Entrevista com Conrado Falbo
Por Cristhiano Aguiar
Cristhiano Aguiar – Volta e meia vemos pessoas reclamando da qualidade musical que as rádios e a TV veiculam. Gêneros muito populares, como axé, sertanejo ou pagode são muitas vezes classificados de forma pejorativa. No entanto, já foi assim com o samba, o rock and roll e atualmente o funk parece ser um gênero completamente cult. O que é música “ruim”?
Conrado Falbo – Não é apenas adjetivando que se atribui valor (ou desvalor) a alguma coisa – Roland Barthes já escreveu que o adjetivo é a categoria gramatical mais pobre que podemos utilizar para falar sobre música. A própria atividade de definir música já nos coloca diante de uma valoração radical: o que merece ser chamado de música? A categoria “música ruim” seria um subproduto das respostas possíveis a esta pergunta, já que algumas expressões são consideradas “menores” ou “ruins” apesar de serem reconhecidas como música. É óbvio dizer que as visões possíveis sobre estas questões variam de acordo com um conjunto complexo e mutante de fatores, mas acho importante frisar que, mesmo no interior de grupos supostamente homogêneos coexistem atitudes variadas e até opostas sobre o que seja “música ruim” ou sobre a própria pertinência desta categoria. A música costuma ser um terreno polêmico porque permeia diversos aspectos da vida cotidiana: há quem escute música para dançar, há quem escute música para relaxar, há quem escute música com atenção, há quem escute música para se distrair. Se eu digo que o brasileiro valoriza mais a ginga (ou “dançabilidade”) que qualquer outro aspecto da música, além de estar sendo incrivelmente pretensioso, estarei ignorando o grande sucesso de artistas como Adriana Calcanhotto, para citar um exemplo entre inúmeros que podemos ouvir nas rádios hoje. E se a questão é sucesso de público, acho pretensiosa e despeitada a atitude de desmerecer o gosto popular e ignorar os fatores que levam certos gêneros musicais a alcançar um sucesso que muitas expressões da dita “música séria” nunca conheceram. Aliás, a questão do “popular” é complexa no Brasil: ainda utilizamos a expressão música popular para fazer referência a fenômenos culturais totalmente distintos, sem falar em todas as tensões sociais implícitas neste tipo de adjetivação/valoração.
CA – Qual a importância da canção popular para a poesia brasileira? Nossos músicos da MPB seriam nossos poetas mais importantes?
CF – Não sei se os compositores da MPB são nossos poetas mais importantes, mas eles certamente têm uma inserção social que costuma ultrapassar em muito o alcance da poesia que se encontra nos livros. A relação entre canção e poesia remonta à natureza sonora da própria linguagem: em muitos momentos a aproximação foi tanta que as palavras canção e poema foram utilizadas como sinônimos (ainda são em algumas ocasiões). Além das questões conceituais, também é fácil perceber as tensões valorativas que permeiam a relação entre poesia e música. Muitas vezes se faz referência a certos compositores de canções como poetas de modo a valorizar seu trabalho. Nesta atitude está embutido o preconceito de que o ofício do poeta é de alguma forma mais nobre que o do compositor. Esta relação de valor é possível porque contemporaneamente tendemos a pensar na canção como pertencendo ao domínio da música, e no poema como pertencendo ao domínio da literatura: a separação é conceitualmente problemática, entre outros aspectos, porque tende a esconder os inúmeros pontos de contato que existem entre as noções contemporâneas de canção e poema. Aliás, muitos poetas negam que a poesia realmente pertença ao campo da literatura, refutação que parece estar ligada à crítica de um conceito de literatura mais restrito e distante das raízes sonoras da linguagem por estar baseado na atividade de leitura (silenciosa e solitária) de livros – atividade historicamente recente e que exclui uma parcela significativa da arte verbal já produzida pela humanidade. No caso do Brasil, a força da cultura oral tende a influenciar todas as outras manifestações da palavra, inclusive a escrita. Isso faz com que as relações entre poetas e compositores de canções sejam fluidas a ponto de ser possível questionar a pertinência da divisão canção x poema e as valorações dela decorrentes.
CA – Gostaria que você falasse um pouco da pesquisa que desenvolveu no âmbito do seu mestrado.
Estudei a obra de Itamar Assumpção, compositor e músico paulista falecido em 2003 e geralmente associado ao grupo de artistas que nos anos 1980 ficou conhecido como Vanguarda Paulista ou Lira Paulistana. A obra de Itamar é extremamente complexa e ainda pouco estudada do ponto de vista formal. Nos primeiros discos (altamente inovadores até para os padrões atuais) Itamar costumava compor sobrepondo vários ritmos e pensando a canção de uma forma”cênica”, com diferentes discursos, personagens e narrativas combinadas. Isso se refletia nos shows, verdadeiras performances que tornaram célebre seu estilo sofisticado de trabalhar no palco com os músicos e vocalistas. No primeiro disco, o público foi apresentado ao personagem Beleléu, criminoso que vivia acompanhado de seu “perigosíssimo bando”, que também era uma banda chamada Isca de Polícia. A questão da marginalidade social era utilizada por Itamar também como metáfora para sua marginalidade no meio da música popular brasileira. Ele sempre foi um artista intransigente, que durante toda a vida se recusou a comprometer sua visão em nome do mercado ou da aceitação do público. Ao longo da carreira, o estilo performático de Itamar foi se condensando em uma maneira de compor formalmente mais singela, mas não menos crítica. Para dar conta desta obra tão complexa, tive que articular várias disciplinas acadêmicas (teatro, performance, música etc.) e, obviamente, nem cheguei perto de esgotar as possibilidades de interpretação que a obra de Itamar oferece. No caminho da pesquisa, descobri que esta obra vem sendo cada vez mais estudada no âmbito acadêmico e que o lastro teórico para este tipo de estudo vem se tornando cada vez mais consistente. O trabalho de Itamar também me fez começar a questionar as divisões disciplinares que pautam a pesquisa acadêmica e me apontou rumos interessantes nesta seara.
CA – Como você percebe a crítica de música, tanto no jornalismo cultural, quanto nas universidades?
CF – Confesso que não tenho o hábito de ler crítica regularmente. Acredito que faz tempo que a crítica já não tem mais o papel de chancelar o gosto de quem quer que seja. A crítica também já não é tão eficiente na tarefa de identificar e divulgar novos talentos em tempos de contato direto entre artistas e público. A internet fez com que os artistas pudessem disponibilizar suas obras ao público antes mesmo de contarem com um esquema tradicional de produção de discos. Aliás, já está claro que esse sistema tradicional de produção-gravação-distribuição de músicas não existe mais. Acho grave que os críticos nem sempre procurem se adaptar a esta (nem tão) nova realidade. Percebo em vez disso a repetição de velhos chavões, e, citando Itamar Assumpção, “chavão abre porta grande”. A universidade tem cumprido um papel importante ao investigar as novas maneiras de produzir, ouvir e fazer circular a música, mas este conhecimento continua restrito a um número relativamente pequeno de pessoas. A pesquisa acadêmica no Brasil e no mundo está organizada de maneira a privilegiar a quantidade de conhecimento produzido (medida pela quantidade de publicações), muitas vezes esquecendo de promover a circulação deste conhecimento na sociedade. O descompasso entre o que se pesquisa sobre música na universidade e o que se escreve nos jornais, revistas e sites especializados é gritante.
Conrado Falbo é músico, professor e pesquisador. Integra o Coletivo Lugar Comum de criação artística e realiza pesquisa de doutorado sobre voz e performance na literatura.
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