Favela, a senzala do século XXI – Helio Luz

12 11 2009

Desde que comecei a estudar Direito, alguns assuntos passaram a despertar mais interesse, naturalmente em ciências sociais, os temas são amplos e muito interessantes. Um deles é Segurança Pública, até para entender o funcioanamento do sistema e aplicação da lei penal.

Há cerca de um ano assisti ao excelente documentário Notícias de uma Guerra Particular – Katia Lund e João Moreira Salles, onde o então Chefe de Polícia Civil, Helio Luz aprensentava de forma clara, direta e nua a verdade que nos negamos a ouvir. Negamos e/ou somos condicionados a isso, como a mídia quer. Até pela minha idade, não conhecia muito bem o trabalho realizado e fama de Helio Luz, mas passei a procurar mais informações sobre suas realizações e acabei topando com esse texto, publicado no antigo site do PT, agora fora do ar. Apesar não ter a menor simpatia pelo tal partido, o bom trabalho há de ser reconhecido, eis o texto que merece ser repassado sempre:

A Senzala do Século XXI

Onde, realmente, está o crime organizado? Como podem os desapropriados, explorados e oprimidos se organizarem numa máfia? A questão do estado paralelo foi colocada em evidência por ocasião da morte de um jornalista, com a notícia de que ele foi sequestrado, julgado, condenado e morto por um bando. Isso, no Tribunal, foi considerado estado paralelo e, em cima, a colocação de crime organizado. Acredito que exista o estado paralelo, mas não é isso. A marginalidade não constitui estado paralelo.

A favela é um gueto que substituiu o local da senzala. É a senzala do século XXI, onde se situa a reserva de mão de obra, os negligenciados pelo Estado – reserva mantida pelo sistema de exploração. É aí que vamos tocar na origem da polícia, criada para fazer o controle dessa população. Em 1808, era o controle social dos escravos, agora é o controle dos favelados – os negligenciados.

Falemos do Rio de Janeiro, porque fica mais específico. A tendência aqui é jogar para as áreas de exclusão a prática do crime organizado e o estado paralelo. Estado paralelo é aquele que dá enfrentamento ao Estado e modifica as suas decisões. Aquele bando que existe lá no Morro do Alemão não tinha condição de fazer isso. Eventualmente, uma quadrilha identificou um repórter que atravessava informações. Ela o considerou inimigo e o executou. Assim, fica mais explícita a tendência de jogar para as áreas de exclusão a prática do crime organizado. Ao se falar em Estado paralelo, aqui no Rio de Janeiro, estamos falando, por exemplo, na Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros). Ela, sim, enfrenta e impõe suas decisões ao governo. Ela coloca oito mil ônibus nesta cidade, que não têm capacidade para isso.Todos os poderes do Estado se submetem à sua vontade. Mantém o controle do Metrô e de todo o transporte urbano no Estado do Rio de Janeiro, para fazer sua frota circular, independente de que isso contribua, ou não, para melhor qualidade de vida do cidadão. No Rio de Janeiro é constante o congestionamento, porque fazemos transporte urbano de massa em ônibus, o que é inadmissível numa metrópole.

A Fetranspor sempre atuou com força decisiva dentro da Assembléia Legislativa e nos demais poderes do Estado, inclusive no Poder Judiciário. Também em Brasília ela mostra suas garras. É a esta capacidade de agir que eu chamo poder paralelo. O criminoso comum não tem esta capacidade financeira e de organização.

“Ah! Ele está no tóxico, no narcotráfico, tem muito dinheiro.”

É outra inverdade. O narcotráfico vem sendo usado como senha para fazer o controle social, em todo o país. É simples. Se o pessoal da favela tivesse mesmo o poder e a quantidade de dinheiro que dizem, faria o controle de fora, mas aquele varejista que controla a droga fica na própria favela. Ele nem sabe para que trabalha.

O jogo do bicho está infiltrado em todos os Poderes constituídos!

Um dos crimes organizados no Brasil, não só no Rio de Janeiro, é o jogo do bicho. A definição que temos de crime organizado é: primeiro, ser cartelizado. No Rio de Janeiro, o controle do jogo do bicho na zona oeste é da família do Castor de Andrade, o da área da Tijuca é do Haroldo da Tijuca, em Nilópolis reina o Anísio Abraão Davi, em Niterói são outros.

Segundo: o jogo do bicho existe em nível nacional. O Estado da Bahia dá descarga para a família do Castor de Andrade, o Acre faz a descarga com o Luizinho da Imperatriz, o de Minas Gerais faz a descarga no Anísio, e por aí vai. O jogo é controlado e organizado em nível nacional.

Terceiro: este crime está infiltrado nos poderes constituídos. Ele elege a representação política dele dentro da Assembléia Legislativa, da Câmara dos Deputados e da Câmara dos Vereadores. Banca campanhas voltadas para o Poder Executivo. No geral, ele tem influência em todos os poderes, inclusive no Judiciário. Porém, nos estados do Norte e do Nordeste a miséria é tanta que ele não consegue nem chegar. É uma situação diferenciada, mas no Sudeste e Leste ele tem peso.

É bem visível no Carnaval, a presença do crime organizado no poder constituído: a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), a liga que eles montaram, é a direção do jogo do bicho, do crime organizado. Ela aluga o espaço público, o Sambódromo – a direção do crime organizado é parceira do Estado. Aí está a característica do crime organizado. Nós vamos ver o prefeito do Rio de Janeiro com colete, em que de um lado está escrito Riotur e do outro Liesa. É o crime organizado bancando e organizando o Carnaval do Rio, o maior evento turístico do país!

O jogo do bicho opera com o homicídio, é mantido pelo sangue!

O jogo do bicho não é um negócio inocente. Todo mundo acha que não tem problema nenhum, até a vovozinha joga. Não é isso, não! O jogo do bicho é mantido pelo sangue. Numa área determinada, ninguém faz concorrência, porque no dia seguinte vai ser morto. O jogo do bicho opera com o homicídio, o mais grave dos crimes que existe para o homem.

A desculpa do administrador público incompetente é que o crime organizado está na favela. Favelado não constitui crime organizado, mas bandos. Lógico, tem bando lá no Alemão, no Jacarezinho, mas esse pessoal não é cartelizado.

“Ah ! Tem Comando Vermelho, tem Terceiro Comando!”

Mas eles se engalfinham. Eles se enfrentam permanentemente – diferente dos banqueiros do bicho que não se enfrentam, nem delatam o outro. O Disque Denúncia vive em função da delação que o Terceiro Comando faz do Comando Vermelho e vice-versa. Para justificar a incompetência, eles dizem que os bandidos do Rio de Janeiro estão vinculados com os bandidos de São Paulo.

Só quem não conhece a polícia acredita nisso. Pode, eventualmente, um marginal do Rio ter relação com outro de São Paulo, mas isso não quer dizer que seja um nível de relação de organizações criminosas. Em São Paulo, eles acabaram com a direção do PCC (Primeiro Comando da Capital). Acabou o PCC. Onde está a direção aqui do Rio?

O que acontece no Rio de Janeiro? O chamado crime organizado é mantido pela organização que existe dentro do próprio Estado. É a própria polícia que mantém isso. Uma boa parte da polícia do Rio de Janeiro é corrupta! Essa afirmação não constitui novidade. Basta procurar nos jornais nos últimos três meses. É essa polícia corrupta que mantêm o narcotráfico no Rio de Janeiro. Não só as polícias civil e militar do Rio de Janeiro mantêm os pontos do narcotráfico do Estado, mas também a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. O aparelho de repressão do Estado do Rio de Janeiro é corrupto de tal forma, que concorre com ele mesmo.

Este é o problema que ninguém quer tocar: o Estado brasileiro é um Estado altamente corrupto! Só este Estado corrupto pode manter o sistema capitalista, porque a corrupção é inerente ao sistema capitalista. Então fica tudo em casa. Essa polícia corrupta não vai tocar no rico, pôr o burguês na cadeia; não vai investigar o dinheiro desviado do Fisco e do Tesouro; tampouco vai investigar o Estado por dentro. É o grande acerto de contas que existe. Quando falo Estado Brasileiro, estou falando de Poder Executivo, governador, prefeito, presidente da República, seus secretários e ministros; do Poder Legislativo, Câmara Federal, Senado, Assembléia Legislativa e Câmaras de Vereadores, Poder judiciário e todos os tribunais.

A função desse Estado é arrecadar dinheiro: uma parte vai para a classe dominante fazer a sua manutenção e o restante é gasto no controle dos negligenciados. Não vê isso quem não quer! Quando a “mídia” fala em crime organizado e estado paralelo nas áreas de exclusão ela está desinformando o
povo. Não é lá que eles estão!

Hélio Luz foi deputado estadual pelo PT na última legislatura, não aceitando renovar sua candidatura. Foi Secretário de segurança do Governo do Estado, prestando inúmeros e corajosos depoimentos sobre a truculência e corrupção no aparato policial.

O artigo é ótimo, porém apenas discordo do ponto em que ele diz “… porque a corrupção é inerente ao sistema capitalista.” Penso que seria mais apropriado dizer que  corrupção é inerente ao PODER. Ser um país socialista não evitaria a disputa de PODER, poderia até nem ser disputa pelo poder econômico, mas ainda existiria disputa em outros poderes. Acredito em neoliberalismo com Estado mínimo, capitalismo sim porque a meritocracia é necessária.


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3 responses

18 11 2010
Marcelo Machado

Realmente, a corrupção é inerente ao poder. Mas o capitalismo a intensifica. Vide o fato do transporte de massa a que Hélio Luz faz referência. Moro na Grande Goiânia, uma grande metrópole. Aqui também ocorre isso: há décadas, todo candidato ao governo promete implantar o metrô, mas a grande concessionária do transporte urbano não deixa. Isso é corrupção (seja convencional ou não), e sem relação com disputa por poder político, mas exclusivamente por monopólio econômico. Mais um exemplo, pra resumir tudo: lembra quando o capitalismo era caracterizado por explorar a mão-de-obra? Bem-vindo ao capitalismo 21 (bom nome para o sistema do nosso século), continua explorando a mão-de-obra, explora também o consumidor. Você nunca foi obrigado a pagar à empresa telefônica além da conta? Já andou de ônibus? Aqui em Goiânia, a empresa transfere todos os seus problemas ao passageiro. Aí, não? Olhe plano de saúde, banco, hipermercado, pegue todo o quadro de empresas. Rouba-se o consumidor. Isso é corrupção ao extremo, diretíssima no seu bolso. Arremate com os 99,9% de políticos com rabo preso aos grandes capitalistas. Depois, não pare, siga em frente, pesquise sobre o que acontece no paraíso, lá no hemisfério norte.

Por favor, não me considere antipático ou maniqueísta. Entro na discussão pelo seguinte: Hélio Luz diz: “Não vê isso quem não quer!”. Ele se refere às pessoas ligadas a essa corrupção fingindo não ver porque se privilegiam dela.
Por isso entro na discussão, se não é privilegiado, não é que não queira ver, mas está cego pela ilusão da oportunidade e mérito. A cada dia passo a enxergar um pouco melhor, e é bom me abrir sobre isso.

18 11 2010
Daniel Neto

Olá Marcelo,

Seja bem vindo ao meu blog. De forma alguma considero antipático quem apresenta argumentos com base em ética e moral pertinentes a um bom cidadão.

Discordo de você que a corrupção seja mais avançada no Capitalismo que no Socialismo. O poder totalitário e absolutista inevitável dos países socialistas nos mostra o como se torna necessário corromper para obter vantagens. Isso é inerente ao ser humano, obter maiores vantagens sobre outrem. Não somos iguais, nosso instinto é de ganancia, procuramos sempre obter crescimento. O que pode vir por meio lícito ou ilícito é apenas a quantidade de valores éticos e morais que temos por educação, formação ou religião.

O que favorece indubitavelmente a corrupção é a burocracia, as dificuldades criadas pelo Estado de forma a vender facilidades.

As camadas sociais (economicas, culturais, etc) existem em todas as sociedades, e sempre haverá, não somos iguais, somos sempre diferentes e buscamos alcançar o que desejamos, sejam bens materiais, valores emocionais, sentimentos propiciados por alcances nessa mesma sociedade.

A questão de corrupção dentro do Estado também sempre existirá, pois como penso, é inerente ao ser humano. O que provoca maior ou menor intensidade é a ausência de controles adequados, ou competitividade que promova tal exposição da corrupção.

O discurso político sempre estará destoante da prática política quando eleito. Por que? Porque a população em geral não consegue ver os mesmos valores que a minoria pensante, como eu e você. Ou seja, a população só consegue observar Segurança, Saúde e Educação. Porém não tem a menor ideia de como se alcança isso. O candidato aproveita para prometer o que aquele grupo social de eleitores deseja, ainda que ele saiba que não cumprirá.

A solução para um Estado eficiente? Tenho as minhas convicções liberais sobre o tema, provavelmente você discordará, pois não crê que o capitalismo possa promover. A solução eu sei que não é o socialismo, pois este não obteve êxito em nenhuma das empreitadas das décadas passadas, nem atuais. Na verdade, arrisco dizer que o socialismo venceu e foi necessário sim, a luta de classes do século passado já não é tão injusta quanto antes, por iniciativas do proletariado em busca do pleito de Direitos trabalhistas. por classes lutando por Direitos Fundamentais.

Só não consigo visualizar a ideia de que todos iguais do socialismo possa acoplar bem nos instintos humanos de superioridade, arrogância, autoridade, entre outros. Sempre haverá o mais comuna que o outro.

Animal Farm ilustra muito bem esse mito, esse ideal socialista que jamais logrou exito.

23 01 2013
Thiago Brito Pereira

olá meu caro. concordo com o artigo e os comentários. Porém, quando dito sobre o estado mínimo e meritocracia, é preciso primeiro em tornar acessível a todos a educação e qualificação de qualidade. Ai sim, pode- se pensar em estado mínimo. e falo isso como educador que percebe a lástima da educação no país

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