies. Version 04 April 2008. http://tolweb.org/Asteraceae/20780/2008.04.04 in The Tree of Life Web Project, http://tolweb.org/

Origem e evolução dos animais – parte 4

ResearchBlogging.org

Estamos a chegar ao fim da nossa breve viagem pela evolução dos animais. Começamos a descobrir o lugar dos animais no contexto evolutivo mais amplo dos eucariontes, descobrindo que uns modestos seres, chamados coanoflagelados, são os parentes mais próximos de todos os animais, e que o estudo das suas colónias revela pistas para perceber como os animais, multicelulares, evoluíram. Depois começamos a ver os traços gerais, as grandes linhagens de animais que reconhecemos hoje em dia, primeiro as que mantiveram características mais primitivas, como as esponjas e os cnidários, e depois analisando um dos dois grandes ramos da evolução animal, os deuterostómios. Este possui uma grande diversidade de formas de vida, desde os tímidos Xenoturbella, passando pelos tunicados e os complicados mas diversos vertebrados, assim como as estrelas-do-mar e seus parentes. No entanto, esta diversidade empalidece quando comparada com a diversidade atingida pelo outro grande ramo da diversidade animal, os protostómios. De certeza que ficarão muitos grupos importantes por falar, mas espero dar pelo menos uma boa ideia da diversidade que este grande grupo inclui neste último post da série sobre evolução dos animais.

As diferenças entre protostómios e deuterostómios já foram sumariadas no post anterior, por isso não as voltarei a mencionar. O que recupero do post anterior é a visão antiga da diversidade animal: embora os grupos Protostomia e Deutersotomia fossem já reconhecidos, a sua composição, e as relações desses animais entre si,  era significativamente diferente. Um conceito anteriormente muito importante na classificação era a presença ou não de celoma, a cavidade corporal onde os órgãos se localizam. Protostómios e deuterostómios tinham celoma, mas havia um grande comjunto de animais que não possuíam celoma completamente desenvolvido, e que por isso eram vistos como mais primitivos, relíquias que demonstravam passos importantes na origem dessa característica tão importante, o celoma. Estes animais incluíam alguns sem qualquer celoma (os acelomados), e outros com um pseudoceloma, também chamado de blastoceloma, uma cavidade corporal derivada directamente da cavidade corporal embrionária, o blastocélio.

Filogenia dos Bilateria, mostrando os grandes grupos de deuterostómios e protostómios. Os cnidários aparecem como grupo externo aos animais bilaterados, enquanto os acelomorfos (Acoela=Acoeloomorpha) e os nemertodermatídeos (Nemertodermatida) são linhagens de bilaterados que divergiram antes da grande dicotomia Deuterostomia-Protostomia - Fonte: Paps et al (2009)

Estudos recentes, apoiados por técnicas de biologia molecular, permitiram lançar um novo olhar sobre esta classificação: reforça-se a ideia dos bilaterados como tendo dois grandes ramos, os Protostomia e Deuterostomia, e tirando alguns grupos pequenos, como os Acoelomorpha de que já falamos anteriormente, quase todos os bilaterados são agora protostómios ou deuterostómios – e destes a grande maior parte protostómios! Para dizer a verdade, os protostómios foram os que mais “enriqueceram” em biodiversidade com as alterações efectuadas à classificação, se não vejamos: todos os pseudocelomados, assim como quase todos os acelomados (com excepção dos Acoelomorpha) passam a ser considerados protostómios; outra grande alteração deu-se com a inclusão dos grupos colectivamente designados “lofoforados” (por possuírem um lofóforo, um órgão filtrador para a alimentação), antes considerados deuterostómios.

Podemos dizer que os protostómios se dividem em duas grandes linhagens, só recentemente reconhecidas: Os Ecdysozoa e os Lophotrochozoa

Os Ecdysozoa incluem os animais que renovam uma cutícula exterior através de um processo de muda chamado ecdysis; partilham também um grande conjunto de características mais “escondidas”, incluindo genes de desenvolvimento específicos e proteínas únicas a membros destes grupos. Estes incluem a grande maioria dos animais terrestres – só os artrópodes são responsáveis por 85% de toda a diversidade animal, e os nemátodes são também muito diversos, e sobretudo numerosos: um estudo revelou que uma simples maçã podre pode conter até 90 000 nemátodes individuais!

Perderia uma eternidade se começasse a falar de artrópodes (Arthropoda), por isso bastará por enquanto referir os seus grupos principais: Hexapoda (insectos e afins), Crustacea (crustáceos), Myriapoda (centopeias e mil-pés), Arachnida (aranhas, escorpiões, ácaros…) e Trilobitomorpha (as já extintas trilobites. O grande sucesso dos artrópodes ter-se-à devido às suas grandes inovações evolutivas: o exosqueleto rígido de quitina, que lhes confere uma boa protecção, e as patas articuladas, que permitem dar uma boa mobilidade apesar da rigidez do exoesqueleto. Os parentes mais próximos dos artrópodes são os onicóforos (Onychophora) e os tardígrados (Tardigrada) – estes celebrizaram-se pelas suas espantosas capacidades de resistência a… quase tudo! Frio extremo, calor extremo, radiações altíssimas, falta de água, ausência de atmosfera, pressões extremas… são o exemplo perfeito de um animal poliextremófilo, ou seja, capaz de resistir a condições extremas de muitos tipos diferentes.

Vários Ecdysozoa - a) tardígrado; b) onicóforo; c) artrópode (insecto); d) artrópode (crustáceo); e) artrópode (miriápode); f) nematomorfo; g) nemátode; h) loricífero; i) quinorrinco

As relações evolutivas entre os outros Ecdysozoa não estão ainda bem esclarecidas. Eles incluem os nemátodes (Nematoda), um grupo de vermes muito diverso, e que tem sido muito estudado sobretudo devido às parasitoses que vários membros causam (como a lombriga, Ascaris lumbricoides); os seus parentes mais próximos são os Nematomorpha, cujas larvas são parasitas de artrópodes. Os Kinorhyncha, Loricifera e Priapulida são outros grupos menos conhecidos, todos marinhos.

O outro grande grupo de protostómios, os Lophotrochozoa, foram assim chamados por incluírem grupos que se alimentam com recurso a um lofóforo, e animais com um estado larvar designado trocóforo. Em termos filogenéticos, definem-se por incluírem o último antepassado comum dos anelídeos, moluscos e lofoforados, assim como todos os descendentes desse antepassado comum. Pode-se dizer que os lofotrocozoários são um grupo cujos membros atingiram uma enorme variabilidade de formas corporais, talvez até mais que os Ecdysozoa. Como para estes últimos, irei falar apenas por alto de alguns grupos mais notáveis.

Os anelídeos (Annelida) são o grupo dos animais que possuem um corpo segmentado, formando vários anéis – tradicionalmente eram agrupados com os artrópodes, que também têm o corpo dividido em vários segmentos, mas essa associação não parece fazer sentido em termos evolutivos – os corpos segmentados surgiram de forma convergente. Entre os anelídeos encontramos animais como as minhocas, sanguessugas e poliquetas. Por vezes usa-se um conceito mais alargado de anelídeo, incluindo os parentes marinhos Sipuncula e Echiura. Os anelídeos são parentes de lofoforados como os braquiópodes (Brachiopoda) ou os Phoronida, e dos moluscos (Mollusca), que incluem animais familiares como os caracóis, lesmas, polvos, mexilhões e quitões.

Alguns Lophotrochozoa - a) molusco (bivalve); b) molusco (cefalópode); c) anelídeo (poliqueta); d) anelídeo (oligoqueta); e) rotífero; f) platelminte; g) lofoforado (Phoronida); h) equiuro; i) nemérteo

Animais blastocelomados como os comuns rotíferos (Rotifera, presentes em quase qualquer meio em que haja humidade), os parasitas Acanthocephala e outros, assim como antigos “acelomados” como os Platyhelminthes (os vermes achatados, como as planárias, ténias ou tremátodes) são incluídos nos Lophotrochozoa (nem todos, relembro). O facto de eles possuírem versões mais rudimentares do celoma resulta não da retenção de características primitivas, mas de aquisição dessas características no decurso da evolução: os acelomados perderam o celoma, ficando com o corpo compactamente preenchido por células (mesênquima); os blastocelomados retiveram durante a evolução uma característica juvenil (o blastocélio do embrião continua no adulto). Nestes animais sem celoma verdadeiro, as vantagens de ter um bom sistema de transporte e espaço para desnvolvimento de órgãos são compensadas pela capacidade de armazenamento de substâncias e suporte corporal. De qualquer forma, estes planos corporais funcionam melhor em animais de tamanho pequeno (a maioria dos blastocelomados) ou com um volume reduzido (os platelmintes são o melhor exemplo).

Com estas conversas de cavidades corporais concluo esta série de posts sobre a evolução dos animais. Inicialmente ia ser só um post sobre a origem dos animais, mas rapidamente percebi que queria prolongar mais um pouco, e falar de um modo geral sobre diversidade animal. Podia ter falado de muito mais coisas, mas os posts já ficaram grandes o suficiente por agora! E levado ao extremo, só acabava se falasse de todos os aspectos da biologia de todo o milhão de espécies conhecidas actualmente…

Origem e evolução dos animais – Parte 1

Origem e evolução dos animais – Parte 2

Origem e evolução dos animais – Parte 3

Origem e evolução dos animais – Parte 4

Referências

– Brusca, R. C., and G. J. Brusca (2003). Invertebrates. Second edition. Sinauer Associates, Inc., Sunderland, MA

Halanych, K. (2004). THE NEW VIEW OF ANIMAL PHYLOGENY Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics, 35 (1), 229-256 DOI: 10.1146/annurev.ecolsys.35.112202.130124

Paps, J., Baguñà, J., & Riutort, M. (2009). Lophotrochozoa internal phylogeny: new insights from an up-to-date analysis of nuclear ribosomal genes Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, -1 (-1), -1–1 DOI: 10.1098/rspb.2008.1574

Telford, M., Bourlat, S., Economou, A., Papillon, D., & Rota-Stabelli, O. (2008). The evolution of the Ecdysozoa Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 363 (1496), 1529-1537 DOI: 10.1098/rstb.2007.2243

Origem e evolução dos animais – parte 3

ResearchBlogging.org

Nesta série de posts que tenho feito sobre a origem e evolução dos animais já abordei as origens dos animais no seio dos eucariontes, e descrevi brevemente quais são os primeiros grupos divergentes da grande árvore evolutiva deste familiar mas muitas vezes bizarro grupo dos metazoários. No entanto, estes grupos que falei anteriormente, que incluem as mais conhecidas esponjas, cnidários e ctenóforos, e seres estranhos como Trichoplax ou os Myxozoa, apenas arranham toda a diversidade de animais que conhecemos hoje em dia. Esta diversidade concentra-se nos dois grandes grupos de animais com simetria bilateral, os deuterostómios (Deuterostomia) e os protostómios (Protostomia); tal como vimos anteriormente, existem alguns animais (acelomorfos e possivelmente os myxozoários) que, sendo Bilateria, divergem antes desta dicotomia – por isso diferenciamos entre um grupo maior Bilateria, que inclui esses grupos e os Eubilateria, ou “verdadeiros Bilateria”, esse sim o grupo caracterizado pela grande dicotomia da simetria bilateral.

Uma proposta de filogenia para os animais; é preciso ter sempre em atenção que estes diagramas por vezes dão uma ideia errada de "direccionalidade" de evolução: por exemplo, se nós fôssemos coanoflagelados, os Metazoa estariam na base da nossa árvore evolutiva. A ordem de divergência desta árvore não está em perfeito acordo com a filogenia que menciono no texto, mas duvido que haja duas filogenias que concordem completamente entre si! - Fonte: Halanych (2004)

Mas o que está na base desta dicotomia? A resposta encontra-se no diferente desenvolvimento embrionário em ambos os grupos: entre as diferenças tradicionais encontramos a forma como as divisões celulares iniciais se processam, a forma como o celoma (a cavidade interna onde os órgãos estão alojados) se origina a partir da mesoderme, e o destino do blastoporo (a formação do tubo digestivo primitivo, o arquenteron, inicia-se com a formação do blastoporo, que nos protostómios será a futura boca, enquanto que nos deuterostómios será o futuro ânus).

Diferenças no desenvolvimento embrionários de protostómios e deuterostómios - Fonte: Penn State University

O aparecimento em si do celoma, anteriormente um caracter muito importante, deixou de ter tanta relevância no contexto do aparecimento das características dos animais bilaterados quando se constatou que surgiu de forma independente nos dois ramos dos Bilateria. Aliás, muitos dos animais anteriormente considerados bilaterados sem celoma, e por isso mais primitivos (os acelomados), são na realidade Protostómios, que não têm celoma porque o perderam no decurso da sua evolução. Outro caracter controverso é a origem da mesoderme, dado que há autores que defendem uma origem independente da mesoderme destes dois grupos. Mas como conciliar com a presumível mesoderme dos ctenóforos?

Relações evolutivas entre os principais grupos de deuterostómios - Fonte: Swalla & Smith (2008)

Deixando-nos de problemáticas bilaterianas, passemos aos deuterostómios! Como para os restantes animais, as suas origens mais profundas no tempo permanecem misteriosas. O uso de relógios moleculares para descobrir a época de aparecimento deste grupo aponta para um aparecimento há cerca de 896 milhões de anos (Ma), embora os fósseis mais antigos de animais bilaterados não tenham mais de 580 Ma; outros estudos que geram datas mais concordantes com o registo fóssil carecem de algum rigor metodológico, por isso a questão está ainda em aberto. Um possível ancestral dos deuterostómios é desconhecido, e nenhum fóssil foi conclusivamente interpretado como um deuterostómio que não pertencesse aos grande grupos actuais.

Esses grupos actuais dividem-se em dois grandes ramos: Ambulacraria e Chordata (com um terceiro e enigmático grupo, Xenoturbella, provável parente dos Ambulacraria). Os Ambulacraria incluem os hemicordados (Hemichordata), que antes se pensavam ser parentes mais próximos dos cordados, e os equinodermes (Echinodermata), que incluem as estrelas-do-mar, ouriços, pepinos-do-mar, crinóides e outros habitantes dos mares. O facto de os hemicordados terem algumas características em comum com os cordados apoia a noção de que os equinodermes são deuterostómios com um grande conjunto de características muito modificadas em relação ao ancestral comum dos deuterostómios.

A visão tradicional da evolução dos cordados: o adquirir de capacidade reprodutora por larvas de tunicados tornaria possível o caminho até aos primeiros vertebrados - Fonte: http://www.mun.ca/biology/scarr/Garstang_Hypothesis.html

Nós, humanos e outros vertebrados, somos cordados, juntamente com os nossos parentes urocordados (Urochordata) e cefalocordados (Cephalochordata), também conhecidos como tunicados e anfioxos, respectivamente. A história tradicional do nosso parentesco com estes seres ia um pouco assim: o grupo mais primitivo são os tunicados, que na fase adulta têm um corpo séssil coberto por uma túnica, e que passam a vida a filtrar a água do mar em busca de partículas para se alimentarem. As suas larvas, ao contrário do adulto, são móveis, nadando para se dispersarem, e possuem uma estrutura ausente em todos os outros animais não-cordados, o notocórdio, um tubo de tecido fibroso que dá suporte ao corpo e ajuda na locomoção. Havendo pressão evolutiva para esta larva adquirir meios de reprodução, sem necessitar da fase adulta, poderia evoluir um novo grupo de animais, móveis, com notocórdio. Este passo parece perfeitamente bem adaptado à existência de animais como os anfioxos – estes parecem pequenos peixes em miniatura, e sem vértebras, e poderiam ser representantes do tipo de animais que teriam sido os antepassados dos vertebrados.

No entanto, evidências recentes sugerem que na realidade os parentes mais próximos dos vertebrados serão os tunicados, o que vira a história um pouco ao contrário! Se os anfioxos são o primeiro grupo a divergir, então as características típicas dos cordados como o notocórdio, características musculares, a presença de cauda ou uma faringe filtradora já estavam presentes no antepassado de todos os cordados, e as características estranhas dos tunicados não são primitivas, mas sim bastante derivadas – para todos os efeitos, os tunicados adquiriram durante a sua evolução uma estranha fase adulta!

 

Uma bonita foto de família dos deuterostómios e da sua diversidade: a) Xenoturbella; b) hemicordado; c) equinoderme; d) vertebrado (ave); e) vertebrado (mamífero); f) tunicado; g) anfioxo

Para concluir, voltando-nos para o passado, vestígios fósseis inequívocos de deuterostómios surgem apenas após o início do Câmbrico (540 Ma), quando já são abundantes: os hemicordados estão muito bem representados pelos graptólitos, animais coloniais  já extintos; os primeiros equinodermes são os carpóides (já extintos) e os crinóides. Embora seja sempre complicado analisar fósseis de corpo mole, há registos convincentes que também no Câmbrico já existiriam tunicados com a sua morfologia actual, e os cefalocordados estão representados pelo muito famoso Pikaia gracilens. Do ramo dos vertebrados, para além dos primeiros peixes couraçados e conodontes, há vestígios câmbricos de animais com morfologia ainda mais primitiva, como Haikouichtys e Myllokunmingia. Os crípticos Xenoturbella, de corpo mole, não deixaram qualquer vestígio fóssil que alguma vez tenhamos encontrado…

 

No próximo post: muitos mais grupos dos que eu tenho tempo para falar!

 

Origem e evolução dos animais – Parte 1

Origem e evolução dos animais – Parte 2

Origem e evolução dos animais – Parte 3

Origem e evolução dos animais – Parte 4

 

Referências

Blair, J. & Blair Hedges, S. (2005). Molecular Phylogeny and Divergence Times of Deuterostome Animals Molecular Biology and Evolution, 22 (11), 2275-2284 DOI: 10.1093/molbev/msi225

– Brusca, R. C., and G. J. Brusca (2003). Invertebrates. Second edition. Sinauer Associates, Inc., Sunderland, MA

Halanych, K. (2004). The new view of animal phylogeny Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics, 35 (1), 229-256 DOI: 10.1146/annurev.ecolsys.35.112202.130124

Swalla, B., & Smith, A. (2008). Deciphering deuterostome phylogeny: molecular, morphological and palaeontological perspectives Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 363 (1496), 1557-1568 DOI: 10.1098/rstb.2007.2246

Origem e evolução dos animais – parte 2

ResearchBlogging.org

No post anterior abordamos a questão da origem dos animais (Metazoa) a partir de antepassados com semelhanças aos actuais coanoflagelados. Estes últimos são protozoários que formam muitas vezes colónias de células; estas células são, por sua vez, bastante semelhantes às células com colar e flagelo das esponjas actuais, os coanócitos, o que sugere uma ligação entre estes dois grupos. Mas como surgiram a partir daí os restantes grupos de animais?

As esponjas, os animais mais simples, são animais essencialmente marinhos tradicionalmente classificadas no grupo Porifera. Embora possuam algumas características partilhadas entre si, como o sistema de condução de água ou a presença de coanócitos, estas são características primitivas a todos os animais, não os colocando de parte na árvore filogenética dos animais – na realidade, os restantes animais descendem das esponjas, e por isso teremos que considerar o grupo Porifera como parafilético (um grupo que não inclui todos os seus descendentes – neste caso, o grupo Porifera inclui as esponjas mas exclui os outros animais todos que descendem de algumas esponjas). Dos três grandes grupos de esponjas, Calcarea, Hexactinellida e Demospongiae, os restantes animais possuem maiores afinidades com estes últimos, nomeadamente com o grupo dos Homoscleromorpha.

Larva da esponja Sycon ciliatum - Fonte: http://www.sars.no/research/ AdamskaGrp.php

 

A evolução de uma esponja séssil para um animal móvel parece ter passado pela larva dessa esponja. As larvas das esponjas, ao contrário dos adultos, são móveis, nadando pelo oceano até encontrarem um local para se instalarem e se transformarem em adultos. Se algumas dessas larvas adquirissem maturidade sexual (dissogonia, algo que acontece nos ctenóforos que falaremos de seguida), teríamos um animal com características adequadas a ser um ancestral dos restantes animais.

 

Ao contrário dos restantes animais, as esponjas não possuem qualquer tipo de simetria corporal, não possuem sistema nervoso e durante o desenvolvimento embrionário não se verifica a formação de camadas embrionárias precursoras dos restantes órgãos. A falta destas características nas esponjas é partilhada por um pequeno animal, Tricoplax adhaerens, uma estranha espécie que muito tem intrigado os biólogos. Descoberto pela primeira vez num aquário de água salgada em 1883, na Áustria, este estranho ser foi já descoberta em ambiente marinho em muitos locais do mundo. O seu corpo pode atingir até 2-3 mm de diâmetro e não possui simetria nem polaridade (não tem uma parte anterior ou posterior). Embora não haja uma orientação anterior-posterior, existe um lado dorsal e outro ventral, definidos por duas camadas de células com morfologia distintas; entre estas duas camadas há ainda uma camada de mesênquima gelatinoso com outros tipos de células.

 

Sim, isto é um animal! - Trichoplax adhaerens - Fonte: Oliver Voigt (http://en.wikipedia.org/wiki/File:Trichoplax_mic.jpg)

Alguns autores defendem que as camadas dorsal e ventral correspondem à ectoderme e endoderme, as camadas celulares embrionárias que se vêm nos restantes animais, mas isto está longe de ser consensual. As evidências moleculares indicam que Trichoplax forma o grupo irmão para os restantes animais (excluindo as esponjas), mas ainda não há estudos morfológicos ou embrionários que possam apoiar isto de forma conclusiva.

Trichoplax é incluído no grupo Placozoa, embora, para dizer a verdade, estes nomes acabem por ter o mesmo significado, dado que Trichoplax é o único placozoário conhecido! Por vezes é incluído num outro grupo maior, os Mesozoa – estes, em contraponto com os Metazoa, mais avançados, incluíriam os “proto-animais” com uma morfologia intermédia na evolução para os animais propriamente ditos, mas na realidade os antigos Mesozoa incluem grupos sem grande parentesco: para além de Trichoplax, que se localiza próximo da base da árvore dos animais, incluíam-se os Dicyemida e os Orthonectida (agora tidos como animais de simetria bilateral com morfologia degenerada como adaptação ao parasitismo), e Salinella salve, um estranho animal avistado unicamente por Johannes Frenzel em regiões salinas da Argentina em 1892. Deixarei a cargo de Richard e Gary Brusca explicarem qual será provavelmente a explicação para tão críptico ser vivo:

 

“Há sérias dúvidas sobre a precisão da descrição original, e Salinella pode ter existido mais na imaginação de Frenzel do que nas salinas da Argentina”

 

A existência de um sistema nervoso é a principal característica que separa animais mais primitivos como as esponjas e Trichoplax dos restantes animais, os Neuralia. Mesmo na sua forma mais simples, sem um sistema central (nos cnidários e ctenóforos), o aparecimento de um sistema nervoso constituído por células especializadas na transmissão de impulsos eléctricos (os neurónios) é já um grande avanço na integração e coordenação da actividade corporal de um organismo. No entanto, apesar de os não-Neuralia não possuírem sistema nervoso, possuem genes equivalentes aos usados pelos Neuralia na formação das sinapses nervosas, mas com outras funções – mais uma evidência de que a evolução aproveita “maquinaria” pré-existente para gerar novas soluções. Outra característica importante que separa os Neuralia dos outros animais é a presença inequívoca de tecidos germinativos embrionários, pelo menos dois, a ectoderme e a endoderme (os cnidários são animais diploblásticos, com duas camadas germinativas).

 

Um cnidário (Physalia physalis, a caravela portuguesa) e um ctenóforo (Mertensia ovum) - Fontes: Casey Dunn e Jonas Thormar (http://www.divephotoguide.com/user/Thormar/)

Os Neuralia são constituídos por 3 grupos principais: Cnidaria, Ctenophora e Bilateria. Os cnidários (hidras, medusas e anémonas) e os ctenóforos (medusas de pente) eram tradicionalmente classificados como parte um grupo monofilético, os celenterados (Coelenterata), mas sabe-se agora que esse agrupamento é parafilético: resta é saber qual dos dois grupos é mais aparentado com os animais de simetria bilateral! A maioria dos estudos apontam para um parentesco mais próximo entre os Ctenophora e os Bilateria, especialmente novos estudos que sugerem que os ctenóforos partilham uma novidade evolutiva importante com os Bilateria: a presença de uma terceira camada germinativa, a mesoderme (estes grupos serão assim triblásticos).

Ao contrário dos cnidários e ctenóforos, que possuem um corpo com simetria radial, os Bilateria evoluíram um corpo com simetria bilateral, ou seja, com o corpo orientado segundo um eixo que atravessa o animal da parte anterior para a posterior, formando um plano de simetria que divide o corpo em metades direita e esquerda – isto permite que o animal possa ter um sentido principal de orientação, e que as estruturas sensoriais se localizem nessa região do corpo, a parte anterior, levando à ocorrência de cefalização. Um animal com simetria radial, ou pelo menos com uma organização radial (como vários Bilateria), será necessariamente mais séssil, não tendo necessidade de se mover numa direcção definida.

 

De novo... sim, isto é um animal! - Sinuolinea sp. (Myxozoa) - Fonte: Ivan Fiala (http://tolweb.org/Myxozoa/2460)

Os Bilateria são constituídos por dois grandes grupos, que incluem quase todos os animais, os Deuterostomia e os Protostomia (falaremos deles nos próximos posts), mas existem pequenos Bilateria que não se enquadram bem nestes grupos, tendo provavelmente divergido antes desta grande dicotomia: eles são os Acoelomorpha e os Myxozoa. Inicialmente considerados como platelmintes (o grupo das planárias e das ténias), os acelomorfos caem fora da dicotomia Deuterostomia-Protostomia devido à ausência de um tubo digestivo. Os Myxozoa são ainda mais estranhos: anteriormente considerados como protozoários parasitas, foram mais recentemente considerados alternativamente como cnidários ou bilatérios com base em dados moleculares contraditórios. Em qualquer caso, são animais com uma aparência muito estranha e simples, altamente especializados para um estilo de vida parasita!

 

Na próxima parte: seremos descendentes de larvas de tunicados?

 

Origem e evolução dos animais – Parte 1

Origem e evolução dos animais – Parte 2

Origem e evolução dos animais – Parte 3

Origem e evolução dos animais – Parte 4

 

Referências

– Brusca, R. C., and G. J. Brusca (2003). Invertebrates. Second edition. Sinauer Associates, Inc., Sunderland, MA

Halanych, K. (2004). The new view of animal phylogeny Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics, 35 (1), 229-256 DOI: 10.1146/annurev.ecolsys.35.112202.130124

Nielsen C (2008). Six major steps in animal evolution: are we derived sponge larvae? Evolution & development, 10 (2), 241-57 PMID: 18315817