Álbum Duplo - capitulo 1

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ALBUM DUPLO



ALBUM DUPL O UM ROCEK C ROMAiqN ue Ferreira

Paulo Henr

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DE

JANEIRO 2013

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F442a Ferreira, Paulo Henrique de Oliveira Álbum duplo / Paulo Henrique de Oliveira Ferreira. - 1. ed. Rio de Janeiro : Record, 2013. ISBN 978-85-01-40515-9 1. Rock - Ficção. 2. Romance brasileiro. I. Título. 13-05204 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

Copyright © by Paulo Henrique de Oliveira Ferreira, 2013 Capa: Retina 78 Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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ISBN 978-85-01-40515-9

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Direitos exclusivos desta edição reservados pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina, 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000 ___________________________________________________________ Impresso no Brasil

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EDITORA AFILIADA


Advertência Esta é a história de um relacionamento entre jovens adultos, que certamente será mais bem compreendida por pessoas maiores de 21 anos. Caso os leitores não gostem da história, que pelo menos ouçam a trilha sonora sugerida. Para finalizar, vale ressaltar o óbvio: esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. – P.H.O.F, Rio de Janeiro, 2013


ALBUM


M DUPLO



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Trilha sonora sugerida 01. “Under Pressure”, Queen & David Bowie 02. “Mississippi”, Bob Dylan 03. “A Day in Life”, Beatles 04. “Don’t Stop Me Now”, Queen 05. “Changes”, David Bowie 06. “Dead Flowers”, Rolling Stones 07. “Rebel in Me”, Jimmy Cliff 08. “Rocks Off”, Rolling Stones 09. “Like a Rolling Stone”, Bob Dylan 10. “Like a Possum”, Lou Reed 11. “Helter Skelter”, Beatles 12. “Bullet with Butterfly Wings”, Smashing Pumpkins 13. “Roadhouse Blues”, Doors 14. “Little Green Bag”, George Baker Selection 15. “No No Song”, Ringo Starr 16. “Visions of Johanna”, Bob Dylan 17. “Walk on the Wild Side”, Lou Reed 18. “Star”, Erasure 19. “Satellite of Love”, Lou Reed 20. “Mama Told Me (Not to Come)”, Three Dog Night 21. “Dirty Boulevard”, Lou Reed 22. “L.A. Woman”, Doors 23. “D’yer Mak’er”, Led Zeppelin 24. “Susie Q”, Dale Hawkins por Creedence Clearwater Revival 25. “Oh! Darling”, Beatles 26. “Riders on the Storm”, Doors


_ _ “Insanity laughs Under pressure we’re cra Can’t we give ourselves Sob pressão

“Under Pressure” | Queen | Hot Space (19 Compositor: Queen / David Bowie

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e cracking ves one more chance?�

ce (1982)

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Músicas para o capítulo 01. “Under Pressure”, Queen & David Bowie 02. “Mississippi”, Bob Dylan 03. “A Day in Life”, Beatles 04. “Don’t Stop Me Now”, Queen 05. “Changes”, David Bowie


Eu sei que neste romance o onipresente é você, leitor. Quanto a mim, sei que meu nome é Marlo Riogrande e estou completamente perdido, em um beco sem saída. Não quero entrar em mais detalhes da minha vida agora, pois este livro não é uma porcaria de autobiografia. Não mesmo. É mais um desabafo de quem está sob uma pressão desconcertante e não suporta mais a sensação de não ter para onde ir. Não é aquela sensação de estar no seu apartamento abafado num domingo à tarde, com calor, sem ter o que fazer, lamentando o tédio. Não mesmo. Por isso peço a você paciência. Sei que em alguns momentos você vai se identificar comigo, em outros corro o risco de você me abandonar e sair correndo, mas mesmo assim vou ser franco. Você está lidando com alguém que tem uma única certeza: a de não ter escapatória. Não ter escapatória da própria vida, da cidade grande ou do interior, da necessidade de ganhar e guardar dinheiro, de ter que acordar e dormir, se alimentar ou ir ao banheiro, de envelhecer e, com um pouco de sorte, morrer triste, sem muita dor. Enfim, a certeza de que há como escapar de nós mesmos, dos limites da espécie humana, do tempo presente ou da eternidade. Concordo com Bob Dylan quando canta “nós estamos encaixotados, não há por onde escapar”. Essa certeza é ainda maior porque nunca fui um suicida, já vamos tirar essa possibilidade da frente antes de continuarmos, ok? Não estamos tratando aqui do relato de um 13


adolescente gótico de dezesseis anos, pseudodepressivo, que gostaria de colocar um fim em tudo, de uma vez por todas. Não adianta sugerir que eu me mate, pois esta não é a minha linha, nunca foi. Estamos tratando de alguém que está sob pressão, que, na verdade, nunca teve muitas escolhas na vida e, quando teve, botou tudo a perder. Estou muito mais para o estilo medíocre-perdedor do que para o tipo suicida-sem-futuro. Sem querer entrar num esquema autobiográfico meloso, vou começar com alguns dados para você entender meu perfil: sou de família operária, trabalhadora. Cresci no interior do país, em uma cidade pequena, onde as pessoas se tornam mais feias e cruéis, justamente por ser impossível se manter anônimo. Minha mãe morreu tragicamente na época em que eu tinha todos os elementos necessários para me tornar aquele adolescente gótico mencionado. Ali entendi, de verdade, o que significa “A Day in Life”, dos Beatles, mesmo antes de me apaixonar pelo Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Sei muito bem o que é acordar, na correria comum, comer um sonolento misto-quente com leite e Toddy, ter uma manhã tediosa com os amigos da escola, fingir prestar atenção na aula de química até o momento que a diretora da escola chega à sua sala — com cara de choro — para avisar que sua mãe está morta. Mal súbito, morte fulminante, derrame, AVC, algo por aí. Coisas sobre as 14


quais faço questão de não entrar em detalhes, mesmo porque não faz mais sentido. Basta lembrar da orquestra de músicos desafinados ao final de “A Day in Life”. Assim, de repente, do nada, “nonada”. Veja bem, diante de um imponderável pouco sutil como este, tive que cair fora logo. Saí para fazer uma faculdade vagabunda, a primeira que me aceitou, para afastar o risco de ficar enfurnado na minha cidadezinha de menos de 20 mil habitantes — e provavelmente virar um operário na única fábrica local, com forte propensão ao alcoolismo, como alguns conhecidos que ficaram por lá. Falando assim, até parece que eu sou um completo derrotado. Mas não sou tão derrotado assim. Apesar da ordinária graduação em história que escolhi, até que tive bons momentos. Na faculdade, consegui sobreviver com relativo êxito numa cidade maior, com ajuda suada do meu pai, alguns bicos e uma bolsa de estudo a partir do segundo ano — quando consegui uma vaga de monitor do professor de história antiga, um cara totalmente efeminado, que (juro) nunca tentou nada comigo. Também comecei a dar aula particular cedo, para uns filhinhos de papai que tinham tudo na mão, mas não conseguiam deixar de ser ignorantes. Dava dó (e raiva) ver aqueles moleques do quinto ano, nas suas casas com piscinas e governantas, que não tinham um pingo de educação e eram burros como uma porta. 15


Esses inúteis poderiam ser o que quisessem: escritores, músicos, advogados, diplomatas, artistas, arquitetos, médicos... Mas não. Optavam por ser vermes incapazes de interpretar um simples texto escolar ou se interessar por qualquer coisa além de encher sistematicamente o saco dos colegas, pais, professores e empregados. Paciência. Apesar de tudo, eu conseguia esconder a minha verdadeira opinião e até que conduzia bem a relação com os alunos e seus progenitores (muitas vezes versões expandidas da mesma imbecilidade). E a grana, afinal de contas, compensava muito. Valia a pena mesmo, principalmente porque em uma dessas casas eu conheci um promotor de justiça cujo filho era um coitado de quinze anos, ainda no sétimo ano e que não sabia diferenciar um Napoleão de um Kennedy. Mas o pai tinha muitos contatos e, como gostou do progresso que proporcionei ao moleque (dentro do possível, é claro), me indicou como professor de história para um cursinho preparatório para concursos públicos. Para mim, foi um grande salto. Além de deixar para trás as maçantes aulas particulares para alunos problemáticos, consegui um salário fixo decente — que na época, para mim, era uma fortuna — trabalhando apenas à noite. Aí a coisa começou a melhorar e virei uma espécie de minicelebridade em minha turma. De um estudante que veio da roça para tentar a sorte na metrópole, numa 16


carreira incerta, virei o cara que tinha emprego fixo, dando aula para advogados (a maioria), economistas, técnicos e outras pessoas formadas em diferentes carreiras. Gente que acalentava o sonho de conseguir um cargo de analista ou técnico no governo — onde se trabalha pouco e se ganha muito. Os professores na faculdade me apontavam como um futuro bacharel em história bem-sucedido, que já traçava um caminho próspero, longe das salas de aula das escolas estaduais e dos deprimentes estágios em organismos públicos, que ninguém merece. Meu destino parecia bem encaminhado até a formatura, que correu sem maiores sustos. Com o diploma em mãos, pude então assumir no cursinho as turmas matutinas e as de sábado, já que minha colação de grau calhou com a saída de outro professor da mesma disciplina. Ou seja, estava tudo, tudo dando muito certo mesmo. Eu até já estava ensaiando um projeto de mestrado. Começava a me ver como um catedrático, um scholar sofisticado, figura fácil de simpósios internacionais, indo bem mais longe do que eu planejei originalmente, quando prestei vestibular no desespero, sem saber o que eu realmente queria da vida. Mas aí eu conheci a Marcela e agora estamos juntos aqui, emperrados neste livro. A Marcela era uma moça muito bonita por quem eu me apaixonei um tempo depois 17


da minha formatura. Ela virou minha cabeça, que até então era ajuizada e só se permitia desaventuras obscuras na cidade grande, onde é impossível ser um santo. Afora estas desaventuras, sobre as quais vou contar no tempo certo, na faculdade não havia experimentado nada de amor, paixões e estas coisas sensíveis. Passei anos livres, sem gostar de ninguém. Até conhecer Marcela nessa festa na república de um amigo em comum. O que mais me atraía nela — além de rosto, lábios, olhos, cabelos, seios, braços, pernas, corpo, beleza e porte — era o fato de ela não ser nem professora nem aspirante a cargos públicos nem historiadora. Convenhamos, em meu universo, era um baita diferencial. Ela trabalhava como administradora numa empresa de aviação, e, apesar de não parecer à primeira vista, o trabalho dela era muito estimulante! Passávamos a noite toda discutindo sobre o permanente caos aéreo em nossos aero­ portos, sobre a qualidade dos amendoins servidos e outras turbulências envolventes. Eu estava totalmente entregue­ àquela mulher magnífica, maravilhado por ela ter escolhido passar a noite comigo. Estava vivo, realmente­vivo, um homem supersônico, um foguete em direção a Marte (ainda sem saber que estava em rota de colisão­), igualzinho­ àquela música “Don’t Stop Me Now”, do Queen, que tocava exatamente naquele momento. Imagina como curti aquela noite. 18


Foi nesse embalo que começou uma nova fase da minha vida. Naqueles tempos, se eu pudesse, colocaria minhas responsabilidades à parte, mandaria tudo às favas, só para ficar ao lado dela. Cada vez mais apaixonados, vivíamos uma fase deliciosa, de jovens adultos, na grande cidade, sem ninguém para torrar a paciência. Donos de nossos próprios narizes, o que era maravilhoso. Eu finalmente podia passar mais tempo fora do apartamento e longe daquele porco chamado Frederico, com quem eu ainda dividia o teto, as contas, toda a comida, bebida e, clichê dos clichês, as cervejas que eu comprava. Não, agora eu estava em outra: passava dias sem pisar no meu chiqueiro, inebriado pelos perfumes, pela organização e pelas delícias do apartamento de Marcela. Era, ao mesmo tempo, namorado, amigo e, finalmente, adulto. Estava pronto para o que desse e viesse. Ou melhor, achava que estava pronto. E é aí que eu estava enganado e onde a coisa começa a ficar dolorosa. Mas tenho que ser homem o suficiente para confessar aqui estas coisas, diante de você. O fato é que, sim, eu sou um grandessíssimo filho da puta. Eu sou um daqueles retardados que tinham aulas particulares comigo: tinha tudo na mão, mas joguei no lixo. Um bom emprego, uma perspectiva de vida até então inédita e, acima de tudo, uma mulher linda, segura e inteligente. Muito melhor do que eu em todos os aspectos. Mas, é claro, eu tinha que botar 19


tudo a perder. Eu, na condição de um completo imbecil, fiz aquilo que previsivelmente os idiotas fazem. Acreditei na minha condição ilusória de übermensch, na leitura mais pueril de Nietzsche e seus discípulos acéfalos de diretório acadêmico. Me perdi na minha própria superficialidade de merda. Comecei me distanciando de Marcela, apesar de tudo que eu sentia por ela, apenas pelo temor besta de ser abandonado. Não sei se você já sentiu isso, mas para mim estava claro que a qualquer momento ela iria acordar e se perguntar onde estava com a cabeça, perdendo tempo com um professorzinho de história, longe de ser um Alain Delon, com um salário miserável. Para mim, era óbvio que ela estava mais à altura, sei lá, de um médico da alta sociedade ou um investidor da Bolsa de Valores, com ambições, conta bancária e beleza física que, a meu ver, ela merecia. O problema é que eu comecei a acreditar nisso. Mas em vez de tentar entender o que se passava, tomei, naturalmente, as atitudes que me levaram para o lado errado do problema. Como consequência desse distanciamento inicial, procurei justificativas para “administrar” a minha situação emocional. Ora, se conseguisse achar “meu espaço”, não ficaria à mercê da Marcela e meus sentimentos por ela. Mas em vez de me dedicar a algum serviço voluntário, uma terapia profunda ou mesmo um futebol com amigos, comecei, 20


gradativamente, a investir fundo em consumo de pornografia e maliciosas conversas com mulheres na internet. De certa forma, achava que tinha encontrado um espaço asséptico e cibernético para “administrar” minha autoestima. Pois é, veja que ridículo. Em vez de ser homem de verdade e cuidar da minha namorada, me vi envolvido na mais rasteira tendência de nossa geração digital, a baixa fidelidade. Explico: existe hoje, entre essa geração acostumada com redes sociais, pornografia web e comunicadores instantâneos, uma tendência de mudar ligeiramente de personalidade quando se está conectado. Ligeiramente é eufemismo. Cá entre nós, a web é um puteiro onde as pessoas mudam radicalmente. De tímidos e quietos na vida real, se tornam corajosos e ousados no mundo virtual. Pessoas que você conhece de outros tempos e ambientes, bem­ comportadas e acima de qualquer suspeita, quando estão do outro lado da tela, sem face a face, topam conversar sobre todos os tipos de desejos e perversões sexuais, sem nenhuma ressalva. O problema é que você se vicia nesse tipo de prática. Como se fossem uma extensão das porcariadas a que você tem acesso em sites e blogs especializados em sexo, essas conversas se tornam atividades igualmente pornográficas e virtuais. Isso faz com que você se acostume com esse grau de “baixa fidelidade”. Ou seja, já que 21


você não está fazendo nada de errado no mundo real, apenas tendo uma conversinha virtual, você não está cometendo nenhum tipo de infidelidade concreta. Mas, por outro lado, você sabe muito bem que não é totalmente fiel. Afinal, você não é inocente e sabe que tudo isso é errado. Daí esse conceito de baixa fidelidade, que tanta gente costuma praticar agora que este mundo ainda é baseado na vida real, mas com grande imersão no virtual. Obviamente, leitor, isso de baixa fidelidade é conversa para boi dormir. Balela. Não existe zona cinza entre o preto e o branco da lealdade. Você é leal ou não é. Pior ainda quando você já está envenenado com as possibilidades quase ilimitadas de trocar mensagens instantâneas tórridas com aquela safadinha que você conheceu numa biblioteca ou num happy hour — de outra forma você nunca teria como descobrir que ela gosta de ser amarrada na cama. Com o exercício mais constante desse tipo de prática, você começa a testar suas chances com sua lista de contatos, com insinuações e sugestões engraçadinhas, vai descobrindo parcerias para esse tipo de prática virtual e isso tudo fica realmente arriscado. Você coloca em risco sua vida pessoal, seu relacionamento amoroso e, principalmente, seu espírito, cada vez mais degradado e tacanho, a cada mensagem picante trocada. E como uma coisa leva a outra, banquei este risco ao máximo. Certa tarde vagabunda, entre as aulas matutinas 22


e noturnas, levei meu carro 1.0 para a revisão. Na sala de espera de uma daquelas oficinas autorizadas, me deparei com uma conhecida, a Celina, mãe de um dos meus ex­ alunos de aula particular. Havia frequentado sua casa durante dois meses, num período em que seu filho precisava de reforço para se safar dos exames finais. Esta tal de Celina era uma mulher de seus quarenta anos, bem interessante, esposa de um clínico geral, o Dr. Luciano. Quando ela me viu, sorriu, acenou para que eu sentasse ao seu lado e foi realmente simpática comigo, ao contrário da distância que mantinha na época das aulas particulares. Conversamos rapidamente sobre o filho dela e a possibilidade de uma nova rodada de aulas de reforço — o que eu gentilmente declinei. Também falamos sobre o competente serviço e a limpeza daquela oficina, além de outras amenidades. Foi papo rápido, menos de quinze minutos, pois a SUV dela já estava pronta. Mas foi o suficiente para me passar, não sei se com segundas intenções, os seus contatos. Pronto. Dois dias depois já estava completamente entretido em conversas picantes com ela, onde falávamos sobre as possibilidades de nos tornarmos amantes durante as tardes quentes em que ela ficava sozinha em casa. Não deu outra. Depois de algumas semanas de conversa, eu estava cada vez mais distante de Marcela e cada vez mais atraído pela possibilidade de ter um caso real, com 23


uma coroa enxuta, experiente, safada, em busca de um jovem para diverti-la. “Eis a chance que sempre sonhei”, foi minha patética justificativa mental. No começo, vá lá, essa relação até foi positiva. Fez bem para minha autoestima, historicamente combalida, ter uma coroa inteiraça totalmente na minha. Sério, até rolou uma paixonite, pois ela também se sentiu mais jovem, mais viva, por ter um namoradinho. Nesse começo, ela até fazia o tipo cocotinha, meiga e inocente, com trocas de mensagens dengosas por celular e doces telefonemas no horário do expediente. Do meu lado, nas duas primeiras semanas, eu até melhorei com a Marcela, me sentindo mais atraente e — uma lástima, eu sei — poderoso. Quando dei por mim, já tinha um caso real com aquela mulher, realmente ousada e experiente, que curtia ficar de quatro para mim, numa frequência de uma a duas tardes por semana — seja na casa dela, seja em algum hotel barato, sempre gerenciando riscos de sermos flagrados pelo marido, filhos ou empregados. Mas enquanto o risco dos flagras podia ser gerenciado, outros perigos, não. Primeiro, o perigo da minha culpa. Cada vez mais, procurava me distanciar de Marcela. Passados os primeiros instantes de novidade, o caso com a Celina começou a me corroer por dentro e logo eu já não era o mesmo namorado dedicado de antes. Tinha voltado 24


a ficar mais em meu apartamento com o Frederico e, sem dúvida, ela já tinha percebido isso. Estava cada vez mais desconfiada e com ciúmes, o que nos levava a frequentes brigas e, invariavelmente, a reconciliações superficiais e sofridas, sem resolver nada de verdade. Estávamos nos tornando um casal falido, como nunca imagináramos que nos tornaríamos. O segundo perigo, eu confesso que nunca poderia imaginar que se concretizasse. Daquela situação aparentemente controlada começou a surgir um sentimento confuso entre mim e a coroa. Aquela paixonite engraçadinha se deteriorou em uma velocidade impressionante. Dos charmosos cafés de algumas tardes, seguidos pelas excitantes escapadas, a relação descambou para algo estritamente sexual e, na verdade, muito repugnante. Eu não enxergava mais a ex-cocotinha meiga, e sim uma mulher desmotivada, com uma postura retardada, falsa nos gestos, nas ideias e na maquiagem. Acho que ela também deixou de enxergar o namoradinho e passou a ver um moleque maldoso e desequilibrado, e começou a me envolver em suas neuroses e teorias amalucadas — o que, na minha constante busca por ser bom moço, era um soco no estômago. No fim, nutríamos um crescente e mútuo sentimento de desprezo pelo caso que estávamos tendo e, ao mesmo tempo, um perverso hábito de encontros cada vez mais 25


intensos e, diria, até violentos. Havia ali uma má vontade excitante em cada gesto dela, a cada pedido meu para as coisas que antes fazia com gosto. Ao mesmo tempo, ela tinha uma demanda permanente por uma eficiência mecânica em cada gozo, mesmo sem clima de respeito nem de diversão. Tudo muito, muito estranho. Estava patente a aura de maldade, demoníaca, em cada trepada. Ela me desprezava e vice-versa, mas dizia que queria cada vez mais, que aquela era a única atividade que valia a pena em suas semanas, uma lenga-lenga totalmente destrutiva, surtada mesmo. Quando confessou que ela e o marido se traíam abertamente, que seu relacionamento já tinha ido para o saco mesmo, gelei. Não sabia o que fazer. De repente, já me antevi como protagonista do filme Crimes e pecados, do Woody Allen, sendo perseguido por uma Angelica Houston muito mais atraente, mas tão perigosa quanto. Queria era me ver livre o quanto antes daquela situação, pois estava claro que não tinha futuro algum, e, ao mesmo tempo, suas consequências eram imprevisíveis. No limite, a doida seria capaz até de abandonar marido e filhos para destruir a própria vida e a vida de alguém que nem mesmo tinha onde cair morto. Pois é, eu também comecei a surtar. Então, antes que o pior acontecesse, fui radical. Entendi onde tinha me metido, como minha vida tinha saído totalmente do controle por minha causa. Sabia que estava 26


fazendo tudo errado, que era um adúltero e que teria, mais cedo ou mais tarde, uma conta pesada para acertar. Antes que esta conta ficasse mais cara, terminei tudo com a Celina. Apesar de protestos, calculei que ela não teria coragem, na prática, de jogar para o alto sua própria vida, estabelecida e aparentemente estruturada. Coloquei um ponto final naquele caso. Considerando esta parte resolvida, agora restava me acertar com Marcela. Eu tinha duas opções: fingir que nada aconteceu, ignorar a culpa que não me deixava respirar e encontrar forças para voltar a ser um bom namorado, ou colocar tudo em pratos limpos e confessar todos os pecados. Enquanto os dias passavam pesados e eu tentava decidir o que fazer, a hecatombe aconteceu. Na verdade, eu tinha calculado mal a reação da Celina. Ela não entregou o jogo tão fácil. Através de uma dessas malditas redes sociais, onde todo mundo se conecta com todo mundo, ela descobriu o perfil da Marcela, entrou em contato e, o horror, mandou um e-mail contando tudo. A vaca sabia que não havia mais nada e, como os fatos demonstraram, não me deixou sair ileso da situação. Uma vez que você me acompanhou até aqui, leitor, chegou agora na experiência mais próxima que já tive do conceito de “Apocalipse”. Aquela noite foi terrível, sofro muito por contar isto. Eu sabia que estava tudo acabado, por minha única e exclusiva culpa. Presenciei ali uma Marcela 27


ferida de morte, totalmente transtornada, sem direção. Eu arranquei de sua alma, de repente, da forma mais grosseira possível, tudo o que ela sentia de verdade, que lhe era valioso, toda a confiança e esperança em um futuro bom, uma vida digna, ao lado do homem que ela tanto amava. Ali eu soube, com toda clareza, o que é ser um traidor, com todas as letras em caixa-alta, ao trazer trevas para onde antes havia luz. Olha, para evitar ainda maior sofrimento, não vou recriar o verdadeiro cenário de choro e ranger de dentes que se passou, você pode imaginar por si mesmo. Vou direto ao ponto: Marcela me expulsou de seu apartamento e da vida dela. Terminou comigo, com toda razão e toda a firmeza de uma pessoa justa que sofreu a injustiça mais amarga. Ela deixou bem claro aquilo que eu fui perceber no meio deste pesadelo: aquela mulher realmente me amava. Por mais que eu não merecesse, ela tinha planos maravilhosos, era uma guerreira, queria construir uma vida ao meu lado, casar, ter filhos e netos comigo. Não existe sensação de perda mais legítima do que trair a pessoa que você ama e, depois disso, você ter certeza de que ela amava você. Mas aí já era muito tarde. Só depois que o amor se despedaçou por inteiro eu pude entender toda a dimensão, profundidade e escuridão da fossa na qual me meti. Estava realmente condenado, sem volta, cercado de demônios insuportáveis e — o pior dos castigos — vivenciando um 28


requinte de crueldade bíblico: uma vez no inferno, você tem a capacidade de ver o que acontece no céu e perceber que não pertence ao paraíso. Você se tornou um anjo caído­. Um pobre-diabo condenado a não ter, nunca mais, a bênção que outrora teve. Pois é. Você tem alguma noção do que estou vivendo? Não quero soar exagerado, mas agora temos uma vaga ideia da desolação que Lúcifer sentiu após ser lançado dos céus e cair nas profundezas dos infernos. No meu caso foi até pior, pois voltei definitivamente para o apartamento com Frederico, que foi para a cozinha fritar um pão com ovo, naquela pegada de quem acabou de acordar e não está preocupado com os dois anos de atraso acumulados na faculdade. Daqui para a frente, sinceramente, não sei o que fazer, a não ser deixar o tempo passar, doloroso. Esforço-me, dia após dia, para manter o interesse no meu emprego, nas aulas que se arrastam com um permanente nó na garganta. Ter sua atenção nesta maldita trilha é um alento, embora eu tenha a fúnebre sensação de que este é o próximo passo para uma derrota completa e merecida. Mesmo assim, agradeço você por me acompanhar, pois ainda tento me agarrar a qualquer vã esperança de redenção ou — para não pedir muito — passar por alguma mudança que me torne um homem diferente. Como cantou David­ Bowie­, “o tempo pode me mudar, mas eu não posso enganar o tempo”. 29


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